RESUMO
O texto discute a cidade em sua condição pós-moderna, entendendo seu corpo material e simbólico a partir do estudo da utopia geradora da cidade moderna do século XX até a construção de novo ideário da cidade contemporânea. Essa trajetória que gerou espaços riquíssimos será a base doutrinária em que urbanistas de todos os matizes gerarão os espaços urbanos do amanhã. A noção de utopia perpassa todo o texto, porque é argumento essencial para a superação dos nossos problemas urbanos atuais.
PALAVRAS-CHAVE: Arquitetura; Urbanismo; Cidade; Lugar; Território; Utopia; Economia; Geografia; Modernidade; Contemporâneo; Espaço
ABSTRACT
The text discusses the city in its postmodern condition, understanding its material and symbolic body through the study of the utopia that generated the modern city of the twentieth century and the construction of new corpus of ideas of the contemporary city. This trajectory, which has generated very rich spaces, will be the doctrinal basis by which urbanists of all stripes will generate the urban spaces of tomorrow. The notion of utopia weaves through the entire text because it is an essential argument for overcoming our current urban problems.
KEYWORDS: Architecture; Urban planning; City; Place; Territory; Utopia; Economy; Geography; Modernity; Contemporary; Space
“Já perdemos a inocência do mito, mas ainda não somos profissionais da utopia”.
(Candido Mendes de Almeida, Os Pensadores, em “Cem Anos de Cultura Brasileira”, 2002)
Na atual crise mundial, que ora adquire crescente e avassaladoras dimensões, acham-se abrangidas todas as esferas da vida. Mais grave é o barateamento e evanescência das utopias, sejam liberais, sejam socialistas, sejam anarquistas, sejam laicas. Ao mesmo tempo, tal crise se agrava com as falências simultâneas de políticas regeneradoras nos planos nacionais e no plano internacional. Mas a crise monumental trouxe um componente novo, ainda não completamente avaliado: o da fúria das inovações e avanços galopantes nas esferas da cultura digital e da comunicação. Tanto que o conceito de “globalização” (que o historiador Eric Hobsbawm considerava demasiado cru e oco) já não dá conta das dimensões e dos rumos desse “novo admirável mundo novo”.
A sociedade do espetáculo, marca e expressão do capitalismo selvagem, e a predominância da cultura do marketing, regulando a vida social e os sistemas ideológicos pobremente culturais, ao secarem a vida cultural, desidrataram os valores humanistas e utópicos.
Daí a necessidade de urgente renovação de Utopias de cunho humanístico, que recarreguem os ideários de reformas. Para exemplificação, vale evocar o caso da construção de Brasília, ideia antiga germinada no clima de esforço para superação do subdesenvolvimento crônico brasileiro, com as Reformas de Base em todos os setores da vida político-social e cultural, num contexto em que se discutiram futuros, imaginados ou sonhados. Éramos terceiro-mundistas, empenhados em busca de autonomia nacional e de uma ordem social decente, propondo desde as reformas urbana e agrária até as reformas política, educacional, bancária e universitária.
Hoje, qual horizonte utópico? O ponto mais evidente e sensível na construção de um novo futuro, e que então mereceu certa atenção, foi o da cidade, da urbanização e do urbanismo, pois a cidade seria então, e deverá voltar a ser, irrevogavelmente, o principal motor das transformações desejadas. Há que se recordar, porém, os erros do urbanismo moderno...
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Erros? Em análise publicada recentemente no Archdaily, o arquiteto dinamarquês Jan Gehl repete a crítica sobre os famosos erros do urbanismo moderno. A mais recorrente dessas críticas está no propalado abandono do ser humano promovido pelo desenho modernista. Nessa linha de pensamento, Brasília é a maior vilã.
Tal crítica atribuída ao modernismo está ligada à perda da escala humana da cidade, entendida a partir da ideia do abandono da rua como lugar de usufruto do pedestre. Nessa análise, a rua foi oferecida de modo intenso à utilização do automóvel. A consequência é que, em face do aumento da velocidade do fluxo nas ruas promovido pelo automóvel, as unidades de vizinhança se rompem de modo profundo, as fachadas ativas perdem sua eficiência e historicidade, promovendo em curto prazo a deterioração desses espaços e, em médio prazo, a desertificação do próprio bairro.
Vamos lembrar que não somente por conta do automóvel esse processo se estabelece. Em recente concurso internacional, a municipalidade de Barcelona chamou profissionais para propor soluções para a contínua e paulatina perda de identidade da unidade de vizinhança estabelecida no alredor da rambla principal da cidade. A deterioração foi ocasionada pela quase sustação de mobilidade transversal à própria rambla devido ao grande fluxo de turistas no sentido longitudinal da via.
Esse processo, resultado do descontrolado incremento da atividade turística na região é semelhante ao ocorrido no bairro alto na região central da cidade de Lisboa. A desertificação acelerada que ocorre nessa área originou-se no aumento das atividades ligadas ao lazer e entretenimento, sobretudo com o viés turístico estabelecido no plano do térreo das edificações. O aumento efetivo e descontrolado da atividade de bares, restaurantes, casas de show, locais de encontro para jovens etc., em face do caráter prevalentemente noturno dessas atividades, quase inviabilizou a moradia nos andares superiores dos prédios das ruas desses bairros. São processos de deterioração e desertificação que podem e devem ser corrigidos. Nos dois casos citados, a municipalidade vem promovendo intervenções necessárias para evitar a desertificação das áreas pela diminuição drástica do contingente populacional tradicionalmente ocupante desses bairros. Evitar a gentrificação é a outra incógnita dessa equação. No caso lisboeta, é prioridade dos agentes públicos tratar desse processo.
A perda de contato entre o usuário e o espaço proposto causado pela visão generalista de cidade que o modernismo propunha é sempre seguida da lembrança da falta de preocupação dos arquitetos modernistas com a participação do usuário, do morador, enfim, do ser humano para quem o espaço estava destinado no processo de consulta para montagem de programas e mesmo partidos de intervenção. Nessa direção, a crítica da arquitetura contemporânea ao modernismo se expressa precisamente pela substituição da ideia de uso pelo conceito de acontecimento, nos termos utilizados pelo o arquiteto Richard Scoffier.
O uso constitui-se pela recondução de um repertório de gestos, posturas, transmitidos de geração em geração, é a continuidade, a repetição. O acontecimento é algo que não se pode prever e não se reproduz, é a descontinuidade, a irredutibilidade. Com a substituição do uso pelo acontecimento, há um mundo de acumulação catastrófica que se sucede permanentemente ao inabitual. (Scoffier, 2011, p.167)
Na avaliação dos arquitetos ligados ao urbanismo contemporâneo a reação a esse processo era urgente, visto que poderia ocorrer também em face das questões conjunturais como as explicitadas acima. Nessa linha de raciocínio havia uma questão estrutural ligada ao próprio fazer da arquitetura moderna, que dava pouca relevância às relações estabelecidas no plano do térreo dos espaços e nas relações dos homens entre si e com a natureza. A pesquisadora norte-americana Jane Jacobs é um dos arautos dessa crítica, organizando-a a partir do enfrentamento com o projeto de uma nova freeway que, em princípios da década de 1960, cortaria a cidade de Detroit, promovendo uma cicatriz urbana indesejável, insuperável, levando invariavelmente à morte da cidade. Com um viés diferente, mas com tom crítico equivalente, Cacciari (2010, p.63) mostra que “é, de fato, a morte de todas as codificações do movimento moderno, do seu pensar a cidade como agregação sucessiva de elementos, desde a habitação ao edifício, ao polo funcional, à cidade inteira como ‘contentor de contentores’. É a morte da tipologia abstrata”.
Nesse contexto, a partir dos últimos 30 anos do século XX se iniciou uma série de revisões conceituais que resultaram em novas práticas que, com bastante êxito, começaram a ser propostas e implantadas. No plano teórico, a introdução do conceito de lugar, que Aldo Rossi propõe, marca fortemente o período, e é forte expressão desse processo de transformação. Norberg-Schulz, por sua vez, amplia a discussão ao definir que “a vida cotidiana consiste em fenômenos concretos, compõem-se de pessoas, animais, plantas, arvores etc... O fenômeno do lugar leva-nos a concluir que a estrutura do lugar deveria ser classificada como ‘paisagem’ e ‘assentamento’ e analisada por categorias como ‘espaço’ e ‘caráter’ (apud Nesbitt, 2006, p.449)
No plano das práticas, o projeto do Centro Pompidou em Paris, de Piano e Rogers, e posteriormente o Parc La Villette, de Tschumi são emblemáticos dessas revisões. Essa mudança de perspectiva de intervenção está ocorrendo também no enfrentamento das questões localizadas em bairros e espaços públicos abandonados e deteriorados, seja pela valorização da qualidade de resiliência de edifícios em situações urbanas em grau visível de deterioração, seja pelas ressignificações dos próprios espaços urbanos, em geral fora das zonas centrais das cidades, como a implantação da Casa da Música de Rem Koolhaas na cidade do Porto, implantada no local onde era o antigo pátio de recolha e reparações dos bondes elétricos da cidade.
No “olho da rua”: por uma escala humana
As propostas teóricas desse urbanismo contemporâneo têm como fio condutor um desenho urbano que tentará aproximar o espaço do indivíduo, construindo o conceito de lugar, entendendo o território em suas várias facetas, e com valor cultural atribuído em diversas possibilidades. A proposta é clara no sentido de aproximar espaço e apropriação deste espaço através da identidade entre o usuário e lugar.
Desse modo, a prática do urbanismo deve estar concentrada na realidade concreta da vida cotidiana das pessoas nas cidades, com vistas a produzir ambientes que facilitassem o convívio social entre pessoas, que é o objetivo maior da vida urbana contemporânea. É fundamental, segundo esse princípio, por assim dizer quase utópico, reavaliar o dimensionamento dos ambientes urbanos através da concepção de espaços em escala humana.
A estratégia de se garantir essa escala humana repousa na ideia central desse ponto de vista, defendido por Gehl e Jacobs, entre outros, que é a de restabelecer o que se chamou de “O olho da rua”, no qual as escalas se encontram pela proximidade real e virtual entre o morador do edifício e o transeunte dos passeios públicos. Tal proximidade se estabelece em face da possibilidade real de comunicação auditiva e visual entre os diversos atores da cena urbana. A escala humana está garantida pelos acontecimentos que se desenvolvem no plano do térreo, daí a ideia de fachada ativa etc. O gabarito dos edifícios e principalmente seus volumes devem manter uma relação de comunicação física com os acontecimentos que se desenrolam nas ruas. Daí que verticalizações são sempre vistas com desconfiança.
Da mesma maneira, as praças devem ser espaços que se relacionam diretamente com seus entornos, mantendo uma relação de lugar, onde o território da cidade terá sempre um valor cultural atribuído e reconhecido pelo indivíduo. A tese é que esse indivíduo se apropriará mais facilmente desse espaço quão mais claro esse valor cultural esteja explicitado. Maior será essa apropriação quanto maior for a identificação entre esses espaços e as comunidades do entorno desses lugares. Simples assim.
Exemplo desse processo é a praça defronte o Museu de Arte Contemporânea na cidade de Barcelona, com dificuldades relevantes de apropriação pela população da cidade em face justamente da falta de clareza no valor cultural atribuído àquele espaço. O Raval, bairro de imigrantes que estava descontextua- lizado do projeto da cidade de Barcelona como um todo, iniciava um processo de adequação cultural no sentido de superar e eliminar os eventuais conflitos existentes. A utilização da praça por essas comunidades como palco de manifestações artísticas estava lentamente reaproximando o bairro do Raval e seu entorno imediato, constituído por antigos moradores, mas também com parcelas relevantes de imigrantes de vários países. A construção em área lindeira do edifício do Museu de Arte Contemporânea de Barcelona, embora obra de arquitetura de elevada qualidade, projeto de Richard Meyer e instalado em 1995 com a finalidade de acelerar essa reaproximação, não foi entendida como parte do processo. Ao contrário, a leitura realizada pela população foi de intervenção externa e extemporânea ao processo então em curso. Ao não estabelecer uma identificação com os movimentos culturais que estavam sendo realizados, contribuiu muito pouco aos fins a que destinava, que era consolidar a aproximação das diversas populações moradores das cercanias ao espaço da praça.
O foco do projeto urbano deve estar, segundo essa linha de pensamento, nas práticas e vivências do ser humano. Essa é, sem dúvida, a crítica mais direta e eficaz que se faz ao urbanismo moderno que caracterizou o século XX. Por esse ponto de vista, o urbanismo moderno, ao se concentrar na busca de eficiência e centralizar seu ordenamento no edifício, perdeu o ser humano como referência. Essa questão, que é central nas discussões do que fazer como sucedâneo da proposta modernista, aponta algumas outras questões que merecem uma reflexão mais aprofundada.
Uma das questões relevantes é a de contexto. O modernismo que surge e se desenvolve num século intermediado por duas grandes guerras mundiais trouxe desafios em grandes proporções. O primeiro e mais imediato é a própria reconstrução. Milhares de desabrigados, cidades inteiras destruídas. Os planos de reconstrução têm dimensões superlativas. Enormes contingentes populacionais simplesmente não têm mais onde morar, em face da destruição de dezenas de milhares de imóveis. Esse patrimônio teve que ser rapidamente refeito. Daí o compromisso com a eficiência e o desempenho. Quando Valter Gropius comenta que a casa de Canoas é muito bonita embora não possa ser reprodutível, o faz totalmente imbuído do espírito de seu tempo e de seu lugar, ou seja, se remete a uma Europa que precisa ser reconstruída rapidamente e em larga escala.
Vale lembrar que as cidades europeias receberam a partir da segunda metade do século XVIII as populações vindas do campo. O êxodo campo-cidade foi intenso, pois a mudança do modo de produção proporcionado pela Revolução Industrial abriu centenas de milhares de postos de trabalho nas cidades. As cidades europeias receberam sem nenhum preparo essas populações. Sobre o assunto sugere-se a leitura de Charles Dickens e Émile Zola, que descreveram com precisão as condições de vida nas grandes cidades europeias nesse período. Oliver Twist é o personagem urbano europeu do século XIX por excelência.
As reações urbanísticas a esse contexto acontecem em diversas cidades. A Paris de Haussmann desenvolve um plano que realizou a demolição de 19.730 prédios históricos e a construção de 34 mil novos edifícios. Seus plano realizou a destruição de 49 km de ruas antigas e construiu 165 km de novas e amplas avenidas, caracterizadas por fileiras de prédios neoclássicos em tons de creme. Tal plano alterou profundamente a estrutura da cidade de Paris, inclusive do ponto de vista da propriedade imobiliária, que deixa de ser majoritariamente controlada pela antiga nobreza ligada aos regimes dos séculos anteriores, a festejar materialmente a burguesia no poder. A Paris do século XIX é simbólica e materialmente dominada pela nova burguesia ligada à Revolução Industrial.
Barcelona
O mesmo se dá com a expansão urbana promovida pela burguesia de Barcelona, que terá em Gaudi e Sert seus arquitetos referenciais. A expansão de Barcelona é realizada em finais do século XIX e tem no princípio do século XX um rearranjo da área central tradicional, de modo que um novo centro histórico fortemente repristinado substitui o centro histórico antigo ocupado pelas classes populares. (Sobre o assunto, ver o documentário produzido pela faculdade de cinema de Barcelona intitulado Farselona.)
Em ambos os casos, as preocupações das burguesias são fortemente ligadas às questões identificadas à segurança e à segregação. A Comuna de Paris se valeu das estreitas e tortuosas ruas dos bairros operários para enfrentar as forças do governo. Por analogia, um centro urbano habitado pelas classes pobres era incompatível com a ideia de uma Barcelona progressista e ligada às tecnologias e comunicações que o início do século XX apresentava. Um centro histórico valorizado e preservado é condição de identidade cultural e comercial vital para a afirmação das cidades europeias.
O modernismo, embora carregado de matizes populares e visando à incorporação dos novos segmentos de trabalhadores ligados a indústria, ao comércio e de viés francamente urbano, chega à arquitetura e ao urbanismo no contexto de mudança definitiva de classe no poder, de alteração da fonte de energia e do sistema produtivo, dos novos grandes ordenamentos urbanos e da busca de eficácia e eficiência na produção da moradia e dos edifícios. A Revolução Russa e a Primeira Guerra Mundial alteraram profundamente o status dessa sociedade que acreditava ter encontrado um equilíbrio possível, simbolicamente imaginado pela Belle époque e em seguida pelos “locos twenty”.
A proposta da arquitetura e do urbanismo moderno surge, portanto, no contexto de ampliar a cidade para todos, ou pelo menos não ser tão exclusiva, configurando uma tentativa em reduzir as distâncias entre as áreas urbanas consolidadas e os bairros de trabalhadores totalmente abandonados.
A sociedade nesse momento parece estar disposta à solução de seus problemas pela via do coletivo. É a explosão de sindicatos, grêmios, coletivos de natureza diversa, compondo claramente um momento de construção dessa estratégia que é também adotada pela arquitetura e pelo urbanismo.
Na primeira metade do século XX a sociedade sugere que enfrentará seus impasses e conflitos pela organização de estruturas coletivas. A vitória da revolução socialista na Rússia e o crescimento de partidos com viés socialdemocrata em diversos países europeus apontam para essa direção. Nesse contexto, há a crença utópica de que a sociedade amadureceria e se organizaria pelos coletivos, de modo que o indivíduo ocuparia e se apropriaria dos espaços públicos através dos coletivos organizados e maduros para tal apropriação. Sindicatos, ligas, grêmios, federações, clubes, diretórios de toda ordem construiriam um novo momento da sociedade, em que o indivíduo ocuparia um papel relevante na sociedade, e em decorrência também na cidade, não mais como um cidadão individualizado e fragilizado, mas como parte de um coletivo organizado e estruturado.
Essa condição, que inicia o século XX com muita força, vai sendo derrotada ao longo de toda a primeira metade do século passado e se esfacela depois da Segunda Guerra Mundial. A tese da prevalência dos coletivos é claramente derrotada nos anos 1970 e 1980. Entretanto, é importante contextualizar a tese do modernismo, que era clara no sentido de que essa sociedade, organizada por coletivos, saberia muito bem como gerir seus destinos. Em decorrência, saberia gerir muito bem o espaço da cidade, se apropriaria muito facilmente dos espaços públicos, das praças e logradouros, em face da dinâmica de vivência coletiva. Desse modo, caberia aos arquitetos propor espaços de boa qualidade, seja no nível dos espaços públicos, seja no nível dos edifícios. A sociedade saberia se apropriar desses espaços caracterizados pela boa qualidade dos espaços em si. Os arquitetos tinham como desafio oferecer à sociedade espaços de qualidade comprometidos com a eficiência, com a clareza construtiva pela busca de custos e velocidades, dadas as quantidades exigidas para o atendimento das novas demandas e pela beleza apoiada no despojamento. Quando Loos afirma que todo ornamento é um delito, está pensando justamente em como obter uma estética na qual se consiga estruturar uma noção de eternidade desapegada das experiências fortemente classicistas do século XIX. A pretensão modernista de estabelecer seu próprio “Espirito do Tempo” construindo a ideia de eternidade em seu próprio tempo, segundo o dizer de Peter Eisenman, juntamente com a simulação da eficiência através do excessivo protagonismo atribuído ao funcionalismo e ao domínio da razão, explica, em parte, o longo e exaustivo processo de deterioração que a arquitetura e o urbanismo moderno seriam protagonistas (Nesbitt, 2006).
Rossi, Scoffier, Augé...
É nesse contexto que Peter Eisenman estabelece a ideia das ficções, procurando entender a arquitetura contemporânea como continuidade dos preceitos da arquitetura moderna, retoma os conceitos de representação para incorporar a ideia de significado, a ficção da razão para codificar a ideia de verdade e a ficção da história para recuperar a ideia de eterno. Com a inclusão do conceito de lugar por Aldo Rossi, de meio lugar por Scoffier, e de não lugar por Augé, estão estabelecidos, em parte, os princípios que organizarão o pensamento do urbanismo contemporâneo. Evidente que outros recortes podem ser feitos, e diversos arquitetos e críticos contribuíram nesse debate. Entretanto, explicito os autores acima de modo a tornar mais claro os caminhos que, a nosso ver, essa discussão tem adotado.
Resulta que a sociedade contemporânea adota de modo cabal e absoluto a prevalência do indivíduo sobre o coletivo. Essa prevalência é clara e contundente. O indivíduo nesse estágio da sociedade em que vivemos nunca esteve tão conectado com todos, via celular, via internet, comunicamo-nos todos, entre todos e a cada segundo. O acesso à informação é praticamente infinito. Entretanto, esse indivíduo nunca esteve tão solitário e tão abandonado, daí que esses espaços projetados no século XX à luz da utopia da vivência pelo coletivo e imaginados para serem vivenciados e apropriados pelos coletivos se tornaram de dificílima apropriação por um ser humano que busca a personalização, o agenciamento individual da vida, bradando “Eu não sou um robot”. Ora, tais espaços são de leitura complexa para essas populações que, como consequência, irão abandoná-los como espaço a ser apropriado.
São exceções os espaços projetados no impulso dessa utopia e que puderam, por razões diversas, encontrar outra maneira de absorver a referência social que se cogita como necessária. Em geral, obras-primas do projeto urbano moderno...
Destacamos o parque do Ibirapuera na cidade de São Paulo, que a cada ano se renova nele mesmo, lotado e utilizado por todas as populações da cidade. O aterro do Flamengo na cidade do Rio de Janeiro, que vai ao encontro de formular uma política de apropriação de espaço público numa cidade praiana, com assentamentos culturais de matizes tão diversas. Em frente à praia, o aterro do Flamengo se confunde com a própria praia, em termos de constituição espacial.
A superação desse aparente conflito entre as naturezas essenciais desses espaços está a avançar em direção a um urbanismo de matiz contemporânea que esteja em sintonia com essa sociedade cuja mobilidade tem tensões ainda não de todo compreendidas. Nessa direção, o arquiteto Tadao Ando é assertivo quando afirma que “A criação de uma arquitetura e de um urbanismo capaz de infundir novo rigor no espirito humano deve abrir caminho no impasse atual da arquitetura e do urbanismo”. (apud Nesbitt, 2006, p. 494).
Para Peter Eisenman, o movimento moderno tenta libertar a arquitetura de representar uma outra arquitetura, na medida em que deveria manifestar a racionalidade de seus processos de produção e composição, forçando a ideia de que a forma materializa mais claramente a função, e estabelecendo a ideia do espirito do tempo. Nesses termos, o funcionalismo pretende uma eternidade consubstanciada numa simulação de eficiência. Pois, como tem a pretensão de estar sempre conectado ao “espírito de um tempo presente”, será sempre contemporâneo e daí a suposição de eternidade.
A superação da ideia da busca da eficiência como paradigma que, de tão forte, em certo momento se apresenta quase que como único é o que trará para os arquitetos do século XXI a possibilidade de compreender e repropor novas possibilidades da arquitetura a partir de vivências culturais próprias e constitutivas de um novo espírito para o lugar e para o tempo.
É nesse contexto que se destaca o arquiteto Tadao Ando, que propõe a importância da fenomenologia e do sítio no processo projetual mediante uma ação critica elaborada em razão do distanciamento da função que ele impõe deliberadamente em seus projetos.
Tal reflexão se estabelece pelo confronto entre a natureza e a realidade concreta dos materiais. O tempo e o lugar são determinantes para a concepção do espaço do homem; e a natureza que, em certa medida, foi algo que se pretendia ser enfrentada por vários arquitetos do modernismo, para o arquiteto Tadao Ando é algo inerente ao projeto: “faz parte do lugar, e como tal terá papel relevante na concepção do espaço arquitetônico desejado” (apud Nesbitt, 2006, p.497). A Igreja da Luz marca com clareza esse pensamento, no qual todos os momentos que a natureza propõe estão incluídos e fazem parte da paisagem do projeto. A ordem do ambiente natural e a do ambiente construído perdem a noção de conflito para se encontrarem e se somarem numa nova possibilidade de fruição.
Em um contexto diferente, mas com intenções semelhantes, Rem Koolhaas (2008) propõe uma alternativa paramoderna a esse aparente paradoxo. Koolhaas não faz um ataque ao modernismo, mas aprofunda a leitura da cidade e do edifício quase que complementando aquilo que o autor identifica como limitações do movimento moderno. Desse modo, estabelece em Delirious New York (Koolhaas, 2008) uma tese que explicita a necessária reflexão crítica das propostas do moderno e a coloca dentro do estágio atual da sociedade. Ao contraditar o modernismo a algo que denominou “manhattanismo”, Koolhaas explica a formação da cidade do século XX não em função das utopias do período, mas através do pragmatismo que caracteriza a cidade de Nova York. Nesse percurso o arquiteto tem se apresentado como uma tentativa de um caminho seguro e compreensível para os desafios que estamos por enfrentar nas cidades contemporâneas.
Superar a mistificação das quantidades e do pragmatismo irresponsável parece ser a pedra de toque dessa discussão. Discussão do caráter paramoderno das propostas urbanísticas atuais, que tem Koolhaas como interlocutor mais processual, e em Jan Ghel o seu viés mais radical, que, com a frase referente à necessidade de deter a construção de “uma arquitetura barata para a gasolina”, estabelece o foco de superação das cidades, e é interessantíssima pelo seu caráter esclarecedor do que se passa na cidade de São Paulo no momento presente.
Referências
- AUGÉ, M. Não lugares. São Paulo: Papyrus, 2012.
- CACCIARI, M. A cidade. Barcelona: Gustavo Gili, 2010.
- GEHL, J. Cidades para pessoas. São Paulo: Perspectiva, 2010.
- KOOLHAAS, R. Delirious New York. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
- NESBITT, K. Uma nova agenda para a arquitetura. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
- ROSSI, A. A arquitetura da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
- SCOFFIER, R. Os quatro conceitos fundamentais da arquitetura. S. l.: Editora Norma, 2011.
- SOLÁ-MORALES, I. Territórios. Barcelona: Gustavo Gili, 2002.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Jan-Apr 2019
Histórico
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Recebido
03 Dez 2018 -
Aceito
05 Fev 2019