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A requalificação do centro de São Paulo

Resumos

O centro da cidade de São Paulo passa, desde final da década de 1980, por um processo de transformação espacial a fim de requalificá-lo e dotá-lo de elementos modernizantes que possibilitem sua manutenção na rede de cidades mundiais, ou seja, espaços que controlam e comandam o processo de reprodução capitalista. Entretanto, essas transformações implicam mudanças na vida dos moradores que residem nesse espaço. As estratégias dos agentes (Estado e iniciativa privada especialmente) envolvidos no processo de renovação urbana tendem ao reforço da diferenciação socioespacial, com uma tentativa de mudança do perfil populacional aí existente, podendo seguir a tendência mundial de gentrificação das áreas centrais.

Requalificação urbana; Diferenciação socioespacial; Centralidade; Consumo do espaço


Since the late 80's of the 20th century, downtown São Paulo has been through a process of spacial transformation which is intended to reclassify and endow it with elements of modernization in order to keep it in the network of world cities, i.e., spaces that control and command the process of capitalist reproduction. However, these transformations imply changes in the lives of the population living in that area. The strategies of the actors (primarily state and private) involved in urban renewal tend to reinforce social and spatial differentiation, with an attempt to change the population profile, which can follow the world trend of gentrification of central areas.

Urban reclassification; Socio-spatial differentiation; Centrality; Space consumption


DOSSIÊ SÃO PAULO, HOJE

RESUMO

O centro da cidade de São Paulo passa, desde final da década de 1980, por um processo de transformação espacial a fim de requalificá-lo e dotá-lo de elementos modernizantes que possibilitem sua manutenção na rede de cidades mundiais, ou seja, espaços que controlam e comandam o processo de reprodução capitalista. Entretanto, essas transformações implicam mudanças na vida dos moradores que residem nesse espaço. As estratégias dos agentes (Estado e iniciativa privada especialmente) envolvidos no processo de renovação urbana tendem ao reforço da diferenciação socioespacial, com uma tentativa de mudança do perfil populacional aí existente, podendo seguir a tendência mundial de gentrificação das áreas centrais.

Palavras-chave: Requalificação urbana, Diferenciação socioespacial, Centralidade, Consumo do espaço.

ABSTRACT

Since the late 80's of the 20th century, downtown São Paulo has been through a process of spacial transformation which is intended to reclassify and endow it with elements of modernization in order to keep it in the network of world cities, i.e., spaces that control and command the process of capitalist reproduction. However, these transformations imply changes in the lives of the population living in that area. The strategies of the actors (primarily state and private) involved in urban renewal tend to reinforce social and spatial differentiation, with an attempt to change the population profile, which can follow the world trend of gentrification of central areas.

Keywords: Urban reclassification, Socio-spatial differentiation, Centrality, Space consumption.

Introdução

Quando se pensa na cidade de São Paulo, características contrastantes sempre são lembradas. De um lado, a pujança da cidade cujos agentes políticos e econômicos buscam criar e reforçar a ideia de cidade mundial; e de outro, a grande desigualdade socioeconômica existente que se materializa nas periferias precárias e no aumento da violência urbana. Poderíamos falar aqui dos vários fragmentos da cidade que comportam esses elementos, mas chamaremos a atenção para a região central da cidade que, a nosso ver, sintetiza o processo contraditório de reprodução do capital que hoje tem o espaço como fundamental e necessário no atual momento de crise do capital (Harvey, 2009).

Como afirma Carlos (2005), o espaço se torna produtivo e há o consumo do espaço como mercadoria, processo que tem gerado, ao mesmo tempo, articulação produtiva em escalas múltiplas, incluindo a internacional, que em seu processo de reprodução tem promovido a transformação dos espaços. Esses passam a ser pensados e planejados a fim de suprir as demandas postas à produção em detrimento das necessidades existentes na vida cotidiana de boa parte de seus habitantes. Segundo a mesma autora, o espaço tornado um produto imobiliário é uma mercadoria

voltada essencialmente ao "consumo produtivo", isto é, entendido como lugar da reprodução do capital financeiro em articulação estreita com o capital industrial (basicamente o setor da construção civil), que pela mediação do setor imobiliário transforma o investimento produtivo no espaço, sobrepondo-se ao investimento improdutivo, regulando a repartição das atividades e usos. (Carlos, 2004, p.52)

O centro da cidade é um caso que pode explicitar esse processo. Desde meados dos anos 1980, o poder público, associado à iniciativa privada, vem traçando planos de requalificação da área central da cidade de São Paulo. O ato de requalificar está associado ao chamado processo de deterioração do centro que se apresenta como o problema a ser superado. Insistimos que o centro é o caso a ser destacado, mas outras áreas da cidade também passam pelo mesmo processo, ainda que marcadas por outras características que adiante iremos destacar.

Como se trata de um processo, as áreas ditas decadentes e deterioradas só contêm esses adjetivos porque outrora foram justamente o seu oposto: representavam o auge, a modernização, a pulsão da cidade. Mas o que promoveu essa transformação e quais as consequências desse processo de auge/deterioração/requalificação é o que procuraremos destacar neste trabalho.

O coração da cidade: auge e "decadência"

Até meados dos anos 1950, o que hoje se denomina centro da cidade era chamado pela população de cidade, lugar que concentrava serviços públicos, empregos, comércio, áreas de lazer - as praças públicas como a da República, a Ramos de Azevedo (popularmente chamada de praça dos gatos), bem como os altos prédios como o Edifício Martinelli, o Edifício Altino Arantes (também conhecido como edifício do Banespa ou Banespão), Edifício Matarazzo (hoje sede da Prefeitura do Município de São Paulo), entre outros, além de prédios de instituições públicas como o Teatro Municipal, o prédio da Light (hoje Shopping Light) -, em oposição às áreas periféricas da cidade onde havia a falta ou precariedade de equipamentos públicos (água, esgoto, transportes, postos de saúde e hospitais, escolas, bancos, comércio variado etc.).

Essa área era o que Müller (1958) chamou de coração da cidade, marcado especialmente por atividades administrativas, de comércio varejista, atacadista e escritórios comerciais, e onde se concentrava a verticalização da época, conferindo à cidade, na visão da mesma autora, características que lembravam as cidades americanas do período.

Essa concentração de atividades, e o fato de ser o nó dos serviços de transporte conferiam a essa área da cidade o atributo da centralidade. Esse atributo, de um lado, foi responsável pelo processo de concentração e valorização do espaço central; de outro, essa mesma valorização promovida espacialmente fez que o preço do solo urbano da área se tornasse caro.

O encarecimento do solo urbano da área central, associado às estratégias dos agentes imobiliários de promoção e venda (a preços mais baixos) de outras áreas do município, promoveu o que Cordeiro (1980) chamou de desdobramento da centralidade, já nos anos 1960, caracterizado pela concentração de atividades outrora apenas encontradas no centro da cidade ou nos subcentros existentes (como Pinheiros, Santo Amaro, Penha), em áreas não necessariamente contínuas ao centro, mas que passam a reunir atividades especializadas e muitas vezes menos diversificadas.

Ocorre no centro da cidade de São Paulo o que Lefebvre (1986b) chama de processo de implosão/explosão do centro, promovendo uma saturação do processo. Com a crise, associada às estratégias dos agentes imobiliários, a centralidade se expande. Ao se expandir, a área que antes tudo concentrava e que por isso mesmo tinha os preços do solo urbano muito altos passa, com a saída de algumas empresas, a ter uma modificação do uso: muitos prédios têm uma mudança da população que passa a usá-los, outros se esvaziam ou têm mudança de função, e muitos ficam fechados. Além disso, há uma redução dos preços do solo urbano.

Mas há limites para a redução do preço do solo urbano, até porque existe a reação dos que no centro da cidade têm seu patrimônio edificado. No caso brasileiro, e mais especificamente da cidade de São Paulo, esse processo de requalificação da área central da cidade pode ser marcado a partir dos anos 1980, com particularidades próprias mas já seguindo uma tendência internacional de valorização dos centros das cidades.

No mundo, essa tendência internacional se revela em uma estratégia urbana mundial global, a regeneração urbana que promove, segundo Smith (2006), a gentrificação generalizada. Mas do que se trata? O que hoje quer dizer gentrificação? A primeira definição surge em meados dos anos 1960 com Ruth Glass, ao estudar as transformações de um antigo bairro operário em Londres que tem uma mudança de população: no bairro dito decadente, as casas dos antigos operários são transformadas e uma população com melhor poder aquisitivo se muda para o local, promovendo um "aburguesamento" da área em questão, ou seja, alguns bairros operários são ocupados por parte das classes médias.

Hoje, porém, qual é o sentido de gentrificação? Estaria necessariamente associado e relacionado apenas à moradia? Como uma tendência internacional, como aponta Smith (2006), o sentido de gentrificação foi ampliado. Para além da moradia, pode indicar a ocupação cultural dos espaços, com a expulsão - ou ao menos a tentativa de - das populações de menor poder aquisitivo das áreas que concentram os equipamentos culturais. Isso estaria, segundo o autor, ocorrendo em Nova York, e seria a tendência mundial.

São Paulo, ainda que possua suas particularidades, faz parte desse processo, e seu centro, assim como o de outros países, vem passando por transformações a partir de uma articulação entre o poder público e os agentes privados. Mas quais são as características dessas transformações?

Apoiado na aceitação do discurso1 1 A violência existia sim, mas o centro da cidade também tinha presente as possibilidades de ascensão social por meio do emprego e vida, mas os meios de comunicação só reforçavam os aspectos negativos existentes no centro. Sobre isso, ver Alves (1991). da deterioração do centro, da violência, do perigo, do medo, o poder público pode iniciar o processo de transformação da área central articulado à iniciativa privada sem muitas resistências.

Em um primeiro momento (anos 1980), os documentos oficiais apontavam para a necessidade de "revitalização" da área central. Revitalizar implicava buscar uma nova vida para o centro, como se a existente não fosse desejável. O que se procurava era, nos discursos oficiais, atrair novamente as classes mais abastadas que haviam se afastado da área central. Se não fosse possível pela moradia, que voltassem pela cultura, pelo patrimônio cultural existente, mas para isso muitas mudanças estruturais deveriam ser feitas de modo a atrair investimentos (tanto nacionais como internacionais, privados e/ou públicos).

Mas essa "decadência" da centralidade também está associada à crise produtiva mundial dos anos 1970. Temos, como nos mostra Harvey (1992), a crise do fordismo, do Estado de Bem-Estar, e o que se instala ante esse quadro é o regime de acumulação flexível, que traz mudanças produtivas e nas relações de trabalho.

Do ponto de vista técnico, a acumulação flexível permite que, graças à tecnologia avançada, possam ser produzidos produtos diferenciados de acordo com o nicho de mercado, sem que todo maquinário seja mudado. A robotização, o intenso uso de tecnologia e informação, a diminuição de trabalhadores na linha de produção são algumas das características dessa nova produção. Já do ponto de vista das relações de trabalho, a flexibilidade também se impôs: boa parte dos trabalhadores é de terciarizados, ou seja, já não são operários das empresas, isso quando não se inserem como autônomos, o que vem promovendo grande insegurança aos trabalhadores, já que a rotatividade e a insegurança são uma constante.

No Brasil, e em particular em São Paulo, ainda que tenha havido um aumento de empresas modernas, flexíveis do ponto de vista técnico, boa parte das empresas ainda são, do ponto de vista técnico, fordistas, mas as relações de trabalho já flexíveis e a alta rotatividade dos trabalhadores, o desemprego e o emprego informal crescem e modificam a vida dos cidadãos. O centro e os subcentros passam por transformações para garantir a reprodução do capital ante a nova forma de reprodução capitalista.

A palavra de ordem passa a ser a flexibilidade: da produção (graças aos avanços técnicos), das relações trabalhistas (com a ampliação da terciarização e do trabalho informal), da legislação urbana, especialmente por meio das Operações Urbanas

Para requalificar a área central, algumas ações pontuais foram feitas antes do final da década de 1980, mas é com as Operações Urbanas que se tem efetivamente uma política pública de transformação das áreas centrais em São Paulo.

As Operações Urbanas

As Operações Urbanas possibilitam a flexibilização da legislação urbanística, permitindo, por meio da excepcionalidade, ultrapassar as amarras postas pela legislação, tanto no que diz respeito ao potencial construtivo (por meio da venda de Certificados de Potencial Adicional de Construção (Cepac) como no caso da Operação Faria Lima), como em relação ao uso na área, por meio da modificação do zoneamento.

No caso em questão, para requalificação da área central, várias são as Operações Urbanas postas em ação: a mais antiga, a Operação Urbana Anhangabaú,2 2 É implantada pela Lei n. 11.090, de 16 de setembro de 1991. se oficializa no governo de Luiza Erundina, mas tem algumas obras iniciadas em seu predecessor, Jânio Quadros. É nesse contexto que a iniciativa privada se organiza para debater e articular-se ao poder público por meio da Associação Viva o Centro, de modo a viabilizar as transformações tidas como necessárias para requalificar a área e atrair investimentos. Na prática, essa Operação não atingiu, naquele momento, os investimentos esperados, mas mostrou à iniciativa privada a disposição do poder público em modificar o quadro existente e dar passos para sua requalificação. Esses investimentos, na sua maior parte, foram públicos e remodelaram o Vale do Anhangabaú e parte da Av. São João, com a criação do Boulevard São João.

Atualmente, a mais polêmica Operação Urbana na área central que está em curso é a Operação Urbana Nova Luz cujo objetivo é, segundo documentos oficiais, "promover a requalificação e a recuperação da área da Nova Luz a partir de intervenções públicas que valorizem os espaços públicos da criação de um conjunto de estímulos à realização de novos investimentos privados" (São Paulo, 2005).

Para atingir esses objetivos, também são apontados alguns princípios norteadores como: valorização do patrimônio cultural, estímulo ao uso misto na região e a realização de novos empreendimentos imobiliários. O problema é que todo o projeto aparece como se na área não existissem pessoas, como se tratasse de um espaço absoluto, no qual os planejadores podem efetivamente projetar sobre um espaço vazio.

Como mostra Vaz (2009), quando se fala em região da Luz, ou se refere à "Cracolândia"3 3 Cracolândia é o termo usado na mídia e indica uma parte da região central localizada nas imediações da Estação da Luz, onde existem muitos usuários de crack (alucinógeno derivado da cocaína mas com preço muito mais acessível). A Cracolândia tem como limites as avenidas Duque de Caxias, Rio Branco, Ipiranga e rua General Couto de Magalhães. e aos problemas ligados ao uso de entorpecentes, ou a referência passa a ser a Sala São Paulo, o Museu da Língua Portuguesa, a Estação da Luz, a Pinacoteca do Estado, patrimônios públicos requalificados em uma ação conjunta público-privada.

Mas a região da Luz é muito mais que isso, é também vida, e é essa vida que vem sendo atacada por essa Operação Urbana. Para além de usuários de drogas, nessa área há comércio especializado (Rua Santa Ifigênia e imediações) em produtos eletroeletrônicos e de informática, comércio varejista, bares, restaurantes que correm o risco de desaparecer, já que a área de atuação urbana Nova Luz passou a englobar também a Rua Santa Ifigênia e ruas adjacentes.

Apesar de o princípio de valorização do patrimônio cultural estar posto nas diretrizes, pode-se questionar o que o poder público entende por patrimônio cultural. Boa parte das edificações existentes foi demolida, incluindo-se aí a antiga rodoviária que ficava em frente à Sala São Paulo.

A demolição da antiga rodoviária buscou afastar os usuários de crack que se concentravam na área e ao mesmo tempo requalificar a partir da mudança de uso. De acordo com o projeto, no local será construído o Complexo Cultural Luz, onde será instalado o Teatro de Dança de São Paulo que junto com a Sala São Paulo formará um grande polo cultural na cidade.

Essa ação teve o apoio de boa parte da população paulista e da imprensa, já que, aparentemente, com a demolição, os usuários de drogas seriam afastados da área. Entretanto, após essa demolição, a prefeitura retomou o projeto já anunciado em 2009 onde ampliava a área de atuação da Operação Urbana Nova Luz, englobando parcelas da Rua Santa Ifigênia e imediações a partir de um novo instrumento legal, a Concessão Urbanística.

A Concessão Urbanística foi promulgada nas Lei n. 14.917 e Lei n. 14.918, de 7 de maio de 2009, e, na prática, formaliza a terceirização da gestão do território que antes cabia ao município e agora pode ser feita por contrato de empresas concessionárias, que passam a requerer à administração do município quais são as áreas de seu interesse e que devem ser "liberadas" por meio de desapropriação para investimentos privados. Se em outras Operações Urbanas, como a da Faria Lima, como aponta Carlos (2001), ocorre a supressão temporária do direito à propriedade em nome do chamado interesse social, pela Concessão Urbanística a supressão desse direito se dá em razão dos interesses privados.

Desde 2009, a Associação dos Comerciantes da Rua Santa Ifigênia vem lutando contra as Leis n. 14.917 e 14.948 de Concessão Urbanística, já que tal ação destruiria a vida local, constituída não mais apenas de usuários de drogas como muito é divulgado, mas também de comerciantes locais que há gerações estão estabelecidos na área. A luta se intensificou no início de 2011 quando as estratégias para requalificação da área foram apresentadas pela prefeitura e mais protestos de comerciantes e moradores locais ocorreram visando impedir a realização das ações propostas.

Existe claramente uma lógica de transformação da área. Com o discurso da requalificação, da limpeza da área dos perigos presentes (especialmente representados pela presença dos usuários de drogas, mendigos, sem teto e população de baixa renda que vive nos cortiços), o poder público, associado à iniciativa privada, consegue, por meio da mídia, apoio de boa parte da população paulistana que desconhece os protestos e a vida existente na localidade. Afinal, os "suspeitos" de atos de violência em geral são trabalhadores do setor formal e informal que trajam roupas simples, com fisionomia muitas vezes cansada. Em 1997, no centro de São Paulo, na Operação Tolerância Zero,4 4 O nome era a referência ao mesmo tipo de Operação Policial realizada em Nova York para garantir a segurança nas ruas do centro da cidade. foram encaminhados às delegacias do centro os indivíduos "suspeitos", em geral que não portavam carteira de trabalho assinada ou sem documentos. Estes são "considerados ignorantes, atrasados e perigosos, estando a polícia autorizada a parar qualquer trabalhador nas ruas, exigir a carteira de trabalho e prendê-lo para averiguação" (Chauí, 1989, p.57).

Essa ação reforçou a ideia de que os responsáveis pela insegurança são os pobres. Ainda que essa operação tenha ocorrido há mais de uma década (embora continue a se repetir cotidianamente), a associação de perigo com população trabalhadora de baixa renda ainda persiste.

É nesse sentido que, sob o discurso de uma requalificação de áreas, o processo de gentrificação, entendido como mudança populacional não necessariamente vinculado apenas à questão habitacional, mas em seu sentido lato, vem ocorrendo. Ou seja, uma transformação mais ampla da paisagem urbana, com relação à presença, ao uso e à frequência de ruas e locais públicos do centro da cidade de São Paulo. Mas de que tipo de mudanças estamos falando? De alterações que permitam afastar as populações de menor poder aquisitivo da área em questão, e, para isso, as transformações na paisagem urbana da área central são fundamentais nesse processo.

Considerações finais

Nas Operações Urbanas realizadas no centro, ainda que no discurso oficial se pautem pela requalificação, até mesmo funcional, e tenha como princípio (formal) a manutenção do encontro entre as mais diversas classes sociais, as ações indicam o contrário: as transformações visam atingir as classes mais abastadas procurando retirar e afastar da área as classes menos favorecidas. Os projetos propostos buscam mudanças privilegiando (por meio também de incentivos fiscais) a instalação de empresas do terciário avançado (tecnologia de ponta, informática, publicidade e propaganda), bem como instituições educacionais de nível superior, construção de edifícios inteligentes e equipamentos culturais. A cultura assume, nessa estratégia, um papel crucial. Segundo Arantes (2002), nas estratégias de gestão das cidades a tríade cultura, cidade e empresa é base da transformação dos espaços centrais (tradicionais e ou históricos) das cidades no Brasil e no mundo, tendendo à extirpação das relações cotidianas que já existiam, que estavam estabelecidas na área e envolviam uma maior diversidade populacional.

Toda a estratégia de renovação da área central está pautada pela racionalidade técnica (Lefebvre, 1984), pondo como necessário o afastamento das populações cuja permanência inviabiliza as ações tidas como fundamentais para a atração de novos investimentos na área a ser requalificada. Várias são as formas de justificar tecnicamente as ações de retirada. A questão da violência (especialmente relacionada ao medo da presença dos usuários de droga) justifica a ação de limpeza (com derrubada de prédios). A mudança do zoneamento está pautada pelo novo entendimento de cidade, que nega a funcionalidade única (característica do modernismo) e explora o uso misto que permitiria uma pluralidade ainda maior de atividades nas áreas centrais por meio da existência de moradia, comércio e serviços. Desse modo, áreas que antes tinham um uso mais restritivo têm agora (e em especial das áreas de Operações Urbanas) seu zoneamento alterado, em geral para zonas mistas, permitindo assim vários tipos de ocupação e de atividades que podem se desenvolver e possibilitar, segundo os documentos municipais, uma requalificação de áreas tidas como "degradadas", em geral centrais (como o centro da cidade ou subcentros outrora industriais e hoje passando por transformações, como a Barra Funda e a Vila Leopoldina).

Constrói-se um consenso pautado pela existência de elementos que desvalorizam uma área (desde prédios abandonados ou degradados até a presença de população de baixo poder aquisitivo, ou mesmo sem poder aquisitivo) para, em nome da requalificação, projetar estratégias, que ainda que no discurso se coloquem em nome do bem social, tendem a favorecer grupos privilegiados economicamente, buscando afastar a população que, na mesma visão, "desqualifica" o local. É nesse sentido, da mudança do uso social que se faz nas áreas centrais, que podemos afirmar que existe, sim, uma estratégia de repulsão das camadas populacionais de mais baixa renda. Tendo como referência Smith (2006), pode-se dizer que está dada uma estratégia de gentrificação da área central e das centralidades da cidade de São Paulo, em especial aquelas onde estão previstas as novas Operações Urbanas.

Notas

Referências

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Recebido em 9.2.2011 e aceito em 23.2.2011.

Glória da Anunciação Alves é professora do Departamento de Geografia da FFLCH-USP. Pesquisa na área de Geografia Urbana. @ - gaalves@usp.br

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  • A requalificação do centro de São Paulo

    Glória da Anunciação Alves
  • 1
    A violência existia sim, mas o centro da cidade também tinha presente as possibilidades de ascensão social por meio do emprego e vida, mas os meios de comunicação só reforçavam os aspectos negativos existentes no centro. Sobre isso, ver Alves (1991).
  • 2
    É implantada pela Lei n. 11.090, de 16 de setembro de 1991.
  • 3
    Cracolândia é o termo usado na mídia e indica uma parte da região central localizada nas imediações da Estação da Luz, onde existem muitos usuários de
    crack (alucinógeno derivado da cocaína mas com preço muito mais acessível). A Cracolândia tem como limites as avenidas Duque de Caxias, Rio Branco, Ipiranga e rua General Couto de Magalhães.
  • 4
    O nome era a referência ao mesmo tipo de Operação Policial realizada em Nova York para garantir a segurança nas ruas do centro da cidade.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Abr 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2011
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