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Relembrando Wataghin

PERFIS DE MESTRES

Relembrando Wataghin

Henrique Fleming

Em 1967 viajei para Turim para trabalhar com Sergio Fubini, buscando completar o meu doutoramento. Apresentando-me no hotel como estudante de Física, ouvi do proprietário: " Ah, sim, veio aprender com o professor Wataghin!". Por incrível que possa parecer, não me tinha dado conta, até aquele momento, de que estava na universidade italiana de Wataghin, eu, que provinha da universidade brasileira que o professsor esplendidamente ajudara a construir, eu que estudara a Física que Wataghin introduzira no Brasil, a partir de 1935.

Em 1934 o professor Teodoro Ramos, da Escola Politécnica, homem de valor, com trabalhos sobre a teoria da relatividade publicados na França, fora encarregado de selecionar professores estrangeiros para a Faculdade de Filosofia. Conta Paulo Duarte que se reservara a cadeira de Física possivelmente para a França, mas que "Teodoro Ramos escolheu, como o melhor, um russo naturalizado italiano, Gleb Wataghin". Certamente por sugestão de Enrico Fermi, que dominava a física italiana e admirava o jovem colega.

Wataghin realizou em São Paulo o que sonhavam os idealizadores da Universidade, talvez até mais do que sonhassem. Em poucos anos havia aqui um grupo de pesquisas em Raios Cósmicos e Física Teórica cujo valor era reconhecido mundialmente. Note-se que Wataghin, físico teórico de formação e prática, realizou, com seus jovens colaboradores, magníficos trabalhos de Física Experimental, que rivalizam com os melhores jamais feitos no Brasil. Se se levar em conta a precariedade de meios de então, o porte da empresa beira o miraculoso.

Deixemos que fale Paulo Duarte (1976), em uma passagem de suas memórias em que conta do seu relacionamento com os professores estrangeiros da Universidade. "Há (...) um pseudo-italiano com quem me liguei bastante e por causa do jogo de xadrez, em casa do Fábio (Fábio Prado, prefeito de São Paulo). Ele é russo de origem, italiano naturalizado, apesar de moço já um grande físico e é talvez o professor de maior êxito da turma estrangeira..? (A ênfase é minha). «Há um grupo de rapazes, alunos de Wataghin, que já se revelou, entre eles, um chama-se Mário Schenberg e outro Marcelo Damy. Julinho (Júlio de Mesquita Filho) entusiasma-se quando fala neles, porque não há melhor confirmação do que sempre afirmou, isto é, não termos gênios porque não temos meio que os possa revelar e este meio e a Universidade...". E continua: "Wataghin, conversando comigo, me contou uma verdadeira história das mil e uma noites. Os físicos estão pesquisando agora o átomo. A sua decomposição pode liberar uma energia capaz de destruir a Terra, mas bem domesticada e dirigida seria capaz de transformar a vida dos povos... Dentro do átomo, até agora considerado a parte mais íntima da matéria, há verdadeiros mundos tão importantes quando as galáxias, a uma das quais pertencemos... Eu comecei a pensar, à noite, na conversa de Wataghin e perdi o sono".

O que talvez não se saiba é que esta missão de evangelizar (que era como Fermi denominava a tarefa de introduzir a Mecânica Quântica em um ambiente novo) já era a segunda de Wataghin. A primeira fora em Turim, embora fosse recém-graduado. Conta Tullio Regge, um dos maiores físicos do mundo, e o melhor aluno europeu de Wataghin, em um precioso livrinho (Levy & Regge, 1984), do qual que é co-autor do grande escritor Primo Levi: "Por volta de 1925 foi o jovem Wataghin quem levou a Turim os textos clássicos da mecânica atômica e da relatividade, até aí desconhecidos".

Em outra ocasião escreveu Regge que, aluno entediado de engenharia, fora levado por um amigo a visitar Wataghin, já de volta do Brasil, no seu imenso escritório da rua Pietro Giuria. "Entrei engenheiro e saí físico, sonhando de olhos abertos". Instigado por Primo Levi a descrever Wataghin disse: "Era um homem de grande intuição, mais que um calculador: sua simples presença magnetizava o Instituto, atraía visitantes importantes como Dirac, Pauli. Outro dom raro de Wataghin era o de saber distinguir à primeira vista se alguém era medíocre ou não" (Levy & Regge, 1984).

No Instituto de Física tive a fortuna de compartilhar a sala com Vladimir, seu filho mais moço. E assim fui apresentado ao Wataghin pai, que era então o diretor, e logo me tornei seu amigo, e me submeti aos seus encantos.

Nessa época viajava muito. Dois terços do ano em Turim, um terço em Novosibirsk, na Sibéria, onde a União Soviétiva estava construindo um grande acelerador de partículas e precisava de seus talentos. Depois passou a dividir o ano em três períodos, para estar regularmente em Campinas, cujo Instituto de Física leva o seu nome. Quando estava em Turim freqüentava assiduamente seminários e fazia muitas perguntas. Após cada uma delas voltava-se para a platéia, sorridente, como se quisesse encorajar a participação de todos.

Vez por outra me convidava para o almoço em algum de seus restaurantes favoritos, que figuravam entre os seus ambientes de trabalho costumeiros. Ali pedia sempre uma garrafa de Barolo, qualquer que fosse o prato, e a discussão sobre os campos não-locais, a interpretação física dos cut-offs, sobre o papel dos neutrinos na Cosmologia, se inflamava. Ou então passava pela minha sala e me perguntava: "O senhor está muito ocupado?". Não, nunca estava... E me convidava para um café no bar do Mussino, a duas quadras dali. No caminho, como não pudesse retardar o tempo, eu tratava de retardar o passo e, assim, entre ir e vir, ganhava tempo para que o grande mestre me contasse mais um de seus maravilhosos sonhos... E naquelas noites, como Paulo Duarte décadas atrás, o sono não conseguia vencer minha imaginação incendiada.

Referências bibliográficas

1 DUARTE, Paulo. Memórias, v. 4, São Paulo, Hucitec, 1976.

2 LEVI, Primo & REGGE, Tullio. Dialogo, Milano, Edizioni di Comunità, 1984.

Henrique Fleming é professor do Departamento de Física Matemática do Instituto de Física da USP e membro do Conselho Deliberativo do IEA-USP.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 1994
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