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Multifuncionalidade da agricultura urbana e periurbana: uma revisão sistemática

RESUMO

O artigo consiste em uma revisão sistemática da literatura sobre a multifuncionalidade da agricultura urbana e periurbana realizada nas bases de dados Science Direct (Elsevier), Scientific Electronic Library (Scielo) e Portal de Periódicos Capes, utilizando os descritores: “agricultura urbana” AND “multifuncionalidade”, “agricultura urbana” AND “multifuncional”, “urban agriculture” AND “multifunctionality”, “urban agriculture” AND “multifunctional. Foram selecionados de acordo com os critérios de busca, inclusão e exclusão 14 artigos publicados com aderência ao tema e interesse da pesquisa. Para cada um dos artigos buscaram-se identificar sete tipos de dado ao longo da análise, sendo eles: (1) título; (2) ano de publicação; (3) autores; (4) periódico; (5) local do estudo; (6) tipologias de AUP; e (7) funções da AUP. Foi finalmente elaborada uma classificação das funções da AUP em três grandes dimensões: sociocultural, econômica e ambiental. Ficou evidenciado que a AUP em suas diversas formas e tipos apresenta benefícios e, poderia ser utilizada e estimulada por meio de políticas públicas como estratégia para o desenvolvimento de sistemas alimentares mais sustentáveis e para que os ambientes urbanos e periurbanos sejam locais mais saudáveis. Finalmente foi possível concluir que a AUP pode ser uma importante ferramenta na busca de atingir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), tal como preconizado pela Organização das Nações Unidas em 2015.

PALAVRAS-CHAVE:
Multifuncionalidade; Agricultura urbana e periurbana

ABSTRACT

The article is a systematic review of the literature on the multifunctionality of urban and peri-urban agriculture (UPA) found in the Science Direct (Elsevier), Scientific Electronic Library (Scielo) and Portal de Periódicos CAPES databases, using the descriptors “agricultura urbana” AND “multifuncionalidade”, “agricultura urbana” AND “multifuncional”, “urban agriculture” AND “multifunctionality”, “urban agriculture” AND “multifunctional”. Fourteen articles were selected according to these search, inclusion and exclusion criteria that pertained to this theme and research interest. For each article, seven types of data were identified during text analysis, as follows: (1) title; (2) year of publication; (3) authors; (4) journal; (5) location of study; (6) types of UPA; and (7) functions of UPA. It was possible to develop a classification for the UPA functions in three major dimensions: sociocultural, economic and environmental. It became clear that UPA and its function and types provide benefits and can be used and stimulated through public policies as a strategy for the development of sustainable food systems and healthier urban and peri-urban environments. Finally, it was possible to conclude that UPA can be an important tool to attain the Sustainable Development Goals (SDGs), as recommended by the United Nations in 2015.

KEYWORDS:
Multifunctionality; Urban and peri-urban agriculture

Introdução

Atualmente, o número de pessoas que vivem com fome é alarmante, atingindo mais de 820 milhões em torno de todo o globo, além de mais de dois bilhões de pessoas em um estado de insegurança alimentar de moderado a severo (FAO, Ifad, Unicef, WFP, WHO, 2019). Essa população que sofre com a falta diária de acessibilidade e disponibilidade de alimentos frescos e nutritivos vive em geral nas áreas urbanas.

Dessa maneira, a valorização, o incentivo e a prática da Agricultura Urbana e Periurbana (AUP), notadamente aquelas baseadas nos princípios agroecológicos,1 1 A agroecologia consiste em princípios que consideram os aspectos ecológicos, sociais e econômicos dos sistemas de produção de alimentos, buscando o desenvolvimento de uma agricultura autossuficiente e sustentável. podem ser vistos como uma alternativa social, ambiental e economicamente sustentável para fazer parte da estratégia de solução do problema da fome, promovendo a produção e o abastecimento de alimentos para essas populações urbanas.

A propósito, uma dieta rica em micronutrientes pode ser obtida a partir de sistemas de produção de alimentos descentralizados, baseados em mercados locais. Renato Maluf apresenta uma ligação entre as questões de segurança alimentar e nutricional e modelos agroalimentares de produção quando considera que, “o atual status alimentar e nutricional da população brasileira, em relação com as diferenças sociais, está fortemente ligado à maneira como os alimentos são produzidos e distribuídos no país” (Maluf et al., 2015, p.2305).

Assim, a AUP desponta como uma maneira promissora de contribuir com o alcance da segurança alimentar e nutricional das populações urbanas, principalmente se praticada nas periferias. Nessas regiões, o acesso a alimentos saudáveis/agroecológicos, a promoção da mudança de hábitos alimentares e a troca de conhecimento em relação a espécies e receitas antes desconhecidas podem ser garantidos por meio da prática da agricultura que segue os princípios agroecológicos (Ribeiro; Bógus; Watanabe, 2015RIBEIRO, S. M.; BÓGUS, C. M.; WATANABE, H. A. W. Agricultura urbana agroecológica na perspectiva da promoção da saúde. Saúde e Sociedade, v.24, n.2, p.730-43, 2015.).

A AUP pode ser considerada também como uma ferramenta de promoção da saúde da população, uma vez que estimula a integração e o protagonismo social, além de criação de ambientes favoráveis à saúde (Ribeiro; Bógus; Watanabe, 2015RIBEIRO, S. M.; BÓGUS, C. M.; WATANABE, H. A. W. Agricultura urbana agroecológica na perspectiva da promoção da saúde. Saúde e Sociedade, v.24, n.2, p.730-43, 2015.).

Ademais, terrenos abandonados nas cidades são, por muitas vezes, ocupados por atividades indesejadas pela população local. A utilização dessas áreas por atividades agrícolas pode gerar um impacto positivo nas comunidades, criando melhores condições ambientais e alimentares que contribuam para a melhora na sua saúde (Ribeiro; Bógus; Watanabe, 2015RIBEIRO, S. M.; BÓGUS, C. M.; WATANABE, H. A. W. Agricultura urbana agroecológica na perspectiva da promoção da saúde. Saúde e Sociedade, v.24, n.2, p.730-43, 2015.).

É pertinente também notar que muitas vezes a AUP é considerada pela sociedade como um modismo ou exercício temporário. No entanto, nota-se que o crescimento dessa prática, em sua informalidade, nos últimos trinta anos ocorreu principalmente devido à busca por segurança alimentar e geração de renda. Vale salientar, no entanto, que a prática da agricultura nas áreas urbanas vai para além de aspectos técnicos e produtivos, oferecendo oportunidade de desenvolver uma consciência social, comunitária e ambiental com vocação de transformar as formas de relações socioambientais (Duchemin; Wegmuller; Legault, 2009DUCHEMIN, E.; WEGMULLER, F.; LEGAULT, A. M. Urban Agriculture: multi-dimensional tools for social development in poor neighbourghoods. Field Actions Science Report. Montreal, Québec, Canadá, 2009.).

Entende-se, assim, a relevância de analisar a AUP como uma prática emergente que pode promover a resiliência das cidades e fortalecer os sistemas alimentares regionais por meio de suas múltiplas funções e potencialidades adaptativas, uma vez que contribui para a segurança alimentar das populações urbanas, reduz emissões de gases de efeito estufa devido à proximidade entre produtor e consumidor; proporciona ambientes mais saudáveis, entre outros.

A realização desta pesquisa se deu baseada no questionamento das diferentes funções já identificadas pela literatura que a agricultura urbana e periurbana pode assumir.

Metodologia

A metodologia utilizada para esta pesquisa foi a revisão sistemática da literatura, que consiste em uma “investigação focada em questão bem definida, que visa identificar, selecionar, avaliar e sintetizar as evidências relevantes disponíveis” (Galvão; Pereira, 2014GALVÃO, T. F.; PEREIRA, M. G. Revisões sistemáticas da literatura: passos para sua elaboração. Epidemiologia e Serviços de Saúde, v.23, n.1, p.183-4, 2014., p.1). O procedimento deve ser bem definido e rigoroso de forma que a qualidade do resultado da pesquisa seja relevante, consistente e original.

O método de revisão sistemática consiste dos seguintes procedimentos e etapas: (i) formulação da questão de pesquisa; (ii) estabelecimento de critérios de inclusão e exclusão; (iii) seleção e acesso à literatura; (iv) avaliação da qualidade da literatura incluída na revisão; e (v) análise, síntese e disseminação dos resultados (Cronin; Ryan; Coughlan, 2008CRONIN, P.; RYAN, F.; COUGHLAN, M. Undertaking a literature review: a step-by-step approach. British Journal of Nursing, v.17, n.1, p.38-43, 2008.; Galvão; Pereira, 2014GALVÃO, T. F.; PEREIRA, M. G. Revisões sistemáticas da literatura: passos para sua elaboração. Epidemiologia e Serviços de Saúde, v.23, n.1, p.183-4, 2014.).

Para este trabalho escolheu-se desenvolver a Tabela 1 com todas as etapas e desenvolvimento do processo afim de facilitar a operação prática e de apresentação da pesquisa.

Tabela 1
Etapas e desenvolvimento da revisão sistemática da literatura

Resultados e discussão

O processo de seleção das publicações sobre a multifuncionalidade da AUP foi realizado de acordo com os critérios apresentados no item (ii) Estabelecimento de critérios de inclusão e exclusão da Tabela 1. A busca constituída pelas palavras-chave em português “agricultura urbana” AND “multifuncionalidade” gerou como resultado apenas um artigo na base Scielo, nas demais bases não foram localizados artigos. Não foi encontrado nenhum artigo nas três bases pesquisadas para a busca “agricultura urbana” AND “multifuncional”. Já as buscas em inglês geraram maior quantidade de artigos, sendo que para “urban agriculture” AND “multifunctionality” foram localizados um total de 18 artigos, um deles na base Scielo, um na base Capes e 16 na base Science Direct. Para “urban agriculture” AND “multifunctional” os resultados incluem 24 artigos, sendo 16 na Science Direct e 8 na Capes, a Scielo não localizou artigos que atendiam aos critérios.

Dessa forma, verificou-se um total de 43 referência pré-selecionadas, e 20 delas constituíam-se em duplicatas. Para os 23 artigos não duplicados foi avaliada a aderência ao tema e à intenção de pesquisa, por meio da leitura dos resumos dos artigos. Finalmente foi possível chegar num total de 14 artigos para leitura integral e buscou-se identificar sete tipos de dado ao longo da análise desses, sendo eles: (1) título; (2) ano de publicação; (3) autores; (4) periódico; (5) local do estudo; (6) tipologias de AUP; e (7) funções da AUP. A Figura 1 apresenta um fluxograma com o processo de seleção dos artigos acima descrito.

Após leitura cuidadosa dos 14 artigos selecionados foi criada a Tabela 2 para apresentar de maneira breve algumas informações sistematizadas desses, que incluem: título; ano de publicação; autores; periódico e local do estudo. Os dados de tipologias e funções da AUP serão apresentados de forma mais detalhada posteriormente neste artigo.

Tabela 2
Sistematização das informações gerais dos artigos selecionados para a revisão sistemática

Figura 1
Fluxograma da seleção das publicações sobre a multifuncionalidade da Agricultura Urbana e Periubana (AUP) de acordo com critérios estabelecidos.

De acordo com os dados sobre ano de publicação pode-se perceber que os estudos mais antigos encontrados nessa revisão sistemática são do ano de 2010, lembrando que o período de busca considera o início das publicações nas bases de dados até 30/1/2020. Ou seja, a temática da multifuncionalidade da AUP é bastante recente na pesquisa científica. Dentre os 14 artigos avaliados, 4 deles foram publicados entre 2019 e 2020, dentre os quais um encontrava-se publicado, porém sem volume, data e paginação definidos, evidenciando ainda mais a atualidade do tema.

Os estudos avaliados foram em sua maioria realizados por dois ou mais autores. Isso pode ser em decorrência do fato de que a pesquisa sobre multifuncionalidade da AUP é, em geral, complexa e interdisciplinar, demandando saídas de campo e extensivas discussões teóricas e práticas.

Vale ressaltar que os locais dos estudos de caso apresentados ao logo dos 14 artigos são, em sua maioria, especificamente oito, de países localizados no Norte Global, aqui representados por Suécia, Canadá, Alemanha, Itália, Holanda, Reino Unido, Bélgica, Suíça, Dinamarca, Escócia, Austrália e Estados Unidos da América. Dentre os demais estudos, quatro deles estão localizados no continente asiático, sendo dois deles na região de Pequim, na China; um na Indonésia e um no Nepal. Apenas um estudo contempla casos do continente africano, abrangendo oito cidades: Accra; Addis Abeba; Dakar; Dar es Salaam; Douala; Ibadan; Kampala e Nairóbi. E, finalmente, um estudo de caso está localizado na América do Sul, descrevendo a realidade da cidade de São Luís, no Estado do Maranhão, região Nordeste do Brasil.

Uma vez que as localidades estudadas nesta revisão sistemática incluem não somente países distintos, mas também realidades completamente diferentes, fica clara a impossibilidade de classificar a AUP como uma atividade uniforme e com características padrões. Somado a isso, é possível notar ao longo das análises dos trabalhos, a diversidade de tipologias de agriculturas urbana e periurbana. Em cinco trabalhos analisados, a tipologia apresentada é de maneira geral e abrangente sobre a agricultura periurbana. Já as hortas comunitárias aparecem como estudo de caso e/ou exemplo de tipologia também em cinco artigos. Sarah Lovell (2010LOVELL, S. T. Multifunctional Urban Agriculture for Sustainable Land Use Planning in the United States. Sustainability, v.2, p.2499-522, 2010.) apresenta de maneira bastante completa as tipologias que a AUP pode apresentar, sendo elas hortas comunitárias; hortas escolares; hortas particulares (homegardens); hortas de cozinha e de quintais; lotes em espaços públicos; paisagens comestíveis; jardins de chuvas com espécies comestíveis; fazendas empresariais altamente rentáveis; pequenas hortas focadas em produção de espécies com alto valor agregado; prédios com arquitetura integrativa para diversos tipos de agricultura tais como pomares, hortas verticais e, telhados verdes com espécies comestíveis; e estufas com produção em terra ou hidropônicos. Will Valley e Hannah Wittman (2019VALLEY, W.; WITTMAN, H. Beyond feeding the city: The multifunctionality of urban farming in Vancouver, BC. City, Culture and Society, v.16, p.36-44, 2019.) complementam as formas que a AUP pode adquirir com feiras de produtores local; criação de galinhas; negócios sociais; ocupação de espaços vazios da cidade; hortas em hospitais; hortas em parques; e fazendas em áreas particulares. Duas outras tipologias que merecem destaque são as propriedades focadas no agroturismo; e o sistema de parcelas (allotments), que em geral se constitui pela concessão de pequenas parcelas de terrenos governamentais para o plantio de alimento pelos cidadãos.

Compreende-se que tamanha abrangência de tipologias gera como resultado diferentes focos e funções para as distintas formas de AUP. De fato, cada propriedade, horta, jardim e/ou allotment acaba, em sua maioria, cumprindo diversas funções para além da produção de alimentos, assumindo assim uma agricultura multifuncional.

A multifuncionalidade da agricultura representa um modelo de agricultura que atende às demandas da sociedade por proteção ambiental, segurança alimentar, preservação de tradições culturais e promoção do desenvolvimento, funcionando como uma estratégia para os negócios agrícolas e uma possibilidade para a agricultura se adaptar à realidade urbana. Essa prática permite não somente a viabilidade da propriedade, mas também a transformação da paisagem. Relevante destacar que não se trata de diferentes funções ocorrendo ao mesmo tempo num mesmo espaço, e, sim, a sinergia entre estas na paisagem. Ou seja, a multifuncionalidade trata-se de um conceito inter- e transdisciplinar que leva em conta diferentes objetivos e valorizações, e não somente o somatório dessas (Spatarua; Faggiana; Docking, 2020SPATARUA, A.; FAGGIANA, R.; DOCKING, A. Principles of multifunctional agriculture for supporting agriculture in metropolitan peri-urban areas: The case of Greater Melbourne, Australia. Journal of Rural Studies, 2020.; Rolf, Pauleita, Wiggering, 2019ROLF, W.; PAULEITA, S.; WIGGERING, H. A stakeholder approach, door opener for farmland and multifunctionality in urban green infrastructure. Urban Forestry & Urban Greening, v.40, p.73-83, 2019.).

Os artigos selecionados para esta revisão sistemática apresentam de forma bastante abrangente diferentes funções que a AUP desempenha. Escolheu-se, com o intuito de realizar uma avaliação mais clara e detalhada, dividir as funções em três grandes dimensões: sociocultural, econômica e ambiental (Figura 2). Para cada uma delas foi possível identificar com riqueza de detalhes suas formas, especificações e contribuições para a AUP.

Figura 2
Funções da Agricultura Urbana e Periubana (AUP) divididas por dimensão.

Dimensão sociocultural

A dimensão sociocultural é representada primordialmente pela Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). Apesar de a FAO considerar a SAN por meio de quatro dimensões principais - disponibilidade, acesso, utilização e estabilidade - leva-se em conta para este trabalho que a definição de SAN inclui também, os aspectos cunhados pela Via Campesina para o termo soberania alimentar, definido pelo “direito dos povos a alimentos saudáveis e culturalmente adequados, produzidos mediante métodos sustentáveis, assim como o direito de definir seus próprios sistemas agrícolas e alimentares” (Via Campesina, 2018; FAO, 2008). Ou seja, a SAN inclui não somente as questões de quantidade de alimentos, mas também de qualidade e hábitos culturais.

A melhora da SAN com a prática da AUP se dá por meio do autoconsumo e do incremento na renda com a venda de produtos nos mercados locais e regionais, promovendo o poder de compra de outros alimentos os quais não são produzidos nas hortas (Pribadi et al., 2017PRIBADI, D. O. et al. Multifunctional adaption of farmers as response to urban growth in the Jabodetabek Metropolitan Area, Indonesia. Journal of Rural Studies, v.55, p.100-11, 2017.). A AUP proporciona, portanto, o fornecimento de alimentos para os sistemas alimentares urbanos, permitindo, assim, a disponibilização notadamente de alimentos frescos e nutritivos para populações localizadas em regiões onde comumente estes não são encontrados.2 2 Desertos alimentares: áreas urbanas onde os moradores não têm a possibilidade de acessar alimentos frescos e in natura, prejudicando diretamente a qualidade da dieta e da saúde. Vale notar que essa oferta de alimentos local assume papel importante, pois esses são em sua maioria disponibilizados a preços mais baratos do que os alimentos provenientes de regiões mais distantes e/ou importados e acessíveis nos casos inflação nos preços dos alimentos, aumento nos preços dos combustíveis e eventos ambientais extremos (Rana; Rijanta; Rachmawati, 2015RANA, S.; RIJANTA, R.; RACHMAWATI, R. Multifunctional Peri-Urban Agriculture and Local Food Access in the Kathmandu Valley, Nepal: A Review. Journal of Natural Resources and Development, v.5, p.88-96, 2015.).

A possibilidade de incremento no consumo de frutas e vegetais contribui para melhora no padrão nutricional e consequente na qualidade das dietas. Ademais, a oferta de alimentos frescos e nutritivos pela AUP auxilia diretamente no combate à obesidade infantil, diabete e má nutrição (Valley; Wittman, 2019VALLEY, W.; WITTMAN, H. Beyond feeding the city: The multifunctionality of urban farming in Vancouver, BC. City, Culture and Society, v.16, p.36-44, 2019.; Lovell, 2010LOVELL, S. T. Multifunctional Urban Agriculture for Sustainable Land Use Planning in the United States. Sustainability, v.2, p.2499-522, 2010.). De acordo com Sarah T. Lovell (2010), envolvidos em atividades de agricultura urbana possuem dietas mais saudáveis e consomem mais frutas e vegetais do que os não participantes. Juntamente com o encorajamento da prática de atividades físicas nota-se que a AUP beneficia diretamente a saúde humana.

A coesão social gerada por meio da AUP é outra função relevante dentro da dimensão sociocultural. Tal fato se dá pela formação de um espírito de comunidade e maior integração racial, por meio do engajamento de pessoas de diferentes idades, países e história. Os espaços de cultivo de alimentos dentro e no entorno das cidades oferecem a oportunidade de socialização e cooperação com amigos, vizinhos e famílias no que se refere aos cuidados com as hortas, compartilhamento de alimentos, conhecimento e trabalho. Cria-se, portanto, uma comunidade empoderada e engajada em assuntos de seu interesse (Sartison; Artmann, 2020SARTISON, K.; ARTMANN, M. Edible cities - An innovative nature-based solution for urban sustainability transformation? An explorative study of urban food production in German cities. Urban Forestry & Urban Greening, v.49, p.1-9, 2020.; Lovell, 2010LOVELL, S. T. Multifunctional Urban Agriculture for Sustainable Land Use Planning in the United States. Sustainability, v.2, p.2499-522, 2010.).

Uma vez que o acesso a terras é uma questão complexa nas áreas urbanas e periurbanas, a AUP acaba por ocupar espaços antes muitas vezes subutilizados. Estimula, dessa forma, a requalificação de áreas não utilizadas e/ou degradadas, como as debaixo dos linhões de energia e próximo a cursos d’água, reduzindo a manutenção do governo com áreas verdes e evitando o despejo inadequado de resíduos. As consequências incluem não somente cidades com aspectos estéticos mais agradáveis, mas também uma melhor segurança pública, menos vandalismo e percepção de taxas de criminalidades mais baixas (Sartison; Artmann, 2020SARTISON, K.; ARTMANN, M. Edible cities - An innovative nature-based solution for urban sustainability transformation? An explorative study of urban food production in German cities. Urban Forestry & Urban Greening, v.49, p.1-9, 2020.; Lovell, 2010LOVELL, S. T. Multifunctional Urban Agriculture for Sustainable Land Use Planning in the United States. Sustainability, v.2, p.2499-522, 2010.; Gomes; Gomes; Souza, 2019GOMES, J. F. B; GOMES, R. S. B.; SOUZA, A. The multifunctionality of urban horticulture and its integration with the city ecosystem: a brief review of concepts and the case of São Luís. Horticultura Brasileira, v.37, p.252-9, 2019.).

Apesar de aproximadamente 65% dos agricultores urbanos serem mulheres (Orsini et al., 2013ORSINI, F. et al. Urban agriculture in the developing world: a review. Agronomy for Sustainable Development, v.33, p.695-720, 2013.), dentre os artigos analisados, apenas Sarah T. Lovell (2010LOVELL, S. T. Multifunctional Urban Agriculture for Sustainable Land Use Planning in the United States. Sustainability, v.2, p.2499-522, 2010.) apresenta como função da AUP, ainda que de forma breve, o empoderamento feminino e a equidade de gênero. O envolvimento desse grupo na AUP permite, por meio da economia realizada pelo cultivo de alimentos, que as mulheres invistam na diversificação de atividades que geram renda contribuindo para seu empoderamento e para o bem-estar de todos da moradia (Mougeot, 2005MOUGEOT, L. J. A. Agropolis: The social, political and environmental dimensions of urban agriculture. EarthScan, London, 2005.; Lovell, 2010).

A AUP permite também que haja reconexão dos moradores urbanos com o “mundo natural”, ou seja, o reestabelecimento de elos com a natureza promovendo uma experiência completa para a saúde mental, física e espiritual (Valley, Wittman, 2019VALLEY, W.; WITTMAN, H. Beyond feeding the city: The multifunctionality of urban farming in Vancouver, BC. City, Culture and Society, v.16, p.36-44, 2019.; Sartison; Artmann, 2020SARTISON, K.; ARTMANN, M. Edible cities - An innovative nature-based solution for urban sustainability transformation? An explorative study of urban food production in German cities. Urban Forestry & Urban Greening, v.49, p.1-9, 2020.; Rolf; Pauleita; Wiggering, 2019ROLF, W.; PAULEITA, S.; WIGGERING, H. A stakeholder approach, door opener for farmland and multifunctionality in urban green infrastructure. Urban Forestry & Urban Greening, v.40, p.73-83, 2019.). Ingo Zasada (2011ZASADA, I. Multifunctional peri-urban agriculture - A review of societal demands and the provision of goods and services by farming. Land Use Policy, v.28, p.639-48, 2011.) propõe o que chama de social farming, que tem como intuito a interação social e cuidados com a saúde junto a atividades agrícolas. Essas são voltadas para a saúde, cuidado das áreas verdes e das áreas agrícolas, incluindo reabilitação, terapias e educação para pessoas com deficiências física e mental, pessoas em vulnerabilidade social, crianças e idosos.

Will Valley e Hannah Wittman (2019VALLEY, W.; WITTMAN, H. Beyond feeding the city: The multifunctionality of urban farming in Vancouver, BC. City, Culture and Society, v.16, p.36-44, 2019.) afirmam que o papel da AUP no quesito educação está relacionado com o aumento da educação alimentar (food literacy), ou seja, com conhecimento, habilidade e práticas que permitem que os cidadãos se engajem com a cadeia produtiva dos alimentos, incluindo as formas como são produzidos, distribuídos, comercializados, consumidos e descartados. De fato, a educação pode ir para além da produção e incluir o aprendizado em cozinhar, nutrição, ciências, ambiente, gestão de negócios e sensibilidade cultural, desenvolvendo assim a conscientização de sistemas alimentares mais sustentáveis (Lovell, 2010LOVELL, S. T. Multifunctional Urban Agriculture for Sustainable Land Use Planning in the United States. Sustainability, v.2, p.2499-522, 2010.). Esse conhecimento constitui-se numa importante maneira de estimular o diálogo sobre a alimentação em ambientes urbanos e empoderar as populações urbanas quando o assunto é alimentação, em todas as suas perspectivas. Trata-se de realçar o poder que as comunidades e consumidores como um todo podem mobilizar.

O desenvolvimento cultural e a valorização do patrimônio cultural como funções da AUP abrangem diversas possibilidades. Tais podem ser promovidas por meio da utilização de técnicas agrícolas tradicionais, plantio de espécies crioulas e o acesso a espécies raras de alimento (Rolf; Pauleit; Wiggering, 2019ROLF, W.; PAULEITA, S.; WIGGERING, H. A stakeholder approach, door opener for farmland and multifunctionality in urban green infrastructure. Urban Forestry & Urban Greening, v.40, p.73-83, 2019.; Lovell, 2010LOVELL, S. T. Multifunctional Urban Agriculture for Sustainable Land Use Planning in the United States. Sustainability, v.2, p.2499-522, 2010.). Quando atrelado ao agroturismo, o patrimônio cultural pode ser promovido através da arquitetura tradicional dos prédios dos empreendimentos agrícolas, do oferecimento de pratos da culinária local, celebração de festivais e, vivencias em agricultura tradicional local (Yang; Cai; Sliuzas, 2010YANG, Z.; CAI, J.; SLIUZAS, R. Agro-tourism enterprises as a form of multi-functional urban agriculture for peri-urban development in China. Habitat International, v.34, p.374-385, 2010.).

Na prática, a AUP está diretamente relacionada com lazer e oportunidades de recreação próxima à realidade dos cidadãos urbanos. O agroturismo realizado especialmente nas áreas periurbanas conecta essa população com a biodiversidade e a paisagem, sem afetar as atividades agrícolas. Além de oferecer a possibilidade de acesso a espaços abertos e agrícolas, fortalece as comunidades locais. Trata-se de um processo de intensificação e especialização das atividades agrícolas juntamente com o oferecimento de produtos culturais e ambientais que são em geral baseados nas culturas locais e nas características específicas do território (Yang; Cai; Sliuzas, 2010YANG, Z.; CAI, J.; SLIUZAS, R. Agro-tourism enterprises as a form of multi-functional urban agriculture for peri-urban development in China. Habitat International, v.34, p.374-385, 2010.).

As atividades de recreação estão entre as mais diversas e incluem programas de colha e pague, pet-terapia para pessoas descapacitadas, ecoturismo, turismo científico, de observação, de aventura, enológico, observação de pássaros e vida selvagem, trilhas, pedaladas, pesca, caça, natação, entre outros (Cavalloa, Donatoa; Marino, 2016CAVALLOA, A.; DONATOA, B. Di; MARINO, D. Mapping and Assessing Urban Agriculture in Rome. Agriculture and Agricultural Science Procedia, v.8, p.774-83, 2016.; Marques-Perez; Segura; Maroto, 2014; Rolf; Pauleita; Wiggering, 2019ROLF, W.; PAULEITA, S.; WIGGERING, H. A stakeholder approach, door opener for farmland and multifunctionality in urban green infrastructure. Urban Forestry & Urban Greening, v.40, p.73-83, 2019.; Zasada, 2011ZASADA, I. Multifunctional peri-urban agriculture - A review of societal demands and the provision of goods and services by farming. Land Use Policy, v.28, p.639-48, 2011.). O acesso a essas atividades pode se dar por diferentes realidades sociais devido à proximidade com os centros urbanos e também com a diversidade de possibilidades e valores (Yang; Cai; Sliuzas, 2010YANG, Z.; CAI, J.; SLIUZAS, R. Agro-tourism enterprises as a form of multi-functional urban agriculture for peri-urban development in China. Habitat International, v.34, p.374-385, 2010.).

Dimensão econômica

Outra dimensão de funções da AUP é a econômica. O cerne dessa dimensão está na redução da pobreza, a qual representa a segunda principal motivação/benefício da agricultura urbana e periurbana (Pribadi et al., 2017PRIBADI, D. O. et al. Multifunctional adaption of farmers as response to urban growth in the Jabodetabek Metropolitan Area, Indonesia. Journal of Rural Studies, v.55, p.100-11, 2017.; Lwasa et al., 2015LWASA, S. et al. A meta-analysis of urban and peri-urban agriculture and forestry in mediating climate change. Current Opinion in Environmental Sustainability, v.13, p.68-73, 2015.). De acordo com Mougeot (2005MOUGEOT, L. J. A. Agropolis: The social, political and environmental dimensions of urban agriculture. EarthScan, London, 2005.), a AUP é a segunda ou terceira fonte de renda mais relevante para as moradias urbanas mais pobres, as quais buscam reduzir sua insegurança econômica.

A melhora na vida da população se dá, portanto, por meio da redução de gastos com a alimentação, uma vez que há produção de alimentos para autoconsumo; geração de renda e aumento dos salários das populações mais vulneráveis pela venda dos alimentos; e criação de empregos ao longo de toda cadeia produtiva, possibilitando empregos para a população local, e também para grupos vulneráveis como pessoas viciadas, com problemas mentais e dificuldades financeiras. As ocupações incluem não somente a produção de alimentos, mas também novas formas de serviço, como consultorias em paisagismo comestível (Gomes; Gomes; Souza, 2019GOMES, J. F. B; GOMES, R. S. B.; SOUZA, A. The multifunctionality of urban horticulture and its integration with the city ecosystem: a brief review of concepts and the case of São Luís. Horticultura Brasileira, v.37, p.252-9, 2019.; Lwasa et al., 2015LWASA, S. et al. A meta-analysis of urban and peri-urban agriculture and forestry in mediating climate change. Current Opinion in Environmental Sustainability, v.13, p.68-73, 2015.; Valley; Wittman, 2019VALLEY, W.; WITTMAN, H. Beyond feeding the city: The multifunctionality of urban farming in Vancouver, BC. City, Culture and Society, v.16, p.36-44, 2019.; Sartison; Artmann, 2020SARTISON, K.; ARTMANN, M. Edible cities - An innovative nature-based solution for urban sustainability transformation? An explorative study of urban food production in German cities. Urban Forestry & Urban Greening, v.49, p.1-9, 2020.; Peng et al., 2015PENG, J. et al. Multifunctionality assessment of urban agriculture in Beijing City, China. Science of The Total Environment, v.537, p.343-351, 2015.; Spatarua; Faggiana; Docking, 2020SPATARUA, A.; FAGGIANA, R.; DOCKING, A. Principles of multifunctional agriculture for supporting agriculture in metropolitan peri-urban areas: The case of Greater Melbourne, Australia. Journal of Rural Studies, 2020.; Marques-Perez; Segura; Maroto, 2014; Rana; Rijanta; Rachmawati, 2015RANA, S.; RIJANTA, R.; RACHMAWATI, R. Multifunctional Peri-Urban Agriculture and Local Food Access in the Kathmandu Valley, Nepal: A Review. Journal of Natural Resources and Development, v.5, p.88-96, 2015.; Lovell, 2010LOVELL, S. T. Multifunctional Urban Agriculture for Sustainable Land Use Planning in the United States. Sustainability, v.2, p.2499-522, 2010.).

O exercício da agricultura nas áreas urbanas e periurbanas possui uma característica bastante relevante: a proximidade entre a produção e o mercado consumidor. Tal fato influencia diretamente na maneira como agricultores e consumidores se relacionam e nas formas de abastecimento. Na prática, cadeias de suprimentos de alimentos mais curtas estimulam novas formas de distribuição e comercialização que valorizam o contato social entre produtores e consumidores. Ademais, permite que os agricultores conheçam melhor as demandas e consigam não somente se adaptar a essas, mas também se beneficiar da qualidade de seus produtos e do consequente valor de mercado diferenciado, notadamente se os alimentos forem de origem agroecológica. A venda direta e as Comunidades que Sustentam a Agricultura (CSA)3 3 CSA: comunidade de indivíduos que se articula para cobrir, desde o início, o orçamento de determinada safra, recebendo como contrapartida cotas, em geral semanais, dos alimentos produzidos pela horta apoiada. são exemplos destas formas de relações mais humanas (Valley; Wittman, 2019VALLEY, W.; WITTMAN, H. Beyond feeding the city: The multifunctionality of urban farming in Vancouver, BC. City, Culture and Society, v.16, p.36-44, 2019.; Zasada, 2011ZASADA, I. Multifunctional peri-urban agriculture - A review of societal demands and the provision of goods and services by farming. Land Use Policy, v.28, p.639-48, 2011.; Spatarua; Faggiana; Docking, 2020SPATARUA, A.; FAGGIANA, R.; DOCKING, A. Principles of multifunctional agriculture for supporting agriculture in metropolitan peri-urban areas: The case of Greater Melbourne, Australia. Journal of Rural Studies, 2020.; Rana; Rijanta; Rachmawati, 2015RANA, S.; RIJANTA, R.; RACHMAWATI, R. Multifunctional Peri-Urban Agriculture and Local Food Access in the Kathmandu Valley, Nepal: A Review. Journal of Natural Resources and Development, v.5, p.88-96, 2015.; Lovell, 2010LOVELL, S. T. Multifunctional Urban Agriculture for Sustainable Land Use Planning in the United States. Sustainability, v.2, p.2499-522, 2010.).

Tais iniciativas possibilitam que as populações sejam menos dependentes do mercado mundial de alimentos e suas flutuações, reduzindo assim o volume de importações de frutas e legumes e proporcionando o acesso a alimentos menos dependentes de energia e combustível (Gomes; Gomes; Souza, 2019GOMES, J. F. B; GOMES, R. S. B.; SOUZA, A. The multifunctionality of urban horticulture and its integration with the city ecosystem: a brief review of concepts and the case of São Luís. Horticultura Brasileira, v.37, p.252-9, 2019.; Rana; Rijanta; Rachmawati, 2015RANA, S.; RIJANTA, R.; RACHMAWATI, R. Multifunctional Peri-Urban Agriculture and Local Food Access in the Kathmandu Valley, Nepal: A Review. Journal of Natural Resources and Development, v.5, p.88-96, 2015.; Lovell, 2010LOVELL, S. T. Multifunctional Urban Agriculture for Sustainable Land Use Planning in the United States. Sustainability, v.2, p.2499-522, 2010.).

Outra atividade praticada nas áreas de AUP é o agroturismo que como já citado é uma oportunidade de recreação, mas que também estimula a economia por meio de suas operações, e de publicidade em mídias, rádios e jornais promovendo uma boa imagem da cidade, contribuindo assim para a economia urbana local (Yang; Cai; Sliuzas, 2010YANG, Z.; CAI, J.; SLIUZAS, R. Agro-tourism enterprises as a form of multi-functional urban agriculture for peri-urban development in China. Habitat International, v.34, p.374-385, 2010.; Sartison; Artmann, 2020SARTISON, K.; ARTMANN, M. Edible cities - An innovative nature-based solution for urban sustainability transformation? An explorative study of urban food production in German cities. Urban Forestry & Urban Greening, v.49, p.1-9, 2020.; Peng et al., 2015PENG, J. et al. Multifunctionality assessment of urban agriculture in Beijing City, China. Science of The Total Environment, v.537, p.343-351, 2015.; Marques-Perez; Segura; Maroto, 2014).

Dimensão ambiental

A terceira e última dimensão a ser apresentada é a ambiental. As funções dessa dimensão foram apresentadas em 13 dos 14 artigos avaliados, mostrando que a questão ambiental e ecológica é considerada um aspecto importante da AUP. Essa dimensão pode ser definida pelas externalidades positivas das atividades agrícolas à saúde humana e aos ecossistemas urbanos (Peng et al., 2015PENG, J. et al. Multifunctionality assessment of urban agriculture in Beijing City, China. Science of The Total Environment, v.537, p.343-351, 2015.; Spatarua; Faggiana; Docking, 2020SPATARUA, A.; FAGGIANA, R.; DOCKING, A. Principles of multifunctional agriculture for supporting agriculture in metropolitan peri-urban areas: The case of Greater Melbourne, Australia. Journal of Rural Studies, 2020.).

Dentre as funções detalhadas nessa dimensão a preservação e a conservação da biodiversidade e dos recursos naturais aparecem de forma bastante consistente ao longo dos textos. Essa ocorre por meio da criação de novos hábitats, melhora na qualidade dos hábitats selvagem/natural já existentes e pela disponibilidade de alimentos, ar fresco e água para a vida silvestre. O aumento da biodiversidade é também decorrente da integração de espécies nativas aos sistemas agrícolas (ex.: abelhas, plantas e consórcios) e pelo plantio de espécies tradicionais como forma de alerta para a questão da erosão genética. Se praticada com técnicas agroecológicas/orgânicas a AUP confirma o potencial de preservação dos recursos naturais, evitando a contaminação do solo e água e assim protegendo a saúde pública (Gomes; Gomes; Souza, 2019GOMES, J. F. B; GOMES, R. S. B.; SOUZA, A. The multifunctionality of urban horticulture and its integration with the city ecosystem: a brief review of concepts and the case of São Luís. Horticultura Brasileira, v.37, p.252-9, 2019.; Lwasa et al., 2015LWASA, S. et al. A meta-analysis of urban and peri-urban agriculture and forestry in mediating climate change. Current Opinion in Environmental Sustainability, v.13, p.68-73, 2015.; Rolf; Pauleita; Wiggering, 2019ROLF, W.; PAULEITA, S.; WIGGERING, H. A stakeholder approach, door opener for farmland and multifunctionality in urban green infrastructure. Urban Forestry & Urban Greening, v.40, p.73-83, 2019.; Valley; Wittman, 2019VALLEY, W.; WITTMAN, H. Beyond feeding the city: The multifunctionality of urban farming in Vancouver, BC. City, Culture and Society, v.16, p.36-44, 2019.; Sartison; Artmann, 2020SARTISON, K.; ARTMANN, M. Edible cities - An innovative nature-based solution for urban sustainability transformation? An explorative study of urban food production in German cities. Urban Forestry & Urban Greening, v.49, p.1-9, 2020.; Pribadi et al., 2017PRIBADI, D. O. et al. Multifunctional adaption of farmers as response to urban growth in the Jabodetabek Metropolitan Area, Indonesia. Journal of Rural Studies, v.55, p.100-11, 2017.; Zasada, 2011ZASADA, I. Multifunctional peri-urban agriculture - A review of societal demands and the provision of goods and services by farming. Land Use Policy, v.28, p.639-48, 2011.; Peng et al., 2015PENG, J. et al. Multifunctionality assessment of urban agriculture in Beijing City, China. Science of The Total Environment, v.537, p.343-351, 2015.; Spatarua; Faggiana; Docking, 2020SPATARUA, A.; FAGGIANA, R.; DOCKING, A. Principles of multifunctional agriculture for supporting agriculture in metropolitan peri-urban areas: The case of Greater Melbourne, Australia. Journal of Rural Studies, 2020.; Marques-Perez; Segura; Maroto, 2014; Lovell, 2010LOVELL, S. T. Multifunctional Urban Agriculture for Sustainable Land Use Planning in the United States. Sustainability, v.2, p.2499-522, 2010.).

A ciclagem de nutrientes, especialmente das águas e resíduos urbanos, é notável na AUP. As águas cinza do ambiente urbano e de reúso podem ser tratadas e utilizadas para irrigação, enquanto os sedimentos podem ser usados como fertilizantes. Já os resíduos orgânicos se compostados e tratados de forma adequada podem ser utilizados como insumos da agricultura (Gomes; Gomes; Souza, 2019GOMES, J. F. B; GOMES, R. S. B.; SOUZA, A. The multifunctionality of urban horticulture and its integration with the city ecosystem: a brief review of concepts and the case of São Luís. Horticultura Brasileira, v.37, p.252-9, 2019.; Lwasa et al., 2015LWASA, S. et al. A meta-analysis of urban and peri-urban agriculture and forestry in mediating climate change. Current Opinion in Environmental Sustainability, v.13, p.68-73, 2015.; Yang; Cai; Sliuzas, 2010YANG, Z.; CAI, J.; SLIUZAS, R. Agro-tourism enterprises as a form of multi-functional urban agriculture for peri-urban development in China. Habitat International, v.34, p.374-385, 2010.; Valley; Wittman, 2019VALLEY, W.; WITTMAN, H. Beyond feeding the city: The multifunctionality of urban farming in Vancouver, BC. City, Culture and Society, v.16, p.36-44, 2019.; Rana; Rijanta; Rachmawati, 2015RANA, S.; RIJANTA, R.; RACHMAWATI, R. Multifunctional Peri-Urban Agriculture and Local Food Access in the Kathmandu Valley, Nepal: A Review. Journal of Natural Resources and Development, v.5, p.88-96, 2015.; Lovell, 2010LOVELL, S. T. Multifunctional Urban Agriculture for Sustainable Land Use Planning in the United States. Sustainability, v.2, p.2499-522, 2010.).

A gestão dos recursos hídricos oferece outros benefícios, notadamente um balanço hidrológico equilibrado por meio da infiltração das águas, com consequente reposição das águas subterrâneas, redução do coeficiente de run-off e controle de enchentes e deslizamentos; além de prevenir a erosão do solo (Pribadi et al., 2017PRIBADI, D. O. et al. Multifunctional adaption of farmers as response to urban growth in the Jabodetabek Metropolitan Area, Indonesia. Journal of Rural Studies, v.55, p.100-11, 2017.; Lwasa et al., 2015LWASA, S. et al. A meta-analysis of urban and peri-urban agriculture and forestry in mediating climate change. Current Opinion in Environmental Sustainability, v.13, p.68-73, 2015.; Sartison; Artmann, 2020SARTISON, K.; ARTMANN, M. Edible cities - An innovative nature-based solution for urban sustainability transformation? An explorative study of urban food production in German cities. Urban Forestry & Urban Greening, v.49, p.1-9, 2020.; Rolf; Pauleita; Wiggering, 2019ROLF, W.; PAULEITA, S.; WIGGERING, H. A stakeholder approach, door opener for farmland and multifunctionality in urban green infrastructure. Urban Forestry & Urban Greening, v.40, p.73-83, 2019.; Zasada, 2011ZASADA, I. Multifunctional peri-urban agriculture - A review of societal demands and the provision of goods and services by farming. Land Use Policy, v.28, p.639-48, 2011.; Marques-Perez; Segura; Maroto, 2014).

A existência de áreas verdes nos espaços urbanos não só proporciona uma paisagem mais agradável em termos visuais, mas também auxilia na regulação do microclima local, na redução dos efeitos das ilhas de calor, no sequestro de carbono, e na melhora da qualidade do ar (Pribadi et al., 2017PRIBADI, D. O. et al. Multifunctional adaption of farmers as response to urban growth in the Jabodetabek Metropolitan Area, Indonesia. Journal of Rural Studies, v.55, p.100-11, 2017.; Sartison; Artmann, 2020SARTISON, K.; ARTMANN, M. Edible cities - An innovative nature-based solution for urban sustainability transformation? An explorative study of urban food production in German cities. Urban Forestry & Urban Greening, v.49, p.1-9, 2020.; Zasada, 2011ZASADA, I. Multifunctional peri-urban agriculture - A review of societal demands and the provision of goods and services by farming. Land Use Policy, v.28, p.639-48, 2011.; Lovell, 2010LOVELL, S. T. Multifunctional Urban Agriculture for Sustainable Land Use Planning in the United States. Sustainability, v.2, p.2499-522, 2010.; Rolf; Pauleita; Wiggering, 2019ROLF, W.; PAULEITA, S.; WIGGERING, H. A stakeholder approach, door opener for farmland and multifunctionality in urban green infrastructure. Urban Forestry & Urban Greening, v.40, p.73-83, 2019.; Valley; Wittman, 2019VALLEY, W.; WITTMAN, H. Beyond feeding the city: The multifunctionality of urban farming in Vancouver, BC. City, Culture and Society, v.16, p.36-44, 2019.; Marques-Perez; Segura; Maroto, 2014).

A proximidade da produção com os mercados consumidores e a redução da cadeia de fornecimento diminui a pegada ecológica e o impacto ambiental da cadeia dos alimentos. Isso se deve ao fato de que há redução da emissão de gases de efeito estufa, dos custos de transporte, além do menor processamento, armazenamento e uso/custos de embalagens, ou seja, há uma maior eficiência no uso dos recursos (Valley; Wittman, 2019VALLEY, W.; WITTMAN, H. Beyond feeding the city: The multifunctionality of urban farming in Vancouver, BC. City, Culture and Society, v.16, p.36-44, 2019.; Pribadi et al., 2017PRIBADI, D. O. et al. Multifunctional adaption of farmers as response to urban growth in the Jabodetabek Metropolitan Area, Indonesia. Journal of Rural Studies, v.55, p.100-11, 2017.; Marques-Perez; Segura; Maroto, 2014; Lwasa et al., 2015LWASA, S. et al. A meta-analysis of urban and peri-urban agriculture and forestry in mediating climate change. Current Opinion in Environmental Sustainability, v.13, p.68-73, 2015.; Lovell, 2010LOVELL, S. T. Multifunctional Urban Agriculture for Sustainable Land Use Planning in the United States. Sustainability, v.2, p.2499-522, 2010.).

Pode-se afirmar, portanto, que de forma global a dimensão sociocultural da AUP proporciona melhora nas condições de vida das populações urbanas, enquanto a dimensão econômica possibilita o fortalecimento das economias locais e, finalmente a dimensão ecológica contribui para a mitigação e adaptação às mudanças climáticas.

Considerações finais

Este artigo realizou uma revisão sistemática da literatura no que concerne às múltiplas funções da agricultura urbana e periurbana. Seguindo os critérios de busca, inclusão e exclusão, foram identificados 14 artigos publicados com aderência ao tema e interesse da pesquisa. Este trabalho limita-se à análise apenas desses 14 artigos, não apresentando dados empíricos ou análise documental de outros materiais. A partir das leituras realizadas foi feita uma classificação das funções da AUP em três grandes dimensões.

A dimensão sociocultural compreende as funções de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), saúde, coesão social, requalificação do espaço urbano, segurança pública, empoderamento feminino, reconexão com a natureza, educação alimentar, desenvolvimento cultural, valorização do patrimônio cultural, lazer e recreação. Já a dimensão econômica inclui redução da pobreza, geração de empregos e renda, valorização do contato social entre produtores e consumidores, estímulo a novas formas de distribuição e comercialização, menor dependência do mercado mundial de alimentos, e diversificação de atividades econômicas. Finalmente, a dimensão ambiental é composta por funções que contribuem para a mitigação e adaptação às mudanças climáticas, sendo elas preservação e a conservação da biodiversidade e dos recursos naturais, ciclagem de nutrientes, gestão eficiente dos recursos hídricos, cidades mais verdes e redução da pegada ecológica.

Fica evidenciado que a AUP em suas diversas formas e tipos apresenta benefícios e poderia ser utilizada e estimulada por meio de políticas públicas como estratégia para o desenvolvimento de sistemas alimentares mais sustentáveis e para que os ambientes urbanos e periurbanos sejam locais mais saudáveis.

Finalmente, pode-se concluir que a AUP pode ser uma importante ferramenta na busca de atingir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), tal como preconizado pela Organização das Nações Unidas em 2015. Os seguintes ODS são notadamente afetados positivamente pela prática da AUP: #2) Fome zero e agricultura sustentável; #3) Saúde e bem-estar; #8) Trabalho descente e crescimento econômico; #10) Redução das desigualdades; #11) Cidades e comunidades sustentáveis; e #13) Ação contra a mudança global do clima.

Agradecimentos

À Capes, pelo financiamento da pesquisa por meio de bolsa de mestrado da autora Roberta Moraes Curan.

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Notas

  • 1
    A agroecologia consiste em princípios que consideram os aspectos ecológicos, sociais e econômicos dos sistemas de produção de alimentos, buscando o desenvolvimento de uma agricultura autossuficiente e sustentável.
  • 2
    Desertos alimentares: áreas urbanas onde os moradores não têm a possibilidade de acessar alimentos frescos e in natura, prejudicando diretamente a qualidade da dieta e da saúde.
  • 3
    CSA: comunidade de indivíduos que se articula para cobrir, desde o início, o orçamento de determinada safra, recebendo como contrapartida cotas, em geral semanais, dos alimentos produzidos pela horta apoiada.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    10 Set 2019
  • Aceito
    20 Abr 2020
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