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A catástrofe de Chernobyl vinte anos depois

ENERGIA NUCLEAR

A catástrofe de Chernobyl vinte anos depois

Jean-Pierre Dupuy

SE QUISERMOS evitar uma catástrofe climática maior, deveremos, imperativamente, impedir-nos de extrair do subsolo mais de um terço dos recursos fósseis, petróleo, gás e carvão, que ainda estão nele enterrados. Mas nunca o mercado de energia será capaz de um tal esforço de autolimitação. Os mercados existem apenas para administrar recursos escassos. Ora, os recursos fósseis não estão ainda escassos, eles permanecem fortemente superabundantes. Repito, temos recursos fósseis em quantidade três vezes maior do que aquela que temos o direito de utilizar; daí, o apocalipse climático.

O lobby nuclear mundial sabe disso, e se ele age, tanto pública como secretamente, de modo a fazer que as atenções se voltem para a ameaça ao meio ambiente, é porque aí vê a grande chance do nuclear civil. Pergunto se é verdadeiramente essa a escolha que nos resta fazer: o envenenamento do planeta ou uma espécie de ditadura da técnica? E coloco a questão de fundo: as condições que fazem a energia nuclear segura são compatíveis com as regras de base que fundam uma sociedade democrática, transparente e justa? A gestão da catástrofe de Chernobyl nos faz duvidar disso.

Avaliação ou despistamento?

Se for constatado que a opacidade, a dissimulação e a mentira são condições necessárias para garantir uma "imagem de segurança", então a equação energética ficará sem solução.

O que aterroriza mais no caso de Chernobyl é que a presumida competência dos experts não alcance uma qualidade de pensamento à altura dos grandes problemas que ela coloca para a sociedade. A tecnocracia, que acusa facilmente seus adversários de cair no irracional e no obscurantismo, carece da seriedade e daquele discernimento mínimo que temos o direito de esperar de cidadãos que põem em risco a possibilidade mesma de uma vida digna e segura neste planeta. Uma competência técnica que não repensa o que diz e o que deixa fazer, eis o supremo perigo.

A avaliação dos efeitos de uma catástrofe nuclear sobre a saúde humana recorre a três métodos:

• a observação direta;

• a pesquisa epidemiológica;

• a modelização.

Os prestadores de socorro das primeiras horas receberam em Chernobyl doses tão altas que sua morte pode ser atribuída com toda certeza ao acidente. Mas, para todas as pessoas que sofreram, na hora ou em seguida, doses médias ou fracas, as coisas são mais complexas. Em princípio, uma pesquisa epidemiológica poderia avaliar, retrospectivamente, o excesso das doenças malignas que afetaram as populações atingidas sobre a taxa normalmente esperada. Mas essa pesquisa não pôde ser feita corretamente em Chernobyl, pois as populações mais afetadas, os bombeiros e as pessoas que puderam ser deslocadas dispersaram-se pelo território da União Soviética, e nenhum acompanhamento pôde ser efetuado.

Resta a modelização que substituiu a pesquisa epidemiológica, essa mesma modelização a que se deve, de todo modo, recorrer para estimar os mortos futuros.

O modelo usado pelas autoridades internacionais de radioproteção é um modelo linear sem limiar. Supõe-se que o efeito sobre a morbidez e a mortalidade seja proporcional à dose recebida, mesmo para as doses muito fracas. Em outros termos, não há nenhum limiar de radiações aquém do qual o efeito é postulado como nulo.

Quando se lê o relatório do Fórum Chernobyl com atenção, descobre-se que as quatro mil mortes anunciadas foram calculadas, mediante o modelo linear sem limiar, sobre uma reduzidíssima parte da população mundial que as radiações afetaram: seiscentas mil pessoas, ou seja, cerca de duzentos mil "liqüidadores", 120 mil pessoas retiradas do local e 270 mil outras residentes nas zonas mais contaminadas. Quanto aos milhões de seres humanos também afetados, a estimativa oficial não se pronuncia a respeito, o que levou todo o mundo a concluir que a catástrofe não era responsável por nenhuma das suas mortes. O que é um passa-moleque do modelo.

Estive em Kiev, visitei o sítio de Chernobyl. Aí nos falaram da retirada dos 48 mil habitantes de Pripyat, a cidade vizinha da central nuclear, operação que só começou 36 horas depois da explosão. Entre essas pessoas deslocadas, quinze mil teriam morrido nos seis meses seguintes, empilhadas nos hospitais de Kiev. Insistiu-se sobre o caso trágico dos seiscentos mil a oitocentos mil liqüidadores, esses voluntários em geral forçados que limparam o sítio absorvendo as mais fortes doses, e dos quais não se sabe praticamente nada. Os que não morreram na catástrofe se dispersaram por toda a União Soviética, e nenhum estudo epidemiológico pôde ser praticado, nem neles nem na sua descendência.

A catástrofe de Chernobyl produziu uma radioatividade considerável: centenas de vezes mais matérias radioativas lançadas do que em Hiroxima. Médicos e geneticistas nos falaram longamente sobre os efeitos das doses fracas de radioa-tividade em dezenas de milhões de pessoas que vivem, bebem, se alimentam e se reproduzem em um meio contaminado: tumores cancerígenos, cardiopatias, fadigas crônicas, doenças inéditas e sentimento de desamparo afetam uma população imensa, e, no meio dessa, sobretudo crianças e jovens. E temem-se efeitos irreversíveis sobre o genoma humano.

Os relatórios locais, no entanto, continuam a falar em "apenas" quatro mil pessoas afetadas pela "exposição direta às radiações", como se o acidente não tivesse prejudicado a vida de milhões de infelizes que transmitem a sua desgraça a seus descendentes de geração em geração.

* * *

No mês de agosto de 2005, em razão da proximidade do vigésimo aniversário da catástrofe nuclear de Chernobyl, que ocorreu em 26 de abril de 1986, participei, na Ucrânia, de um curso de verão dedicado à análise de suas conseqüências.

Um dos objetivos desse encontro foi a preparação de uma grande exposição itinerante sobre a catástrofe inaugurada em maio último no Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona. Depois da Espanha, essa exposição deveria vir para São Paulo. Passamos uma semana em Kiev, depois de um dia na zona contaminada, algumas horas nas proximidades do reator que explodiu e está recoberto por uma estrutura de cimento e aço que recebeu o nome de "sarcófago".

Na volta para Paris, o contraste entre o que vi e senti lá no local e a leitura do relatório oficial da ONU com o balanço "definitivo" da catástrofe me escandalizou. Lá nos falaram de centenas de milhares de mortos, mas o balanço oficial reconhecia 37 mortos até o momento, e talvez quatro mil quando tudo estiver acabado. Decidi publicar um livro, Retour de Tchernobyl. Journal d’un homme en colère [Retorno de Chernobyl. Diário de um homem irado].

A conclusão que faço das minhas reflexões é a de que o lobby nuclear internacional, tendo à frente a Agência Internacional de Energia Atômica, está pronto para as dissimulações mais escandalosas para não desacreditar a imagem do nuclear civil , já bem degradada por razões reais e simbólicas. Não penso que as pessoas sejam desonestas. Por que elas agem assim? Porque elas têm medo de desencadear o pânico. Têm muito mais medo do medo da população do que de suas máquinas. E isso é o mais preocupante. Porque o medo pode ser bom conselheiro. Nós podemos dizer hoje que Chernobyl em nada nos terá servido de lição. A Associação Mundial dos Exploradores das Centrais Nucleares, criada depois da catástrofe com a intenção expressamente declarada de impedir sua repetição, reconheceu recentemente que a segurança média das centrais nucleares no mundo era desastrosa, e que seria suficiente um novo Chernobyl para que a organização desabasse. A lição de Chernobyl foi varrida com as costas das mãos pelo refrão enganoso: "Foi um acidente soviético e não um acidente nuclear".

Para fazer sentir o horror da catástrofe, vou apresentar duas séries de diapositivos. A primeira reúne fotos que fiz quando de nossa estada em Kiev e de nossa visita a Chernobyl; a segunda mostra as fotos feitas pelo fotógrafo ucraniano Igor Kostine nas horas, nos dias e nos anos que se seguiram à catástrofe. Nelas se verão o reator que explodiu, o trabalho dos "liqüidadores", esses oitocentos mil bombeiros, soldados do contingente e voluntários que, com perigo de suas vidas, apagaram o fogo do reator, varreram o lixo radioativo e construíram o sarcófago. Verão também a cidade de Pripyat, onde viviam os trabalhadores da central e suas famílias, cinqüenta mil pessoas ao todo que foram evacuadas 36 horas depois da explosão. Essa cidade está lá, quase intacta, mas privada de vida pelos próximos vinte mil anos. Verão também o processo dos responsáveis. O mais duro de ver são as fotos dos bebês monstros que nasceram de mães que tiveram a infelicidade de estar grávidas em Pripyat, naquele 26 de abril de 1986.

Recebido em 23.2.2007 e aceito em 26.2.2007.

Jean-Pierre Dupuy é professor da École Polytechnique de Paris e da Stanford University. Autor de Retour de Tchernobyl. Journal d’un homme en colère (Seuil, 2006). @ – jean-pierre.dupuy@mines.org

O texto que publicamos resulta de excertos da conferência do autor no ciclo "Cultura e pensamento em tempos de incerteza" – Ministério da Cultura, Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Brasília, Goiânia, 11-18 de setembro de 2006, combinados com passagens extraídas da apresentação ao catálogo da exposição sobre Chernobyl, realizada em Barcelona. As fotos de Igor Kostine a que se reporta o autor não pude-ram ser aqui reproduzidas por não serem ainda de domínio público.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Out 2007
  • Data do Fascículo
    Abr 2007
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