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Governança florestal: três décadas de avanços

RESUMO

O artigo abre o Dossiê Governança das Florestas Nativas discutindo os avanços alcançados pela governança florestal brasileira nos últimos 30 anos a partir de uma análise do Projeto Floram, das palestras apresentadas no “Web-Seminário Internacional Construindo Diálogos sobre Governança Florestal: Conservação, Manejo Sustentável e Restauração de Paisagens” e dos artigos que fazem parte do dossiê. Discute-se a passagem de modelos hierárquicos e centralizados para modelos de cogestão de sistemas socioecológicos florestais multiescalares, envolvendo uma diversidade maior de atores sociais públicos e privados, organizados em redes, que inovam a partir da co-construção de conhecimento, novas instituições e políticas públicas.

PALAVRAS-CHAVE:
Governança florestal; Governança da restauração florestal; Governança multinível; Sistemas socioecológicos

ABSTRACT

The article opens the Native Forests Governance Dossier discussing advances in Brazilian forest governance in the last 30 years, based on an analysis of the Floram Project, on lectures presented at the “International Webinar Building Dialogues on Forest Governance: Conservation, Sustainable Management and Restoration of Landscapes,” and on the articles that are part of the dossier. The shift from hierarchical and centralized models to co-management models of multi-scale socio-ecological forest systems is discussed, involving a greater diversity of public and private social players, organized in networks, which innovate through the co-construction of knowledge, new institutions and public policies.

KEYWORDS:
Forest governance; Forest restoration governance; Multi-scale governance; Socioecological systems

“Nós somos a floresta, fazemos parte da floresta, a nossa história é floresta, a nossa língua é floresta, nossa cultura é floresta, sem ela a gente não é nada...”

(Yakuna Ullillo Ikpeng) 1 1 Liderança Indígena do Xingu, comunicação pessoal na palestra Manejo da Floresta e da Roça, IEE-USP.

A governança florestal é um tema estratégico para a revista Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP) desde a publicação do número 9 (v.4) sobre o Projeto Floram - Florestas para o Meio Ambiente (1990), liderado pelo professor Aziz Ab’Saber (FFLCH-USP). Os artigos publicados naquele número trazem inúmeros subsídios para uma reflexão sobre o avanço no campo da governança florestal no Brasil, e as perspectivas globais no campo da governança ambiental e climática, a partir dos trabalhos apresentados no “Web-Seminário Internacional Construindo Diálogos sobre Governança Florestal: Conservação, Manejo Sustentável e Restauração de Paisagens”,2 2 Web-Seminário Internacional Construindo Diálogos sobre Governança Florestal: Conservação, Manejo Sustentável e Restauração de Paisagens. Disponível em: <http://www.iee.usp.br/?q=pt-br/evento/web-semin%C3%A1rio-internacional-construindo-di%C3%A1logos-sobre-governan%C3%A7a-florestal-conserva%C3%A7%C3%A3o>. realizado pelo Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP em 2020, e dos artigos reunidos neste dossiê.

O Projeto Floram (flor: florestas; am: ambiente) foi concebido no âmbito do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, a pedido do então reitor José Goldemberg, como uma resposta ao desafio colocado ao país no congresso Climate and Development (1988) pelo pesquisador Wilfried Bach (Universidade de Munster): “por que o Brasil, com tamanha extensão territorial e com um clima que permite o crescimento rápido de florestas, não desenvolve um grande projeto de reflorestamento destinado a fixar em fitomassa o excesso de carbono flutuante na atmosfera?” (Markovich, 1990, p.8). Naquele momento, o país encontrava-se em posição difícil frente à comunidade internacional em razão dos altos índices de desmatamento e emissão de gases de efeito estufa. Jacques Marcovitch (1990MARCOVITCH, J. As origens do Projeto FLORAM. Estudos Avançados, v.4, n.9, p.7-14, 1990.), então diretor do IEA, aceitou o desafio.

Por meio de uma abordagem interdisciplinar e interinstitucional, o Projeto Floram foi concebido com o objetivo de fixar carbono mediante um programa de florestamento e reflorestamento, e fomentar o desenvolvimento regional pela silvicultura combinada com a melhoria da pecuária e da produtividade agrícola (Ab’Saber, 1990; Ab’Saber et al., 1990, 1996). Construído a partir de uma visão tecnicista e científica inspirada no documento Tropical Foresty Action Plan da FAO (Coelho et al., 1990COELHO, A. S. R. et al. Projeto FLORAM: estratégias e plano de ação. Estudos Avançados, v.4, n.9, p.120-48, 1990., p.120), o Floram tinha um caráter orientador para as políticas públicas e a iniciativa privada em todo o território nacional. Construído com a participação de “todos os engajados na questão florestal - desde os ecologistas que combatem a devastação florestal até os industriais que necessitam das florestas” (Markovich, 1990, p.8), os documentos produzidos foram submetidos a “diferentes segmentos da comunidade científica, política e econômica. Apoiada num debate amplo, a sociedade deve assimilá-lo, havendo a expectativa de que os órgãos governamentais e a iniciativa privada o administrem dentro da realidade ecológica/social/econômica citada” (Barrichelo, 1990BARRICHELO, L. G. E. O FLORAM em discussão. Estudos Avançados, v.4, n.9, p.15-16, 1990., p.16).

O Floram foi elaborado seguindo modelos de projetos que centralizavam as decisões e a implementação, a partir de fundamentação técnico-científica gerada pela Universidade e por parceiros privados (silvicultores): “A ciência e a tecnologia brasileira, na área e abrangência do projeto, estão suficientemente aparelhadas para enfrentar esse desafio com os conhecimentos acumulados nas universidades, institutos e centros de pesquisas junto à iniciativa privada” (Barrichelo, 1990BARRICHELO, L. G. E. O FLORAM em discussão. Estudos Avançados, v.4, n.9, p.15-16, 1990., p.16). Do ponto de vista da governança, a implantação do projeto deveria ser realizada “por um pool de esforços de instituições competentes do governo, em diferentes níveis” (Ab’Saber, 1990, p.42).

O caráter ambicioso e otimista do projeto refletia a atmosfera vigente à época do início do processo de redemocratização do país, dois anos antes da realização da II Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD-ONU) ou Rio-92: “Temos certeza que um plano bem elaborado - factível e dotado de credibilidade - terá respaldo nacional e, certamente, internacional” (Ab’Saber, 1990, p.37). O Floram tinha a meta de estimular o reflorestamento de 20 milhões de hectares (2,3% do território brasileiro) em um prazo de 20-30 anos (Barrichelo, 1990BARRICHELO, L. G. E. O FLORAM em discussão. Estudos Avançados, v.4, n.9, p.15-16, 1990.), sendo 14 milhões por florestas industriais (silvicultura). A título de comparação, a meta acordada pelo Brasil no Bonn Challenge para a recuperação de floresta nativa é de 15 milhões de hectares até 2030 (Adams et al., 2021ADAMS, C. et al. Governança da restauração florestal da paisagem no Brasil: desafios e oportunidades. Desenvolvimento e Meio Ambiente, v.58, p.450-73, 2021.). Segundo o Observatório da Restauração e Reflorestamento da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, o país tem hoje 79,13 mil hectares em restauração, 10,99 milhões em regeneração e 9,35 milhões de reflorestamento.3 3 Disponível em: <https://observatoriodarestauracao.org.br/app/>. Acesso em: 22 nov. 2021. Curiosamente, os artigos publicados no Dossiê Floram não faziam menção ao Código Florestal de 1965, em vigor à época, como direcionador das áreas destinadas à restauração.

Uma década após a concepção do Floram, todavia, Zulauf (2000ZULAUF, W. E. O meio ambiente e o futuro. Estudos Avançados, v.14, n.39, p.16, 2000.) já apontava que ele não havia se tornado política pública florestal, embora iniciativas isoladas estivessem sendo implantadas. Para Marcovitch (1996_______. Iniciativas para a implantação do Floram. Estudos Avançados, v.10, n.27, p.317-320, 1996., p.317), a adoção tímida do Floram poderia ser explicada pelo baixo valor atribuído aos recursos naturais e “a elevada lucratividade dos investimentos especulativos [que] afastam os recursos financeiros dos projetos de longa maturação, de rentabilidade moderada, mas de elevada segurança”. Outras críticas e preocupações já haviam sido levantadas anteriormente quanto aos impactos ambientais e socioeconômicos pela Coordenadora da Coordenadoria de Licenciamento Ambiental e de Proteção dos Recursos Naturais da Secretaria Estadual de Meio Ambiente de São Paulo (IF-CPRN, 1990).

Desde a publicação do Floram a governança ambiental no Brasil passou por grandes transformações que refletem o processo de redemocratização do país e descentralização do poder do Estado, o aumento da participação social, o fortalecimento do socioambientalismo e mudanças na governança ambiental global (Castro; Futemma, 2015CASTRO, F.; FUTEMMA C. (Org.) Governança Ambiental no Brasil. Entre o socioambientalismo e a economia verde. Jundiaí: Paco Editorial, 2015.). A governança florestal também foi aprimorada e o país conseguiu reduzir suas taxas de desmatamento, incluir populações locais na conservação e manejo de florestas nativas, e aumentar as áreas protegidas e recuperadas (Brondízio, 2020BRONDÍZIO, E. Governing the Commons +30. In: WEB-SEMINÁRIO INTERNACIONAL CONSTRUINDO DIÁLOGOS SOBRE GOVERNANÇA FLORESTAL. 2020, São Paulo.; Seixas et al., 2020SEIXAS, C. S. et al. Governança Ambiental no Brasil: Rumo aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS)? Cadernos Gestão Pública e Cidadania, v.25, n.81, p.1-21, 2020.). Todavia, a partir de 2013 as taxas de desmatamento anuais começaram a sofrer um aumento gradativo, acentuado a partir de 2019 com o desmonte dos arranjos institucionais ambientais do país, demonstrando a atualidade e a urgência do debate sobre governança florestal (Adams et al., 2020ADAMS, C. et al. Governança ambiental no Brasil: acelerando em direção aos objetivos de desenvolvimento sustentável ou olhando pelo retrovisor? Cadernos Gestão Pública e Cidadania, v.25, n.81, p.1-13, 2020.; Barbosa et al., 2021BARBOSA, L. G.; ALVES, M. A. S.; GRELLE, C. E. V. Actions against sustainability: Dismantling of the environmental policies in Brazil. Land Use Policy, v.104, p.105384, 2021.). Nesse sentido, o Projeto Floram e o “Web-Seminário Construindo Diálogos sobre Governança Florestal” simbolizam dois momentos históricos distintos no processo de transformação da governança florestal brasileira, e servem de balizadores para a construção de um diálogo atualizado.

Com a finalidade de promover esse diálogo, considerando os antecedentes e desafios atuais da gestão, manejo, conservação e restauração das florestas nativas, adotamos a definição de governança de Arts & Visseren-Hamakers (2012ARTS, B.; VISSEREN-HAMAKERS, I. Forest governance: a state of the art review. In: ARTS, B. et al. (Ed.) Forest-People Interfaces. Wageningen: Wageningen Academic Publ., 2012. p.241-57., p.4): as inúmeras formas pelas quais os atores públicos e privados (do mercado ou da sociedade civil) se envolvem e lidam com questões de interesse público, de forma integrada. A capacidade dos agentes sociais em estabelecer objetivos comuns, definir o compromisso de cada envolvido e constituir consensos em territórios é central para a ideia de governança (Adams et al., 2021ADAMS, C. et al. Governança da restauração florestal da paisagem no Brasil: desafios e oportunidades. Desenvolvimento e Meio Ambiente, v.58, p.450-73, 2021.; Davoudi et al., 2008DAVOUDI, S. et al. Territorial governance in the making. Approaches, methodologies, practices. Boletín de la A.G.E, v.46, p.351-5, 2008.). Por governança florestal, entendemos o conjunto amplo de instituições e atores, em todos os níveis, e as maneiras pelas quais eles se conectam e inter-relacionam, ao longo do tempo, para conservar, manejar ou restaurar uma paisagem florestal (Mansourian, 2017MANSOURIAN, S. Governance and forest landscape restoration: A framework to support decision-making. Journal for Nature Conservation, v.37, p.21-30, 2017.; Brancalion et al., 2016BRANCALION, P. H. S. et al. Governance innovations from a multi-stakeholder coalition to implement large-scale Forest Restoration in Brazil. World Development Perspectives, v.3, p.15-17, 2016.; Cash et al., 2006CASH, D. W. et al. Scale and cross-scale dynamics: governance and information in a multilevel world. Ecology and Society, v.11, n.2, p.8, 2006.). A governança da restauração florestal da paisagem, por sua vez, apresenta desafios adicionais e ainda é um campo em construção (Chazdon et al., 2021CHAZDON, R. et al. Key challenges for governing forest and landscape restoration across different contexts. Land Use Policy, v.104, p.104854, 2021.; Mansourian; Sgard, 2021).

Reconhecendo a herança deixada por aqueles que no passado enfrentaram os desafios da governança florestal com propostas inovadoras, no contexto da década de 1990, seguimos construindo esse campo mediante um diálogo interdisciplinar, intersetorial e intercultural neste dossiê. O objetivo é debater as possibilidades de manejo, restauração e conservação das florestas nativas mediante iniciativas inovadoras e inclusivas, gerando desenvolvimento local e ressaltando o valor das florestas no contexto atual e para as futuras gerações.

Os avanços na governança florestal

O “Web-Seminário Construindo Diálogos sobre Governança Florestal” foi organizado pelo Grupo de Pesquisa em Governança Florestal da USP (GGF/IEE-USP),4 4 Grupo de Pesquisa em Governança Florestal da Universidade de São Paulo - GGF/IEE-USP. Disponível em: <https://sites.usp.br/governancaflorestal/ggf/>. ao longo de quatro encontros online em outubro-novembro de 2020, com apoio do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental (Procam/IEE-USP), da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH-USP), do Center for the Analysis of Social-Ecological Landscapes (Casel, Universidade de Indiana, Estados Unidos), da University of the Sunshine Coast (Austrália), Università degli Studi di Padova (Itália) e Wageningen University & Research (Holanda). Seu objetivo foi proporcionar um espaço para o diálogo entre os atores envolvidos com governança florestal no Brasil e alguns dos principais grupos no exterior dedicados ao estudo da governança dos recursos comuns e florestais, com o intuito de criar pontes e fomentar futuras colaborações. Como representantes destes grupos, foram convidados Dr. Eduardo Brondízio (Casel e Ostrom Workshop da Universidade de Indiana, Estados Unidos); Dr. Jelle Behagel, do Forest and Nature Conservation Policy Group (FNP) da Wageningen University & Research; Dra. Laura Secco, do departamento de Land, Environment, Agriculture and Forestry da Università di Padova; e Dra. Robin Chazdon, da University of the Sunshine Coast (Austrália) e rede Partners - People and Reforestation in the Tropics.

O evento foi aberto com a palestra “Governing the Commons +30” de Eduardo Brondízio, sobre a contribuição do livro seminal de Elinor Ostrom para a governança de recursos comuns e florestais. Em seu livro Governing the Commons, publicado no mesmo ano do Projeto Floram, Ostrom (1990) propôs a análise institucional como uma ferramenta para investigar o manejo local ou comunitário dos recursos comuns (commons), abordagem que lhe renderia o Prêmio Nobel em Economia de 2009. A abordagem era um contraponto ao discurso inaugurado pela Tragédia dos Comuns do ecólogo Gareth Hardin (1968HARDIN, G. The Tragedy of the Commons. Science New Series, v.162, n.3859, p.1243-8, 1968.), que propunha o Estado e o mercado como os únicos atores capazes de conter a inevitável degradação dos recursos comuns, visão que ainda perdurava quando da concepção do Floram. Ao colocar o olhar do pesquisador no nível local, com foco nas ações coletivas de manejo dos recursos comuns e nas instituições formais e informais que regravam seu uso, evitando o esgotamento, Ostrom estimulou inúmeros trabalhos sobre governança local (van Laerhoven et al., 2020). Esses demonstraram que entre a governança estatal e o mercado há uma ampla gama de arranjos locais de auto governança que podem evitar a sobre-exploração dos recursos comuns (Ostrom, 1990; Gibson et al., 2000GIBSON, C. C.; OSTROM, E.; AHN T. K. The concept of scale and the human dimensions of global change: a survey. Ecological Economics, v.32, p.217-39, 2000.).

O uso do Institutional Analysis Development (IAD) e a organização de um extenso banco de dados com estudos de caso de diferentes ecossistemas e países permitiram avanços teóricos como a elaboração dos Design Principles (princípios encontrados em sistemas estáveis de manejo dos recursos comuns - Ostrom 1990OSTROM, E. Governing the Commons: The Evolution of Institutions for Collective Action. New York: Cambridge University Press, 1990., 2009) e, posteriormente, a abordagem dos Socio-Ecological Systems (SES) (McGinnis; Ostrom, 2014). Em sua palestra, Brondízio (2020BRONDÍZIO, E. Governing the Commons +30. In: WEB-SEMINÁRIO INTERNACIONAL CONSTRUINDO DIÁLOGOS SOBRE GOVERNANÇA FLORESTAL. 2020, São Paulo.) apontou a importância do IAD como um modelo interdisciplinar voltado ao estudo de problemas, que coloca a agência dos atores e a forma como são afetados pela estrutura do sistema no centro da investigação. A evolução do IAD para o modelo SES se deu em um contexto de transformações para as comunidades locais em todo o globo, marcadas por interações crescentes com novos atores nos níveis regional e global, e por um aumento na complexidade dos sistemas socioecológicos e na importância dos processos de adaptação. Nos últimos anos, a atenção dos pesquisadores tem se ampliado para incluir redes de ações coletivas, dinâmicas de poder, modelos mentais e visões de mundo, valores (Brondízio, 2020), novas formas de comanejo e modelos híbridos de governança (van Laerhoven et al., 2020).

A complexidade crescente da governança florestal é investigada pelo Forest and Nature Conservation Policy Group (FNP) com base na Abordagem baseada na Prática (AbP), que coloca a atenção do pesquisador nas decisões e práticas dos atores sociais envolvidos com a gestão dos recursos naturais (Arts et al., 2014). Apesar de reconhecer a importância das instituições e das políticas públicas para a gestão dos recursos, a AbP defende que essas são passíveis de interpretação e reinterpretação pelos atores, que agem conforme seus próprios interesses, especialmente quando se analisa a conexão global-local (Behagel et al., 2019BEHAGEL, J. H.; ARTS, B.; TURNHOUT, E. Beyond argumentation: a practice-based approach to environmental policy. Journal of Environmental Policy & Planning, v.21, n.5, p.479-91, 2019.). Para a AbP, as práticas sociais são produzidas e reproduzidas na interação entre os atores (Arts et al., 2014; Behagel et al., 2019), que levam em conta os diversos contextos que constituem sua vida cotidiana. Para Behagel et al. (2019), as políticas florestais são normalmente elaboradas considerando apenas os discursos e acordos globais e nacionais, deixando de considerar as práticas sociais locais e o cotidiano dos usuários e gestores florestais. Para ser transformativa, no sentido de promover mudanças na complexa relação entre os diferentes níveis, a governança florestal precisa se aproximar dos atores sociais que manejam os recursos e se articulam no nível local.

O nível local também é central para o Projeto Simra - Social Inovation in Marginalized Rural Areas, liderado pela Dra. Laura Secco (Universidade de Padova), que investiga Inovações Sociais (IS) em áreas rurais na Europa. Para esse grupo, a IS é definida como uma atividade que compreende a criação de arranjos sociais reconfigurados ou redes de atores que buscam soluções criativas que resultem em desenvolvimento local. A IS se refere a quaisquer processos (ou seus resultados) nos quais pessoas se mobilizam para superar um desafio comum (Mulgan et al., 2007MULGAN, G. et al. Social innovation: What it is, why it matters and how it can be accelerated. London: University of Oxford, 2007.; Murray et al., 2010MURRAY, R.; CAULIER-GRICE, J.; MULGAN, G. The open book of social innovation. London: NESTA/the Young Foundation, 2010.), e pode trazer novas soluções para os problemas encontrados nas áreas rurais, especialmente as marginalizadas. Para tanto, os atores compartilham ideias e conhecimentos, e realizam ações coletivas para desenvolver novas tecnologias, ajustes em instituições sociais ou novas formas de gestão de recursos naturais (ver Padovezi et al. neste número). Quando a IS incorpora novas estratégias, ideias, conceitos, processos, instituições ou organizações que se constituem como Contribuições da Natureza para as Pessoas (CNP) (IPBES, 2019), ela pode ser chamada de Inovação Socioecológica (ISE) (ver Padovezi et al., neste número).

As três abordagens teóricas apresentadas acima estiveram representadas no Web-Seminário “Diálogos sobre Governança Florestal”. O evento foi dividido em dois grandes blocos: o primeiro sobre governança das florestas nativas e o segundo sobre governança da restauração florestal. Cada encontro foi aberto por um palestrante convidado, e contou com quatro convidados e um pesquisador especialista como moderador.

O primeiro painel (Governança Florestal: Perspectivas Contemporâneas), mediado por Ricardo Abramovay (IEE-USP), discutiu as diferentes dimensões do conhecimento e experiências de governança das florestas nativas da América Latina, e como elas podem contribuir para que os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) sejam alcançados. Luiz Carlos Beduschi trouxe a visão da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), que vincula as agendas de governança ambiental/florestal e do combate à pobreza/fome, e seus desdobramentos no nível local na América Latina. A partir da lente dos ODS, Beduschi mostrou a importância da governança florestal para enfrentar a pobreza rural mediante políticas multissetoriais e articuladas, e fomentar o desenvolvimento territorial através de mosaicos de paisagens produtivas e multifuncionais. Foram apresentadas várias experiências de redução da pobreza rural promovidas pela FAO, como o pagamento por serviços ambientais (Paraguai), o fortalecimento institucional (Colômbia) e o fomento a processos de governança bem instruídos por informação (Chile). Entre os desafios a serem enfrentados até 2030, apontou a reconstrução do mundo rural em um cenário mais restritivo que no passado (menos terras disponíveis para o avanço da fronteira agrícola; conservação da biodiversidade; mudanças climáticas) e a necessidade de explorar os nexos alimentação-saúde-biodiversidade-renda levando em consideração as dinâmicas de poder e os múltiplos níveis de governança. A partir da importância dos territórios indígenas para a conservação florestal na América Latina apontada por Beduschi, Manuela Carneiro da Cunha (Universidade de Chicago) discutiu importantes dimensões sobre a governança territorial desses povos para a conservação da biodiversidade, que estão sendo compiladas na obra “Povos tradicionais e biodiversidade no Brasil”,5 5 Disponível para download gratuito em: <http://portal.sbpcnet.org.br/publicacoes/povos-tradicionais-e-biodiversidade-no-brasil/>. voltada a tomadores de decisões. A partir do legado deixado pelos povos pré-colombianos nas florestas antropogênicas, Carneiro da Cunha apontou para a diversidade como um valor intrínseco aos sistemas produtivos tradicionais, que resulta de sua organização social e política, mas também de imperativos morais como a importância das trocas. Pontuou ainda que as políticas públicas brasileiras não são pensadas para os povos que vivem dentro das florestas e seus modos de vida tradicionais. Em sua fala, Abramovay procurou problematizar a bioeconomia do ponto de vista da governança florestal, a partir de sua contribuição para o Science Pannel for the Amazon. Argumentando que a governança florestal se divide em dois componentes - a governança da interrupção do desmatamento e a governança da sociogeobiodiversidade - destacou o desafio de incluir uma diversidade de atores situados em múltiplos níveis na bioeconomia. Sobre a governança do desmatamento, apontou para diversas questões que são detalhadas em seu artigo nesse dossiê. Quanto à governança da sociogeobiodiversidade, argumenta que ela deve ser objeto de uma “economia do cuidado”, como forma de amenizar a força desagregadora que os mercados podem ter sobre as comunidades locais.

O segundo painel (Nexus Global local: desafios multinível da governança florestal), mediado por Pedro Brancalion (Esalq-USP), apresentou duas visões de governança das paisagens florestais: uma baseada no mercado de produtos sustentáveis e outra mais abrangente, baseada na sustentabilidade dos modos de vida de povos indígenas e populações tradicionais, a partir de lógicas locais. Discutiu-se a certificação de produtos da biodiversidade florestal e o desenvolvimento de cadeias de valor desde os territórios tradicionais até os mercados finais globalizados, valorizando a governança local e considerando uma justa repartição de benefícios. Foram destacadas outras visões de manejo e governança florestal de territórios tradicionais, e sua contribuição para formas social e culturalmente mais inclusivas para alcançar paisagens florestais sustentáveis. Jelle Behagel abriu a mesa tratando dos nexos globais-locais e os desafios para uma governança florestal em múltiplos níveis, retomando questões sobre a governança florestal discutidos no primeiro encontro, como a diversidade de atores e as conexões multinível. Para Behagel, a governança florestal supõe a existência de nexos globais-locais que abarcam as dimensões institucional, política e prática, em seus diversos níveis (global, regional, local). A dimensão institucional e a política possuem conexões mais explícitas entre níveis e vêm sendo objeto de estudos no campo da governança florestal. Já a dimensão da prática é a que mais varia entre os diferentes níveis, possui a maior diversidade de atores, mas é a menos estudada.

As falas de Yakuna Ullillo Ikpeng e Adriana Souza Lima trouxeram justamente a dimensão da prática local no manejo e governança florestal, a partir da visão e do modo de vida dos povos Ikpeng (Xingu) e caiçara da Jureia (São Paulo). A origem do povo Ikpeng remete ao tempo em que o primeiro homem surgiu a partir de uma libélula, e com a fécula das árvores formou o primeiro casal. Nesse tempo, os Ikpeng conversavam com todos os seres da floresta e desde então compartilham o mundo com eles. O corte das árvores vivas ou mortas respeitando seus espíritos, o cuidado com determinadas espécies na abertura das roças, o manejo do fogo e a mudança nas áreas de ocupação fazem parte da governança florestal tradicional Ikpeng. Mas os novos desafios trazidos pelo avanço da fronteira agrícola trouxeram mudanças para a governança territorial, como o monitoramento da área, mudanças no manejo do fogo, plantio de sistemas agroflorestais e transmissão de novos conhecimentos (Schmidt et al., 2021SCHMIDT, M. V. C. et al. Indigenous Knowledge and Forest Succession Management in the Brazilian Amazon: Contributions to Reforestation of Degraded Areas. Frontiers in Forests and Global Change, v.4, p.605925, 2021.).

O aspecto adaptativo dos sistemas de governança florestal tradicionais foi também ressaltado por Lima (2022LIMA, A. S. L. Comunidade Tradicional Caiçara da Jureia (litoral sul do estado de São Paulo, Brasil). In: CARNEIRO DA CUNHA, M.; MAGALHÃES, S. B.; ADAMS, C. (Org.) Povos Tradicionais e Biodiversidade no Brasil, Seção 16 (Comunidades Tradicionais). São Paulo: SBPC, 2022. p.16-76.), ao relatar o processo de reinvenção da organização social, manejo florestal e produção de conhecimento local a partir da sobreposição de uma unidade de conservação de proteção integral sobre o território tradicional caiçara. Nesse sentido, Lima dialoga com as dimensões dos nexos global-local propostos por Behagel, mostrando a complexidade da governança florestal na prática, quando as dimensões política e institucional interferem com a dimensão prática da governança no nível local, que contribui, ela mesma, para a conservação da biodiversidade. Ao defender o direito à governança florestal tradicional enfrentando os três desafios identificados por Behagel - comprometimento, esforço e ambição - os caiçaras dialogam e debatem com uma diversidade de atores situados em múltiplos níveis dos nexos institucional e político, na busca por fazer reconhecer e representar suas práticas locais na legislação e na política governamental. De certa forma, a luta caiçara pelo direito territorial e das práticas tradicionais apresentada por Lima informa a questão posta por Behagel, de compreender como os esforços globais de governança florestal (pela criação de áreas protegidas) chegam ao nível local e o quanto as experiências locais podem informar os esforços globais (de governança adaptativa baseada na coprodução de conhecimento).

Essas tensões entre a governança global e as realidades locais para onde ela é traduzida e transferida foi tratada por Isabel Garcia Drigo (Imaflora), a partir de sua experiência com a certificação FSC na Amazônia e do choque entre a governança ideal e a governança possível que vivencia em campo. Drigo mostrou as dificuldades enfrentadas por povos indígenas amazônicos para enquadrar seus sistemas de manejo no sofisticado conjunto de regras e indicadores do sistema de certificação internacional de produtos madeireiros e não madeireiros, cuja lógica não segue as instituições locais e não aceita a oralidade como documentação. Mesmo a certificação de concessões de manejo florestal para empresas apresenta tensões, como a aplicação de um conjunto de regras que os governos municipais não têm capacidade administrativa ou de infraestrutura para atender. Questionando qual seria a governança necessária nos territórios para reduzir as tensões, Drigo argumentou que os outros níveis precisam reconhecer e legitimar a governança local para que os objetivos da certificação possam ser atingidos, ou outros instrumentos de mercado poderiam ser utilizados, como o selo Origens Brasil (Imaflora). A estratégia de certificação de origem ou indicação geográfica vem sendo usada pela Nespresso em seu modelo de governança da cadeia produtiva de café baseada em paisagens produtivas e multifuncionais e nos ODS, remetendo às questões levantadas no primeiro painel. Guilherme Amado (Nespresso) apontou os principais desafios enfrentados pela empresa, que inclui limitações citadas anteriormente por Beduschi: as mudanças climáticas e os eventos extremos, a garantia de direitos humanos na cadeia produtiva e a transição para uma agricultura regenerativa.

Na abertura do bloco sobre governança da restauração florestal, Robin Chazdon apresentou a estratégia da Década das Nações Unidas da Restauração de Ecossistemas (2021-2030), iniciativa da ONU para influenciar ações e inovações socioecológicas para deter a degradação e promover a restauração dos ecossistemas. Os principais desafios de governança colocados por Chazdon para a restauração de florestas e paisagens foram: o alinhamento deficiente entre níveis e setores governamentais; a heterogeneidade ambiental e social no nível local; e a falta de condições facilitadoras e capacidade de implementação. Entre os fatores facilitadores, ressaltou a recente publicação de guias e ferramentas para orientar a restauração (IUCN; WRI, 2014; Buckingham et al., 2018BUCKINGHAM, K. et al. Mapeamento de Paisagens Sociais. Um guia para identificar redes, prioridades e valores dos atores da restauração. São Paulo: World Resources Institute Brasil, 2018.; ITTO, 2020) e a formação de plataformas multiatores como o Pacto para a Restauração da Mata Atlântica (Pacto), no Brasil.

O terceiro painel (A Década da Restauração e o Papel da Governança da Paisagem), mediado por Ricardo Ribeiro Rodrigues (Esalq-USP), debateu os arranjos organizacionais de grandes iniciativas de restauração florestal no Brasil e os desafios em implementá-las, considerando tanto os contextos socioculturais quanto as características ecológicas dos diferentes biomas (ver Chazdon et al. neste dossiê). Debateu-se sobre as diferentes configurações e papeis das redes multiatores na governança da restauração florestal, bem como os desafios de acesso a recursos financeiros e engajamento de produtores rurais para ampliar as ações de restauração florestal. Miguel Calmon (WRI Brasil e Coalizão Brasil, Clima, Floresta e Agricultura) abriu a mesa abordando o papel da governança para o financiamento da restauração a partir de uma visão multinível das iniciativas existentes, baseadas em arranjos envolvendo especialmente governos, instituições técnicas e financiadores que mobilizam recursos privados. Os avanços na última década foram notáveis, mas o ganho de escala na restauração ainda enfrenta o desafio de direcionar recursos para uma diversidade de atores e setores da economia, bem como de estruturar diferentes modelos de negócios que atendam aos diferentes perfis de mercado. Rafael Chaves (Sociedade Brasileira de Restauração Ecológica - Sobre) destacou os avanços técnico-científicos na elaboração e adoção de princípios e padrões para a restauração no Brasil, iniciado com a Rebre - Rede Brasileira de Restauração - e impulsionado pela criação da Sobre. Ludmila Siqueira (Pacto) também ressaltou os avanços na produção de protocolos e referenciais para a restauração florestal pelo Pacto (Brancalion et al., 2016BRANCALION, P. H. S. et al. Governance innovations from a multi-stakeholder coalition to implement large-scale Forest Restoration in Brazil. World Development Perspectives, v.3, p.15-17, 2016.), e seu papel na governança de dados e informações para identificar áreas prioritárias e monitorar os ganhos de cobertura florestal. Outro tipo de abordagem, construída a partir do nível local e de diferentes sistemas de conhecimento, foi discutida por Rodrigo Junqueira (Instituto Socioambiental - ISA), a partir da experiência da “governança muvucada” da Rede de Sementes do Xingu, que surgiu da ação coletiva de atores locais para a restauração das nascentes do Rio Xingu. Baseada no conceito de diversidade - de atores e atrizes, visões de mundo, sistemas conceituais, sementes - a coleta de sementes levou a uma diversidade de arranjos organizacionais geradores de pertencimento e renda, e múltiplos percursos de produção e manejo, a partir de protocolos que foram sendo construídos ao longo do caminho e valorizando os conhecimentos locais, como apontado por Yakunã no segundo painel.

O quarto e último painel (Governança da Restauração Florestal: Oportunidades e Desafios), mediado por Aurélio Padovezi (Procam-USP e Universidade de Padova), manteve o olhar no nível local e no papel das IS para impulsionar processos de restauração florestal. Foram discutidos os desafios de fortalecimento dos atores sociais e ações de restauração florestal a partir de programas municipais de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), atuação de organizações não governamentais (ONG) locais, desenvolvimento de produtos oriundos da restauração florestal e da importância dos sistemas agroflorestais, com destaque para a produção e inclusão dos conhecimentos e experiências dos produtores locais. O painel foi aberto pela palestra de Laura Secco, que apontou para uma tendência de mudança nos discursos dominantes sobre o papel das florestas e a importância das tecnologias no contexto europeu. A bioeconomia florestal na Europa, financiada pela Comunidade Europeia, é atualmente centrada apenas na produção de madeira por meio de processos biotecnológicos de alto desempenho, como as nano celuloses, e da digitalização de processos (ex. controle remoto do monitoramento florestal e tecnologias blockchain de rastreabilidade da madeira). Mas uma outra visão baseada em uma diversidade de serviços ecossistêmicos (além da madeira) está emergindo, sustentada por um interesse crescente no desenvolvimento intangível. Essa nova bioeconomia está sendo erguida com base na co-construção de conhecimento e no codesign de novas políticas entre atores públicos, privados e a sociedade civil, e necessita de novos arranjos de governança e organização de redes sociais. Entretanto, há desafios a serem vencidos, como a desconexão entre iniciativas locais e gestores, como apontou Brondízio na palestra de abertura, e a falta de capacidade institucional dos órgãos públicos para reagir e apoiar as iniciativas, dado seu caráter dinâmico.

As falas que se seguiram mostraram a importância das IS e dos arranjos institucionais locais para a restauração mediados por ONG locais e de grande porte, além de prefeituras municipais. Marina Campos (The Nature Conservancy - TNC) apresentou o programa Conservador da Mantiqueira, que busca criar condições institucionais para dar ganho de escala à restauração florestal nos municípios da Serra da Mantiqueira (SP, MG, RJ), mediante a adequação ambiental das propriedades rurais, do PSA (segurança hídrica e clima), da geração de empregos e renda, e de ações de capacitação técnica. A TNC e parceiros atuam de forma flexível, de acordo com as diferentes características e demandas de cada município que se engaja no programa. Um outro tipo de arranjo multinível de governança (nacional-local) foi apresentado por Lucas Antunes, do Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST). O Projeto Semeando Florestas seguiu as diretrizes elaboradas pelo MST em seu Programa Agrário Nacional, mas foi criado pelo núcleo estadual de Minas Gerais. Financiado por meio de parceiros, usa o conhecimento local sobre sistemas produtivos para desenvolver modelos de SAF adaptados às condições locais, aos quais é agregado o componente arbóreo com nativas, cultivadas em viveiro de mudas próprio. A metodologia camponês-camponês identifica agentes inovadores em cada assentamento, que se tornam multiplicadores de conhecimento e experiência para os demais agricultores. Esse processo de trabalho junto ao produtor rural, de construção de laços de confiança, ouvindo as demandas e o conhecimento local, também faz parte da atuação da ONG Akarui, de São Luís do Paraitinga (SP), apresentada por Daniela Coura. Iniciado com um projeto de repovoamento da palmeira juçara (Euterpe edulis), a construção da relação com os produtores foi evoluindo para a produção de alimento e renda, até que a enchente de 2009-2010 no município resultou na formação do Conselho de Planejamento, que passou a atuar na escala de bacia hidrográfica. Atuando com organizações parceiras e com um olhar sistêmico e multifuncional da paisagem, foram ampliadas as ações de restauração e boas práticas agrícolas, e a rede de relações com outros atores do Vale do Paraíba. O olhar multifuncional da paisagem, que alia restauração florestal e produção comercial agrícola e florestal também fundamenta o trabalho do Instituto Coruputuba (IC), liderado pelo produtor rural e silvicultor Patrick Assumpção. O IC é um ator social importante no Vale do Paraíba, e busca aliar o resgate das tradições culturais da região com o uso espécies nativas com potencial de uso econômico, mediante o plantio de SAF, produção de sementes, frutas nativas e madeira de desbaste para movelaria.

O Projeto Floram à luz dos avanços na governança florestal

Infelizmente hoje, após décadas de avanços na redução do desflorestamento, o Brasil se encontra na mesma posição desfavorável perante a comunidade internacional que no fim da década de 1980, após bater recordes de desmatamento nos últimos anos. Entretanto, o quadro atual é mais desafiador, conforme apontaram Brondízio e Abramovay, dados os efeitos globais provocados pela pandemia da Covid-19, a crise climática, as desigualdades sociais, e o cenário de conflitos e desmonte de instituições, marcados por negacionismos, fake-news.

Mesmo assim, olhando retrospectivamente para as propostas do Floram e para as contribuições a este dossiê, é possível levantar vários pontos para reflexão. A concepção centralizadora e indutora de política pública do Floram era coerente com o modelo de governança ambiental vigente até o final da década de 1990 (Agrawal et al., 2008AGRAWAL, A.; CHHATRE, A.; HARDIN, R. Changing Governance of the World’s Forests. Science, v.320, p.1460, 2008.). Desde então, a governança ambiental e florestal vem assistindo a uma substituição de modelos mais hierárquicos e centralizados para sistemas de gestão comunitária (Skutsch; Turnhout, 2018SKUTSCH, M.; TURNHOUT, E. How REDD+ is performing communities. Forests, v.9, n.10, p.638-59, 2018.; Reyes-García et al., 2019) e cogestão em multiescalas, os quais envolvem um número maior de atores públicos e privados (Adams et al., 2021ADAMS, C. et al. Governança da restauração florestal da paisagem no Brasil: desafios e oportunidades. Desenvolvimento e Meio Ambiente, v.58, p.450-73, 2021.; Pistorius; Freiberg, 2014PISTORIUS, T.; FREIBERG, H. From Target to Implementation: Perspectives for the International Governance of Forest Landscape Restoration. Forests, v.5, p.482-97, 2014.). Nesse sentido, várias das contribuições apresentadas no web-seminário e neste dossiê, trouxeram exemplos desses avanços na governança florestal.

Outro aspecto que chama a atenção no Floram é a ausência da sociedade civil organizada no seu debate e concepção. É interessante notar que povos indígenas, pequenos e médios produtores rurais e populações tradicionais, que hoje são importantes atores locais em iniciativas de conservação e restauração florestal (ex. redes de sementes, núcleos de agroecologia), não foram consultados. Da mesma forma, sistemas de manejo agroflorestais e cadeias de valor para produtos florestais não madeireiros de espécies nativas não entraram na agenda do Floram. As tecnologias pensadas, então, para o avanço da restauração florestal baseavam-se essencialmente em conhecimento gerado na universidade ou nas empresas de silvicultura, enquanto atualmente as inovações surgidas a partir da co-construção de conhecimento com atores locais têm impulsionado diversas iniciativas de restauração florestal (muvuca de sementes, SAF, pagamentos por serviços ecossistêmicos, manejo florestal comunitário) (Brondízio et al., 2021BRONDÍZIO, E. S. et al. Making place-based sustainability initiatives visible in the Brazilian Amazon. Current Opinion in Environmental Sustainability, v.49, p.66-78, 2021.; Cordeiro-Beduschi, 2018; Sanches, 2015SANCHES, R. A. Campanha ‘Y Ikatu Xingu: Governança Ambiental da Região das Nascentes do Xingu (Mato Grosso, Brasil). Campinas, 2015. Tese (Doutorado em Ambiente e Sociedade) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas.).

Outro avanço no debate foi o entendimento de que as florestas fazem parte de sistemas socioecológicos complexos, sujeitos a comportamentos não lineares e processos de feedback positivos e negativos que retroalimentam o sistema, o que implica a necessidade de novos modelos de governança não centralizados e adaptativos, principalmente face às mudanças climáticas. É interessante notar que o artigo de Levi (1990LEVI, F. Projeto FLORAM: comentários e sugestões. Estudos Avançados, v.4, n.9, p.263-4, 1990.), na seção de comentários críticos do dossiê do Floram, já apontava para algumas das simplificações subjacentes ao projeto pelo olhar da complexidade, elaborando em outros termos o conceito de sistemas socioecológicos que viria a ser cunhado anos depois. Levi apontava para as relações complexas e não lineares entre a diversidade biológica, cultural e fisiográfica das florestas, que se constituíam em sistemas abertos influenciados por vetores internos e externos ao sistema.

Os artigos incorporados no Dossiê sobre Governança Florestal refletem, portanto, a perspectiva de avançar no debate sobre governança florestal, a partir dos temas abordados no Web-Seminário “Diálogos sobre Governança Florestal”. No primeiro artigo, Brondízio e Massoca trazem um histórico das leis florestais brasileiras desde o período colonial. Abramovay discute em seguida os obstáculos atuais à economia da sociobiodiversidade. Chazdon et al. apresentam as principais iniciativas de governança da restauração de ecossistemas e paisagens no Brasil, enquanto Padovezi et al. discutem casos de restauração socioinovadoras da paisagem. O último artigo, elaborado pelos organizadores do evento, apresenta as conclusões desse diálogo e as principais lições aprendidas que contribuem para uma nova governança florestal.

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Notas

  • 1
    Liderança Indígena do Xingu, comunicação pessoal na palestra Manejo da Floresta e da Roça, IEE-USP.
  • 2
    Web-Seminário Internacional Construindo Diálogos sobre Governança Florestal: Conservação, Manejo Sustentável e Restauração de Paisagens. Disponível em: <http://www.iee.usp.br/?q=pt-br/evento/web-semin%C3%A1rio-internacional-construindo-di%C3%A1logos-sobre-governan%C3%A7a-florestal-conserva%C3%A7%C3%A3o>.
  • 3
    Disponível em: <https://observatoriodarestauracao.org.br/app/>. Acesso em: 22 nov. 2021.
  • 4
    Grupo de Pesquisa em Governança Florestal da Universidade de São Paulo - GGF/IEE-USP. Disponível em: <https://sites.usp.br/governancaflorestal/ggf/>.
  • 5
    Disponível para download gratuito em: <http://portal.sbpcnet.org.br/publicacoes/povos-tradicionais-e-biodiversidade-no-brasil/>.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Oct 2022

Histórico

  • Recebido
    16 Mar 2022
  • Aceito
    19 Maio 2022
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