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Complexos e complexidade

Resumos

Apresenta-se uma visão da Ciência Cognitiva enquanto reação ao Behaviorismo, através de blocos de pensamento, fragmentos de um domínio conceituai tortuoso e demorado. Reunindo muitas disciplinas, seus fundamentos são por demais comprometidos com a relação mente-corpo, antigo objeto de estudo da Filosofia. Se, numa primeira abordagem, parece ser apenas a computação o elemento definidor dessa nova superdisciplina num estudo mais profundo e agudo percebe-se que a própria noção de computação comporta diversas interpretações. O estilo é propositalmente elíptico, estimulando o leitor a investigar o quanto a riqueza metafórica da linguagem é difícil, senão impossível de modelar em computadores, e também intrigando aquele que, porventura, resista, chamando-o ao estudo demorado de conceitos variados e difíceis. Compreender é, no mundo da mente, diverso de manipular: é ter empatia.


Cognitive Science as a reaction against Behaviorism is presented, not in a complete way, but in an informal and fragmented outlook. The old problem of the relation between the mind and the brain pervades cognitive concepts. In spite of the strong computational appeal of Cognitive Science, understanding what computation means, and all its different interpretations, is also suggested, including some considerations on models and other mind attributes.


TEXTOS

Complexos e complexidade

Henrique Schützer Del Nero

RESUMO

Apresenta-se uma visão da Ciência Cognitiva enquanto reação ao Behaviorismo, através de blocos de pensamento, fragmentos de um domínio conceituai tortuoso e demorado. Reunindo muitas disciplinas, seus fundamentos são por demais comprometidos com a relação mente-corpo, antigo objeto de estudo da Filosofia. Se, numa primeira abordagem, parece ser apenas a computação o elemento definidor dessa nova superdisciplina num estudo mais profundo e agudo percebe-se que a própria noção de computação comporta diversas interpretações. O estilo é propositalmente elíptico, estimulando o leitor a investigar o quanto a riqueza metafórica da linguagem é difícil, senão impossível de modelar em computadores, e também intrigando aquele que, porventura, resista, chamando-o ao estudo demorado de conceitos variados e difíceis. Compreender é, no mundo da mente, diverso de manipular: é ter empatia.

ABSTRACT

Cognitive Science as a reaction against Behaviorism is presented, not in a complete way, but in an informal and fragmented outlook. The old problem of the relation between the mind and the brain pervades cognitive concepts. In spite of the strong computational appeal of Cognitive Science, understanding what computation means, and all its different interpretations, is also suggested, including some considerations on models and other mind attributes.

A Física procura a síntese entre duas teorias. O que é muito pequeno transmuta-se em quântico. O que muito grande, relativista. O sonho, quimera talvez, da teoria gravitacional quântica procura reunir o que é incerto, isto é, quântico, com o que é relativo, ou seja, o enfoque da Teoria da Relatividade.

No meio do caminho, desse que unifica o pequeno e o grande, tem uma pedra: o Homem. Pedra no caminho, Pedro-símbolo, tu que és Pedro, pedra sobre a qual se erigirá, minha Igreja — pedra de toque, pedra preciosa, convenção e frivolidade. Entre o quântico e o relativo, há uma coisa chamada gente, que em muito se diferencia do mero animal, talvez para menos, mas ainda assim assaz sagaz e voraz. Essa coisa que chamamos sapiens, talvez de corpo, raras exceções, não seja melhor que o parente símio próximo, mas, em atos, muito longe do próximo está. Ética e poder, subserviência e oportunismo, grandeza e orgulho, ciência e fraude, poesia e torpeza, justiça e fome: eis o retrato dessa pedra no meio do caminho do que pudera ser a teoria unificada, não fosse essa pouca muita coisa no caminho chamada gente, que mais mente, mas tem algo que se chama mente.

Behaviorismo

No meio do caminho, entre o muito pequeno e o muito grande, do infinitesimal ao infinito, há uma mente, que muito tempo foi espírito, depois voltou a ser da gente. Antes, porém, parou por algum tempo num estado objetivo e objetivável, deixando de ser mente-espírito para ser mente-abolida, comportamento. Essa parada, português-castiço, foi o behaviorismo. Pobre mente-colonizada que, mesmo quando deixa de ser mente, não pode ser comportamento: tem de ser bireiviur.

Pensava-se poder ligar, sem intermediários, a entrada e a saída. Os atravessadores, esses que por vezes nos representam, esses que no caso da entrada e da saída, serão mais tarde representação, são no behaviorismo tidos como variáveis inobserváveis, ocultas, passíveis de subjetivismo e individualidade. É tempo então de eliminá-los, usando-se para tanto variáveis físico-observáveis e termos empírico-protocolares. Não se culpe o behaviorista impenitente, sem antes ouvir-lhe a defesa. O litígio não está no abandono da intermediação, mas no desconhecimento de suas nuanças.

A relação entre o estímulo e a resposta é considerada ligação entre duas variáveis mensuráveis e, a busca de conexões invariáveis entre elas, empreendida sem que para isso se nomeiem todos os intermediários. O behaviorista não nega que haja neurônios, nem que haja processamento intermediário-interno daquilo que chega como estímulo e do que sai como resposta. Simples e crédulo, olvida-lhes importância, supondo existir correspondência estrita entre eles, correspondência que subjaz, mais tecnicamente, às relações bijetivas nas quais a um único elemento, no domínio, corresponde outro, único, na imagem.

Domínio e propaganda fazem do lapso behaviorista projeto duradouro. Imagem distorcida do que é intermediário, guindada pelo pressuposto metodológico de que também seja secundário, recoloca a mente como folha em branco, ou opaca, ou preta, tal caixa, onde a experiência escreve sua história. Ainda que a mente comportasse número grande de razões, a invariância delas justificaria a modelização objetiva que atenta somente para aquilo que se pode ver, ou daquilo que é, ou que pode vir a ser, de domínio público. O privado e interior, se invariante, não é derrogado, mas omitido, numa cadeia cujos extremos permitem que o ser se torne objeto científico. Não fora pelo conteúdo abjeto do Homem, também as suas entranhas reservariam um final desconcertante para projeto tão objetivo. Nossa interioridade é complexa, nossos complexos são bastantes, mas mais que isso, porque complexos, os complexos são fenômeno não-linear. Portanto, a omissão destes e daqueles não pode vir a ser senão visão distorcida e ciência inexata. É tempo, pois, de resgatar a interioridade, a intermediação, a privacidade, a subjetividade e, com elas, resguardados dos excessos da proliferação dos entes ocultos, forjar uma nova ciência do Homem, que esteja no meio do caminho entre o muito pequeno e o muito grande.

Complexidade. Determinismo. Interioridade

Coisas muito grandes, interligação extrema, quiçá dissipação de energia, eis o germe da complexidade e da não-linearidade, objeção máxima à solução trivial e única que se contenta com resolver localmente, e de maneira estável, regiões de um sistema, fazendo-o fugir dos intervalos de instabilidade e caos. Eis aí o que não carece nem do muito pequeno, nem do muito grande, para destruir o edifício behaviorista. Mesmo três corpos, atraídos pela força gravitacional, apresentarão, em incerto ponto e incerto lugar, imprevisibilidade comportamental. Não são apenas astros, nem quantas: são poeira, pedras e Pedros.

Quanta

O determinismo não precisava esperar pela indeterminação quântica para esvair-se. Esta, a quântica, prescreve uma indeterminação essencial através de uma das relações de incerteza de Heisenberg:

Dp . Dq ³ h / 4p

(onde "p" e "q" são comumente lidas como coordenadas de momento e posição de um elétron ou de outro elemento subatômico e "h" como a constante universal de Planck). Isto simplesmente quer dizer que há um limite intransponível para determinar-se a posição e a velocidade de um objeto. Quanto maior a precisão de uma medida, menor a da outra, e vice-versa. Há um limite essencial, até onde pode ir nossa determinação do retrato de um sistema físico.

Clássica

O determinismo se esvai antes de chegar ao muito pequeno, ao quântico, quando se atenta para o fenômeno da violação do princípio de superposição, impedimento essencial, esse de cunho formal, que as funções não-lineares apresentam.

Se a variação de "X" ao longo do tempo é não-linear, substituindo "a" e "b" por "x" temos:

f (a) + f (b) # f (a + b),

algo que nos sistemas lineares é o contrário, isto é:

f (a) + f (b) = f (a + b) princípio de superposição

Seja um sistema descrito, em sua evolução temporal, através de uma função dx/dt = f (x). Para estados sucessivos de "x", quando "f" é linear vale o princípio da superposição. Quando é não-linear, não. Ou em vernáculo: tomando-se um camelo, e colocando-se-lhe pesos iguais e sucessivos nas costas, o derreamento de suas pernas não será proporcional ao longo do tempo. Se, com o primeiro peso, mal lhe falham as pernas, haverá um certo peso, num certo momento, que, posto sobre suas costas, fará o pobre animal passar do insuportável ao despencado. Variação topológica e transição de fase: eis o que traduz o estatelamento do nobre animal.

Intermezzo e não-linearidade

O behaviorista, não supunha que, em sendo complexo aquilo que intermedeia o estímulo e a resposta, fosse por isso não-linear, indicando trajetórias incertas, bifurcações e aleatoriedade.

O intermediário, não-linear, proíbe a modelização apenas dos extremos da cadeia, daí o insucesso ou a parcialidade da teoria. Há que resgatar-se, portanto, a mente, ou basta apenas a rede interconectada de neurônios que ligam a entrada e a saída?

Se o princípio da superposição é a leitura formal de que o todo resulta da soma das partes, quando violado ou não-vigente, como nas não-linearidades, cumpre perguntar: a soma dos neurônios é igual ao desempenho do bloco intermediário-interno? Eis que mente não significa apenas reunião de neurônios, mas resulta diversa porque complexa, porque não-linear a reunião, porque inquilina da indeterminação clássica e do dilema semântico.

Sistemas Dinâmicos

A Teoria de Sistemas Dinâmicos mostra que sistemas em que grandezas variam temporalmente podem apresentar sensibilidade às condições iniciais e chegar ao caos. Três corpos atraídos pela gravitação apresentam, em alguns intervalos ou valores, imprevisibilidade quanto à trajetória ou quanto aos estados que assumem no espaço de fase, ou seja, aquele que retrata a evolução temporal do sistema. Embora se mantenha a equação que descreve a dinâmica do sistema, nos valores de bifurcação a previsão do estado seguinte resulta difícil, senão impossível. A isso dá-se o nome de caos determinístico. Caos, porque o estado seguinte é imprevisível; determinístico, porque a equação é de um sistema determinístico, isto é, da Física Clássica.

A alusão metafórica à unicidade da forma e à pluralidade dos conteúdos é arrebatadora, devendo-se, doravante, incluí-la entre as fontes que justificam a coexistência de variabilidade e rigidez entre os Homens. Variabilidade, porque diferentes; rigidez, porque sujeitos às leis que governam sua condição neuro-psico-social. Alusão metafórica que deve também constar entre as razoes fundantes da necessidade de resgate da noção de processo intermediário, ante-sala da execução do behaviorismo.

Terceiro dilema

Indeterminação pode servir a três senhores: o quântico, o clássico e o semântico. A não-linearidade que descreve a complexidade do prócesso intermediário faz do behaviorismo um erro. Porém, pode resgatar-se a noção de intermediação, sem para isso ter de resgatar-se a noção de mente. A reunião de neurônios intermediários não é igual à representação nem à intencionalidade. Não, mente é o melhor nome para o ressurgimento do elo interno. O indeterminismo quântico é muito pequeno para o cérebro, o clássico (das não-linearidades) desconcertante, devido à imensidão das variáveis de estado, e o semântico o único que, ainda que malfadado, porque de difícil tratamento no discurso científico, requer a qualificação da mente como representação-intenção.

Semântica

Se as não-linearidades corroboram a falência do behaviorismo, do ponto de vista formal, porque impossível construir relação invariante prescindindo do intermediário complexo, criativo e criador) a intencionalidade reinsere a problemática do conteúdo sob outra ótica, aquela das atitudes proposicionais, querer, desejar, crer etc., quando o ato se preenche pelo conteúdo a que se dirige, diferenciando-se condições de verificação, de significado, e de verdade.

Fulano é o presidente é uma sentença verdadeira, porém pode ser objeto de operadores intencionais que lhe modificam o estatuto. Beltrano crê que fulano é o presidente pode perfeitamente ser falsa porque Beltrano não crê. Essa relação entre conteúdos e formas intencionais justificou, no século XIX, a grande divisão entre o físico e o mental. Brentano viu nela, na intencionalidade, a marca irredutível da mente, declarando-a intradutível a qualquer linguagem aparelhada para descrever o mundo físico.

Eis que a pedra no meio do caminho se torna de outra natureza, porque intencional, tirando da não-linearidade o mérito pelo soçobro do behaviorismo, e devolvendo à semântica sua condição de algoz.

Mente

A mente tripartida em pensamento, sentimento e vontade, ou modo cognitivo, emocional e conativo, respectivamente, deve ser recrutada para fazer frente à derrocada behaviorista.

Procurando evitar o erro passado, escolhe-se o modo cognitivo, ou do pensamento, como objeto de modelo. Emoções são por demais contingentes e complexas para modelizar num primeiro instante, e a vontade, essa comumente é objeto de aceitação cega ou de extrema má-vontade.

Computo e cogito

Pensar, ou modo cognitivo, é computar. Computar é calcular. Há de existir uma série de passos que se sucedem no processo cognitivo-intermediário. Formalizá-los, estipulando-lhes ou descrevendo-lhes conexões necessárias, constitui a síntese do projeto cognitivista, que toma da mente apenas o pensamento e, dele, aquilo que é discreto e regular, tal que se erija seqüência bem comportada de regras, ou algoritmo, ou dinâmica bem comportada de estados, ou linearidade ou não-linearidade não sensível às condições iniciais.

Da modelização do pensamento há de surgir a ciência da cognição. Será que essa terça parte modelizada da mente pode sonhar voltar a ser o meio do caminho entre a ciência física do infinitamente pequeno e a do infinitamente grande? Será que deve estar no bojo da unificação da Mecânica Quântica e da Teoria da Relatividade? Não. Ciência cognitiva, por ora, representa apenas a terça parte, discretizada e bem comportada da mente e, ainda assim, de uma mente que, para pensar, se utiliza de representações internas, não apenas não-lineares, mas intencionais, o que recoloca a separação entre forma e conteúdo, entre mundo físico e mundo mental.

Ciência Cognitiva

A Ciência Cognitiva reúne, portanto, algumas porções do conhecimento para, juntas, tentarem explicar e modelizar esta pedra chamada mente e, da mente, o pensamento, olvidando a consciência, o afeto e a vontade.

A Psicologia comparece com os processos mentais e comportamentais. A Lingüística, com a forma e o conteúdo da comunicação superior. A Antropologia, com a história de um sistema dinâmico que se molda a parâmetros. Ainda que as equações fossem as mesmas, há sistemas que têm história, sentido estrito e lato. A Filosofia com a Lógica, a Epistemologia e a Filosofia da Ciência. A Matemática e a Física com noções de computação, stricto e lato sensu, de formalização e interpretação, com a Mecânica Estatística, que lida com fenômenos interativos e complexos, com a Teoria de Sistemas Dinâmicos, que instrumentaliza o tratamento de sistemas que tenham evolução no tempo, quando com variáveis bem determinadas e de pequeno número, e quiçá, para sistemas de grande dimensão, informa e orienta substantivamente a procura pela formas invariantes de toda mente possível Há que salientar-se, ainda, partes da Engenharia, como a Teoria de Controles e a Teoria da Informação e Detecção. A Biologia, com as noções de evolução, adaptação e comparação entre estratégias das estruturas vivas, culminando no Sistema Nervoso Central do Homem, que revela a intimidade, através das Neurociências, das instâncias de implementação da mente.

Lista pretensiosa, alheia à parcimônia: delírio totalizante. Mas ainda tão pequena perto do que é muito grande, do Universo, que pouco entendemos, mas que, se entendemos um pouco, é graças a essa reunião anterior que subjaz à mente-cognitiva. Entender o muito grande e o muito pequeno, unificando-os, se possível, significa, talvez, entender o meio do caminho que olha, descreve e prevê os outros dois extremos. Estranho meio de caminho, esse que fala dos extremos e não é nem um, nem outro, nem a metade, mas pura reflexão, criação, repetição, aprendizado, decaimento e evolução. Mente-cognição é tão-somente o meio que modela qualquer outro extremo, entre o grande e o pequeno; é de média estatura, mas tudo compreende, ou às vezes nem o essencial.

Modelos

Eis que nem bem surge, essa ciência, que há de responder sobre o processo intermediário, guindada pela pretensão e arrebatadora na reunião, em princípio, de tantas disciplinas, e já há dissensões, paradigmas rivais. Entendê-los, eles que rivalizam, significa voltar um pouco ao dilema quântico, não-linear e semântico.

Do dilema quântico e do relativista, nos sobra a eterna questão de determinação, de lei e de ordem. Do dilema não-linear nos sobram o medo do caos, a busca da estabilidade, a invariância e determinação da forma que, às vezes, nos valores de bifurcação, altera qualitativamente o fluxo das soluções, levando conteúdos a incertas paragens, imprevisíveis, salvo ex post. Necessidade e contingência ali se encontram, não na matemática-instrumento, mas na matemática que funda e delimita o conhecimento possível.

Do dilema semântico, a mente, consciência pura, intenciona, pervertendo o idioma que descreve os fatos, negando-lhes veracidade, porque sujeita à determinação dos operadores intencionais: quero que..., desejo que..., temo que... e tantos outros quantos, do mundo, roubam os conteúdos e, na mente, conformam a peculiaridade da representação proposicional. Não procure traduzi-los porque a extensão de seus referentes pode ser não-enumerável, vacuamente idêntica aos objetos do mundo. A forma da mente que intenciona não é a forma do mundo, mas a forma do preenchimento e verificação da vacância dos operadores intencionais.

O cognitivista metódico há de esbravejar, dizendo que somente se modela o pensamento. As emoções, a vontade e a consciência são por demais complexas, talvez falsas-entidades, nomeadas pela contingência e travestidas pela necessidade. Urge eliminar o indesejado, o inexplicável, o não-modelável, passageiro incômodo de uma mente que se denomina apenas cognição e já é tão complexa, não-linear e própria, não como substância-espírito, mas agora como predicado não-tradutível em nenhuma linguagem fisicalista.

Os modelos computacionais retratam a seqüência virtual e provável do pensamento. Modelam sua forma invariante, conferindo-lhe regras e leis. Porém quais primitivos, que alfabeto escolher para que o pensamento-forma possa manipular? E ainda, que forma deve ter esse pensamento, para que endosse sua condição invariante, a priori, diante da qual o mundo forneça apenas a causa material?

Ortodoxos e heterodoxos

Alguns, os tradicionalistas, preferem eleger o cômputo-estrito como forma, os primitivos, como átomos mentais, e as formas de relação, como aquelas descritas, em princípio, pelo Cálculo de Predicados.

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Mente aqui é software, é programa, não tendo senão pálida relação com a máquina que a implementa, seja ela uma arquitetura von Neumann, no caso artificial, seja um cérebro, no caso real.

Outros, os conexionistas, elegem o cômputo-amplo como forma. Programas, não há. Há acomodações estatísticas, estabilidades e otimizações em dinâmicas de largas populações de unidades interconectadas. A semelhança com o cérebro se faz pela pluralidade de unidades e conexões, como se fossem neurônios, mas os primitivos, esses, variam de acordo com a porção do mundo e da mente que se quer modelar. As arquiteturas agora são redes neurais, abstração formal, porque também elas são simuladas em máquinas tradicionais, porém o modo como as memórias, o processo e as normas operam não tem relação com a estrita divisão entre implemento e programa, entre cérebro e mente. A cisão reaparece quando da escolha do vocabulário que há de servir de primitivo para nomear cada unidade ou população delas. Novamente é o dilema semântico que está em foco. Embora essas arquiteturas façam jus ao processo intermediário, embora façam jus à complexidade e à não-linearidade (embora não necessariamente), desembocam na perplexidade da escolha do vocabulário, voltando ao behaviorismo pela porta dos fundos, guiadas pela necessidade de uma determinada concepção das entidades, dos termos e do significado. Esse novo behaviorismo reedita na Filosofia da Linguagem o impasse que o outro tentava superar na Psicologia. É preciso supor que os operadores intencionais são descrições holistas de algo que se passa como se fosse intencional, embora não o seja nem no nível da máquina, nem no do cérebro. A teoria que supõe a intencionalidade é, como um todo, boa descrição do conjunto dos conteúdos mentais. Isso não estipula, porém, que a mente tenha de ser intencional. Embora egressos de movimentos diferentes, esses dois behaviorismos, o psicológico e o filosófico, têm profundas raízes comuns. Os volteios à cata do cômputo não prescindem da correta caracterização do domínio de interpretação de uma função ou de uma sentença. O ser está no substituto da variável. Se substituo angústia por x, numa sentença lógica ou numa equação diferencial, todos os formalismos não me descomprometerão do aceite prévio de que aquela entidade, a angústia, tem algum domínio de significação, de existência, e pode ocorrer num projeto de modelização do mundo mental. Pedro, pedra, pedra de toque e pedra preciosa são instâncias e circunvoluções da capacidade de manipular e entender símbolos, conferindo-lhes identidade, e lugar, e direito, e ação. Eliminar sumariamente os termos mentais é posição fraca e facciosa, para não citar a vontade, a consciência e o sonho, instâncias ou processos que retratam essa perplexidades de modo ainda mais profundo, para que o físico, desconcertado, à cata da sua unificação, encontre nesses impasses problemas tão antigos quanto a Física de Ptolomeu e tão distantes de solução quanto a unificação entre o muito grande e o muito pequeno.

Complexo

Ciência Cognitiva pode então ter acepções restritas e amplas. Pode abarcar dois modelos, o tradicional e o conexionista. A restrita está mais próxima do ideal de objetivação que caminha do mais simples para o mais complexo. Porém, se complexidade, não-linearidade, emergência predicacional, gestalts e outros tantos conceitos conclamam a não buscar a explicação do todo pela reunião das partes, em que essa nova Ciência, na verdade reunião de várias outras, representa uma virtualidade de desenlace feliz para o velho problema da escolha semântica?

No mundo dos complexos individuais, das tristezas, das polarizações depressivas e maníacas do humor, dos distúrbios do juízo, da crítica, da percepção, da adequação, da imagem de si, das motivações ocultas dos atos, ergue-se o nobre e ignorante edifício da Psiquiatria. Disciplina-limite, elo entre o corpo e a mente, entre a Natureza e a Cultura, entre a necessidade e a contingência, entre a invariância e o segredo, entre a Biologia da espécie e a biografia de cada um. Se a mente é fenômeno complexo, comportando em seus desvios a formação de complexos e de complexados, como a Ciência Cognitiva pode, esquecendo do contexto, dos afetos e da vontade, superar as trevas que encobrem seu objeto de estudo? Se o objeto da Psiquiatria é a mente, e seus desvios, em que nos ajuda sabê-la fenômeno complexo, que emerge da interação entre grandes populações de unidades interconectadas (neurônios), se, desde já, assumimos que é não-linear, não admitindo a expectativa da compreensão do todo pela soma das partes, bifurcando para certos valores de parâmetros, ensejando transições topológicas ou mudanças qualitativas no fluxo das soluções, culminando enfim na própria inconsistência de denominar-se caos determinístico?

Pode-se legitimamente voltar ao mundo da reflexão pura e especulativa. Pode-se ainda experimentar com direção particular e limitada. Porém, pode-se especular que a forma primeira de todo sistema é de tal natureza, que a Matemática deixa de ser instrumento para concretizar-se como fundamento. Pode-se ainda lançar especulação extrema acerca da natureza e da relação entre forma e conteúdo nas esferas superiores da função nervosa, isto é, na mente. Finalmente, pode-se esperar que o enfoque que delimita e endossa a escolha semântica seja guiado pela forma matemática que a tudo subjaz. A História da mente e de seus desvios, quer para individuação, quer para a individualidade, quer para a anomalia, hão de beneficiar-se da forma que precede qualquer conteúdo. Essa pode ser uma Ciência Cognitiva ampliada, misto de caminho de volta à especulação, mas inspirada em metáforas ricas e universais: a Teoria dos Sistemas Dinâmicos e a Mecânica Estatística.

Cognitivismo lato sensu

No mundo dos complexos, sejam explícitos ou interiores, lineares ou desviados, inorgânicos ou incipientes, biológicos ou biográficos, econômicos ou pauperizados, culturais ou ignorantes, a forma não-linear e a entropia inconstante nada podem revelar, senão pela correta hierarquização e delimitação das linguagens e dos modos de recortar o real.

Ciência Cognitiva pode, numa leitura amplificada, ser a resposta unitária para a unidade que se procura na Física. Ainda que leve ao desânimo, e até mesmo à suspeita, a empreitada unificadora deve, a um só tempo, abarcar o problema da intermediação, da forma a priori, da não-linearidade, da complexidade, bem como o dilema semântico. Ainda que se pretenda compartimentalizar a mente é preciso responder claramente que estatuto têm as suas duas outras partes: sentimento-emoção e vontade-conação.

Pessoa

Ainda que pura especulação pode arriscar-se uma interpretação global para o objeto-mente.

Não cumpre estender a justificação: apenas mencioná-la. A mente é instância de controle, e hierarquicamente emerge da complexidade das interações neuroniais.

Não haveria necessidade de consciência, caso todos os atos fossem automáticos. O aprendizado, em suas primeiras fases, se dá pelo seguir estrito de normas, e pela consciência plena delas. Depois, com o automatismo, vem a ausência de seus conteúdos do espectro fenomenal da consciência. Liberdade, vontade e sentimento são categorias da consciência: não contingentes de reforço e de direcionamento das formas automáticas do agir. Portanto, cabe, a um só tempo, propor uma idéia que dê conta da função da consciência no Homem e de sua articulação com as três subcategorias — liberdade, vontade e emoção.

O pensamento, se prescinde das anteriores, já está bem delimitado como objeto da Ciência Cognitiva restrita. A versão geral pode perfeitamente apostar em metáfora, talvez vazia, mas intrigante no que tange à sua fonte de inspiração: a teoria de sistemas dinâmicos.

A forma da mente é dada por uma equação diferencial cuja ordem pode ser algo monumental. Os conteúdos, ou elementos que podem substituir as variáveis de estado dessa equação, são os átomos da Psicologia de senso-comum, ou essas sensações que todos nós experimentamos quando acordados, em ação ou reflexão. Liberdade, vontade e paixão são nomes que se dão a pontos, e a valores de bifurcação, no nível formal. Temos invariância em tantos níveis, imprevisibilidade, indecidibilidade e incompletude em tantos outros, que não seria estranho tivéssemos, em algum recorte, natural ou não, liberdade como primitivo semântico. Se emoções, vontade e liberdade não são primitivos de um mundo recortado pela ciência exata, são ao menos os sustentáculos da constituição do ser social e da personalidade jurídica. Não haveria responsabilidade, não fossem noções como essas. Não haveria Direito, nem imputação. O ideal de uma ciência unificada e determinista, aquela que propiciasse a integração do muito grande e do muito pequeno, não abarcaria jamais a pedra no meio do caminho. Essa pedra é pedra que se move de acordo com as leis da gravidade, às vezes sujeita a bifurcações e à instabilidade, mas nem por isso não-determinista. O que brota na consciência do indivíduo-agente é o conteúdo e não a forma; é o estado no plano de fase, e não a equação diferencial.

Entender a Ciência Cognitiva ampla passa por conceber, longe do homúnculo que levaria a regressão ao infinito, como pode um sistema ter forma invariável e não-linear, servir-se de vocabulário mental na substituição de suas variáveis, e controlar formas pela inspeção consciente de conteúdos. Isso permite que sejamos concomitantemente máquinas e cidadãos. Isso permite que não-linearidades, no mundo da forma, sirvam a uma cultura que precisa vigiar e punir, supondo o réu apto para escolher, julgar e agir com decoro.

A Teoria dos Sistemas Dinâmicos nos fornece metáfora que ensina como a forma se ordena e desordena, mas, acima de tudo, como os estados de um sistema, ao longo de sua história, podem ser interpretados como imprevisíveis e, se o sistema for adaptado a uma Cultura, e não apenas às intempéries naturais, nomear alguns deles, estados, livres e soberanos. Ciência Cognitiva, nesse caso, é também uma reflexão sobre a Sociologia, a Ética, o Direito e a Política.

Ethos

Do computo viemos; para o computo voltaremos. Lá, no mundo das formas, tudo é eterno; aqui, no mundo dos estados, tudo é transitório, fortemente dependente das condições iniciais.

Porém durante essa breve passagem, controlamos estados e não variáveis, fazendo brotar na consciência, não uma equação diferencial de ordem inimaginável, mas o imperativo categórico, o perdão, a inveja, a fraude e a dor. Aqui, os estados substituem o logos das formas pelo ethos dos conteúdos. Quando, no nível dinâmico, o sistema apresenta instabilidade, no nível da mente, surgem o dilema decisório e o risco; a bifurcação da forma transmuta-se em encruzilhada, o desvio da pedra transmuta-se em Pedro.

Henrique Schützer Del Nero é médico pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Especialista em Psiquiatria (HCFMUSP). Bacharel e Mestre em Filosofia (USP). Doutorando em Engenharia pela Escola Politécnica da USP. Coordenador do Grupo de Ciência Cognitiva e Psicobiologia do IEA-USP desde sua constituição no final de 1990.

Henrique Schutzer Del Nero é médico pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, especialista em Psiquiatria (HCFM-USP), bacharel e mestre em Filosofia pela USP e doutorando em Engenharia pela Escola Politécnica da USP. É coordenador do Grupo de "Ciência Cognitiva e Psicobiologia" do IEA-USP, desde sua constituição no final de 1990.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2005
  • Data do Fascículo
    Abr 1994
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