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À margem - experiências de literatura com pessoas encarceradas

Resumo

Durante os anos 2012 e 2013, a autora participou de uma série de oficinas de Escrita Criativa e Mediação de Leitura no Presídio Militar Romão Gomes. Numa parceria da SPLeituras e da Fundação Nacional de Amparo ao Presidiário (Funap), as oficinas estavam direcionadas à formação de novos leitores. O texto apresenta o relato desse trabalho, que extrapolou em muito as suas aspirações iniciais, apoiado especialmente na percepção da literatura e do contar da própria história como mecanismos poderosos para a reorganização pessoal e a descoberta de novas formas dentro do campo da linguagem.

Palavras-chaves:
Escrita criativa; Presídios; Observação

Abstract

During 2012 and 2013, the author participated in a series of writing workshops on Creative Writing and Reading Mediation at the Romão Gomes Military Penal Institution in São Paulo, Brazil. In a partnership between SPLeituras and the National Foundation for Prisoner Protection (Funap), these workshops aimed at preparing new readers. This article presents an account of the work at these workshops, which greatly exceeded its initial aspirations and was supported mainly by the perception of literature as well as by the narration of one’s own story as a powerful mechanism for personal reorganization and for the discovery of new ways within the field of language.

Keywords:
Creative writing; Penal institutions; Observation

Nenhuma vida humana, nem mesmo a vida do eremita em meio à natureza selvagem, é possível sem um mundo que, direta ou indiretamente, testemunhe a presença de outros seres humanos.

(Arendt, 1999ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 1999., p.31)

Experimentar situações de leitura e escrita em ambientes (relativamente) inóspitos põe em xeque a nossa capacidade de admitir, de fato, o potencial transformador que a arte (de uma maneira geral) e a literatura (de forma particular) têm na vida de uma pessoa. Sejam populações em situação de rua, sejam presidiários, sejam quaisquer outras minorias à margem da vida que tendemos a considerar “normal”, de que forma podemos efetivamente manter a nossa certeza (ou o nosso desejo) de que a escrita estética (portanto, com um caráter menos utilitário e imediato), o contar de uma história, seja um lugar de liberdade e humanidade? Especialmente quando o mundo nos grita violência, arbitrariedade e intransigência?

Podemos apoiar-nos nas bem conhecidas palavras de Antonio Candido (2005)CANDIDO, A. O direito à literatura. Coimbra: Angelus Novus, 2005. , aquelas que nos garantem ser a arte o caminho de humanização do ser humano. Podemos lançar mão da pequena frase da grande poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen: “só a arte é didática”, e depreender que só a partir dela realmente aprendemos alguma coisa. Ou podemos aproximar-nos de Hannah Arendt quando, em citação a Isak Dinesen, nos diz que “todas as mágoas são suportáveis quando fazemos delas uma história a seu respeito” (Arendt, 1999ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 1999., p.188). E, contudo, tudo isso pode ainda parecer pouco, quando a tarefa implica sentir e perceber essas por enquanto teorias diante de algumas dezenas de pessoas privadas da sua liberdade.

Para chegar ao meu primeiro dia de trabalho no Presídio Militar Romão Gomes (PMRG), aos pés da paulistana Serra da Cantareira, perdi-me em meio ao enovelado de ruas. Precisei pedir ajuda a alguém que passava, e esse alguém riu-se, virou-se para o companheiro de caminhada e, jocoso, comentou: “Aquilo, presídio? Aquilo é um hotel cinco estrelas!”.

De fato. À primeira vista, o Romão Gomes é um presídio todo especial. Uma relativa liberdade de ir e vir (dentro de suas cercas), um à vontade quase natural de tratamento, um auditório confortável para trabalhar. Um olhar mais atento, porém, menos suscetível à aparência imediata das coisas, não deixa esconder a tristeza por trás de todos os olhos. Meu trabalho nesse presídio surgiu de uma parceria entre a Associação Paulista de Bibliotecas e Leitura (SPLeituras)1 1 A Associação Paulista de Bibliotecas e Leitura (SPLeituras) é uma organização social sem fins lucrativos, criada em maio de 2010. De natureza cultural, é uma instituição engajada em ações relacionadas à propagação do gosto pela leitura. Gere iniciativas da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, pela unidade de Difusão Cultural, Bibliotecas e Leitura (UDBL). É ela a gestora da Biblioteca de São Paulo (BSP) e da Biblioteca Parque Villa-Lobos, ambas na capital. Coordena o Sistema Estadual de Bibliotecas Públicas (SisEB), promove o programa Viagem Literária e o Prêmio São Paulo de Literatura. e a Fundação Estadual de Amparo ao Trabalhador Preso (Funap).2 2 A Fundação Nacional de Amparo ao Presidiário foi instituída em 1976 e está vinculada à Secretaria de Estado da Administração Penitenciária. Tem sob a sua responsabilidade 168 estabelecimentos penais, dentro dos quais planeja, executa e avalia programas sociais nas áreas da assistência jurídica, da educação, da cultura, da capacitação profissional e do trabalho, dirigidos a pessoas privadas da sua liberdade. A proposta, dentro do programa Praler da citada associação, tinha o intuito de contribuir para a formação de novos leitores. O projeto, porém, extrapolou em muito a ideia inicial.

“Disciplina, dignidade humana e trabalho” são os valores cultuados dentro do PMRG, em busca do cumprimento de sua missão: “prevenção da criminalidade, reeducação e ressocialização dos internos” (Nogueira et al., 2014NOGUEIRA, A. C. et al. Mentes livres - experiências literárias em um presídio militar. São Paulo: SPLeituras, 2014., p.9). Sua população gira em torno de 180 pessoas condenadas nos regimes fechado e semiaberto, ou presos à disposição da justiça. As oficinas realizadas integraram-se às demais atividades do presídio (distribuídas pelas áreas trabalho, esporte, estudo e assistência à saúde física e mental), dentro do campo dos cursos voltados à capacitação profissional, mediante termo de cooperação firmado entre a Funap e outras entidades (nesse caso, a SPLeituras).

Trabalhar com policiais presos causou-me, num primeiro momento, profundo desconforto. Tratei de desmontar os vários preconceitos com a eficácia que me foi possível antes desse primeiro encontro - corpos policiais não eram meu desejo de trabalho nesse momento, tendo bastante dificuldade em percebê-los fora do campo da violência, da arbitrariedade e da desonestidade. Mesmo assim, em grande parte os preconceitos lá ficaram, resistentes às minhas tentativas de avaliação fria e racional, como é da natureza das coisas que pensamos saber e conhecer antes de lhes termos posto os olhos em cima. Porém, ao longo de poucas semanas, aqueles policiais deixaram de ser “o grupo do presídio” e passaram a ser o André, o Cruz, o Iranei, o Bélido, o Adilson, o Julião, o Ricardo, o Gama, o Barra, o Ronaldo, o Figueira, o Santinho, o Gomes, o Prado, o Sidney, o Fabiano, o Lima, o Ailton, o Soares, o Paulino, o Samuel, o Di Lucia. Os seus rostos acompanharam-me por muitos meses, por onde quer que eu fosse: uma padaria, o supermercado, a sala da minha casa, um almoço de domingo com amigos; fizeram-me olhar para o mundo com vontade de ver por quem não podia fazê-lo. Se fechava os olhos, via-os dentro da sala em que trabalhamos, cada um sentado em seu lugar cativo, o que me ajudava a lembrar dos nomes e associá-los à fisionomia, e essa àquilo que tinha entre mãos, seus sonhos e o seu íntimo em forma de palavras.

Pouco soube de seus crimes, ou quis saber. Apenas o que me contavam. O que me coube esteve contido nessas horas em que fomos todos seres humanos em busca da palavra exata, da construção precisa, da história a ser contada. Todos seres humanos lutando por entender-se, com dificuldade de perceber-se e urgência de perdoar-se. Preferi olhá-los enquanto liam em voz alta o que escreviam, numa entonação que não consegui depois reproduzir, e cuja memória me emocionava ainda passadas horas. Como em todos os demais grupos de escrita literária, as dores apareceram por entre as linhas, as mais profundas esgueirando-se tenazes pelas letras que avançavam fosse qual fosse o assunto. Transmutaram sofrimentos sem quase perceberem que o faziam, e eu tive o privilégio de assistir e ser partícipe de tudo isso. É fácil falar do quanto a palavra liberta a quem pensa ter a liberdade ao seu dispor; para quem sabe que liberdade é aquilo que corre nas ruas lá fora, libertar-se tem outro sentido.

Ao longo das semanas de trabalho com esses homens, policiais condenados e recolhidos a esse presídio, penas variando entre poucos e muitos longos anos, eles escreveram, e eu também escrevi. Precisei, penso hoje, transformar em histórias o que ouvia e via para poder lidar de alguma forma com esses dramas que, mesmo não querendo nem procurando, se revelavam nítidos e crus por dentro das palavras. A escrita revelou as dores, as misérias, as alegrias, as vergonhas, a inconformidade e os arrependimentos de cada um. A diferença, aqui, foi a intensidade - privado da visão de futuro, o passado ganha mais força e contorno, dentro das margens de um presente triste e sombrio. Por isso, alguns momentos que transcrevo ao longo do presente texto, e que se encontram grafados justamente por isso em itálico, inclinam-se porque extrapolam os limites da “verdade”, uma forma de poder tê-los resolvidos dentro de mim, sujeito ativo dessa experiência, ator e espectador ao mesmo tempo. Como disse Arendt (2000, p.52)_______. A vida do espírito. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000., uma tentativa de “aprender a lidar com o que irrevogavelmente passou e reconciliar-se com o que inevitavelmente existe”, afinal a tarefa que eu a um mesmo tempo lhes e me propunha.

A cada encontro, não era só escuta. Também eu lhes lia o que produzira a partir dos nossos encontros, entre um e outro. Eles se encantavam, verdadeiramente, por serem personagens de uma história que era a sua, mas que viam colorida pela pena literária de quem lhes lia. Riam das partes que reconheciam como suas, e riam mais ainda com as motivações que eu lhes dava e os detalhes que acrescentava por minha própria conta. E acreditavam mais não só na sua própria história, mas também na sua própria capacidade de escrever e fazer literatura a partir das suas experiências.

Cada indivíduo tem sua história e cada história tem seu cheiro.

Marco Aurélio Pereira Lima.

Sem saber, vivi como se cada instante fosse o último. Pela primeira vez, uma vida com outro estilo, vista e vivida de um novo ângulo, sem estar alienado.

Kleber Santos

A proposta envolvia também não apenas escrever suas histórias, resgatar a sua vida e torná-la matéria de escrita, mas refletir sobre essa escrita e permeá-la de algo a que nunca dei nome, e poderia aproximar-se a preocupação estética. A cada encontro, projetadas na parede, encontravam as suas próprias palavras expostas, recortadas de dentro de seus textos, isoladas dentro da sua beleza, da sua emoção, da sua força estética, para que pudessem ser apreendidas em toda a sua força e significado. Projetadas as suas palavras, todos se tornavam espectadores de si mesmos, percebendo-se contadores de histórias não só interessantes como, mais ainda, “bonitas”. E esse “escrever bonito” tornou-se um valor, uma admiração tanto por si como pelo outro.

Lobo, fera ou homem, muitas vezes um solitário que busca algo: a felicidade.

Ivan Pereira da Silva

Ainda sou pobre na relação com a caneta e o papel.

Adilson Rodrigues

Aprendi, grupo a grupo, que todos temos não só algo a dizer, mas algo a dizer de forma que toque o outro profundamente. Aprendi a perceber, aos poucos, onde estão essas pérolas e a levá-las de volta a seus donos, que, via de regra, olham para elas entre o incrédulo e o encantado. Esse encanto, algo espantado, permitiu que, em alguns momentos, as intervenções pontuais nos textos fossem recebidas com muito respeito e consideração, e fossem de fato assimiladas e valorizadas. Questões formais inclusive.

Eu lia, e eles liam. Da primeira vez, tímidos, reativos, sem quererem expor e se expor. Porém, a falta de poder ir e vir, a falta do que fazer, dá coragem nova. Por que é preciso aproveitar o tempo e o poder estar ali.3 3 Os participantes das oficinas precisavam cumprir alguns requisitos, que incluíam bom comportamento, entre outros. Era, portanto, uma conquista poder participar das oficinas.

Aqui aprendi a trabalhar também os músculos, porém o principal foi desenvolver e trabalhar com o cérebro, que antes ficava como um pneu que gira o mundo, mas nunca sai da roda.

Samuel Pereira Lima

Em pouco tempo, as mãos levantadas querendo ler se multiplicaram, talvez por perceberem que o elogio viria muito, muito antes que a crítica. As pessoas precisam sentir-se queridas e valorosas, e as pessoas encarceradas talvez mais ainda. Todos os dias vivem com a sua culpa pendurada diante de si como um cartaz. Cada manhã é uma nova condenação.

Seu Eliazar (nome fictício) e a sua história me tocaram profundamente; dias depois, eram todos eles que se emocionavam ao ouvir essa história que reconheciam e não reconheciam ao mesmo tempo. Ao fim da leitura, um dos homens exclamou: “é como se você contasse a nossa história e nós só descobríssemos que é nossa quando termina”.

Seu Eliazar tem lugar marcado em nossos encontros: fundo da sala, numa das cadeiras ao centro, as pernas invariavelmente cruzadas. Bastante cabelo, quase todo branco, olhos vivos enevoados por trás das lentes grossas. Fala baixo e pouco. O que ele gosta é de escrever.

Sustentou mulher e filhos com a venda das músicas que compunha e com os bicos como carpinteiro, nessa ordem de importância. Trabalhava de dia e avançava pela noite em busca da medida certa entre melodia e palavra.

O violão, não abandonou nunca, a carpintaria trocou-a por outra profissão, e a pequena cidade onde morava substituiu-a pela capital. Sempre que alguém novo aparece por perto, em pouco tempo ele se oferece para cantar as músicas que escreveu e viraram sucesso, diz ele e os demais corroboram, na voz de Jerry Adriani.

Seu Eliazar ocupa a mesma cela 23 há oito anos. Refaz-se todos os dias escrevendo e fazendo o bem sem olhar a quem, como gosta de dizer uma e outra vez. Como se pela palavra seu desejo se realizasse.

Trabalha na lavanderia montada dentro dos muros da prisão. Dois hotéis da cidade usam os serviços; é um sucesso. Qualquer trabalho, no presídio, é um sucesso: a cada três dias trabalhados, um dia de remissão de pena. Seu Eliazar nem pensa nisso: não sabe bem como enfrentará o mundo lá fora, o que ele quer é ocupar o tempo de hoje.

Recebe a visita da mulher muito de vez em quando. Escreve-lhe longas cartas, elaboradas e apaixonadas, como se a tivesse ao lado, disposta a ler as palavras difíceis que gosta de usar, e recebe de volta bilhetes curtos e apressados, notícias dos filhos e dos dois netos que entretanto chegaram.

Um deles já foi trazido para conhecer o avô. O outro é ainda pequeno demais, diz a filha que o visitou uma vez e nem abraçá-lo conseguiu.

Se lhe perguntam qual o pior dia de sua vida, Seu Eliazar não titubeia: aquele em que decidiu entrar para a corporação. Achava bonito, usar farda. Ser respeitado. Ter um trabalho de horas certas, com progressão de carreira, possibilidades de futuro, dinheiro certo e garantido ao fim do mês. Passou sem dificuldades pelas provas e testes. Todos os lugares comuns desfilados.

No dia em que foi preso, a mulher apresentou-se diante do comandante responsável pelo presídio. Olhos inchados de tanto chorar, levantou-lhe um dedo e disse-lhe:

- O senhor veja o que vão fazer com ele aí dentro. Entreguei um homem pra corporação, os senhores desfaçam esse monstro que querem me devolver.

Tudo isto aos gritos, o que deixou Seu Eliazar com fama de bem casado no presídio. Seu Eliazar encolheu os ombros, e não conseguiu olhar-se no espelho. Ainda hoje se procura por trás das rugas que o aumentam em uma década de anos.

Seu Eliazar serviu durante anos como achou que devia, descobrindo mês a mês que o dinheiro garantido não fechava as contas. Montou uma pequena marcenaria nos fundos do quintal e decidiu ensinar os dois filhos homens. Não tinham gosto, preferiam a rua. Seu Eliazar inquietava-se, e a mulher também.

No dia em que prendeu o traficante, não havia trânsito, a temperatura era amena, todos de bom humor em casa, todos de bom humor na delegacia. Sentiu-se poderoso e cumpridor ao trazer o indivíduo algemado, entrando na delegacia pela porta da frente. A vingança não demorou: os filhos foram assaltados na rua, a mulher dormia assustada quando Seu Eliazar estava no turno da noite, acordava com pancadas na porta, a filha recebeu bilhetes com ameaças anônimas. Os olhos de Seu Eliazar injetavam-se de sangue com cada vez mais facilidade. Na delegacia, os colegas percebiam-lhe a cólera crescente, filha do medo. E sorriam entre si, “Eliazar agora que é um dos nossos”.

Seu Eliazar passou em casa na quinta feira em que foi preso, já tarde. A mulher dormia exausta, os dois filhos homens também, a filha ainda faltava. Saiu para procurá-la. Aflito, mau pressentimento. Vê-a ao longe, na esquina antes de casa. Não tem dúvidas: dois tiros deixam dois corpos de homem no chão, sem aviso e sem perguntas. A filha aos gritos de “o que você fez, pai?”, e as sirenes a seguir, e os gritos da vizinhança. Abuso no exercício do poder, disse-lhe o comandante ao dar-lhe voz de prisão. Dia de muito azar, disseram os vizinhos que todo dia viam alguém morrer. Perdeu a insígnia, a arma, a farda e a liberdade.

Anteontem, Seu Eliazar conta que vai ser libertado. Está como no dia em que chegou a casa e sentiu falta da filha. Aflito, não sabe como irá suportar os olhares dos de fora, a vida inteira pela frente com uma marca nas costas. Escreve pouco nesse dia, levanta-se para ir ao banheiro, está mais calado que todos os demais. Dão-lhe palmadas nas costas, felicitando a liberdade ao virar do dia. Seu sorriso é todo amarelo, e diz que vai cantar o hino do presídio: Há verdades que a falsa comédia/lhe arranca o pseudo capuz/e a plateia sorri vendo a pedra/ser lançada na cena sem luz. Seus olhos lacrimejam enquanto canta, a voz num fio fino e baixo. Quando sai, despede-se com um olhar em volta, sabendo que já não estará no próximo encontro. Seu Eliazar retirou-se da vida nessa madrugada, um pulo na frente do medo desembestado, uma poça de sangue onde boiam seus últimos versos: necessito de um deserto/de um inferno/de um buraco aberto no centro do peito.4 4 Os versos finais são do poeta Atiloa da Ribeira (pseudônimo).

O encarceramento é uma experiência limite de solidão. Pelos relatos, pude perceber o que significa ser sentenciado, sair da condição de “estar à espera do processo” e ter decretada a sua sentença. Mais ou menos anos, com mais ou menos possibilidade de recursos e remissões de pena... ainda assim é um momento crucial em que o futuro repentinamente se desenha. A solidão então (apenas imagino) deva ser absoluta.

Algumas das leituras que fizemos, despretensiosas porque seu objetivo era o encantamento imediato, criaram as condições de criação. Lemos “A morte do leiteiro”, por exemplo, de Carlos Drummond de Andrade, e a sua aparente simplicidade pouco movimentou à primeira vista. Foi preciso ler outra vez, estrofe a estrofe, parando aqui e ali para nos perguntarmos o tempo inteiro “o que será afinal esse leite?”. E aos poucos os ecos se ouviam: “é assim mesmo, o revólver salta pra mão, não é nem a gente que pega”; “bandido se mata com bala, parece coisa da corporação!”. E, afinal, “esse leite só pode ser a liberdade”.

Em outro momento, lemos “O poema da palavra exata”, de António Gedeão, e logo na primeira leitura, antes mesmo de voltarmos aos desafios de vocabulário que o poema oferece, alguém soltava lá de trás: “Ah! Biltres então somos nós! Por isso que você trouxe, foi?”. E riam-se, porque sabiam que não - já havia uma cumplicidade de afeto construída, daquelas coisas que permitem aproximações de fato.

E lá íamos em busca das palavras exatas, que dessem contorno preciso àquilo que fazíamos ali, degelar, desestruturar, desarrumar a memória para trazê-la à superfície e transformá-la em matéria de história. Fizemos isso, numa oportunidade, recorrendo a mãos que lembrássemos e com as quais tivéssemos uma relação de afeto. Quaisquer mãos, que precisávamos num primeiro momento reacender em nossa memória, trazendo-as em detalhes, numa escrita que as trouxesse extáticas, paradas, visíveis diante de nossos olhos. Uma escrita descritiva, portanto, mas sem a necessidade de secura. Depois, colocá-las em movimento, o movimento que seria só delas, e descrevê-lo, e, ainda num terceiro momento, descrever o melhor lugar do mundo onde se pode estar. Por fim, o exercício fechava-se em si mesmo com mais uma escrita, a junção de todos esses elementos num texto só.

Mãos que ao tocarem nos fazem sentir o calor do amor, da paixão e da paz. Mãos que adquirem conhecimento, mãos que leem, mãos que criam, mãos que cozinham, mão que se cansam, mãos que descansam. Mãos que coçam a cabeça de preocupação, mãos que dirigem, mãos que levantam para o céu e agradecem pela sua existência.

André Aparecido dos Santos

Mãos que ajudam Julia a fazer um castelo de areia quando está na praia, que seguram as mãos de Babi quando pula as ondas do mar, que passam o bronzeador para contemplar o sol e que se despedem quando vão brincar no mar. Quando somos privados de algo de que gostamos, passamos a dar mais valor às coisas simples da vida. O meu melhor lugar do mundo é a minha casa, junto com a minha família, de mãos dadas com a liberdade.

José Ricardo Prado Ramos.

Todas as propostas me atingiam também a mim. Com eles, também eu escrevia, entregue à mesma entrega que lhes pedia. Foram raros os momentos em que não me pediram que também eu lesse. Assim, nosso pacto se cumpria: todos nos devemos o direito de mostrar aos outros quem somos, através do que escrevemos. O exercício das mãos foi um desses momentos, permeados de grande emoção, ao qual me dediquei horas depois.

São as mãos da esposa que correm à lembrança do Pontes. Lembra-as com todos os detalhes possíveis, o dorso de veias fortes, as palmas de sulcos profundos, a delicadeza dos dedos, a força do aperto. Conforme escreve, observo-o, absorvido pela ação da memória. Vejo-o balançar a cabeça de vez em quando, nesse esforço de se recordar de umas mãos quaisquer, desde que importantes. Outros lembram-se das mãos da mãe, das mãos do filho, até das mãos de Deus, aquelas que “são invisíveis mas podem sentir-se”. Por todos temo que seja excessiva a tarefa de lembrar-se; é um terreno sombrio, este da memória dentro de um presídio.

Trago as mãos da esposa de Pontes para casa, dentro da pasta. Digito-as, a todas as suas letras, para mandá-las como presente a ela. Não me pertencem, estas mãos. E agora que é noite, e recolho as folhas para as ler outra vez, ao mesmo tempo em que percebo os avanços inegáveis na pontuação, vejo por entre as linhas de caligrafia harmoniosa e serena os sinais impronunciáveis da dor da saudade e da ausência. Se entrecerro os olhos, quase consigo imaginar essas “mãos de dedos que se abrem e fecham como leques” descobrindo na tela do computador o quanto estão presentes dentro do marido preso. Imagino-a rodeada pelos oito gatos que são como filhos, e ao lado os dois filhos de fato dormindo no sofá, e os olhos que piscam porque já é tarde, e levantaram-se cedo, e estremecem eles também com a luz ofuscante da saudade. A mesma insônia que faz Pontes não dormir avança por entre as ruas da cidade escura até chegar às mãos da mulher que também não consegue adormecer.

Neste novo ano, Pontes anseia pela sua saída da prisão. O mesmo desejo e a mesma expectativa de muitos destes homens - ser este o ano da sua libertação, do regresso à vida da família. Não há nada, parece, que tenha mais importância na vida desses homens do que a mulher e os filhos que ficaram do lado de fora.

Brandão é diferente - cada vez que se aproxima o dia da saída, de alguma forma ele consegue uma punição de mais seis meses. É-lhe insuportável pensar em voltar a ser uma pessoa lá de fora. A cadeia, de certa forma, protege-o e oferece-lhe um lugar no mundo. Brandão conta piadas e alegra o ambiente assim que chega, às vezes atrasado e sempre bem-humorado. Mas o olhar trai o seu receio, e quando conversamos e olho em seus olhos, ele desfaz o sorriso que usa como máscara. E seus olhos ficam cinzas de tão tristes. Brandão conhece a mulher do Pontes, e enquanto ouve o companheiro ler o seu texto em voz alta, a meio de um silêncio respeitoso feito catedral, emociona-se e diz-lhe ao final:

- Caramba, Pontes, é assim mesmo, eu lembro das mãos dela, é que nem você fala, eu queria saber falar das minhas coisas bonito que nem você faz.

E enxuga os olhos com as costas da mão, e é preciso que o lembrem do texto que escreveu agorinha mesmo, quando todos sentiram a sua mesma emoção no gosto da caranguejada que gosta de preparar com a ajuda do pai. Estão todos emocionados, com a força e a verdade das lembranças próprias e alheias. E eu também. E quem mais estivesse aqui sentiria o mesmo, porque a empatia ainda é o nosso dom mais precioso, e sentir a dor alheia, solidarizar-se com ela pela lágrima que escorre ou pela mão que acolhe, é uma possibilidade preciosa de redenção e de humanidade.

Em um dos encontros, usei uma fotografia tirada na cracolândia paulistana, horas antes da “Operação Sufoco”.5 5 A chamada “Operação Sufoco” foi uma operação policial e política levada a cabo por autoridades das esferas estadual e municipal na cidade de São Paulo, na região da cracolândia, nas proximidades da rua Helvétia, em janeiro de 2012. A operação ficou também conhecida como “Operação Dor e Sofrimento”. Seu objetivo era combater o tráfico e expulsar da região viciados em crack. Foi caracterizada por intensa e violenta repressão policial aos usuários de drogas. Consistia numa fotografia jornalística, onde se via um grupo de cerca de 20 pessoas em roda, de costas para o fotógrafo, não sendo possível ver nem o centro da roda, nem o rosto das pessoas, nem o que faziam. O cenário retratava o típico centro de uma cidade grande: prédios, fiação elétrica aérea e asfalto.

A intenção era despertar o olhar observador objetivo,6 6 O olhar de cunho observador, centrado naquilo que o olho vê e que deve ser referendado pelo grupo que observa o mesmo elemento, baseia-se nos postulados de Goethe (2005) acerca do processo fenomenológico de observação. A proposta do romântico alemão apoia-se em quatro passos que dão acesso à percepção da essência daquilo que se observa; recebe o nome de “observação goetheanística” e tem aplicação prática nos campos da pedagogia, da medicina, da farmacologia, da terapia, da agricultura e da arte, entre outros. distante dos processos de julgamento crítico. A escrita de observação, que se aproxima em muito do desenho de observação, pode constituir um exercício poderoso e importante quando as pessoas se dispõem a escrever. Pode ser utilizada em qualquer grupo, de qualquer idade e constituição, seja homogêneo ou heterogêneo; a mim, serve-me às vezes para radiografar essa mesma constituição e pensar nos passos seguintes.

A escolha da fotografia, nesse dia, obedeceu ao reconhecimento do grupo que a veria: um novo grupo de policiais, uns julgados e condenados, outros aguardando os processos jurídicos. Entre eles, alguns cumprindo pena pelos excessos da invasão da cracolândia que a fotografia mostrava.

Usar imagens extáticas para exercitar o olhar observador foi inspiração que me chegou pelas mãos de José Saramago (2016)SARAMAGO, J. Cadernos de Lanzarote. 7.ed. Porto: Porto Editora, 2016., numa pequena crônica escrita sobre a sua relação com uma fotografia da Anistia Internacional em defesa aos direitos dos presos políticos chineses. Um texto curto, tocante e forte, sobre a necessidade de conseguir ver o que está nas coisas. E, depois, tomar posição. E, depois, não se deixar aniquilar pela sucessiva, anestesiante e contemporânea exposição maciça a imagens e mais imagens.

Nem todo grupo consegue chegar a um patamar de observação objetiva com facilidade. Quanto mais próxima é a imagem do universo e do repertório dos participantes, mais difícil parece ficar. As injunções, as deduções, as especulações, aparecem com muito mais facilidade quando se tem a impressão de que se sabe o que se vê. Por isso, normalmente, tendo a usar imagens que não sejam familiares ao grupo com quem trabalho. É mais fácil ser objetivo com o que não se reconhece.

Mas não nesse caso. Porque, na realidade, quis tocá-los rapidamente. Levá-los à exposição de si próprios sem reflexão. Acessar os seus mecanismos automáticos nessas poucas horas que temos juntos ao longo de algumas semanas.

Nesse aspecto, fui bem-sucedida. Todas as frases construídas, que se pretendiam e buscavam ser objetivas, foram subjetivas e emitiram julgamentos. Espantamo-nos, nós, os que observávamos os observadores, não tanto com a dificuldade em se afastar do motivo da observação e enxergar apenas o que é visível, mas com a enorme insistência em querer referendar a sua visão preconcebida como legítima. Demorou tempo para chegarmos a consensos do que era e do que não era visível.

As frases usadas nesse processo são as chamadas frases afirmativas, descritivas, nominativas. São afirmações e, por isso, verdades indiscutíveis. Para serem indiscutíveis, precisam ser referendadas por todos os olhos que as observam, num movimento em que percebamos que é “a presença de outros que veem o que vemos e que ouvem o que ouvimos que nos garante a realidade do mundo e de nós mesmos” (Arendt, 1999ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 1999., p.60). É preciso que todos reconheçam, na imagem que têm diante de si, aquilo que a frase afirmativa diz. Assim, “um grupo reunido em roda” é diferente de “um bando usando droga”. Levou tempo até chegarmos ao consenso do “grupo reunido em roda”, e mais ainda para percebermos, entre muitas outras coisas que visavam o treino desse olhar que registra o que efetivamente vê, “um homem de costas, sem camisa, de calça jeans, mãos na cintura e camiseta listrada enrolada na cabeça” em vez de “um cara querendo comprar bagulho”. Levou mais tempo do que é costume com outros grupos. A descrição imediata de boa parte foi “é um grupo de vagabundo vendendo bagulho”.

Fiquei surpresa e assustada com o ter sido tão bem-sucedida. Bem-sucedida em conseguir acessar o que (afinal) não gostaria de conseguir acessar tão facilmente. Porque tão fácil quanto ser manipulado é manipular, especialmente quando encontramos o outro numa situação de vulnerabilidade. Conduzir o outro por onde você quer que ele vá. Seja o objetivo nobre (quero acreditar que o meu fosse) ou não, chega a ser assustador ver a sua manipulação surtir efeito tão rápida e intensamente. O poder da “mão que sugere” é habilmente usado todos os dias, a todos os momentos, por todas as mídias e recursos que nos rodeiam. Manter-se imune é quase impossível, e não ser massa de manobra quase uma utopia.

Nesse dia, fui obrigada a olhar para esses homens à minha frente, policiais concursados agora sob o estatuto de presos condenados, de forma diferente. Nesse momento do trabalho, os preconceitos iniciais já haviam em boa parte cedido, por ter entrado em contato humano com esses policiais presos. Por saber de seus nomes e me espantar com os crimes que cometeram e a maneira como falam deles. Por ouvir o que escreviam e sentir duas dores, aspirações e desejos de serem melhores do que eram, como quase todos nós que vivemos do lado de cá das grades. Tanto fazia que todos se declarassem inocentes, ou com tantos atenuantes que fosse quase a mesma coisa. Tão frágeis quanto qualquer um, tão expostos à cultura de manipulação quanto qualquer um.

Num segundo momento do exercício das frases, migramos para o segundo tipo: as frases que desejam intensamente relacionar-se com o objeto que tão bem e tão desapaixonadamente se observou. São as frases que provocam o diálogo - as interrogações.7 7 Rudolf Steiner, filósofo austríaco que retoma as ideias científicas de Goethe e estabelece as bases da Antroposofia, considera a devoção o primeiro passo para aceder às realidades (ainda) invisíveis. Para o seu cultivo, como autoeducação, é necessário observar procurando imiscuir-se minimamente no observado; o segundo passo, que em termos de linguagem podemos considerar como interrogações, perguntas, permite que observemos e criemos um campo de interesse dentro de nós, que deseja aproximar-se do que foi observado e, por isso, se fazem perguntas, por interesse. Esse movimento, longe de matar a devoção e a entrega primeiras, expande o sujeito observador na direção do que observa, a partir do genuíno interesse e não do julgamento crítico imediato, e permite que ele dê um primeiro passo na direção do mais essencial disso que se observa. Assim, nesse mesmo dia e muito muito aos poucos, chegamos a um “estarão usando droga?”, pergunta que transforma tão radicalmente a afirmação errônea de por princípio dizer de “um bando usando droga”. Chegamos a “esse homem está vendendo droga?” em vez de “é um bando de vagabundo vendendo bagulho”.

Aqueles mesmos policiais que, vinte minutos antes, não hesitaram em julgar o grupo que observavam, transformaram as suas afirmações apressadas em perguntas que transpiraram humanidade. A observação apressada depreendeu situações e realidades que, mesmo podendo ser verdade, não o são objetivamente; acionou o treino do agir sem hesitação e com rapidez, quando chamado a isso; demonstrou o sentimento de ameaça ao redor o tempo todo, e o ser instado a agir antes que o outro o faça.

Um dos alunos desse presídio disse-me que quando foi selecionado no concurso ficou muito orgulhoso, por ter conquistado uma das 1.000 vagas disputadas com 50.000 outros cidadãos. Naquela altura, convivendo dentro do presídio com o pior que existe dentro da corporação, via que isso nada significava. Ser um desses 1.000 o deixava realmente deprimido, pela falta de qualidades que via em seus colegas.

Esse mesmo aluno, ao terminarmos de trabalhar com a imagem, que nada mais era do que um recurso para acessar a consigna de escrita daquele dia, exclamou num repente, ao ser confrontado com a possibilidade de, antes de definir (e, portanto, agir), indagar: “é o tempo que pode levar a minha mão na direção do revólver”.

Se a literatura pode nos fazer caminhar para um mundo de mais entendimento, resta saber. O que é possível, e isso sem dúvidas, é acreditar que a palavra, em sua dimensão mais estética e simbólica, pode ser redentora e ressignificadora do próprio lugar no mundo. Um lugar de encontro e de superação da imediata realidade, especialmente quando ela é muito menos do que se deseja e muito mais do que se suporta.

Notas

  • 1
    A Associação Paulista de Bibliotecas e Leitura (SPLeituras) é uma organização social sem fins lucrativos, criada em maio de 2010. De natureza cultural, é uma instituição engajada em ações relacionadas à propagação do gosto pela leitura. Gere iniciativas da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, pela unidade de Difusão Cultural, Bibliotecas e Leitura (UDBL). É ela a gestora da Biblioteca de São Paulo (BSP) e da Biblioteca Parque Villa-Lobos, ambas na capital. Coordena o Sistema Estadual de Bibliotecas Públicas (SisEB), promove o programa Viagem Literária e o Prêmio São Paulo de Literatura.
  • 2
    A Fundação Nacional de Amparo ao Presidiário foi instituída em 1976 e está vinculada à Secretaria de Estado da Administração Penitenciária. Tem sob a sua responsabilidade 168 estabelecimentos penais, dentro dos quais planeja, executa e avalia programas sociais nas áreas da assistência jurídica, da educação, da cultura, da capacitação profissional e do trabalho, dirigidos a pessoas privadas da sua liberdade.
  • 3
    Os participantes das oficinas precisavam cumprir alguns requisitos, que incluíam bom comportamento, entre outros. Era, portanto, uma conquista poder participar das oficinas.
  • 4
    Os versos finais são do poeta Atiloa da Ribeira (pseudônimo).
  • 5
    A chamada “Operação Sufoco” foi uma operação policial e política levada a cabo por autoridades das esferas estadual e municipal na cidade de São Paulo, na região da cracolândia, nas proximidades da rua Helvétia, em janeiro de 2012. A operação ficou também conhecida como “Operação Dor e Sofrimento”. Seu objetivo era combater o tráfico e expulsar da região viciados em crack. Foi caracterizada por intensa e violenta repressão policial aos usuários de drogas.
  • 6
    O olhar de cunho observador, centrado naquilo que o olho vê e que deve ser referendado pelo grupo que observa o mesmo elemento, baseia-se nos postulados de Goethe (2005)GOETHE. W. A metamorfose das plantas. 4.ed. São Paulo: Antroposófica, 2005. acerca do processo fenomenológico de observação. A proposta do romântico alemão apoia-se em quatro passos que dão acesso à percepção da essência daquilo que se observa; recebe o nome de “observação goetheanística” e tem aplicação prática nos campos da pedagogia, da medicina, da farmacologia, da terapia, da agricultura e da arte, entre outros.
  • 7
    Rudolf Steiner, filósofo austríaco que retoma as ideias científicas de Goethe e estabelece as bases da Antroposofia, considera a devoção o primeiro passo para aceder às realidades (ainda) invisíveis. Para o seu cultivo, como autoeducação, é necessário observar procurando imiscuir-se minimamente no observado; o segundo passo, que em termos de linguagem podemos considerar como interrogações, perguntas, permite que observemos e criemos um campo de interesse dentro de nós, que deseja aproximar-se do que foi observado e, por isso, se fazem perguntas, por interesse. Esse movimento, longe de matar a devoção e a entrega primeiras, expande o sujeito observador na direção do que observa, a partir do genuíno interesse e não do julgamento crítico imediato, e permite que ele dê um primeiro passo na direção do mais essencial disso que se observa.

Referências

  • ARENDT, H. A condição humana Rio de Janeiro: Forense, 1999.
  • _______. A vida do espírito Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000.
  • CANDIDO, A. O direito à literatura Coimbra: Angelus Novus, 2005.
  • GOETHE. W. A metamorfose das plantas 4.ed. São Paulo: Antroposófica, 2005.
  • NOGUEIRA, A. C. et al. Mentes livres - experiências literárias em um presídio militar. São Paulo: SPLeituras, 2014.
  • SARAMAGO, J. Cadernos de Lanzarote 7.ed. Porto: Porto Editora, 2016.
  • STEINER, R. O conhecimento dos mundos superiores São Paulo: Antroposófica, s. d.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    27 Maio 2018
  • Aceito
    22 Jun 2018
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