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O cosmopolitismo de cócoras

BRASIL: DILEMAS E DESAFIOS II

O cosmopolitismo de cócoras

José Luís Fiori

"Lembro sempre a amargura, o desespero com que pusemos os olhos

rebrilhantes de orgulho naquele carro fatal, atulhado de caboclos, que

a mão de providência meteu em préstito por ocasião das festas do

Congresso Pan-Americano. Abríamos a nossa casa para convidados da

mais rara distinção e de todas as nações da América. Recebíamos até

norte-americanos!... No melhor da festa, como se tivessem caído do

céu ou subido do inferno eis os selvagens medonhos, de incultas cabeleiras

metidas até os ombros, metidos com gente bem penteada, estragando

a fidalguia das homenagens, desmoralizando-nos perante o

estrangeiro, destruindo com seu exotismo o nosso chiquismo."

A Semana, Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 30 mar. 1908

(cit. em Nicolau Sevecenko, Literatura como Missão).

O que é de Deus e o que é do homem

FOI COSTUME divergir sobre o futuro brasileiro, na década de 80, a partir de diagnósticos diferentes sobre a natureza da crise e a falta de rumo do Estado e da estratégia desenvolvimentista; e, na década de 90, a partir da discussão em torno de origem, natureza e objetivos dos ajustes e reformas implementadas pelos três governos eleitos no período. Era o tempo em que se debatia o alinhamento ou não do governo brasileiro com o Consenso de Washington e com as políticas de corte neoliberais. Na entrada do novo século, esta é uma discussão completamente ultrapassada. Depois do artigo-depoimento de Joseph Stiglitz - membro da assessoria econômica da presidência norte-americana, e ex-economista chefe do BIRD (publicado pela FSP, 15 abr. 2000) - sobre a crise financeira iniciada em 1997, ficou absolutamente clara a forma pela qual o Tesouro norte-americano e o FMI operam, urbe et orbi, as mesma políticas e reformas econômicas impostas aos países devedores ou que tenham passado por crises financeiras ou de balanço de pagamentos. Depois da assinatura, em 1999, do Acordo com o FMI que permitiu ao governo brasileiro enfrentar a crise terminal do Plano Real com um empréstimo internacional, ninguém mais discute se o país ainda tem uma política própria, nem tampouco, qual seja a natureza e os objetivos das decisões tomadas com vista ao cumprimento dos objetivos definidos pelo próprio Acordo. Os que ainda desconheciam agora já sabem como atuam juntos o Tesouro norte-americano e o FMI na tutela de países administrados ou não por pequenos burocratas locais ou representantes diretos dos organismos multilaterais.

De qualquer maneira, o importante é que se tenha claro que esta tutela não foi uma mera imposição externa: antes do Acordo de 1999, aceitá-la foi uma opção interna de nossas elites econômicas e políticas comandadas, hoje, por uma aliança bem-sucedida entre o que se poderia chamar de cosmopolitismo de cócoras de uma parte da intelectualidade paulista e carioca atrelada às altas finanças internacionais, e o localismo dos donos do sertão e da malandragem urbana brasileira. Aliança de poder que está levando até suas últimas conseqüências um projeto de inserção internacional e de transnacionalização radical de nossos centros de decisão e das estruturas econômicas brasileiras, com base num diagnóstico, que consideram realista, das tendências do capitalismo contemporâneo. Leis que seriam inapeláveis e incontornáveis para um país situado na periferia da nova ordem global. Realismo subalterno e economicismo vulgar, que permitiram reunir liberais e marxistas num novo bloco intelectual de poder, com profundas raízes na academia brasileira. Por isso, nesta nova década, o contraditório sobre o futuro do país passa, agora, por uma discussão desta leitura equivocada das transformações mundiais e de suas conseqüências mais prováveis sobre a economia e a sociedade brasileiras.

O 'novo Renascimento'

O tempo longo do universo em que o Brasil se constituiu como Estado-nação é o mesmo da modernidade capitalista européia e da expansão imperial dos seus Estados territoriais, mas seu futuro imediato, no contexto internacional, ocorrerá dentro de um tempo conjuntural que se inaugurou com o fim da Segunda Guerra Mundial, passando por um ponto de ruptura decisivo que começou no fim da década de 60. Entre 1968 e 1973, ocorreu um verdadeiro cluster de decisões e acontecimentos, cujas conseqüências mais duradouras acabaram mudando a face do sistema capitalista e as coordenadas em que se dará, neste novo século, a disputa entre povos, Estados e nações pelo poder e pela riqueza mundiais. É o momento em que se somam e se multiplicam a escalada dos conflitos sociais nos países centrais; a vitória de várias lutas de libertação nacional, na periferia da ordem americana; e a indisciplina dos capitais privados em fuga na direção do euromercado de dólares com o questionamento da política internacional norte-americana por parte de seus principais aliados europeus e asiáticos. Foram estes fatos e a resposta a seus desafios que estão na origem das mudanças responsáveis por esta segunda grande transformação da ordem capitalista que se cristalizou nos últimos 25 anos do século XX. De forma extremamente simplificada, elas podem ser agrupadas em sete campos ou dimensões fundamentais:

  • a primeira, de natureza geopolítica, passou pela crise e restauração da hegemonia mundial norte-americana com o fim da União Soviética e da Guerra Fria, e da atual reafirmação do Atlântico Norte como epicentro político-militar e econômico do mundo capitalista;

  • a segunda, ocorreu no campo político-ideológico e suas raízes remontam à crise de

    ingovernabilidade democrática, culminando com a restauração liberal-conservadora que se anunciava nos Estados Unidos, na administração Nixon, mas só foi completamente vitoriosa depois das vitórias eleitorais de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, na década de 80;

  • a terceira grande transformação se deu no campo econômico, também na produção mas sobretudo na área monetário-financeira na qual se concentra o núcleo duro do que veio a se chamar globalização. Suas origens também remontam aos anos 60 e ao início do processo de desregulação financeira que começou com a criação do euromercado de dólares e deu seu segundo passo com o fim do sistema de paridade cambial acordado em Bretton Woods. Sua expansão, contudo, só ocorreu nos anos 80, associada de forma íntima com as políticas iniciadas pelos governos anglo-saxões e que depois se universalizaram por obra da

    desregulação competitiva. Como produto final surgiu, nos anos 90, uma finança mundial privada e desregulada por cujas veias circula e se acumula uma riqueza rentista que já está na ordem de US$ 3 a 4 trilhões por dia;

  • a quarta grande mudança responde pelo nome de

    revolução tecnológica, cujas invenções e descobertas fundamentais ocorreram durante a Segunda Guerra Mundial, mas cuja utilização econômica só aconteceu a partir da crise econômica dos anos 70, provocando alterações produtivas e gerenciais que têm permitido aumentos de produtividade e lucratividade, sobretudo depois de 1990, às custas, em grande medida, de uma redução gigantesca dos postos de trabalho;

  • a quinta transformação vem ocorrendo no campo do trabalho ou do emprego, em que as políticas deflacionistas e as mudanças tecnológicas provocaram desaceleração dos investimentos e reestruturação produtiva que atingiu pesadamente o mundo do trabalho, do ponto de vista do número de empregos, de sua remuneração, da sua organização sindical e de seus direitos sociais e trabalhistas;

  • a sexta transformação ocorreu no espaço da periferia capitalista e representou uma mudança radical da estratégia seguida pelos seus principais Estados, desde a Segunda Guerra Mundial, com o objetivo de promover seu desenvolvimento econômico. Esta grande mudança de estratégia foi mais um dos resultados da crise econômica mundial que se alastrou, a partir dos países centrais, desde o fim do Sistema de Bretton Woods e atingiu as principais economias periféricas nos anos 80. De forma mais ou menos generalizada, estes países, depois de uma década, aparecem, no final dos anos 90, como um universo relativamente homogêneo do ponto de vista de suas políticas econômicas e de sua forma de inserção desregulada e subordinada às finanças privadas internacionais;

  • a sétima, refere-se à uniformidade alimentando a tese corrente de que esteja ocorrendo uma perda universal de soberania dos Estados nacionais. Na verdade, o número de Estados nacionais cresceu nestes últimos 25 anos, e o que alguns usam como argumento legitimador de sua abdicação do poder nacional foi um aumento da distância entre o poder e a riqueza dos Estados do

    núcleo central do sistema e os da sua periferia.

Quase todos os analistas estão hoje de acordo, com pequenas variações, que essas foram as principais transformações que, no último quarto de século, alteraram a geopolítica e a geoeconomia do mundo tal como foi organizado depois do fim da Segunda Guerra, sob a égide da competição interestatal entre os Estados Unidos e a União Soviética. As grandes divergências não estão neste ponto, mas na forma em que cada um interpreta o movimento mais geral, hierarquizando suas determinações e extraindo diferentes conseqüências propositivas.

De um lado, alinham-se os liberais e marxistas que subscrevem a interpretação hegemônica e privilegiam os aspectos econômicos desta segunda grande transformação do século XX. Para eles, trata-se de uma conseqüência necessária e inapelável das transformações tecnológicas que, somadas à expansão dos mercados, derrubaram as fronteiras territoriais e sucatearam os projetos econômicos nacionais, promovendo uma redução obrigatória e virtuosa da soberania dos Estados. A partir daí, a própria globalização econômica e a força dos mercados promoveriam uma homogeneização progressiva da riqueza e do desenvolvimento por meio do livre comércio e da completa liberdade de circulação dos capitais privados, o que acabaria conduzindo a humanidade na direção de um governo global, uma paz perpétua e uma democracia cosmopolita.

Sob o nosso ponto de vista, esta visão hegemônica tem um forte viés ideológico e no fundo reproduz, no que tem de essencial, a velha utopia liberal que desde o século XVIII vem anunciando e propondo, reiteradamente, esta hora final e apoteótica da economia capitalista: um mercado global desvencilhado dos problemas impostos pelos particularismos nacionais e protecionismos estatais. O problema é que tal utopia vem sendo reiteradamente negada pelos caminhos reais da história econômica e política do capitalismo, e parece cada vez mais distante do que vem ocorrendo, de fato, nestes últimos 25 anos de história. Para nós, o fenômeno da globalização econômica é inseparável das transformações políticas e ideológicas e das conseqüências sociais deste período. Ela não é uma imposição tecnológica, nem tampouco apenas um fenômeno puramente econômico, envolvendo novas formas de dominação social e política que resultaram de conflitos, estratégias e imposição vitoriosa de determinados interesses, tanto no plano internacional quanto no espaço interno dos Estados nacionais.

Nesse sentido, nossa visão da ruptura e das transformações que se desdobram a partir dos anos 70 corresponde a uma visão ou teoria mais ampla sobre a dinâmica do capitalismo histórico e sobre as suas permanências e regularidades que atravessam os pontos de ruptura mantendo-se vigentes, na expressão de Fernand Braudel, como "leis estruturais e de longo prazo do sistema". Estruturas e regularidades que incluem um movimento simultâneo e inter-relacionado de acumulação de poder e riqueza, alavancado a um só tempo pela competição interestatal e pelas relações de dominação entre os poderes dominantes e os grupos sociais e países subordinados. Desde a constituição do capitalismo, ao mesmo tempo como um sistema econômico global e nacional, e da constituição dos Estados territoriais, houve certas regras constantes de relacionamento entre os Estados e destes com seus capitais privados. Considera-se, normalmente, que o capital sempre teve vocação à globalidade, permanentemente contida pelos poderes territoriais ou pela mesquinharia dos Estados. Mas esta não é uma visão fiel quanto aos fatos e à história. Desde suas origens, os Estados territoriais e os capitais demonstraram a mesma vocação compulsiva e competitiva ao império e à globalidade. Foi assim tanto na primeira onda colonial européia - entre 1500 e a derrota francesa na disputa com a Inglaterra pelo domínio comercial da Índia, na metade do século XVIII - quanto na segunda grande onda colonial, uma vez mais inaugurada na Índia, na metade do século XIX.

Neste sentido, o nosso entendimento da grande transformação deste final de século não apenas supõe uma visão estrutural da modernidade capitalista diferente do economicismo, seja liberal ou marxista, mas tem uma visão igualmente distinta do ciclo ou conjuntura em que se inscrevem tais mudanças. Para nós, elas são produto de estratégias política e financeira explícitas impostas ao mundo, desde o início dos anos 80, a partir do seu eixo anglo-saxão, mas cujas raízes remontam, muito mais atrás, às lutas de interesse e às discussões que redesenharam o cenário mundial depois da Segunda Guerra Mundial.

A triste sina da modernização brasileira

O Brasil não ocupou uma posição relevante na geopolítica da Guerra Fria, mas durante todo o século XX manteve um alinhamento quase automático com a política internacional norte-americana, mantendo também, durante esse período, a posição de principal sócio econômico dos Estados Unidos na periferia sul-americana. Immanuell Wallerstein o classifica entre os países que pertenceriam à "semiperiferia" do sistema, zona econômica e política que, por suas dimensões e dinamismo ocupa, segundo ele, um papel decisivo na "despolarização" da ordem econômica e política internacional. Por isso, durante a Guerra Fria, mesmo sem ser incluído entre os países cujo "desenvolvimento a convite" foi fortemente apoiado pelo governo norte-americano, o Brasil transformou-se no laboratório de uma estratégia associada - pública e privada - de desenvolvimento que contemplava todos os segmentos do capitalismo central.

Graças a essa posição especial, foi menos sensível às flutuações econômicas e às mudanças de rumo estratégico no ciclo posterior à Segunda Guerra Mundial. No período desenvolvimentista, o Brasil foi um dos poucos países subdesenvolvidos que conseguiu percorrer quase todos os passos previstos para o processo de industrialização retardatária, registrando uma das mais elevadas taxas médias de crescimento mundial. Por outro lado, quando ocorreu sua reversão neoliberal tardia, iniciada no momento em que acaba a Guerra Fria, ela também seguiu em velocidade e radicalidade muito grandes: o Brasil acabou cumprindo em poucos anos uma agenda complexa que em outros países se arrastou por um período de tempo muito mais longo. A despeito da força e velocidade deste segundo movimento de liberalização, entretanto, seus resultados econômicos e sociais foram decepcionantes. De maneira tal que no fim do século XX, depois de 50 anos do clássico debate brasileiro entre Roberto Simonsen e Eugênio Gudin sobre a vocação econômica do Brasil, a disjuntiva que se recoloca parece ser, uma vez mais, entre desenvolvimentismo e liberalismo, o que nos obriga a relembrar alguns passos decisivos desta trajetória.

Logo depois da inflexão da política externa norte-americana, em 1947, e sobretudo depois da vitória da Revolução Chinesa e da Guerra da Coréia, o desenvolvimentismo transformou-se na resposta capitalista - tolerada pelos liberais - ao projeto socialista para os países subdesenvolvidos. Quase poder-se-ia dizer, parafraseando John Williamson algumas décadas depois, ter sido ali que se constituiu o primeiro Consenso de Washington - e ele era desenvolvimentista - apesar de a ideologia da estabilização do Fundo Monetário Internacional já ser inquestionável.

Se olharmos esta mesma inflexão a partir do Brasil, perceberemos que o desenvolvimentismo brasileiro também nasceu de forma pragmática e foi capaz de aglutinar quase todos os segmentos das classes dominantes e suas elites. Normalmente, e quase naturalmente, são os setores mais dinâmicos, ou aqueles representados pelos setores industriais de ponta, que são colocados sob à luz dos refletores dos estudos de sociólogos e politólogos. No caso brasileiro, essa elite concentrou-se em São Paulo em torno do complexo metal mecânico que então surgia, tendo à frente a indústria automobilística. Essa era a fração mais moderna do capitalismo brasileiro e nasceu associada ao capital multinacional. Entretanto, outras frações não menos importantes, mas talvez menos modernas do ponto de vista econômico e político, também encontraram o seu espaço dentro da coalizão desenvolvimentista.

De fato, naquele período, o desenvolvimento não foi só intensivo e concentrado em certos setores e espaços geográficos. Pelo contrário, veio acompanhado da expansão permanente das fronteiras agrícola e urbana, o que permitiu amplas possibilidades de ganhos patrimoniais. O próprio sistema de intermediação financeira, que acompanhou o crescimento da economia real, manteve-se nas mão do capital nacional. Por outro lado, foi esse mesmo dinamismo e a permanente mobilidade da fronteira de ocupação capitalista do país que deu ao modelo uma enorme capacidade de amortecimento das tensões presentes num processo que foi, ao mesmo tempo, desigual e excludente.

A extensão da presença do Estado nessa estratégia de desenvolvimento criou a falsa idéia de um Estado forte ou prussiano que nunca existiu no Brasil. Na verdade, o que ocorreu foi o oposto: o Estado foi forte toda vez que se enfrentou com os interesses populares, mas foi sempre frágil quando teve de enfrentar e arbitrar os interesses heterogêneos do pacto em que se sustentou até a década de 80, particularmente quando se tratava de interesses internacionais. Enquanto as condições externas foram favoráveis e todos os setores puderam ganhar fugindo para frente, conseguiu-se uma aliança sólida e permanente dos interesses particulares das regiões e dos grupos econômicos. No entanto, à medida que ficava evidente essa fase de ouro do capitalismo mundial e, por conseqüência, as condições para o nosso crescimento estarem se alterando drasticamente, as fraturas no bloco dominante ficaram cada vez mais visíveis. O mesmo se constatou em outros países da América Latina onde, paulatinamente, com pequenas defasagens a partir de 1973, foi sendo revertida a hegemonia do pensamento desenvolvimentista do pós-guerra.

O golpe de misericórdia, entretanto, veio com o choque externo devido ao aumento das taxas de juros internacionais e do preço do petróleo, junto com a queda dos preços das commodities e a nossa exclusão do mercado financeiro internacional, após a moratória do México. Foram esses choques que provocaram um efeito em cadeia sobre o câmbio, a inflação, o endividamento interno, o crescimento econômico e, finalmente, a falência estatal. A causa principal da crise foi o corte do acesso ao financiamento externo, decisivo para uma economia como a brasileira que já era, desde os anos 60, altamente internacionalizada e globalizada.

Obviamente, o marco mais importante para a reversão total desse quadro foi o lançamento do Plano Real de estabilização monetária, em 1994. Mas o fato decisivo para o sucesso do programa de estabilização posterior foi o retorno do país ao mercado internacional de capitais, a partir de 1991, viabilizado por renegociação da dívida e liberalização no controle dos fluxos de capital externo. Foi assim que o Brasil chegou à segunda metade dos anos 90 sob a égide de um pensamento e uma política de corte neoliberal, cuja aposta fundamental era no acesso a mais um ciclo de inserção financeira internacional e crescimento acelerado.

Hoje sabemos que dessa vez a velha história não se repetiu e várias diferenças podem ser reunidas para tentar entender esse momento, bem como as possibilidades que nos esperam no futuro próximo. Passada uma década, generaliza-se a convicção de que o recente ciclo de integração econômico-financeira das elites cosmopolitas parece ter destruído, quase integralmente, a idéia de um desenvolvimento mais autônomo ou nacional.

A inviabilidade deste projeto de nossas elites internacionalizantes - que chamamos de dominium - é que coloca o Brasil frente a um impasse extremamente grave. Suas contradições e inconsistências internas não nos dão a menor esperança de alcançar taxas de crescimento econômico socialmente inclusivas, que poderiam devolver aos nosso governantes a capacidade de governar e, talvez, a legitimidade que perderam frente aos seus cidadãos. Na verdade, o Brasil também acabou prisioneiro da vitória liberal-conservadora do final da década de 70, e subscreveu a estratégia dos países centrais que transformaram a estabilidade monetária no objetivo prioritário dos seus governos e fizeram do monetarismo e do liberalismo a religião oficial da sua política econômica. Desde os anos 90, essas políticas monetárias restritivas, ancoradas no câmbio sobrevalorizado, obtiveram relativo sucesso no combate à inflação mas desencadearam ao mesmo tempo uma alta das taxas de juros que se transformou em peça essencial da acumulação rentista da riqueza privada e obstáculo intransponível ao seu crescimento. O problema é que estas mesmas taxas, permanentemente elevadas, além de induzirem à desaceleração do crescimento econômico, também provocaram, de maneira simultânea, desequilíbrio progressivo das contas públicas internas. Como as taxas de juros passaram a ser sistematicamente superiores às taxas de inflação e de crescimento, transformaram-se em fonte de expansão contínua dos desequilíbrios macroeconômicos que aprisionam e paralisam as políticas públicas.

Foi para sair desse impasse que as autoridades brasileiras recorreram, nestes últimos anos, ao endividamento e apostaram no investimento externo abundante gerando um efeito bola de neve que expande os déficits e as dívidas, e pode chegar a ter um custo insustentável para gerar as divisas indispensáveis para pagar as contas. Uma situação, portanto, em que há excesso de liquidez mas não há solvência, porque o modelo além de não crescer, tampouco consegue aumentar suas exportações. Por isso, a alta das taxas de juros, independentemente de objetivos deflacionários, continua obedecendo à lógica de atrair capitais externos. Já faz tempo que ela se transformou em peça essencial do novo modo de acumulação da riqueza privada e do novo regime caracterizado por ciclos curtos de baixo crescimento, seguido de recessões periódicas. O que se pode prever é o aumento contínuo desses desequilíbrios, sobretudo quando se tem claro que as altas taxas de juros têm sido acompanhadas do aumento da dívida financeira responsável por uma insuficiência fiscal crônica, independentemente do tamanho da receita ou dos superávits primários que possam ser logrados conjunturalmente. Neste quadro, a perspectiva é de que os déficits cresçam na forma de uma bola de neve modificando continuamente a divisão da renda em favor dos rendimentos financeiros, e estrangulando os governos que aceitam e promovem sucessivos e inúteis ajustes orçamentários provocando uma crescente ingovernabilidade dos Estados e de suas instâncias subnacionais de poder.

O cosmopolitismo e a nação

Em síntese, na entrada do novo milênio, o Brasil não é um país sem rumo. Pelo contrário, segue uma rota cada vez mais transparente, comandado por uma aliança política extensa e heterogênea arbitrada não mais pelos militares, mas - como já mencionamos - por um grupo de intelectuais e tecnocratas absolutamente alérgicos à palavra nação. Alguns liberais, outros marxistas, mas todos sentindo-se e comportando-se como sacerdotes de uma modernidade liberal e cosmopolita. Não se trata de um fenômeno completamente novo. Pelo menos desde o Iluminismo francês e o Idealismo alemão a intelectualidade tem cumprido um papel decisivo na orientação ou condução das elites e da opinião publica dos Estados nacionais. Desde então, o Norte da Europa tranformou-se no epicentro dinâmico do sistema capitalista e centro difusor do modelo de organização e funcionamento do Estado-nacional moderno. O principal sustentáculo do liberal-cosmopolitismo e parâmetro de referência para a definição do que fosse a modernidade.

Mas já naquela primeira hora do confronto intelectual, Hegel e List argumentaram, de forma conclusiva, que o cosmopolitismo da filosofia iluminista dos "direitos naturais" e da economia política do "livre-cambismo" serviam perfeitamente aos interesses das nações e economias mais poderosas, mas eram incapazes de dar conta das condições e dos objetivos das nações européias mais atrasadas. Foi aí que começou a separação dentro intelectualidade dividida entre os que se espelhavam na modernidade francesa ou inglesa que se transformou no parâmetro da alta cultura e no relógio da vida econômica e política, e os que puseram seu pensamento a serviço da formação das nacionalidades e da organização dos Estados e das economias na semiperiferia européia do sistema capitalista. Desde então transformou-se num dado de realidade a tensão permanente que dividiu essa intelectualidade, e progressivamente o resto de todo o sistema, entre o seu cosmopolitismo e o seu localismo, entre sua vida urbana e sua mitificação da vida rural, entre suas preocupações sociais e econômicas universalistas e suas lealdades nacionais.

Também no Brasil, a sua intelectualidade pesquisou e discutiu, pelo menos desde a segunda metade do século XIX, como transformar a identidade nacional brasileira em fundamento de um projeto de modernização econômica e social. Mas foi sobretudo nas décadas de 10 e 20, com o pensamento conservador e o modernismo, que a intelectualidade brasileira se propôs a tarefa de construir uma comunidade imaginária em que pudesse sustentar seus projetos de organização nacional, ou de revolução democrático-burguesa, ou simplesmente de constituição de uma nação cidadã. O que os intelectuais tinham em comum era a preocupação central com o atraso brasileiro e a necessidade de construção de uma nação, às vezes definida na forma contratual francesa ou norte-americana, às vezes numa perspectiva mais próxima da Kulturnation alemã. É conhecida a história da relação de muitos intelectuais com a Revolução de 30 e o Estado Novo e, mais tarde, com a formulação do único projeto político e econômico na história brasileira, que - independentemente de desvios - se quis nacional, democrático e popular, e que abortou em 1964, transformando-se no principal espantalho dos novos liberais das décadas de 80 e 90.

De uma forma ou de outra, durante todo este tempo permaneceu vivo ainda que minoritário o pensamento liberal-internacionalizante ou cosmopolita, quase sempre preso às fórmulas mais elementares de liberalismo econômico. Neste campo, a grande novidade da história recente foi a convergência ocorrida entre uma ampla vertente marxista da intelectualidade paulista com os defensores do liberalismo defendido classicamente pelo estado de São Paulo e pela oligarquia paulista. Daí nasceu um novo e poderoso bloco intelectual e político que se propôs levar a frente - e com sucesso até aqui - o velho projeto da oligarquia paulista, de modernização liberal da vida econômica e social brasileira. A convergência entre as novas condições e os interesses financeiros internacionais da década de 90, somada à bem-sucedida renegociação da dívida externa brasileira, nos termos do Consenso de Washington, e a existência desta aliança de poder liderada pela novo bloco intelectual, criou uma condição única de aproveitamento de mais um ciclo de liquidez internacional, só que agora, ao contrário do que ocorrera desde 1930, para implementar a transacionalização radical da economia, em vez de uma tradicional fuga para frente de tipo desenvolvimentista.

Seis anos depois o país, perplexo, percebe que não tem mais governo, porque o governo não tem mais projeto algum para o país. Tinha, fez as reformas e privatizações requeridas, e hoje se transformou numa agência de gerenciamento macroeconômico do Acordo Internacional que o salvou da falência na crise final do Plano Real e definiu, por vários anos, o que serão os objetivos e as prioridades da nação brasileira. Já era assim desde antes, mas depois deste Acordo, nossos intelectuais cosmopolitas transformaram todo seu trabalho como governo, numa espécie de permanente redação escrita ou oral de boletins de auto-ajuda macroeconômica. E estão completamente convencidos de que o povo brasileiro se satisfaz com a leitura diária e monótona dos movimentos das bolsas e dos números que ora anunciam a expectativa de um futuro promissor, ora descrevem o avanço milimétrico e irrelevante das variáveis econômicas que se transformaram na sua idéia de nação.

Citamos, no início deste artigo, que as políticas do Tesouro norte-americano/Fundo Monetário Internacional não poderiam avançar se não tivessem encontrado receptividade nacional. E o cosmopolitismo liberal de nossos intelectuais não teria viabilidade se não tivesse sido apoiado decididamente por nossas burguesias locais, interessadas apenas na valorização patrimonial e dolarização da sua riqueza. O que esses intelectuais nunca perceberam é que seu cosmopolitismo, quando praticado num país periférico, como o Brasil, com uma distribuição prévia extremamente perversa da riqueza e da renda, é um cosmopolitismo de cócoras e só poderia ter como resultado a desintegração definitiva de qualquer idéia de nação, seja ela de tipo francesa, norte-americana ou alemã. Aos olhos destes homens, fechados nas suas cápsulas e envoltos em relatórios de auto-estímulo, tudo o que os contradiga será sempre sinônimo de populismo ou insurreição, o que desqualifica preliminarmente qualquer conflito social e, assim, dissolve a própria essência da vida política e da democracia.

Não é sem razão, portanto, que toda vez que algum deles sai de suas abóbadas é possuído - invariavelmente - do mesmo sentimento de náusea de algumas elites brasileiras que, ao se encontrarem com seu povo, sempre tiveram a impressão de estar se encontrado com "selvagens medonhos e com incultas cabeleiras metidas até os ombros". Selvagens e com comportamento "muito pouco civilizado" (FHC, JB, 21 abr. 2000).

José Luís Fiori é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo e professor titular de Economia Política Internacional na UFRJ e na UERJ.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2005
  • Data do Fascículo
    Ago 2000
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