ÁGUA
Cidade e cidadãos: 100 anos destruindo os rios paulistanos
Ricardo Toledo Neder
UM SÉCULO de destruição dos rios na área metropolitana de São Paulo enxovalha nossa civilidade, esmaga o perfil do cidadão, espezinha a consciência do morador da maior cidade da América do Sul, assim como destrói a saúde e a vida de milhares de habitantes pobres em áreas de risco e favelas. Há uma relação complexa de afinidades, causalidades e conflitos. Entretanto, igualmente ricos e pobres poluem os rios metropolitanos com suas águas servidas e esgotos não tratados. Mais grave é o estado-da-arte da política pública de saneamento, que praticamente se arrasta diante da velocidade da destruição de matas nos mananciais, do lixo nas águas, esgotos clandestinos das indústrias e comunidades nas represas metropolitanas.
Esse quadro desgosta a todos invariavelmente e também causa indignação a estrangeiros que percorrem a cidade. Questões complexas envolvem a gestão das águas na área metropolitana de São Paulo. Daí a necessidade de compreensão das possibilidades e limites de funcionamento do Comitê da Bacia do Alto Tietê colegiado criado em 1994 para reunir representantes de entidades associativas e profissionais, técnicos e universidades, prefeituras e membros do governo estadual, para decidir sobre projetos e obras, serviços e, sobretudo, tomar decisões para encaminhar as políticas públicas que ajudem a salvar os grande rios Tietê, Pinheiros, Tamanduateí, Pirajussara, entre outros.
O Comitê foi subdividido na Cabeceira (nascente do Tietê), e no caudal enxovalhado ao longo da zona leste até Pirapora do Bom Jesus (Pinheiros-Pirapora). Tem ainda dois braços laterais em direção meridional: Cotia-Guarapiranga e o Tamanduateí-Billings (enormes massas d'água outrora de entretenimento e moradia contaminadas ao longo dos últimos 50 anos por indústrias e bairros, governos e cidadãos). O maior responsável foram as empresas do setor elétrico que não trataram das represas como patrimônio cultural e natural. O quinto subcomitê é o das nascentes da Cantareira, ao norte, cujo adensamento urbano não deixa dúvidas dos perigos de destruição de nascentes, e dos canais que transportam águas de longe, da bacia do Piracicaba para abastecer São Paulo.
Desde 1996 o Comitê da Bacia do Alto Tietê atrai os representantes da sociedade civil (menos da econômica, que resiste em participar do comitê) com o intuito de deliberar com prefeituras e Estado sobre as coordenadas necessárias para o acompanhamento das decisões que possam salvar os rios da Grande São Paulo.
Esse tipo de colegiado é fruto da democracia juvenil que temos. Não é o melhor arranjo ainda mas poderá vir a sê-lo em futuro próximo. O poder de informação e de intervenção dos atores econômicos e dos técnicos governamentais é muito maior que os da sociedade civil (moradores-consumidores e associações civis não-econômicas).
É dessa desigualdade que nasce o problema da capacidade governativa do comitê para alterar políticas de governos locais (planos urbanos e zoneamento que desrespeitam as microbacias e aterram curso d'águas, ausência de planos de moradia populares) e dos governos estadual e federal (traçados de grandes obras rodoviárias que atropelam os mananciais aterram curso d'água e matam os rios).
No início dos anos de 1990, a nova política estadual de recursos hídricos surgiu diante da pressão social e política que levou à criação dos comitês de bacia. Isso rompeu a tradição no setor, controlado pelos interesses do setor elétrico e do capital industrial. Estes encaravam o aproveitamento energético dos recursos hídricos no Brasil, especialmente na região metropolitana de São Paulo e em particular no sistema Guarapiranga/Billings/Cubatão na Bacia do AltoTietê, como uma questão de economia de fronteira, à espera de uma exploração sem limites. Com isso, todos os demais aspectos que não diziam respeito à utilização abundante do recursos para gerar eletricidade eram desconhecidos ou alijados, sob o pressuposto de que podiam ser atendidos com relativa facilidade. Abastecimento de água potável, controle e preservação da qualidade dos mananciais, tratamento de águas residuárias e das inundações, além de políticas de saneamento ambiental e sanitário para indústrias e prefeituras passaram por soluções técnicas que tornaram essas dimensões subordinadas à conservação e ampliação do complexo hidro-energético.
Cem anos de desperdício. Cem anos de políticas de águas no Estado que os comitês de bacia deverão enfrentar. Daí a importância da pesquisa nas Ciências Sociais e Humanas, pois é muito árdua essa missão.
Numa avaliação político-sociológica e institucional há pelo menos três dimensões-chave que envolvem a preparação dos representantes do Comitê para aumentar sua capacidade de atuação governativa, analisadas a seguir.
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O esforço de membros de entidades da sociedade civil, das prefeituras e do Estado para trabalhar
como cada interesse identifica os
modos de apropriação da água (acesso) e repartição de recursos. Trata-se de chegar a uma unidade de gestão das águas na região metropolitana. Poucos participantes dos comitês sabem como se dá a apropriação dos recursos hídricos pelos seus respectivos segmentos. Uma das conclusões da nossa pesquisa refere-se à necessidade de capacitar representantes e dirigentes de entidades civis e prefeituras no tocante ao desenvolvimento de modos alternativos de apropriação dos recursos hídricos na bacia.
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A segunda dimensão diz respeito ao funcionamento do processo de tomada de decisão. Grupos e indivíduos interagem no processo de decisão sobre aspectos que influirão na gestão de recursos renováveis? Como poderão obter daí melhores parcelas ou decisões? Grande parcela dos representantes de entidades civis e das prefeituras cansa-se facilmente diante do excesso de reuniões, procedimentos, discussões e manobras necessárias (ou não) para conduzir as posições em conflito e chegar a certas posições. Em geral, as partes mais fortes tentam vencer pelo cansaço. Os comitês serão efetivamente canais de coordenação e de definição de agenda política sobre as águas quando cada segmento (prefeituras, sociedade civil e governo estadual) tiver suas posições expostas e dúvidas dirimidas, o que facilita a explicitação de conflitos e agiliza a possibilidade de decisões.
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A terceira dimensão diz respeito à simulação dos modos de apropriação e de tomada de decisão (é o estágio avançado do processo de gestão sob o qual as partes envolvidas chegam a arranjos transitórios ou simulados, com base em modelização e outros, acerca dos modos de coordenação entre si na exploração de um recurso renovável). Planos de bacia ou de proteção ambiental são uma simulação dos modos de apropriação e de tomada de decisão capazes de gerar arranjos provisórios. Assemelham-se a uma carta de navegação para os atores envolvidos buscarem definir princípios e diretrizes sobre gestão compartilhada de mananciais metropolitanos (rompendo o modelo autocrático dos anos de 1970). Dada a assimetria de poder entre as prefeituras e o governo, poucas secretarias municipais têm possibilidade de desenvolver seus próprios planos de proteção ambiental, ficando à mercê de definições dos grupos técnicos estaduais. Nenhum plano de bacia poderá ser bem recebido pelos muncípios e sociedades locais nas sub-bacias se não prever a distribuição dos recursos financeiros do fundo público de águas (Fehidro) destinados a desenvolver a capacidade de governo local e legislação específica municipal para saneamento ambiental, urbanização de favelas e habitação.
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Ricardo Toledo Neder é sociólogo doutor (USP, 1994), pesquisador associado ao Laboratório de Silvicultura Tropical (ESALQ-USP), onde coordena o projeto Capacitação de Representantes da Sociedade Civil e Prefeituras no Comitê da Bacia do Alto Tietê. É autor de Crise socioambiental, Estado e sociedade civil no Brasil (1982-1998) (São Paulo, Annablume, 2002).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
08 Ago 2008 -
Data do Fascículo
Abr 2003