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Roger Bastide, professor da Universidade de São Paulo

PERFIS DE MESTRES

Roger Bastide, professor da Universidade de São Paulo

Maria Isaura Pereira de Queiróz

Roger Bastide (1898-1974) chegou ao Brasil em 1938 para ocupar a cátedra de Sociologia I, no Departamento de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo deixada vaga pelo professor Claude Lévi-Strauss; Bastide aqui esteve até 1984, quando partiu definitivamente para a França onde foi lecionar primeiramente na École Pratique des Hautes Etudes, 6e Section, hoje École des Hautes Études en Sciences Socielies; nomeado em seguida para a Universidade de Paris, cátedra de Sociologia, também foi durante mais de dez anos professor no Institut des Hautes Études de l 'Amérique Latine. Seu regresso para a França significou, dizia ele, um terrível aumento de trabalho...

Chegou ao Brasil num momento em que a rápida urbanização do país, e principalmente de São Paulo, fazia nascer problemas variados e desenvolvia a olhos vistos outros já existentes; tal situação era propícia à realização de pesquisas de campo. Bastide, porém, não havia ainda efetuado investigações significativas desse tipo, como o demonstram os artigos que publicou de 1921 a 1937 na França; eram análises, reflexões, comentários sobre a produção dos intelectuais franceses, sociólogos ou não, e a vasta bibliografia de seus trabalhos mostra-o plenamente (Bey-Lier, 1977; Dauty, 1978 e 1985); como única exceção, a pesquisa efetuada sobre os migrantes armênios da cidade de Valence, na França (Bastide, 1931). Instalado em São Paulo, continuou a publicar intensamente em jornais e revistas brasileiros artigos e ensaios sobre a produção de autores nacionais; alguns artigos tiveram por base a observação direta de um sociólogo francês sobre a cidade em que viera viver e, como não podia deixar de ser, comparando-a saborosa e... sociologicamente com o que conhecia na França. O primeiro desses artigos data de 1940; mas, antes deste, havia já publicado no país dez outros... (1 1 A qualidade, a quantidade, a variedade dos livros, artigos e resenhas é verdadeiramente extraordinária, segundo mostram as bibliografías existentes: Beylier, 1977, especialmente para o Brasil; Dauty, 1978 e 1985; Trindade, 1985. ). Sua obra constitui, hoje, material inestimável para se conhecer a produção sociológica e antropológica nacionais, assim como o desenvolvimento das letras e das artes.

A contribuição que trouxe às Ciências Sociais brasileiras constituiu, primeiramente, o precioso elo que estabeleceu entre os sociólogos nacionais dos primeiros tempos, que vão desde 1870 a 1940 aproximadamente, e os que vieram em seguida à fundação da Universidade de São Paulo (2 2 Roger Bastide pertencia à geração dos autodidatas em Ciências Sociais da França, pois só a partir da década de 1950 teve esse país uma formação especial para tal área; anteriormente, a Sociologia era uma disciplina constante dos cursos de Filosofia e de Moral. No Brasil, a formação específica se inaugurou em 1933 com a Escola Livre de Sociologia e Política e, em 1934, com o Departamento de Ciências Sociais, da USP. ), passando pelo Departamento de Ciências Sociais ou pela Escola Livre de Sociologia e Política, fundada um ano antes. A contribuição de seus predecessores ao seu próprio trabalho, ele a reconheceu na homenagem que lhes rendeu na Introdução de seu extraordinário trabalho sobre as religiões negras no Brasil, mostrando o quanto aprendeu com elas (Bastide, 1960). Formou aqui uma primeira turma de cientistas sociais, cujas obras, voltadas para problemas os mais variados, revelam uma faceta muito importante do mestre: a liberdade que dava aos seus alunos.

A ação que desenvolveu foi além da Sociologia, da Antropologia Social, da Psicologia Social, disciplinas que se aninham sob o título de Ciências Sociais, estendendo-se à Psicanálise e à Psiquiatria, à Filosofia e à Moral, chegando à Literatura e às Artes, pois deu diferentes cursos sobre as relações entre a Sociologia e estes outros ramos do saber, alguns dos quais, ulteriormente, transformados em livros. Como naquela época os cursos eram anuais, costumava determinar aos alunos trabalhos de pesquisa para a nota de aproveitamento, o que os forçava a desenvolver temas, a colher materiais e analisá-los, a utilizar técnicas pouco conhecidas.

O vasto leque de seus conhecimentos teóricos operava uma expansão extraordinária de perspectivas para quem o ouvia, mostrando a multiplicidade dos pontos de vista e dos sistemas de pensamento dos diversos autores de variadas correntes e de muitos países: as diferenças entre a Sociologia de Durkheim e a de seu contemporâneo Gastn Richard, a ampliação trazida por Max Weber ao estudo das sociedades; as pesquisas de Radcliffe-Brown; Karl Mannheim e o início da Sociologia do Conhecimento; as contribuições da Antropologia Cultural Americana.

Sua influência se estendeu para fora da USP. Alunos de outras escolas e de outros estados freqüentavam suas aulas como ouvintes. Cooperação e prestígio ultrapassavam o círculo dos estudiosos das Ciências Sociais e se estendiam a disciplinas vizinhas. Deu cursos no Hospital Psiquiátrico do Juqueri; mostrou as convergências entre a Sociologia e a Psicanálise; deu importantes subsídios para o estudo das relações entre arte e sociedade. A respeito desta última contribuição, Antonio Cândido assim se expressa: "Roger Bastide se interessou a fundo pela nossa arte e pela nossa literatura, tornando-se um crítico militante e um estudioso que pesou de maneira notável na interpretação de fatos, idéias e obras". Com artigos, ensaios, resenhas, colaborava constantemente nos jornais, "registrando livros novos, comentando exposições, debatendo teorias... Sua visão sociológica concorria para a ampliação das interpretações, sendo um dos raros estudiosos "a usar com segurança e felicidade essa combinação difícil" da Sociologia e da crítica de Arte (Antonio Cândido, 1993:99 a 104).

Os alunos, os pesquisadores e também os assistentes de qualquer matéria eram considerados por ele, de maneira inteiramente natural, como especialistas em graus diferentes de formação, criando um clima tanto quanto possível igualitário, pois o respeito mútuo entre os indivíduos era para ele princípio fundamental que espontaneamente seguia.

Seu respeito pelas preferências do outro era manifesto, sendo muito visível na liberdade de escolha de temas que deixava aos orientandos, não exigindo planos preliminares muito detalhados nem programas precisos de emprego de tempo; mas exigia a apresentação regular de relatórios nutridos com a descrição dos dados colhidos e de seu encadeamento, dentro de uma perspectiva essencialmente sociológica. Também com estudantes e pesquisadores mantinha aquela "reciprocidade igualitária em suas relações" que, segundo Paul Arbousse-Bastide, era uma característica essencial sua (Arbousse Bastide, 1978:48).

Raramente discutia de forma direta com um orientando o trabalho empreendido por este e que lhe era entregue por escrito; lia o material com muito cuidado, efetuando por escrito as críticas nas margens do relatório ou em folha avulsa. A explicação dessa maneira de agir talvez estivesse ligada à surdez que o acometera a qual, a princípio, procurava esconder; porém, agravando-se o defeito, não poderia dissimulá-lo. E muito provável, ainda, que decorresse também de seu difícil manejo da língua nacional: não conseguiu aprender o português. Pouco a pouco, foi fabricando um idioma sui generis, mistura curiosa de francês, latim e provençal, em que surgiam aqui e ali palavras brasileiras. Quando regressou à França, e até o fim de sua vida, nas aulas e nas palestras surgiam subitamente termos nacionais afrancesados, deixando seus ouvintes perplexos; por exemplo. Não foi mais capaz de dizer les négrillons, dizia invariavelmente os prétinhes; não lhe ocorria mais o termo porte cochère, saía sempre os portons.... Era uma outra forma de mostrar o apego ao Brasil.

Henri Desroche, que conheceu Bastide quando de seu regresso à França, foi quem melhor definiu suas relações com estudantes e orientandos: "Sem o perceber, ia distribuindo dádivas aos que o rodeavam (...) Era exigente, severo, minucioso em excesso, mas, ao mesmo tempo, tão cheio de sugestões, tão diretamente comunicativo, tão dinamizante que, para o candidato, um exame efetuado por Roger Bastide era certamente uma provação, mas também continha um outro aspecto honroso e alegre, e saía sentindo-se tranqüilizado, reconfortado, estimulado (...) E muitas vezes (...) pude me dar conta do valor de sua contribuição, um valor a que se conjugavam a simplicidade, a pertinência, a sutileza..." (Desroche, 1978:73).

Desenvolveu relações de amizade com intelectuais dos mais diversos pontos do país, que o consultavam e sobre cujos livros publicou resenhas. Um estudo das cartas de estudantes e colegas brasileiros recebidas por Roger Bastide, antes e depois de seu retorno à França, revelaria a amplitude de sua influência sobre os pesquisadores nacionais e de variadas disciplinas. Aliás, o regresso à França não diminuiu seu grande interesse pelo povo e pelos problemas do Brasil; um lançar d'olhos para a abundante produção de livros e artigos a partir de 1954 — ano em que partiu definitivamente de regresso à pátria — comprovam plenamente esta asserção (Beylier, 1977; Dauty, 1985 e 1989).

Diante do valor de sua contribuição e da variedade da mesma, diante de tantos anos em que buscou ir cada vez mais a fundo na compreensão do Brasil, é comum a pergunta dos franceses: teria ele feito escola aqui? Para responder, há que se buscar o significado desta expressão. Segundo o Pequeno Dicionário Brasileiro, quer ela dizer sistema conjunto de adeptos de um mestre (Holanda Ferreira, 1960:486), isto é, significa reunir em torno de si adeptos que só admitem como valido o que afirma o mestre; ora, Bastide impossibilitava tal maneira de agir, tal o seu respeito pelo outro. De acordo com o Petit Larousse, significa ter muitos imitadores (Petit Larousse), 1962:348); mas a existência de copiadores era impossível, Bastide era inimitável.

Um grande amigo seu e guia nos diversos templos afro-brasileiros da Bahia, Pierre Verger, francês inteiramente abrasileirado, descreveu-lhe as qualidades fundamentais; Bastide era "antes de tudo um homem que sabia se pôr no lugar dos outros e compreender os pontos de vista deles. Tinha rara facilidade para raciocinar com os argumentos de seus interlocutores e ver as coisas com os olhos destes, fosse qual fosse a estranheza que ressentisse e, o que não prejudicava em nada as coisas, sabia se colocar na posição do outro de maneira fina e saborosa" (Verger, 1978:52). Não é de estranhar que, por onde tenha andado no Brasil, deixasse viva a sua imagem e, entre os pesquisadores que trabalharam sob sua direção, um profundo sentimento de saudade, essa mágua nostálgica banhada de afeição tão caracteristicamente brasileira...

Notas

Referências bibliográficas

ANTÔNIO CANDIDO. Recortes. S. Paulo, Companhia das Letras, 1933.

ARBOUSSE-BASTIDE, Paul. Mon ami Roger Bastide. S. Paulo, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, USP, n. 20,1978.

BASTIDE, Roger — Les arméniens de Valence. Paris, Revue Internationale de Sociologie, v. 39, n. 1-2,1931.

BEYLIER, Charles - L'Oeuvre Brésilienne de Roger Bastide Paris, Thèse de doctorat de 3e cycle, École dês Hautes Ètudes en Sciences Sociales, 1960 (xerox).

DAUTY, Denise. Roger Bastide, bibliographie, 1921-1974. Paris, Cahiers d'anthropologie, numéro spécial, 1978.

__________. Roger Bastide et le nouvel humanisme. Paris, thèse de doctorat de 3e cycle, Ècole des Hautes Ètudes en Sciences Sociales, 1985 (xerox).

DESROCHE, Henri. Roger Bastide. L'homme et son oeuvre. S. Paulo, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, USP, n. 20,1978.

HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque. Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. 10ª ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1960.

TRINDADE, Liana Mª Salvia. A produção intelectual de Roger Bastide. Análise documentária e indexação. S. Paulo, Centro de Estudos de Sociologia da Arte, USP, 1985 (xerox).

PETIT LAROUSSE - Paris, Librairie Larousse, 12ª ed., 1962

VERGER, Pierre. Roger Bastide. S. Paulo, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, SP, n. 20,1978.

Maria Isaura Pereira de Queiroz é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

  • 1
    A qualidade, a quantidade, a variedade dos livros, artigos e resenhas é verdadeiramente extraordinária, segundo mostram as bibliografías existentes: Beylier, 1977, especialmente para o Brasil; Dauty, 1978 e 1985; Trindade, 1985.
  • 2
    Roger Bastide pertencia à geração dos autodidatas em Ciências Sociais da França, pois só a partir da década de 1950 teve esse país uma formação especial para tal área; anteriormente, a Sociologia era uma disciplina constante dos cursos de Filosofia e de Moral. No Brasil, a formação específica se inaugurou em 1933 com a Escola Livre de Sociologia e Política e, em 1934, com o Departamento de Ciências Sociais, da USP.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Nov 2005
    • Data do Fascículo
      Dez 1994
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