Acessibilidade / Reportar erro

Desafios de governança da água: conceito de territórios hidrossociais e arranjos institucionais

RESUMO

Entende-se como governança da água um conjunto de processos e estratégias político, organizacionais e administrativos, dentro de estruturas previamente definidas, que conduzem a tomada de decisão. Essas decisões produzem escalas que vão além de unidades de planejamento de gestão e se constituem em redes de poder que articulam diferentes atores, de acordo com os interesses e objetos em negociação. Assim, entende-se que a governança da água extrapola as fronteiras físicas destas unidades de planejamento e assume configurações dinâmicas, flexíveis e multiescalares que refletem relações hidrossociais. Nesse sentido, o conceito de território hidrossocial, constituído a partir de redes multiescalares socioambiental e espacialmente delimitadas e ativadas para garantir o acesso à água, poderia fundamentar novas práticas de governança da água.

PALAVRAS-CHAVE:
Governança da água; Bacias hidrográficas; Territórios hidrossociais; Multiescalaridade; Multidimensionalidade

ABSTRACT

Water governance is understood as a set of political, organizational and administrative processes and strategies, within predefined structures, that lead to decision-making. These decisions produce scales that go beyond management planning units and constitute networks of power that articulate different players according to the interests and objects under negotiation. Thus, it is understood that water governance transcends the physical boundaries of the planning units and assumes dynamic, flexible and multiscale configurations that reflect hydro-social relations. In this sense, the concept of hydro-social territory, which comprises socio-environmentally and spatially delimited and activated multiscale networks to ensure access to water, could provide the basis for new water governance practices.

KEYWORDS:
Water governance; Water basins; Hydro-social territories; Multiscaling; Multidimensionality

Introdução

Entre os anos 2014 e 2015, na região Sudeste brasileira, houve um menor volume de precipitação do que o esperado (ANA, 2015, p.25) e que levou à falta de água a muitos municípios da região, entre eles a capital do estado de São Paulo e sua Região Metropolitana. A diminuição da disponibilidade hídrica nessa área, além de expor a materialidade da escassez, por meio de reservatórios secos, também evidenciou a concentração da tomada de decisão, dentro de um sistema concebido para ser participativo e descentralizado (Pires do Rio et al., 2016, p.111). Essa situação expôs a continuidade de um modelo tecnológico que perpetua o paradigma hidráulico e seu sistema produtor de reservação e infraestrutura cinza, com foco no aumento da oferta de água para garantir abastecimento de uma demanda crescente (Empinotti et al., 2019EMPINOTTI, V. L.; BUDDS, J.; AVERSA, M. Governance and water security: The role of water institutional framework in the 2013-15 water crisis in São Paulo, Brazil. Geoforum, New York, v.98, p.46-54, 2019., p.52).

Essa crise hídrica evidenciou como o abastecimento de água de áreas altamente urbanizadas sobrepõe os limites das bacias hidrográficas, uma vez que ocorrem por meio de sistemas de reservatórios e transposições que garantem a reorientação de fluxos de água, tendência esta observada em várias áreas no Sul Global (Garrick et al., 2019GARRICK, D. et al. Rural water for thirsty cities: a systematic review of water reallocation from rural to urban regions. Environmental Research Letters, Bristol, v.4, p.1-14, 2019., p.2). Tal dependência entre bacias hidrográficas desafiou o entendimento que esses são recortes físicos neutros que delimitam a presença dos tomadores de decisão responsáveis pelo uso e manejo da água (Cohen; Bakker, 2014COHEN, A.; BAKKER, K. The eco-scalar fix: rescaling environmental governance and the politics of ecological boundaries in Alberta, Canada. Environment and Planning D: Society and Space, v.32, p.128-46, 2014., p.129-32; Warner et al., 2008WARNER, J.; WESTER, P., BOLDING, A. Going with the flow: river basins as the natural units for water management? Water Policy, v.10, p.121-38, 2008., p.128). No contexto da crise, observou-se que as decisões referentes à resposta à seca foram tomadas em escala estadual, liderada pelo governo do estado, órgãos gestores e companhia de abastecimento, sem a participação efetiva das instâncias de gestão definidas na legislação a partir do recorte das bacias hidrográficas (Dias Tadeu, 2016, p.30-2; Empinotti et al., 2019EMPINOTTI, V. L.; BUDDS, J.; AVERSA, M. Governance and water security: The role of water institutional framework in the 2013-15 water crisis in São Paulo, Brazil. Geoforum, New York, v.98, p.46-54, 2019., p.53).

O desafio da governança da água e sua falta, no entanto, também está presente nos sistemas de gestão centralizada, como é o caso do Chile. Desde 2008, esse país tem vivido uma grande seca que se caracteriza por uma redução significativa dos índices pluviométricos, e que as autoridades associam às alterações climáticas (DGA, 2016, p.8; Oppliger et al., 2019OPPLIGER, A.; HOHL, J.; FRAGKOU, M. Escasez de agua: develando sus orígenes híbridos en la cuenca del Río Bueno, Chile. Rev. Geogr. Norte Gd., Santiago, n.73, p.9-27, 2019., p.10). Contudo, também é necessário considerar as causas antropogênicas dessa escassez de água, que envolveria as dimensões estruturais, de gestão e distribuição da água (Fragkou; Budds, 2019FRAGKOU, M. C.; BUDDS, J. Desalination and the disarticulation of water resources: Stabilising the neoliberal model in Chile. Transactions of the Institute of British Geographers. 2019. Disponível em: <https://doi.org/10.1111/tran.12351>. Acesso em: 9 mar. 2020.
https://doi.org/10.1111/tran.12351...
, p.1).

Orientado pelo Código da Água de 1981, o regime de governança da água no Chile estabeleceu um modelo de gestão baseado nos direitos privados da água, que teve origem nas políticas de água impostas pela ditadura militar de Augusto Pinochet (1973-1989). Essa abordagem consolidou o viés mercantilista da gestão e na governança da água chilena (Budds, 2013BUDDS, J. Water, power, and the production of neoliberalism in Chile, 1973-2005. Environment and Planning D: Society and Space, v.31, n.2, p.301-18, 2013., p.303-7). O marco regulatório estabelecido favoreceu a concentração do controle da água por setores de mineração e grandes grupos econômicos, tornando-os os proprietários majoritários dos recursos hídricos do país, sem uma regulamentação legal adequada (Castro; Quiroz, 2011CASTRO, M. L.; QUIROZ, L. Capítulo 13 - La crisis del agua en Chile: el futuro de Chile requiere una nueva política de agua. In: BOELENS, R.; CREMERS, L.; ZWARTEVEEN, M. (Ed.) Justicia Hídrica. Acumulación, conflicto y acción social. Lima: Instituto de Estudios Peruanos, 2011., p.226).

Esse arranjo institucional teve duas implicações importantes para a governança da água no Chile; por um lado, o papel do Estado foi reduzido devido às reformas econômicas neoliberais, que levaram a Direção Geral da Água (DGA) a tratar apenas com questões administrativas puramente centralizadas, mas não com funções executivas ou reguladoras. Por outro lado, os processos coletivos de gestão da água nas zonas rurais excluíram os atores menos poderosos, uma vez que são os grandes proprietários dos direitos da água que têm mais peso na tomada de decisões (os votos são equivalentes ao volume de água que cada usuário tem). Com isso, a resposta à escassez da água que ocorreu ao norte da Região Metropolitana de Santiago de Chile, em Chacabuco, se concentrou em decisões técnicas (como bombardeio de nuvens, uso de caminhões pipa e construção de represas) que, consequentemente, silenciaram questões relacionadas à justiça ambiental urbana relacionada ao direito de acesso à água (Lukas; Fragkou, 2014LUKAS, M.; FRAGKOU, M. C. Conflictividad en construcción: desarrollo urbano especulativo y gestión del agua en Santiago de Chile. Ecología Política, Barcelona, n.47, p. 67-71, 2014., p.70-1).

Em ambos os casos, ao considerarmos os sistemas de governança e tomada de decisão aqui apresentados, é também necessário reconhecer que o sistema de abastecimento e distribuição de água se caracteriza, historicamente, pela disputa de distintas narrativas e atores, que, por sua vez, estão fortemente atrelados a modelos tecnológicos e de infraestrutura. Nesse contexto, o acesso e a disputa pela água devem considerar, não só a materialidade e consequente disponibilidade dos recursos hídricos em quantidade e qualidade, a infraestrutura construída para garantir a sua mobilidade e armazenamento, como também os modelos de desenvolvimento propostos para garantir o seu acesso e distribuição. Ou seja, como tais modelos são mobilizados, adotados e resistidos pelos atores sociais e o resultado de tais interações.

Ao pensarmos dessa forma, tanto a unidade da bacia hidrográfica como modelos que adotam uma visão homogênea de territórios não são suficientes para capturar tais dinâmicas e narrativas uma vez que os interesses de acesso, distribuição e comercialização da água envolvem outras agendas e atores localizados fora desses espaços físicos. Nesse sentido, esse artigo se propõe a refletir sobre diferentes maneiras de entender os processos que são acionados com o objetivo de garantir acesso à água e segurança hídrica, a partir de uma perspectiva crítica, que considera a água como o resultado da interação entre natureza, tecnologia e sociedade, a materialidade do ambiente físico e suas dinâmicas (Swyngedouw; Boelens, 2018SWYNGEDOUW, E.; BOELENS, R. “... And not a single injustice remains”: Hydro-Territorial Colonization and Techno-Political Transformation in Spain. In: BOELENS, R.; PERREAULT, T.; VOS, J. (Ed.) Water Justice. Cambridge: Cambridge University Press, 2018. p.115-33., p.115-17).

Tal reflexão é embasada pelos conceitos de waterscapes, ciclo hidrossocial e territórios hidrossociais, que nos possibilitam entender como as relações entre a materialidade física do recurso, associado às dinâmicas sociais, as estruturas previamente definidas e as escalas de poder levam a condicionantes e processos que se constituem em múltiplos territórios e se articulam e tencionam para garantir o acesso à água, muitas vezes de forma desigual. Nesse sentido, como poderíamos integrar o conceito de territórios hidrossociais na gestão das bacias hidrográficas? Como pensar a gestão e governança dos recursos hídricos a partir do conceito de territórios hidrossociais?

Este artigo está organizado em cinco seções. A primeira se propôs a apresentar como as unidades de planejamento aplicados à governança da água, tanto em modelos descentralizados e participativos quanto em centralizados e mercantis, não são capazes de reconhecer as relações hidrossociais existentes. A segunda se destinou a apresentar uma discussão sobre a produção de escalas e sua relação com as unidades de planejamento, chamando a atenção para a multiescalaridade de tais processos. Na terceira seção, foram discutidas as conceituações de waterscapes, ciclos hidrossociais e territórios hidrossociais, suas similitudes e o diferencial que o conceito de territórios hidrossociais apresenta. Na quarta seção foi aprofundada a discussão a respeito da materialidade e seu diálogo com o conceito de territórios hidrossociais, assim como as suas expressões multiescalares e multidimensionais, que implicam a definição de fronteiras territoriais que demarcam regras, relações de poder, controle sobre a água, bem como os processos e estruturas da governança da água. Por fim, a quinta seção apresenta a discussão sobre como repensar a governança a partir dos territórios hidrossociais.

A governança da água e a produção de escalas

Antes de refletirmos sobre a relevância de entender as relações hidrossociais e trazer tal reflexão para a prática da governança da água, é necessário discutirmos como a produção de escalas se constitui nesses ambientes. Em primeiro lugar, quando discutimos o conceito de produção de escalas, nos referimos ao trabalho de Neil Smith, no qual os fluxos de capital produzem escalas a partir de processos econômicos. Ou seja, as escalas são socialmente produzidas e articuladas em consequência dos fluxos de capital que se movem à procura de oportunidades de expansão de mercados em áreas desvalorizadas devido ao processo capitalista que, em sua natureza, é desigual (Jones III et al., 2017, p.139). A produção de tais escalas ocorre por meio de atores sociais que acionam diferentes parceiros, presentes em outras esferas de ação e tomada de decisão e envolvidos em transformações políticas. Tais práticas são identificadas por Smith como política de escalas (politics of scale) que assumem a existência de relações desiguais entre espaço e poder e servem como estratégia para sobrepor tais barreiras por meio da ativação de escalas.

Quando esse conceito é aplicado à discussão de governança da água, se reconhece que o acesso à água ocorre de forma desigual e conflituosa e que as estratégias de garantia de acesso à água passam pela articulação e produção de escalas que vão além dos recortes das bacias hidrográficas e articulam dimensões globais e setoriais (Norman et al., 2012NORMAN, E. S. et al. introduction to the themed section: Water Governance and the Politics of Scale. Water Alternatives, v.5, n.1, p.52-61, 2012., p.55; Budds; Hinojosa, 2012BUDDS, J.; HINOJOSA, L. Restructuring and rescaling water governance in mining contexts: the coproduction of waterscapes in Peru. Water Alternatives, v.5, n.1, p.119-37, 2012., p.131-2). Essas práticas muitas vezes não são reconhecidas nas políticas e arranjos institucionais que fundamentam a governança da água em diferentes contextos (Molle, 2015_______. Examining Scalar Assumptions: unpacking the watershed. In: NORMAN, E. S.; COOK, C.; COHEN, A. Negotiating water governance: why the politics of scale matter. Farnham: Ashgate Publishing Limited, 2015. p.17-24., p.18).

Em parte, isso se deve ao entendimento das unidades de gestão como recortes apolíticos e técnicos, que refletem a visão convencional do paradigma modernista onde o capital, a tecnologia e o Estado fazem a gestão dos recursos hídricos com o objetivo de promover a distribuição da água e a melhoria da qualidade de vida (Molles, 2015_______. Examining Scalar Assumptions: unpacking the watershed. In: NORMAN, E. S.; COOK, C.; COHEN, A. Negotiating water governance: why the politics of scale matter. Farnham: Ashgate Publishing Limited, 2015. p.17-24., p.22). Por exemplo, no modelo de gestão brasileiro e na sua legislação, as escalas de tomada de decisão representam escalas geográficas, definidas a partir de uma hierarquia ordenada, acomodada sobre espaços preexistentes do local para o municipal, estadual e federal, delimitados pela bacia hidrográfica. Em geral, tais modelos participativos e descentralizados de tomada de decisão assumem as unidades de gestão como meramente biofísicas e legais (Empinotti et al, 2014EMPINOTTI, V. et al. The role of stakeholders in water management. In: WILLAARTS, B.; GARRIDO, A.; LLAMAS, M. R. Water for food security and well-being in Latin America and the Caribbean: social and environmental implications for a globalized economy. London: Earthscan from Routledge, 2014. p.317-42., p.326). Os problemas hídricos e suas soluções são identificados como questões técnicas, de gestão e politicamente neutras, que devem ser administrados e negociados racionalmente e orientados pelas práticas de boa governança (Swyngedouw; Boelens, 2018SWYNGEDOUW, E.; BOELENS, R. “... And not a single injustice remains”: Hydro-Territorial Colonization and Techno-Political Transformation in Spain. In: BOELENS, R.; PERREAULT, T.; VOS, J. (Ed.) Water Justice. Cambridge: Cambridge University Press, 2018. p.115-33., p.115; Warner et al., 2008WARNER, J.; WESTER, P., BOLDING, A. Going with the flow: river basins as the natural units for water management? Water Policy, v.10, p.121-38, 2008., p.127-8).

As bacias hidrográficas, entretanto, são construídas não só materialmente, mas também discursivamente e conceitualmente por disputas de poder e contestação social (Cohen, 2015COHEN, A. Nature’s Scales? Watershed as a link between Water Governance and the Politics of Scale. In: NORMAN, E. S.; COOK, C.; COHEN, A. Negotiating water governance: why the politics of scale matter. Farnham: Ashgate Publishing Limited, 2015. p.25-40., p.26). Nesse sentido, as bacias hidrográficas se tornam escalas sociais, além de ecológicas e espaciais, uma vez que lhe são atribuídas estruturas de tomada de decisão, regulações, organizações distribuídas em redes hierárquicas de poder. Tais estruturas utilizam as fronteiras materiais das bacias hidrográficas para justificar e legitimar a tomada de decisão de uns em relação a outros (Cohen, 2015, p.36).

Além da revelação da bacia hidrográfica como uma escala social em si, a análise da tomada de decisão indica a produção de escalas a partir da articulação entre diferentes atores presentes em diferentes instâncias de tomada de decisão em resposta à fragilidade dos espaços de negociação, constituídos nos limites das bacias hidrográficas (Perreault, 2014, p.236-8). Tal fragilidade representa a tensão entre estruturas de poder tecnoburocráticas estatais preexistentes, como também estruturas setoriais que creditam recursos e decisões referentes à infraestrutura e acesso à água fora dos espaços participativos de negociação constituí- dos pelas leis (Molle, 2015_______. Examining Scalar Assumptions: unpacking the watershed. In: NORMAN, E. S.; COOK, C.; COHEN, A. Negotiating water governance: why the politics of scale matter. Farnham: Ashgate Publishing Limited, 2015. p.17-24., p.20; Empinotti at al., 2019EMPINOTTI, V. L.; BUDDS, J.; AVERSA, M. Governance and water security: The role of water institutional framework in the 2013-15 water crisis in São Paulo, Brazil. Geoforum, New York, v.98, p.46-54, 2019., p.52).

A partir das características políticas das bacias hidrográficas, os estudos da produção de escalas na governança da água também indicam que a tomada de decisão é influenciada por atores localizados fora das bacias hidrográficas (Warner et al., 2008WARNER, J.; WESTER, P., BOLDING, A. Going with the flow: river basins as the natural units for water management? Water Policy, v.10, p.121-38, 2008., p.127-31) abrangendo, inclusive, atores globais e seus interesses na exploração e utilização da água para específicas atividades econômicas como o caso da mineração (Budds; Hinojosa, 2012BUDDS, J.; HINOJOSA, L. Restructuring and rescaling water governance in mining contexts: the coproduction of waterscapes in Peru. Water Alternatives, v.5, n.1, p.119-37, 2012., p.132; Perreault, 2014, p.236-8).

Nesse sentido, é estratégico reconhecer o caráter político e social das bacias hidrográficas, da extrapolação das redes e articulações que levam a tomada de decisão além das fronteiras materiais das bacias. Assim, é necessário aprofundar o entendimento de tais relações e como elas são moldadas pela materialidade da água, pelo aparato tecnológico e infraestrutura desenvolvida para obter o seu controle e, por fim, os significados, modelos de desenvolvimento, redes, instituições, hierarquias de tomada de decisão com suas representações e narrativas. Tal reflexão se organiza em uma trilogia entre a materialidade da água, os aparatos tecnológicos e as práticas de poder que se constituem em waterscapes, ciclos hidrossociais e territórios hidrossociais (Perreault, 2014, p.234-6; Linton; Budds, 2014LINTON, J.; BUDDS, J. The hydrosocial cycle: defining and mobilizing a relational-dialetical approach to water. Geoforum, New York, v.57, p.170-80, 2014., p.175-9; Boelens et al., 2016BOELENS, R. et al. Hydrosocial territories: a political ecology perspective. Water International, v.41, n.1, p.1-14, 2016., p.2-5). O significado de tais conceitos e as suas implicações nas práticas de gestão e planejamento, serão aprofundadas a seguir.

Waterscapes, ciclos hidrossociais e territórios hidrossociais: diferentes maneiras de entender a governança da água

Ao definirmos a água a partir de uma leitura hidrossocial - que considera as manifestações sociais e territoriais por meio da triangulação entre a materialidade da água, o território e fluxos de poder - é premente discutirmos os conceitos de paisagens hídricas (waterscapes), ciclo hidrossocial e territórios hidrossociais. Tais perspectivas correspondem à leitura da ecologia política sobre a temática da água (Karpouzoglou; Vij, 2017KARPOUZOGLOU, T.; VIJ, S. Waterscape: a perspective for understanding the contested geography of water. WIREs Water, v.4, n.3, 2017., p.1) e fundamenta-se na reflexão crítica sobre conflitos, resistências, estratégias de acesso à água e segurança hídrica.

A base epistemológica comum entre os três conceitos é a compreensão da água como um elemento híbrido - produto de processos sociais e biofísicos - o qual, para além de seus múltiplos usos, destinos e valores (econômico, social, ecológico, religioso, político), tem incorporado distintos significados para diferentes grupos sociais (Swyngedouw, 2004_______. Social power and the urbanization of water: Flows of power. Oxford, UK: Oxford University, 2004., p.7-26; Linton; Budds, 2014LINTON, J.; BUDDS, J. The hydrosocial cycle: defining and mobilizing a relational-dialetical approach to water. Geoforum, New York, v.57, p.170-80, 2014., p.173-6; Boelens et al., 2016BOELENS, R. et al. Hydrosocial territories: a political ecology perspective. Water International, v.41, n.1, p.1-14, 2016., p.3). Esses três conceitos foram usados como ferramentas analíticas para demonstrar a natureza política e contestada da água e as implicações sociais da sua gestão.

O conceito de waterscape permite compreender as interações entre água e as relações sociais de poder e, dessa forma, analisar como os fluxos de água, energia e capital convergem para produzir arranjos socioecológicos desiguais no espaço e no tempo, de maneira a refletir as relações de poder que moldaram sua produção (Swyngedouw, 1999SWYNGEDOUW, E. Modernity and hybridity: nature, Regeneracionismo, and the production of the Spanish waterscape, 1890-1930. Ann. Assoc. Am. Geogr., v.89, n.3, p.443-65, 1999., p.443; Swyngedouw, 2004, p.29; Budds; Hinojosa, 2012BUDDS, J.; HINOJOSA, L. Restructuring and rescaling water governance in mining contexts: the coproduction of waterscapes in Peru. Water Alternatives, v.5, n.1, p.119-37, 2012., p.124).

Esse conceito representa uma unidade da paisagem, que possibilita analisar os recursos hídricos e a interconectividade entre as dimensões sociopolítica, ecossistêmica e hidrológica. Trata-se de um conceito empregado para compreender as interações que ocorrem entre processos físicos, práticas culturais e materiais e as construções ideológicas em torno da água (Molle, 2012MOLLE, F. La gestion de l’eau et les apports d’une approche par la political ecology. In: GAUTIER, D.; BENJAMINSEN A. T. (Dir.) L’approche Political Ecology: Pouvoir, savoir, environnement. Paris: Quae, 2012., p.220; Larsimont; Grosso, 2014LARSIMONT, R.; GROSSO, V. Aproximación a los nuevos conceptos híbridos para abordar las problemáticas hídricas. Revista del Departamento de Geografía, Córdoba, n.2, 2014., p.35).

Diversos estudos empregam o conceito de waterscapes em suas análises para possibilitar uma reflexão mais profunda e relacional da água com as dimensões sociais, econômicas, políticas e científicas (Bouleau, 2014BOULEAU, G. The co-production of science and waterscapes: The case of the Seine and the Rhône Rivers, France. Geoforum, v.57, p.248-57, 2014., p.255-6; Larsimont; Grosso, 2014LARSIMONT, R.; GROSSO, V. Aproximación a los nuevos conceptos híbridos para abordar las problemáticas hídricas. Revista del Departamento de Geografía, Córdoba, n.2, 2014., p.36-45; Ramirez, 2017RAMIREZ, G. R. The hydrosocial territories of the city of Lamas (San Martin, Peru): Water, society and power. Espacio y Desarrollo, n.29, p.91-108, 2017., p.102-6; Ujházy; Biró, 2018UJHÁZY, N.; BIRÓ, M. The ‘Cursed Channel’: utopian and dystopian imaginations of landscape transformation in twentieth-century Hungary. Journal of Historical Geography, n.61, p.1-13, 2018., p.12-13). A análise dessa abordagem contribui para avaliar múltiplos processos e dinâmicas que mediam a água no espaço e no tempo, e dessa forma, evita as limitações de pensar sobre a água em termos puramente materiais (Budds; Hinojosa, 2012BUDDS, J.; HINOJOSA, L. Restructuring and rescaling water governance in mining contexts: the coproduction of waterscapes in Peru. Water Alternatives, v.5, n.1, p.119-37, 2012., p.120). Essa abordagem torna possível estruturar a análise das questões hídricas de acordo com escalas espaciais tradicionais e hierarquias institucionais.

Já se contrapondo ao conceito de ciclo hidrológico, o ciclo hidrossocial entende a água como um recurso e não apenas como H2O e sua circulação ocorre por meio de uma complexa rede de tubulações, legislação hídrica, medidores, padrões de qualidade, mangueiras de jardim, consumidores, torneiras com vazamentos, chuvas, evaporação, vazamentos, escoamento, entre os mais diversos processos (Bakker, 2002BAKKER, K. From state to market?: water mercantilización in Spain. Environment and Planning A: Economy and Space, New York, v.34, n.5, p.767-90, 2002., p.774).

Nessa perspectiva, mudanças no uso da água, em sua gestão, na organização sociopolítica do seu ciclo e mudanças sociais codeterminam uma à outra e, quando combinadas à transformação nos ciclos da água terrestre e na atmosfera, produzem distintas formas de circulação hidrossocial e novas relações entre a circulação de água local e os circuitos hidrológicos globais (Swyngedouw, 2009_______. The Political Economy and Political Ecology of the Hydro-Social Cycle. Journal of Contemporary Water Research & Education, n.142, p.56-60, 2009., p.56). É a partir desta noção que Linton (2010LINTON, J. What is Water? The History of a Modern Abstraction. Vancouver: UBC Press, 2010., p.232) propõe o ciclo hidrossocial como uma estrutura para uma abordagem relacional-dialética da água, a fim de conceituar um processo socionatural pelo qual a água e a sociedade se fazem e se refazem no espaço e no tempo.

Esse conceito pode ser mais explorado para analisar e explicitar o caráter conflitivo dos processos e transformações hidrossociais, sendo esses impregnados pelas lutas de classe, gênero, étnicas e outras lutas por poder (Swyngedouw, 2004_______. Social power and the urbanization of water: Flows of power. Oxford, UK: Oxford University, 2004., p.2). Contudo, esse autor ressalta a importância de focar no resultado da interação entre as condições geográficas do território, as disposições político-legais e as decisões técnicas, tendo em vista que estas se fundamentam e dependem do acesso desigual à água, o que então define as bases do conceito de territórios hidrossociais.

Assim, o conceito de territórios hidrossociais contribui para a compreensão da diversidade territorial em seu contexto espacial e temporal, caracterizada por uma multiplicidade de atores com interesses e projetos divergentes e que podem ser compreendidos como imaginários contestados e materializações (Hommes et al., 2016HOMMES, L.; BOELENS, R.; MAAT, H. Contested hydrosocial territories and disputed water governance: Struggles and competing claims over the Ilisu Dam development in southeastern Turkey. Geoforum, v.71, p.9-20, 2016., p.11). O conceito de imaginários contestados é central na abordagem dos territórios hidrossociais e contribui para a descrição sobre como atores e alianças de atores interpretam as diversas configurações territoriais atuais e projetam como estas precisam ser reconfiguradas no futuro, de acordo com seus interesses (Boelens et al., 2016BOELENS, R. et al. Hydrosocial territories: a political ecology perspective. Water International, v.41, n.1, p.1-14, 2016., p.2).

Os territórios hidrossociais são construídos e reconstruídos por meio de discursos e práticas que moldam as interações, alianças e lutas de poder em redes sócio-naturais espacialmente delimitadas (Hoogesteger et al., 2016HOOGESTEGER, J.; BOELENS, R.; BAUD, M. Territorial pluralism: water users’ multi-scalar struggles against state ordering in Ecuador’s highlands. Water International, v.41, n.1, p.91-106, 2016., p.15; Hommes e Boelens, 2018HOMMES, L. et al. Reconfiguration of hydrosocial territories and struggles for water justice. In: ___. (Ed.) Water justice. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2018. p.151-68., p.20-2). A partir do ponto vista de Boelens et al. (2016, p.5), o termo “hidrossocial” possui uma conotação de rede multiescalar limitada espacialmente e que possui escalas sobrepostas, hierarquicamente embebidas por elementos administrativos, jurídicos, culturais, organizacionais e hidrológicos.

Todas essas abordagens hidrossociais podem ser consideradas complementares (Karpouzoglou; Vij, 2017KARPOUZOGLOU, T.; VIJ, S. Waterscape: a perspective for understanding the contested geography of water. WIREs Water, v.4, n.3, 2017., p.2). Em síntese, esses conceitos permitem ressaltar os processos sociais, políticos ecológicos e hidrológicos complexos e suas interações dinâmicas (Hommes et al., 2019HOMMES, L. et al. Rural-urban water struggles: urbanizing hydrosocial territories and evolving connections, discourses and identities. Journal. Water International, v.44, p.81-94, 2019., p.86), bem como expressar a noção de conexão entre a coprodução da água pelas relações sociais que, por sua vez, moldam essas relações (Budds; Hinojosa, 2012BUDDS, J.; HINOJOSA, L. Restructuring and rescaling water governance in mining contexts: the coproduction of waterscapes in Peru. Water Alternatives, v.5, n.1, p.119-37, 2012., p.120).

A abordagem de ciclos hidrossociais possui, no entanto, um enfoque nos processos dialéticos cíclicos da água (Karpouzoglou; Vij, 2017KARPOUZOGLOU, T.; VIJ, S. Waterscape: a perspective for understanding the contested geography of water. WIREs Water, v.4, n.3, 2017., p.2) - nos quais “água e sociedade se formam e se refazem no espaço e no tempo” ciclicamente (Linton; Budds, 2014LINTON, J.; BUDDS, J. The hydrosocial cycle: defining and mobilizing a relational-dialetical approach to water. Geoforum, New York, v.57, p.170-80, 2014., p.170). Já o conceito de waterscapes é entendido como configurações socioespaciais de fluxos, instituições, artefatos e imaginários que incorporam uma visão de mundo específica (Budds; Hinojosa, 2012, p.124; Hommes et al., 2018HOMMES, L. et al. Reconfiguration of hydrosocial territories and struggles for water justice. In: ___. (Ed.) Water justice. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2018. p.151-68., p.82-3), trazendo para o foco a localização geográfica dessas relações (Karpouzoglou; Vij, 2017, p.2).

Não obstante, essas abordagens se concentram muito mais nas análises das estruturas e discursos hegemônicos que acabam por configurar as paisagens hídricas; entretanto, menos atenção foi dada até o momento para a multiplicidade de territórios hidrossociais sobrepostos e divergentes que coexistem no mesmo espaço hidrossocial (Hommes et al., 2018HOMMES, L. et al. Reconfiguration of hydrosocial territories and struggles for water justice. In: ___. (Ed.) Water justice. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2018. p.151-68., p.36). Nesse sentido, o conceito de territórios hidrossociais, por sua vez, também inserido nessa mesma natureza de conceitos provenientes da ecologia política, distingue-se dos conceitos anteriores por seu enfoque na natureza multiescalar das relações hidrossociais e de suas políticas (Boelens et al., 2016BOELENS, R. et al. Hydrosocial territories: a political ecology perspective. Water International, v.41, n.1, p.1-14, 2016., p.3). Essa abordagem possibilita explorar também aspectos associados a diferentes objetivos e interesses dos múltiplos grupos de atores e sua díspar relação de poder na tomada de decisão.

Feitas essas breves definições conceituais, entende-se que o conceito de territórios hidrossociais oferece a oportunidade de refletir além da bacia hidrográfica enquanto unidade de planejamento. O conceito possibilita aprofundar a compreensão a respeito das relações entre as transformações territoriais (ou manutenção da atual configuração); suas diferentes escalas; o arcabouço político-administrativo e burocrático vigente; diferentes projetos, perspectivas e valores quanto ao acesso à água; e a estrutura de poder na tomada de decisão.

A produção da água como mobilizadora de territórios: fortalecendo o componente territorial do conceito de territórios hidrossociais

Comparados aos conceitos de waterscapes e ciclos hidrossociais, os territórios hidrosssociais se distinguem pelo seu componente territorial, ou seja, as relações hidrossociais resultam na organização de territórios distintos e que representam diferentes maneiras e estratégias de apropriação da água sobrepostas e, quando em colisão, concretizam situações de conflito (Boelens et al., 2016BOELENS, R. et al. Hydrosocial territories: a political ecology perspective. Water International, v.41, n.1, p.1-14, 2016., p.2). Tal leitura nos permite analisar diferentes contextos sociais, políticos, históricos e territoriais na produção da água por meio da análise da construção social das escalas que abarcam as dimensões multiescalar, hidrológica e hidrossocial dos territórios hidrossociais (Hoogesteger et al., 2016HOOGESTEGER, J.; BOELENS, R.; BAUD, M. Territorial pluralism: water users’ multi-scalar struggles against state ordering in Ecuador’s highlands. Water International, v.41, n.1, p.91-106, 2016., p.92; Dias Tadeu; Sinisgalli, 2019, p.62).

A valorização da análise dos fluxos de poder e da dimensão política e institucional reforça a contribuição dos estudos da ecologia política em desconstruir o entendimento das questões da água como meramente técnicas e materiais e reforça o componente social e político da produção da água e de suas disputas (Swyngedouw, 2004_______. Social power and the urbanization of water: Flows of power. Oxford, UK: Oxford University, 2004., p.7-26). Assim, na perspectiva da ecologia política, o componente material perde importância na reflexão sobre as dinâmicas da água e os processos que levam a sua distribuição e acesso. Seguindo essa trajetória, os trabalhos produzidos até recentemente a partir do conceito de territórios hidrossociais pouco têm se aprofundado na reflexão de como os territórios produzidos se materializam e podem levar à redefinição de novas fronteiras.

Nesse sentido, a materialidade é entendida como produto das relações humanas e não humanas e não pode ser analisada sem considerar a sociedade que a formou (Gherardi, 2017GHERARDI, S. Sociomateriality in poshuman practice theory. In: HUI, S.; SHOVE, E; SCHATZKI, T. The Nexus of Practices: Connections, Constellations, and Practitioners. Londres: Routledge, 2017. p.38-51., p.38). Tal definição da materialidade dialoga com o conceito de territórios hidrossociais entendidos como configurações espaciais de pessoas, instituições, fluxos de água, tecnologia hidráulica e ambiente que giram em torno do controle da água (Hoogesteger et al., 2016HOOGESTEGER, J.; BOELENS, R.; BAUD, M. Territorial pluralism: water users’ multi-scalar struggles against state ordering in Ecuador’s highlands. Water International, v.41, n.1, p.91-106, 2016., p.92-3). Mas, ao mesmo tempo, desafia a sua interpretação de uma materialidade imaginária. Assim, a compreensão de território e de sua materialidade permite avançar na análise de territórios hidrossociais, uma vez que entendemos que estas disputas surgem de projetos e interesses territoriais concorrentes, que visam consolidar fronteiras, organização socionatural e controle para uma determinada finalidade em uma escala espacial específica. Tal reflexão, apesar de ser ampla, permite incorporar as lutas cotidianas, disputas e batalhas de discursos que buscam transformar e (re)construir os territórios e suas formas de governança territorial (Dupka et al., 2019, p.8-9).

A leitura territorial feita pela tradição acadêmica latino-americana contribui com a multidimensionalidade dos territórios hidrossociais e a sua materialidade, uma vez que chama a atenção para a dimensão do conflito e como os territórios podem também se configurar em espaços de resistência ao modelo capitalista disseminado pelas práticas do desenvolvimento, impondo novas redes, nós, articulações, além de instituições e modelos de propriedade que fragilizam práticas de vida anteriormente existentes (Escobar, 2008ESCOBAR, A. Territories of Difference: place, movements, life,redes. London: Duke University Press, 2008., p.6-11; Sánchez, 2015SÁNCHEZ, H. A. Tendencias recientes en los estudios de Geografía rural. Desarrollos teóricos y líneas de investigación en países de América Latina. Investigaciones Geográficas, Boletín del Instituto de Geografía, Ciudad de Mexico, n.88, p.75-90, 2015., p.84-9).

Tal perspectiva define território como a apropriação do espaço em busca de projetos políticos nos quais múltiplas estratégias políticas se constituem, tanto lideradas por movimentos locais como pelo Estado, que ocorrem de forma sobreposta e integradas (Halvorsen, 2019HALVORSEN, S. Decolonising territory: Dialogues with Latin American knowledges and grassroots strategies. Progress in Human Geography, v.43, n.5, p.790-814, 2019., p.791). Os territórios se consolidam a partir de movimentos de retomada e ocupações que se (re)apropriam destes espaços e reinventam seus significados (Porto-Gonçalves, 2009, p.6). Dessa forma, se reconhecem as multiterritorialidades que se sobrepõem em um mesmo espaço podendo se concretizar em situações de conflito. Tais conflitos representam a imposição de territórios sobre outros preexistentes, como na expansão do modelo capitalista e suas instituições sobre sociedades tradicionais, que se concretizam na forma de conflitos violentos (Haesbaert, 2007HAESBAERT, R. Território e multiterritorialidade: um embate. GEOgrafia, v.9, n.17, p.19-46, 2007., p.37).

Nesse sentido, a materialidade dos territórios se concretiza pela limitação material de um espaço onde instituições, sistemas de propriedade, tecnologias produtivas, relações sociais, acesso e uso dos recursos naturais se diferenciam daquele território fundamentado pelo modelo capitalista contemporâneo. Alguns exemplos disso seriam os assentamentos liderados pelo Movimento Sem Terra (MST), onde se desenvolve um modelo de produção agroecológico como contraposição ao modelo produtivista do agronegócio atual, que defende a propriedade coletiva da terra e que promove o comércio justo entre o produtor e o consumidor. Outro exemplo são os territórios quilombolas onde a propriedade da terra é coletiva, suas práticas produtivas remetem ao período pré-colonial e as regras de mediação sociais são definidas pela comunidade (Halvorsen, 2019HALVORSEN, S. Decolonising territory: Dialogues with Latin American knowledges and grassroots strategies. Progress in Human Geography, v.43, n.5, p.790-814, 2019., p.799-800). Tais relações sociais imprimem uma marca na paisagem, pois representam formas distintas de se relacionar com os recursos naturais, impactam na sua qualidade e disponibilidade e caracterizam os territórios construídos.

Esses exemplos indicam como múltiplos territórios podem coexistir e serem reconhecidos pelo Estado, produzindo um território único a partir de múltiplas dimensões, escalas e significados. Nesse sentido, os territórios são resultados das relações sociais com o meio físico, ou das relações entre humanos e não humanos que se concretizam materialmente por meio de novas instituições, práticas de gestão, indicadores de uso, como também infraestrutura de distribuição e armazenamento de água, fluxos de água, assim como a qualidade e quantidade de água disponível para uma população e ecossistema (Sánchez, 2015SÁNCHEZ, H. A. Tendencias recientes en los estudios de Geografía rural. Desarrollos teóricos y líneas de investigación en países de América Latina. Investigaciones Geográficas, Boletín del Instituto de Geografía, Ciudad de Mexico, n.88, p.75-90, 2015., p.85).

Repensar a governança a partir de territórios hidrossociais

Ao longo do artigo analisamos a importância da definição de escala na governança da água, com uma perspectiva interdisciplinar que procura alcançar a melhor forma de gerir os recursos hídricos e assegurar não só o abastecimento de água dos atores, mas também a sua participação nos processos de tomada de decisão.

Na revisão deste artigo, buscou-se evidenciar que tanto os modelos de governança que utilizam a bacia hidrográfica como unidade de planejamento (como no modelo brasileiro) quanto os modelos de governança centralizados e baseados em mecanismos de mercado (como o caso chileno) não são suficientes para contemplar a complexidade de interação de diversos fatores inerentes aos processos e estrutura da governança da água em diferentes escalas e garantir o acesso à água a todos, com especial atenção para os setores da sociedade mais desfavorecidos pela desigualdade social e econômica.

Isso porque a delimitação na bacia hidrográfica não consegue refletir a complexidade física e político-econômica da água, uma vez que não capta a totalidade dos fluxos de água (da captação à descarga), a relação entre o uso e ocupação do solo, os atores envolvidos (desde os decisores até os pequenos usuários) e tampouco de todas as escalas de influência da governança. Os modelos centralizados, por outro lado, têm uma visão homogênea dos territórios e seus povos, sem considerar a disponibilidade da água, e sem conseguir incluir todos os níveis de governança, desde o individual até o global.

Vemos, então, que esses dois tipos de governança não reconhecem e incluem em sua análise as variáveis tanto físicas, como antrópicas, que são determinantes para compreender a disponibilidade da água e seu acesso. Este problema de escala coexiste com o da abordagem estritamente técnica da governança da água, na qual a água é vista como um recurso a ser gerido eficientemente por engenheiros sanitários, hidráulicos e especialistas em hidrologia (Linton; Budds, 2014LINTON, J.; BUDDS, J. The hydrosocial cycle: defining and mobilizing a relational-dialetical approach to water. Geoforum, New York, v.57, p.170-80, 2014., p.171).

O impacto epistemológico desta medida tem sido o da redução da água a uma simples vazão (ou a um volume abstrato), dissociada de seu conteúdo social. Dessa forma, todas as estratégias relacionadas à gestão e governança da água se apresentam como sendo politicamente neutras e com os mesmos impactos para todos os atores envolvidos (Linton, 2014LINTON, J.; BUDDS, J. The hydrosocial cycle: defining and mobilizing a relational-dialetical approach to water. Geoforum, New York, v.57, p.170-80, 2014., p.117). Portanto, as principais abordagens e literatura sobre políticas hídricas ignoram a complexidade das dimensões integradas nos sistemas de distribuição de água.

Nesse sentido, este artigo apresenta como proposta a adoção de uma abordagem de ecologia política da água que permita enriquecer os debates atuais sobre as políticas da água e a(s) escala(s) ideal(is) para a governança da água. Por um lado, a abordagem pós-positivista e construtivista da ecologia política oferece uma posição crítica em relação aos processos de decisão na gestão e distribuição da água com base em critérios científicos, assim como os processos de produção de conhecimento que os apoiam e sustentam (Bouleau, 2014BOULEAU, G. The co-production of science and waterscapes: The case of the Seine and the Rhône Rivers, France. Geoforum, v.57, p.248-57, 2014., p.8). Por outro lado, a água é estudada como um recurso social e político, bem como físico, reconhecendo assim tanto a natureza política de sua governança, como suas implicações políticas e socioambientais (Boelens et al., 2016BOELENS, R. et al. Hydrosocial territories: a political ecology perspective. Water International, v.41, n.1, p.1-14, 2016., p.7), permitindo assim o reconhecimento de uma maior variedade de atores e escalas relevantes.

O conceito de territórios hidrossociais, a partir de sua visão complexa, multiescalar, dinâmica e integral do território, traz, portanto, a oportunidade de associar as relações de poder nos processos de governança da água com sua manifestação material nos territórios, para além dos limites da bacia hidrográfica ou mesmo administrativos. Por materialidade, neste artigo, faz-se referência não só à circulação da água (tanto na natureza como na água “domesticada” e canalizada), mas também à tecnologia e infraestruturas que permitem a manipulação da água nos territórios, e seus conflitos. Finalmente, o conceito territórios hidrossociais oferece a oportunidade de colocar em diálogo o conceito de governança com a tradição latino-americana de territórios em resistência, algo particularmente relevante no contexto regional, dado que a água é um recurso em disputa e que isso deve ser refletido nos processos de governança.

Tal leitura nos oferece a oportunidade de iniciar um processo de aproximação entre o conceito dos territórios hidrossociais e as práticas de governança da água ao transformar os instrumentos de gestão para que reconheçam a multiescalaridade, a multidimensionalidade e a concretude dos territórios em suas fronteiras que constituem as relações institucionais, identitárias, fluxos de poder e de água na sua materialidade. Assim, para além de contribuir a encontrar a escala ideal de governança, ou de utilizar unidades de análise apropriadas, o conceito de territórios hidrossociais permite ver que os processos de decisão sobre a água devem considerar processos sociopolíticos e biofísicos para além do território em questão.

Tais reflexões são chaves para pensar a governança da água em recortes como a Macrometrópole Paulista que se consolida a partir dos fluxos de água no sentido de abastecer grandes centros urbanos e atividades econômicas regionais. Tal complexidade, intensificada pelas mudanças climáticas, pede por uma nova reflexão, capaz de capturar seus processos e dinâmicas territoriais. Portanto, os territórios hidrossociais se apresentam como caminho para a construção de novas práticas de governança da água.

Agradecimento

Este trabalho é parte das atividades do projeto temático, em andamento, “Governança Ambiental na Macrometrópole Paulista, face à variabilidade climática”, processo n.15/03804-9, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e vinculado ao Programa Fapesp de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais.

Referências

  • ANA - AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS (Brasil). Conjuntura dos recursos hídricos: informe 2015. Brasília: ANA, 2015.
  • BAKKER, K. From state to market?: water mercantilización in Spain. Environment and Planning A: Economy and Space, New York, v.34, n.5, p.767-90, 2002.
  • BOELENS, R. et al. Hydrosocial territories: a political ecology perspective. Water International, v.41, n.1, p.1-14, 2016.
  • BOULEAU, G. The co-production of science and waterscapes: The case of the Seine and the Rhône Rivers, France. Geoforum, v.57, p.248-57, 2014.
  • BUDDS, J. Water, power, and the production of neoliberalism in Chile, 1973-2005. Environment and Planning D: Society and Space, v.31, n.2, p.301-18, 2013.
  • BUDDS, J.; HINOJOSA, L. Restructuring and rescaling water governance in mining contexts: the coproduction of waterscapes in Peru. Water Alternatives, v.5, n.1, p.119-37, 2012.
  • CASTRO, M. L.; QUIROZ, L. Capítulo 13 - La crisis del agua en Chile: el futuro de Chile requiere una nueva política de agua. In: BOELENS, R.; CREMERS, L.; ZWARTEVEEN, M. (Ed.) Justicia Hídrica. Acumulación, conflicto y acción social. Lima: Instituto de Estudios Peruanos, 2011.
  • COHEN, A. Nature’s Scales? Watershed as a link between Water Governance and the Politics of Scale. In: NORMAN, E. S.; COOK, C.; COHEN, A. Negotiating water governance: why the politics of scale matter. Farnham: Ashgate Publishing Limited, 2015. p.25-40.
  • COHEN, A.; BAKKER, K. The eco-scalar fix: rescaling environmental governance and the politics of ecological boundaries in Alberta, Canada. Environment and Planning D: Society and Space, v.32, p.128-46, 2014.
  • DIAS TADEU, N. O Sistema Cantareira e a crise da água em São Paulo: falta de transparência, um problema que persiste. São Paulo: Artigo 19, 2016.
  • DIAS TADEU, N.; SINISGALLI, P. Escalas da injustiça hídrica: estudo de caso em Ilhabela - Litoral Norte de São Paulo. Revista Desenvolvimento & Meio Ambiente, Curitiba, v.52, p.48-67, 2019.
  • DIRECCIÓN GENERAL DE AGUAS (DGA). Atlas del Agua Chile 2016. Santiago: Dirección General de Águas, 2016.
  • DUKPA, R. D.; JOSHI, D.; BOELENS, R. Contesting Hydropower Dams in the Eastern Himalaya: The Cultural Politics of Identity, Territory and Self-Governance Institutions in Sikkim, India. Water, v.11, n.412, 2019.
  • EMPINOTTI, V. L.; BUDDS, J.; AVERSA, M. Governance and water security: The role of water institutional framework in the 2013-15 water crisis in São Paulo, Brazil. Geoforum, New York, v.98, p.46-54, 2019.
  • EMPINOTTI, V. et al. The role of stakeholders in water management. In: WILLAARTS, B.; GARRIDO, A.; LLAMAS, M. R. Water for food security and well-being in Latin America and the Caribbean: social and environmental implications for a globalized economy. London: Earthscan from Routledge, 2014. p.317-42.
  • ESCOBAR, A. Territories of Difference: place, movements, life,redes. London: Duke University Press, 2008.
  • FRAGKOU, M. C.; BUDDS, J. Desalination and the disarticulation of water resources: Stabilising the neoliberal model in Chile. Transactions of the Institute of British Geographers. 2019. Disponível em: <https://doi.org/10.1111/tran.12351>. Acesso em: 9 mar. 2020.
    » https://doi.org/10.1111/tran.12351
  • GARRICK, D. et al. Rural water for thirsty cities: a systematic review of water reallocation from rural to urban regions. Environmental Research Letters, Bristol, v.4, p.1-14, 2019.
  • GHERARDI, S. Sociomateriality in poshuman practice theory. In: HUI, S.; SHOVE, E; SCHATZKI, T. The Nexus of Practices: Connections, Constellations, and Practitioners. Londres: Routledge, 2017. p.38-51.
  • HAESBAERT, R. Território e multiterritorialidade: um embate. GEOgrafia, v.9, n.17, p.19-46, 2007.
  • HALVORSEN, S. Decolonising territory: Dialogues with Latin American knowledges and grassroots strategies. Progress in Human Geography, v.43, n.5, p.790-814, 2019.
  • HOMMES, L.; BOELENS, R.; MAAT, H. Contested hydrosocial territories and disputed water governance: Struggles and competing claims over the Ilisu Dam development in southeastern Turkey. Geoforum, v.71, p.9-20, 2016.
  • HOMMES, L. et al. Reconfiguration of hydrosocial territories and struggles for water justice. In: ___. (Ed.) Water justice. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2018. p.151-68.
  • HOMMES, L. et al. Rural-urban water struggles: urbanizing hydrosocial territories and evolving connections, discourses and identities. Journal. Water International, v.44, p.81-94, 2019.
  • HOOGESTEGER, J.; BOELENS, R.; BAUD, M. Territorial pluralism: water users’ multi-scalar struggles against state ordering in Ecuador’s highlands. Water International, v.41, n.1, p.91-106, 2016.
  • JONES III, J. P. et al. Neil Smith’s Scale. Antipode, Oxford, v.49, p.138-52, 2017.
  • KARPOUZOGLOU, T.; VIJ, S. Waterscape: a perspective for understanding the contested geography of water. WIREs Water, v.4, n.3, 2017.
  • LARSIMONT, R.; GROSSO, V. Aproximación a los nuevos conceptos híbridos para abordar las problemáticas hídricas. Revista del Departamento de Geografía, Córdoba, n.2, 2014.
  • LINTON, J. What is Water? The History of a Modern Abstraction. Vancouver: UBC Press, 2010.
  • _______. Modern water and its discontents: a history of hydrosocial renewal. WIREs Water, v.1, p.111-20, 2014.
  • LINTON, J.; BUDDS, J. The hydrosocial cycle: defining and mobilizing a relational-dialetical approach to water. Geoforum, New York, v.57, p.170-80, 2014.
  • LUKAS, M.; FRAGKOU, M. C. Conflictividad en construcción: desarrollo urbano especulativo y gestión del agua en Santiago de Chile. Ecología Política, Barcelona, n.47, p. 67-71, 2014.
  • MOLLE, F. La gestion de l’eau et les apports d’une approche par la political ecology. In: GAUTIER, D.; BENJAMINSEN A. T. (Dir.) L’approche Political Ecology: Pouvoir, savoir, environnement. Paris: Quae, 2012.
  • _______. Examining Scalar Assumptions: unpacking the watershed. In: NORMAN, E. S.; COOK, C.; COHEN, A. Negotiating water governance: why the politics of scale matter. Farnham: Ashgate Publishing Limited, 2015. p.17-24.
  • NORMAN, E. S. et al. introduction to the themed section: Water Governance and the Politics of Scale. Water Alternatives, v.5, n.1, p.52-61, 2012.
  • OPPLIGER, A.; HOHL, J.; FRAGKOU, M. Escasez de agua: develando sus orígenes híbridos en la cuenca del Río Bueno, Chile. Rev. Geogr. Norte Gd., Santiago, n.73, p.9-27, 2019.
  • PERRAULT, T. What kind of governance for what kind of equity? Towards a theorization of justice in water governance. Water International, v.39, n.2, p.233-45, 2014.
  • PIRES DO RIO, G. A. et al. Água: a urgência de uma agenda territorial. Ambiente e Sociedade, v.19, n.4, p.105-20, 2016.
  • PORTO-GONÇALVES, C. W. De Saberes y de Territorios - diversidad y emancipación a partir de la experiencia latino-americana. Polis Revista Latinoamericana, v.22, p.1-13, 2009.
  • RAMIREZ, G. R. The hydrosocial territories of the city of Lamas (San Martin, Peru): Water, society and power. Espacio y Desarrollo, n.29, p.91-108, 2017.
  • SÁNCHEZ, H. A. Tendencias recientes en los estudios de Geografía rural. Desarrollos teóricos y líneas de investigación en países de América Latina. Investigaciones Geográficas, Boletín del Instituto de Geografía, Ciudad de Mexico, n.88, p.75-90, 2015.
  • SWYNGEDOUW, E. Modernity and hybridity: nature, Regeneracionismo, and the production of the Spanish waterscape, 1890-1930. Ann. Assoc. Am. Geogr., v.89, n.3, p.443-65, 1999.
  • _______. Social power and the urbanization of water: Flows of power. Oxford, UK: Oxford University, 2004.
  • _______. The Political Economy and Political Ecology of the Hydro-Social Cycle. Journal of Contemporary Water Research & Education, n.142, p.56-60, 2009.
  • SWYNGEDOUW, E.; BOELENS, R. “... And not a single injustice remains”: Hydro-Territorial Colonization and Techno-Political Transformation in Spain. In: BOELENS, R.; PERREAULT, T.; VOS, J. (Ed.) Water Justice. Cambridge: Cambridge University Press, 2018. p.115-33.
  • UJHÁZY, N.; BIRÓ, M. The ‘Cursed Channel’: utopian and dystopian imaginations of landscape transformation in twentieth-century Hungary. Journal of Historical Geography, n.61, p.1-13, 2018.
  • WARNER, J.; WESTER, P., BOLDING, A. Going with the flow: river basins as the natural units for water management? Water Policy, v.10, p.121-38, 2008.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    25 Maio 2020
  • Aceito
    18 Fev 2021
Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo Rua da Reitoria,109 - Cidade Universitária, 05508-900 São Paulo SP - Brasil, Tel: (55 11) 3091-1675/3091-1676, Fax: (55 11) 3091-4306 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: estudosavancados@usp.br