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Os múltiplos perfis da obra machadiana

RESENHAS

Os múltiplos perfis da obra machadiana

Marcus Vinicius Mazzari

AO ABRIR a série de capítulos dedicados ao "estudo intrínseco da literatura", na última seção de seu conhecido Manual, René Wellek e Austin Warren (1971, p.173) fazem a seguinte afirmação: "O ponto de partida natural e sensato do trabalho de investigação literária é a interpretação e análise das obras literárias em si próprias".1 1 No original, de 1949, lê-se: " The natural and sensible starting point for work in li-terary scholarship is the interpretation and analysis of the works of literature themselves" (p.139). Se o leitor do Manual ativer-se ao termo "ponto de partida", poderá concordar sem maiores problemas com tal assertiva, mesmo consciente das insuficiências de certas abordagens "imanentes", ou sendo adepto, por exemplo, dos procedimentos da Estética da Recepção, voltados ao contexto histórico, social, cultural em que as obras surgem e atuam sobre os seus respectivos horizontes de expectativa.

Mas, com toda a sua procedência e sensatez didática, a afirmação parece assinalar tão-somente o momento em que se iniciam os desafios para o intérprete confrontado com a pluralidade de sentidos da obra literária, com as forças inconscientes e as influências culturais que constituem sua complexa estrutura, ou ainda, como sugerido por Alfredo Bosi (2003, p.461) no ensaio teórico que fecha o volume Céu, inferno, a renitente opacidade de suas imagens: "Se os sinais gráficos que desenham a superfície do texto literário fossem transparentes, se o olho que neles batesse visse de chofre o sentido ali presente, então não haveria forma simbólica, nem se faria necessário esse trabalho tenaz que se chama interpretação".2 2 Com observação semelhante, Wolfgang Iser (1996) abre a sua grande obra de maturidade O fictício e o imaginário, que busca estabelecer os fundamentos para uma nova antropologia literária: "Literatura necessita de interpretação pois aquilo que ela verbaliza não existe independentemente dela ou não seria acessível senão por ela".

Na perspectiva assumida pelo crítico, compreender e interpretar um fenômeno literário equivale a inteirar-se de seus perfis, "que são múltiplos, às vezes opostos, e não podem ser substituídos por dados exteriores ao fenômeno tal como este se nos dá". Colhidas em meio a tantas formulações exemplares, essas palavras fazem ressoar o princípio hermenêutico que obsta à exegese operar exteriormente ao seu objeto, configurando-se este não apenas como "ponto de partida", mas como permanente instância de controle das operações interpretativas. Por conseguinte, o recurso a dados extraliterários, em si legítimo e com freqüência necessário, deve vir sempre conjugado ao movimento concêntrico que, transitando entre o todo e as partes, afinado também com o tom e a perspectiva que enformaram a trama textual, faculta ao hermeneuta apreender unidades de sentido cada vez mais amplas.

De que modo tais colocações teóricas se traduzem na práxis da análise e interpretação, demonstram-no alguns dos ensaios enfeixados no mencionado volume, como o que lhe empresta título, "Céu, inferno", no qual observamos a visada comparativa e ao mesmo tempo diferencial de Alfredo Bosi avançar na direção do "centro vivo" de textos de Graciliano Ramos (Vidas secas) e Guimarães Rosa (Primeiras estórias), norteada pela tarefa de "enfrentar o problema crucial que é a determinação das perspectivas; e mostrar como estas desempenham o seu papel ativo de ‘formas simbólicas’". Ou então o ensaio subseqüente, intitulado "O Ateneu: opacidade e destruição", obra-prima de crítica literária em que os vários perfis desse "romance pedagógico ou de terror" se desvendam mediante o aprofundamento hermenêutico no tom unificador que o atravessa da primeira à última página, assim como nas contradições ideológicas que se instalam no cerne do ponto de vista narrativo adotado pelo jovem Raul Pompéia.

Dialética da colonização concretiza igualmente, em vários de seus capítulos, os princípios teóricos discutidos no ensaio "A interpretação da obra literária". Numa linguagem límpida e precisa, o autor empreende um percurso transversal por cinco séculos de história brasileira, e podemos observar então como o confronto com textos de Anchieta, Gregório de Matos, Vieira, José de Alencar, Castro Alves traz à tona elementos que também ajudam a elucidar contradições que vincam o processo colonizatório brasileiro, contemplado ao longo do livro tanto em suas manifestações simbólicas como nas materiais. O movimento concêntrico entre as partes e o todo se desenvolve com admirável maestria, integrando à interpretação dados tomados às esferas econômica, social, política, e isso desde o ensaio sobre "As flechas opostas do sagrado" – imagens que, num primeiro plano, significam as "teodicéias" dos dois povos que se chocaram no início da nossa colonização: "Infelizmente para os povos nativos, a religião dos descobridores vinha municiada de cavalos e soldados, arcabuzes e canhões". Mas ao leitor abre-se também a possibilidade de enxergar na imagem das "flechas opostas" as duas linguagens mobilizadas por Anchieta em seus textos: na linguagem dos símbolos exprimiu (em latim, espanhol e português) as inquietações e os arroubos característicos da devotio moderna, enquanto a expressão alegórica, em idioma tupi, revestia os autos que perseguiam a finalidade de catequizar os indígenas, o que leva o intérprete a afirmar ter sido a alegoria "o primeiro instrumento de uma arte para massas criada pelos intelectuais orgânicos da aculturação".

Amplo e vário é, portanto, o espectro de temas, de poetas e narradores abordados por Alfredo Bosi em seus livros, seja nos dois aqui mencionados ou em outros, como a própria História concisa da literatura brasileira, ou ainda O ser e o tempo da poesia e Literatura e resistência. Já O enigma do olhar e o mais recente Brás Cubas em três versões, títulos tomados aos ensaios de maior densidade teórica em seus respectivos volumes, estão dedicados exclusivamente à figura de Machado de Assis, o que constitui fato inédito na trajetória de um crítico que somente em trabalhos acadêmicos debruçou-se sobre um único autor (Pirandello no doutorado, Leopardi na livre-docência). No primeiro ensaio, observamos o empenho hermenêutico em perscrutar o "enigma" de um olhar ao mesmo tempo local e universal, que constrói "tipos", mas também "pessoas", e a interpretação percorre amplas dimensões da narrativa machadiana, desde A mão e a luva,Helena,Iaiá Garcia, passando depois mais detidamente por Dom Casmurro e Quincas Borba, e chegando até Memorial de Aires.

No segundo ensaio, o autor empreende nova aproximação aos múltiplos perfis que constituem a extraordinária fisionomia artística de Machado; mas dessa vez, como deixa entrever o seu título, à luz primacial de Memórias póstumas de Brás Cubas, romance que certamente se insere no conceito de "literatura mundial" (Weltliteratur), lançado por Goethe em 1827, e com o qual o autor de Ressurreição estréia a sua condição de twice-born, para lembrar aqui a célebre observação de Otto Maria Carpeaux.

Observemos, antes de tudo, que discutir "três versões" na copiosa e notável fortuna crítica desse divisor de águas do romance machadiano e brasileiro não é o verdadeiro escopo do ensaio, mas sim o caminho heurístico elegido pelo autor para o delineamento de uma nova visão da obra que o Eu-narrador dedica ao primeiro verme que roeu as suas "frias carnes". Para isso, o primeiro passo de Bosi é relembrar em linhas gerais o enredo romanesco e, desse modo, chamar a atenção para o "duplo jogo de presença e distanciamento" que a escolha do insólito ponto de vista de um defunto autor trouxe às memórias que se encenam como póstumas: a "presença" do eu como protagonista e, portanto, testemunha dos acontecimentos, e o "distanciamento" operado por uma consciência narrativa que já transpôs a "curta ponte" que separa a vida da morte. No corpo do ensaio, é precisamente essa duplicidade que adensa e amplia o significado que a abordagem hermenêutica busca desvendar no romance, empenhada em superar interpretações que colocam os nexos intertextuais em primeiro plano ou que vêem em Brás prioritariamente um tipo balizado pelas coordenadas econômicas e sociais do contexto em que se move.

No fundo, as considerações iniciais do ensaio desenvolvem-se em torno da "perspectiva" subjacente às memórias, das implicações acarretadas pela adoção, então inédita no romance machadiano, do foco narrativo em primeira pessoa. No segmento seguinte, "O outro fora e dentro do eu", enfocam-se episódios fundamentais do enredo, quais sejam, o do "almocreve", da "borboleta preta", do "embrulho misterioso" achado na rua e, sobretudo, o complexo narrativo em torno de Eugênia, introduzido no capítulo "A flor da moita". O crítico visa demonstrar à luz desses episódios como a elaboração, numa dimensão reflexiva post-mortem, dos acontecimentos vivenciados mostra-se capaz por vezes de "abrir frestas no subsolo" da consciência do narrador, o que acarreta uma dialetização do tipo rentista no Brasil do Segundo Império, a condição social efetiva de Brás Cubas. A análise enfoca em especial, e de vários ângulos, o episódio da bela, mas pobre e coxa Eugênia, iluminando minuciosamente toda a labilidade da relação que o especioso Brás estabelece com a moça. Elucida-se aqui, de maneira exemplar, como se processa na consciência do defunto autor a elaboração do comportamento do jovem rico que se assustara com a possibilidade de apaixonar-se por Eugênia, cuja dignidade a faz afirmar-se como pessoa, em vez de reduzir-se à "tipicidade" a que o olhar de Brás procurara rebaixá-la. Condição econômica e status social mostram-se sem dúvida como forças motrizes do comportamento do jovem mimado, mas a consciência narrativa logra descer a subterrâneos da personalidade e desvendar aí outros traços do "eu detestável" (moi-haïssable) de extração pascaliana.

No segmento subseqüente, "Três dimensões de Brás Cubas", o autor debruça-se minuciosamente sobre as vertentes críticas indiciadas no título, a saber, a "construtiva", a "expressiva" e a "mimética". A primeira a ser enfocada alinha-se na tradição dos estudos de intertextualidade, que buscam as referências mais remotas para as memórias de Brás Cubas na satira menippea do século III a.C. e nos Diálogos dos mortos de Luciano de Samósata, redigidos por volta do ano de 160. Intertextos mais recentes são, porém, como explicitado pelo eu-narrador nas palavras iniciais "ao leitor", os romances Voyage autour de ma chambre (1794), de Xavier de Maistre, e sobretudo The life and opinions of Tristram Shandy, Gentleman (1759-1767), de Laurence Sterne. Desse modo, a discussão da vertente "construtiva" ou "intertextual" concentra-se em especial num ensaio originalmente em inglês ("The shandean form: Laurence Sterne and Machado de Assis"), no qual Sérgio Paulo Rouanet, com grande riqueza de detalhes, vincula à influência do romancista inglês aspectos da narrativa solta e ziguezagueante (a "forma livre") que outros intérpretes farão remontar antes à condição socioeconômica ou à melancolia e ao humour de Brás Cubas.3 3 Em português, o ensaio foi publicado no n.6-7 da revista Teresa (São Paulo, 2006, p.318-38).

Em seguida, o autor aprofunda-se na vertente pela qual revela a sua maior admiração, representada pelas análises do "crítico-artista" Augusto Meyer, chamado ainda o "mais sutil dos leitores de Machado". A atenção percuciente às múltiplas manifestações do humor machadiano teria permitido a Meyer aprofundar a sondagem, na figura do defunto autor, tanto do "homem subterrâneo", de matriz dostoievskiana, como das afinidades com o posterior "relativismo de Pirandello na figuração do teatro da vida".4 4 Em seu "Esquema de Machado de Assis", Antonio Candido (1995, p.17-39) observa igualmente que a leitura de Dostoiévski e Pirandello possibilitou a Meyer ultrapassar a "visão humorística e filosofante" que se tinha de Machado, e mostrar "que na sua obra havia muito do ‘homem subterrâneo’ do primeiro, e do ser múltiplo, impalpável, do segundo". Essa perspectiva de leitura, fundamentada em procedimentos da literatura comparada (e também nas lições de mestres da Estilística como Karl Vossler, Leo Spitzer, Damaso Alonso), levou Meyer a intuir logo as profundas diferenças no "tom dominante" ou no "étimo espiritual" entre os romances de Sterne e Machado, o que conseqüentemente já apontava para os limites da tese intertextual.

Por fim, passa-se em revista a chamada leitura sociológica, que nos textos de Astrojildo Pereira sobre Machado ("Romancista do Segundo Reinado" é de 1939) se manifesta na chave de um marxismo mediado pelas concepções estéticas simplificadoras de Plekhanov, mas que posteriormente atinge momentos do mais alto nível com os estudos de Raymundo Faoro e Roberto Schwarz, sendo este último o que mais longe levou a tese que sustenta a existência de uma homologia entre estruturas estilísticas do romance e estruturas sociais moldadas pela parelha capitalismo-escravidão – ou a existência de nexos, como formula Bosi, "entre a ideologia do rentista no Brasil Império e os modos de pensar, sentir e dizer de Brás Cubas". Para essa leitura, o eu-narrador figuraria prioritariamente como "espelho ou voz da sua classe social", cujos verdadeiros interesses econômicos encontram-se mascarados pela ideologia do liberalismo. Movido pelo objetivo de redimensionar a visão apresentada por Schwarz nos extraordinários livros Ao vencedor as batatas e Um mestre na periferia do capitalismo, o autor envereda também por um estudo minucioso do papel histórico desempenhado pelo liberalismo no Brasil do século XIX, insistindo em especial na distinção entre duas correntes liberais em acirrado confronto, uma por assim dizer "retrógrada" e conservadora (equivale a dizer: escravocrata), e outra progressista, posto que comprometida organicamente com os ideais abolicionistas.

Enfocando as especificidades de cada uma das vertentes antes delineadas e, ao mesmo tempo, relacionando-as entre si, essa incursão pela fortuna crítica das Memórias póstumas desdobra-se sob amplo horizonte hermenêutico, e um de seus resultados poderia ser formulado do seguinte modo: assim como a leitura intertextual-construtiva (Rouanet) e a existencial-expressiva (Meyer) não alcançam dar conta de dimensões fundamentais do romance machadiano, que devem ser escavadas nas esferas econômica e social, assim também a perspectiva sociológica chegaria aos seus limites ao subordinar à situação de classe do eu-narrador Brás Cubas os traços formais e existenciais derivados do convívio de Machado com a tradição literária e filosófica do Ocidente. Nas palavras de Alfredo Bosi, o Machado "brasileiro" é também "universal", sua mente "ultrapassa os limites geográficos da periferia".

Portanto, o confronto com essas "três dimensões de Brás Cubas" constitui-se também, como perceberá o leitor, numa espécie de heurística para o esboço de uma visão própria do romance como texto multiplamente determinado, o que impõe a necessidade de evitar a confluência do discurso crítico para um "único fator explicativo, causa das causas, em prejuízo de uma abordagem compreensiva". Estabelecida tal advertência, o autor irá procurar surpreender na trama romanesca a interação viva dos vetores formais, existenciais e miméticos, sem atribuir a nenhum deles o papel de instância última, isto é, monocausal e sobredeterminante. Ponto fundamental nessa abordagem de inspiração hermenêutica é o diagnóstico do "sentimento amargo e áspero" que, segundo palavras do próprio Machado no prólogo à terceira edição, teria penetrado a "alma deste livro, por mais risonho que pareça". Se, ao infiltrar-se pelas confissões de Brás, esse tom de amargura, por um lado, distancia seu livro dos modelos de Sterne e Xavier de Maistre, por outro, confere-lhe uma especificidade que também não prescinde da amplitude, profundidade e universalidade características das grandes obras da literatura universal. Para Alfredo Bosi, tal sentimento funcionaria como o poderoso "dissolvente contra-ideológico" que possibilitou a Machado fazer que o defunto-autor de 1869 (cujo ponto de vista post-mortem articula a crítica do comportamento do Brás protagonista nascido em 1805) se visse e julgasse a si mesmo "pelos olhos do intelectual desenganado de 1880", numa referência à dimensão empírica da redação do romance. Mediante um tal alargamento e entrelaçamento das temporalidades, Machado traz para a sua alça de mira não apenas o liberalismo retrógrado encarnado em personagens como Cotrim, Damasceno e o próprio Brás, mas também o liberalismo progressista e democratizante formado nas décadas de 1860 e 1870, e ainda, extrapolando as fronteiras nacionais com o seu ceticismo moraliste, o "progressismo em geral ".

No ensaio intermediário, enfocam-se obras-primas da crônica machadiana, tanto as que tomam sua motivação nos chamados faits-divers como as que tratam de efemérides culturais e acontecimentos políticos, internacionais e nacionais ("Velho senado" é exemplo magistral). O estudo reconstitui assim a visão que Machado lançou sobre o "teatro político" encenado pelo "barro humano", e o caminho nele trilhado não deixa de estar vinculado ao ensaio anterior, pois se trata também de compreender o nexo íntimo entre procedimentos literários – em especial, uma sátira que deixa entrever leituras intensas de Swift e Voltaire – e um amplo "moralismo cético".5 5 Referidos a Machado, os termos "moralismo" e "moralista" devem ser entendidos sempre no contexto específico de escritores e filósofos que, evitando lições de ética ou orientações moralizantes, se empenharam em desvendar e analisar os interesses e as contradições ditados pelas paixões humanas. É conseqüente que tal visada crítica traga novos subsídios para a apresentação de um Machado brasileiro e universal, isto é, atento aos estímulos locais, ligados ao aqui e agora, mas reagindo a esses com respostas elaboradas por uma consciência lapidada no convívio com grandes tradições da cultura ocidental – respostas, portanto, que "terão a complexidade e a profundidade do sujeito que as sente, pensa e elabora".

Na composição das crônicas, o intérprete vê operar, como nas narrativas ficcionais, uma "estilística do distanciamento e da atenuação", o que novamente impõe a tarefa de sondar a perspectiva e o tom que as enformaram. Torna-se necessário escavar em suas camadas mais profundas e, no âmbito dessa empresa, se procura ultrapassar a relação direta que as crônicas entretêm com os fatos brutos da realidade política e social, para trazer à luz traços que ajudam a iluminar a complexa fisionomia intelectual e artística de Machado.

Um passo até certo ponto surpreendente no ensaio é quando o autor aponta para os eventuais limites ideológicos do cronista, o que se dá mediante o contraste com concepções e a práxis de contemporâneos: as "crônicas jacobinas de Raul Pompéia" ou o "pathos liberal-progressista que sopra nas páginas animosas de Joaquim Nabuco"; "os ensaios históricos dramáticos de Euclides da Cunha, inteligência sensível às grandes fraturas de raça, classe e cultura que dividiam a nação brasileira", e ainda o "protesto encrespado, feito de amor e ódio, revolta e esperança, que sai das páginas abolicionistas de Luís Gama, André Rebouças, José do Patrocínio ou Cruz e Souza, mulatos e negros que se indignam, porque motivados por um ideal de futuro libertador".

Nada de jacobinismo, pathos, dramaticidade ou protesto encrespado nas crônicas machadianas. O leitor que percorrer algumas das comentadas por Alfredo Bosi poderá sair dessa incursão com sentimento semelhante ao que nos infunde, por exemplo, a leitura de textos de Jonathan Swift, As viagens de Gulliver ou a Modest proposal de 1729, referente ao abate e emprego culinário de crianças pobres irlandesas – célebre sátira a que o cronista carioca faz alusões inequívocas numa crônica de dezembro de 1895 que comenta escabroso canibalismo perpetrado por um professor inglês numa escola da Guiné (mas lembrando também casos de antropofagia no sertão de Minas). Um trecho da crônica:

Pode ser que o professor quisesse explicar aos ouvintes o que era o canibalismo, cientificamente falando. Pegou de um pequeno e comeu-o. Os ouvintes, sem saber onde ficava a diferença entre o canibalismo científico e o vulgar, pediram explicações; o professor comeu outro pequeno. Não sendo provável que os espíritos da Guiné tenham a compreensão fácil de um Aristóteles, continuaram a não entender, e o professor continuou a devorar meninos. É o que em pedagogia se chama "lição de cousas".

Temperada com fingido indiferentismo (no fundo, apenas uma "lição de cousas"), a sátira machadiana certamente não perderia sua eficácia se voltada para a barbárie de nossos dias, e não é difícil que o leitor de hoje se lance a especular sobre as possíveis reações do cronista às notícias que nos traz o noticiário cotidiano. São fatos que escarnecem das palavras e, nesse sentido, redimensiona-se talvez a hipótese dos "limites ideológicos". Pois à sátira, como se sabe, tudo é lícito, mesmo estimular o riso com o mais chocante e horroroso. Vergonha profunda, revolta, desespero talvez sejam os sentimentos que se ocultam sob a superfície satírica, e nessa direção apontam também os comentários de Alfredo Bosi sobre a crônica de 1º de dezembro. Felizmente, contudo, na maior parte das vezes é apenas ceticismo, ou mero pessimismo, que se mascara no humour de um Machado que confessara a Mário de Alencar ter perdido "todas as ilusões sobre os homens".

Seja como for, a abordagem hermenêutica que se desdobra no ensaio "O teatro político", acompanhando atentamente os movimentos de superfície e de profundidade dessas obras-primas da produção jornalística machadiana, alcança surpreender no fundo do olhar do cronista um "veio de inconformismo" que o leitor poderá relacionar ao ressaibo amargo e áspero das memórias de Brás Cubas: em sua negatividade, tanto um como o outro se revelam então capazes de desdobrar o potencial crítico de "dissolvente contra-ideológico".

Fechando o volume, Alfredo Bosi retorna de certo modo a uma das vertentes discutidas no ensaio de abertura, ampliando-se o confronto crítico com o já clássico livro de Raymundo Faoro Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio, exaustivo mapeamento do universo ficcional de Machado à luz da vida política e econômica do Segundo Reinado. O passo inicial do ensaio é enfatizar os seus vínculos com outro célebre livro de Faoro, Os donos do poder, cuja segunda edição inteiramente refundida apareceu em 1975, apenas um ano após a publicação de A pirâmide e o trapézio. A tese da existência, no Brasil do século XIX, de "dois liberalismos", que entram em conflito aberto nas décadas de 70 e 80, ocupa posição central na discussão a que esses dois livros de Faoro são submetidos na primeira parte do ensaio. Entrando em seguida na rigorosa abordagem, de inspiração weberiana, que faz Faoro da obra machadiana, o autor confere especial relevo ao momento em que o sociólogo parece dar-se conta da insuficiência de seu método para compreender em profundidade o olhar do nosso maior romancista. É nesse momento que ganha espaço a perspectiva hermenêutica, movida pela consciência de que a grande literatura não é apenas reflexo, mas também – ou sobretudo – "reflexão", trabalho da fantasia criadora com o singular. Instala-se então, no cerne da argumentação de Faoro, um dualismo epistemológico cujos resultados mais ricos podem ser acompanhados no último capítulo do livro, intitulado "O espelho e a lâmpada".6 6 Faoro toma essas imagens ao livro de Meyer H. Abrams, citado na tradução espanhola (1972), sobre o romantismo inglês e alemão: The Mirror and the Lamp, de 1953. Na dimensão imagética e conceitual da formulação de Faoro, o "espelho" representaria o procedimento mimético, calcado numa estética da representação. A esse vem juntar-se a "lâmpada" que, referida aos procedimentos narrativos, metaforiza a "estilização da sociedade" empreendida por Machado numa dimensão muito além do mero espelhamento; referida à abordagem crítica, a "lâmpada" significa a "prospecção hermenêutica" empenhada em acompanhar e iluminar os complexos movimentos da subjetividade e da consciência narrativa.

A pirâmide (desenho da estrutura vertical das classes) e o trapézio (desenho da estrutura horizontal dos estamentos); o espelho e a lâmpada; o quadro e olhar; a explicação das ciências exatas e naturais e a compreensão das ciências humanas: se já nesse estudo sobre a obra machadiana não se trata de oposições estanques, mas antes de perspectivas complementares, a discussão que lhe dedica Alfredo Bosi forceja sempre por tornar ainda mais fecundo o diálogo entre a sociologia e a hermenêutica, o que, como se diz na conclusão, "não desprazeria ao mestre de Raymundo Faoro, aquele Weber que sondou, em toda a sua obra, as intrincadas relações entre o indivíduo e a sociedade".

Como o leitor poderá perceber ao término deste Brás Cubas em três versões, os ensaios que o constituem, embora independentes, se relacionam entre si por inúmeros vasos comunicantes, derivados organicamente da perspectiva crítica do autor. Desse modo, ao mesmo tempo que o estudo final retoma e desdobra alguns aspectos do confronto com a vertente sociológica, estudada no ensaio de abertura, também lhe carreia retrospectivamente valiosos subsídios para reforçar a hipótese da importância do procedimento hermenêutico para a compreensão das Memórias póstumas como "texto multiplamente determinado", pois que constituído pela interação dinâmica dos vetores formais, existenciais e miméticos.

À complexidade, ou, para recorrer a um termo tão caro a Goethe, à incomensurabilidade da criação literária nada mais justo do que fazer corresponder uma abordagem dúctil, multifacetada, rica em perspectivas. Recorrer, para a interpretação da obra machadiana, a estudos de Max Weber ou Marx (como faz Roberto Schwarz de maneira soberana) revela-se de extraordinária eficácia, mas não menos fecundo é empreender também a sondagem, no processo constitutivo do ponto de vista dos narradores machadianos, das marcas deixadas por influências tão decisivas ao romancista: os pessimistas Leopardi e Schopenhauer; Montaigne, Pascal, La Rochefoucauld e outros mestres da análise psicológica que, como disse Nietzsche, "semelham arqueiros de pontaria certeira, os quais sempre e sempre atingem o alvo – mas o alvo da natureza humana".

Daí se justifica a necessidade, no trabalho de interpretação literária, de "pacientes escavações no Sujeito e na História", conforme postulado no mencionado ensaio final do volume Céu, inferno, pois somente assim se poderá fazer frente ao desafio de "decifrar essa relação de abertura e fechamento, tantas vezes misteriosa, que a palavra escrita entretém com o não-escrito". O movimento de aproximar-se e apartar-se dos efeitos imediatos do texto revela-se assim como operação hermenêutica por excelência, e nesse ponto talvez se possa identificar uma afinidade com o processo de criação literária: não por acaso, um passo inicial no ensaio "Brás Cubas em três versões" foi, como já referido, apontar para o "duplo jogo de presença e distanciamento" desenvolvido pela perspectiva do defunto autor. Esse traço das Memórias póstumas vem corroborar o paradoxo, discutido entre outros por Adorno em sua Teoria estética, do duplo caráter dialético da obra de arte: estar ancorada na sociedade e ao mesmo tempo ser independente e autônoma em face desta. Pode-se dizer que a essa concepção de literatura Alfredo Bosi sempre procurou fazer justiça em seus escritos teóricos e, mais ainda, em sua práxis de intérprete. Não seria uma concepção estranha ao velho Goethe, que observava em uma de suas Máximas e reflexões: "Não há meio mais seguro de esquivar-se do mundo do que pela arte; mas também não há meio mais seguro de vincular-se ao mundo do que pela arte".

Notas

Referências bibliográficas

ABRAMS, M. H. El espejo e la lampara. Buenos Aires: Ediorial Nova, 1972.

BOSI, A. A interpretação da obra literária. In: ___. Céu, inferno – Ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo: Duas Cidades, Editora 34, 2003.

CANDIDO, A. Esquema de Machado de Assis. In: ___. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995.

ISER, W. O fictício e o imaginário. Trad. Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: Eduerj, 1996.

WELLEK, R.; WARREN, A. Teoria da literatura. Lisboa: Publicações Europa-América, 1971.

Marcus Vinicius Mazzari é professor de teoria literária na USP, tradutor de diversas obras e autor do livro Romance de formação em perspectiva histórica (Ateliê, 1999). @ – mazzari@usp.br

  • 1
    No original, de 1949, lê-se: "
    The natural and sensible starting point for work in li-terary scholarship is the interpretation and analysis of the works of literature themselves" (p.139).
  • 2
    Com observação semelhante, Wolfgang Iser (1996) abre a sua grande obra de maturidade
    O fictício e o imaginário, que busca estabelecer os fundamentos para uma nova antropologia literária: "Literatura necessita de interpretação pois aquilo que ela verbaliza não existe independentemente dela ou não seria acessível senão por ela".
  • 3
    Em português, o ensaio foi publicado no n.6-7 da revista
    Teresa (São Paulo, 2006, p.318-38).
  • 4
    Em seu "Esquema de Machado de Assis", Antonio Candido (1995, p.17-39) observa igualmente que a leitura de Dostoiévski e Pirandello possibilitou a Meyer ultrapassar a "visão humorística e filosofante" que se tinha de Machado, e mostrar "que na sua obra havia muito do ‘homem subterrâneo’ do primeiro, e do ser múltiplo, impalpável, do segundo".
  • 5
    Referidos a Machado, os termos "moralismo" e "moralista" devem ser entendidos sempre no contexto específico de escritores e filósofos que, evitando lições de ética ou orientações moralizantes, se empenharam em desvendar e analisar os interesses e as contradições ditados pelas paixões humanas.
  • 6
    Faoro toma essas imagens ao livro de Meyer H. Abrams, citado na tradução espanhola (1972), sobre o romantismo inglês e alemão:
    The Mirror and the Lamp, de 1953.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Out 2007
    • Data do Fascículo
      Abr 2007
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