Open-access Por que filosofia no segundo grau

ARTIGOS

Por que filosofia no segundo grau

Franklin Leopoldo e Silva

RESUMO

Este texto examina a pertinência do ensino de Filosofia no Segundo Grau sob dois aspectos. O primeiro deles é a visão da Filosofia como ocasião de discussão interdisciplinar a partir da vivência do aluno nas disciplinas das outras áreas curriculares. O segundo aspecto diz respeito à posição cultural do saber filosófico enquanto núcleo histórico das Humanidades. Destes dois aspectos, que devem estar sempre conjugados, deriva a característica formadora da Filosofia no que diz respeito aos aspectos éticos, sociais, políticos e profissionais da cidadania.

ABSTRACT

This paper examine how the teaching of Philosophy in the last years of Hight School may contribute to an interdisciplinary connection founded in a student life, and how the cultural position of Philosophy as a centre of Humanities conducts the teaching to a relevant function of citizen formation seeing under etics, social, politics and professional views.

A pergunta pelas razoes que militam a favor da inserção de Filosofia no currículo de Segundo Grau seria ociosa se não evocasse uma outra, mais geral porém estreitamente relacionada com os estudos filosóficos no grau médio de ensino: é a questão da coordenação curricular intra e interdisciplinar à qual se acrescenta naturalmente o problema das relações entre currículo e formação.

Quando falamos em coordenação intradisciplinar, referimo-nos ao fato de que as disciplinas ministradas no Segundo Grau, bem como as das quatro últimas séries do Primeiro Grau, podem ser, cada uma delas, divididas em dois percursos paralelos de aprendizagem: um diz respeito ao conteúdo, o conjunto de informações articuladas que se passa ao aluno; outro refere-se aos requisitos e procedimentos cognitivos necessários ao trabalho em cada disciplina. Normalmente, na prática do ensino, não há condições para se fazer uma distinção nítida entre as duas coisas, mas qualquer avaliação do rendimento escolar, e principalmente das dificuldades enfrentadas cotidianamente pelos professores, nos leva a ver aí a origem de muitas das dificuldades no plano da inter-relação entre a transmissão do conteúdo do ensino e as condições cognitivas de assimilação e compreensão da informação. No tratamento desta questão, deparamo-nos com duas dificuldades:

1) A formação continuada em nível de Primeiro Grau faz com que o aluno receba, em níveis crescentes de generalização teórica e particularização disciplinar, conjuntos articulados de informações básicas que são planejados para atenderem, de forma diferenciada, a necessidades presumivelmente próprias de cada estágio de formação, levando-se em conta condições gerais de cunho cognitivo correspondentes a diversas faixas etárias e diferentes fases de desenvolvimento. Apesar de serem levadas em conta, no planejamento do desenvolvimento escolar, condições gerais de apreensão cognitiva em termos de padrões médios, não há, evidentemente, uma preocupação maior com os requisitos cognitivos adequados ao trabalho de processamento compreensivo dos tipos específicos de informação correspondentes aos conjuntos de disciplinas de conteúdo diferenciado e de gêneros epistemológicos diversos. Considera-se, com razão, que, sobretudo nas séries iniciais do Primeiro Grau, não existem condições para um desenvolvimento adequado de um processo a que poderíamos chamar aprender a aprender paralelamente ao aprendizado regular dos conteúdos disciplinares. Há quem julgue que parte das falhas do processo educacional reside aí. Por não vivenciar conscientemente o processo cognitivo, o aluno, ao aprender, não se reconhece no processo: quase se poderia dizer que, ao adquirir saber, não sabe o que está fazendo. E as conseqüências disto são conhecidas: aprendizado entendido exclusivamente como memorização, repetição mecânica de habilidades adquiridas, etc.

2) Quando o aluno chega ao Segundo Grau, ele em geral está numa faixa etária em que se colocam de forma crítica questões relacionadas à formação, isto porque o aluno, em geral, se encontra num estágio de tomada de consciência de si próprio como indivíduo. No plano da escola, esta fase crítica pode ser vivida ou de maneira a prolongar as regras básicas do aprendizado tal como se deu no Primeiro Grau, ou na forma de um questionamento difuso dos fundamentos dos procedimentos de ensino, sem que se consiga explicitar o questionamento ou mesmo enunciar com clareza mínima aquilo que é ou seria objeto de crítica. No primeiro caso, corre-se o risco de uma alienação do aluno em relação ao seu próprio processo formativo. No segundo, poderemos ter uma indesejável mescla de inconformismo pedagógico e resistência psicológica que entrava o rendimento escolar. É importante salientar que, em geral na faixa etária correspondente às séries do Segundo Grau, o aluno está construindo seus pontos de referência, que lhe permitem progredir no processo de reconhecimento de si mesmo como pessoa. É evidente que a escola não pode ignorar este processo e as situações por ele geradas. Dentre elas, é de se ressaltar a busca de articulação do indivíduo com seu contexto social, em termos dos grupamentos que lhe são próximos e em termos da sociedade em geral. Nesta tentativa de situar-se é que se constrói a personalidade ou pelo menos se afirmam alguns de seus aspectos básicos. É evidente que a escola, considerada como grupo social próximo e encarada como subsistema político-social, será, de uma maneira ou de outra, referência prioritária na busca dos vários porquês, isto é, será alvo de um questionamento nem sempre explícito e articulado, mas sempre presente de variadas formas. O processo de emancipação é por essência interrogativo e questionante. Tais atitudes se refletirão na vivência escolar e a motivação mais direta será o ensino no seu conteúdo e na sua forma. Assim, após oito anos de desempenho de um papel de quase inteira passividade na relação educativa, o aluno desperta de uma forma algo atabalhoada para a pergunta pelas razões dos conteúdos e das formas do ensino. Claro que isto não se dá de forma sistemática e consciente. Expressa-se mais em recusas de certas disciplinas, de certos métodos, na elaboração confusa de uma ordem de prioridades entre as disciplinas e mesmo em antipatias e simpatias não justificadas. No entanto, a causa embrionária de tudo isto (causa que muitas vezes permanecerá embrionária e morrerá no nascedouro) é uma inquietação que traz em si um potencial crítico. Há situações em que este potencial crítico é como que apanhado e eventualmente desenvolvido na direção de uma reflexão mais aprofundada acerca de certos aspectos dos conteúdos curriculares — e isto evidentemente varia de acordo com situações particulares e até mesmo individuais em termos de professores e alunos. Em geral, o caráter obrigatoriamente formal do ensino sufoca involuntariamente este potencial. Por outro lado, tentativas espontaneístas e não fundamentadas de fugir ao caráter formal provocam atitudes pedagogicamente inadequadas e prejudicam o aferimento sistemático da aprendizagem.

A Filosofia se insere numa situação educacional caracterizada, pois, pela ausência de articulação curricular, seja do ponto de vista intradisciplinar, seja da perspectiva interdisciplinar, fatores a que se acrescenta, pelos motivos expostos, também a ausência de articulação entre currículo e formação. O que se entende, aqui, por ausência de ligação entre currículo e formação pode ser ilustrado pela confusão freqüente — e não só no nível do ensino médio, mas também no ensino universitário — entre treinamento e formação. O treinamento pode ser caracterizado de forma geral pela aquisição de determinadas habilidades através do exercício repetido de procedimentos padronizados, tendendo para a automatização de mecanismo seqüencial. A memorização de regras e esquemas divorciados de sua gênese e fundamento faz parte de um treinamento strictu sensu. Assim também a aplicação de procedimentos analíticos e o estabelecimento de modos de reconhecimento categorial, etc. A formação se caracteriza pelo adequado entrelaçamento da aquisição de habilidades técnicas de elaboração e identificação, de um lado, e o reconhecimento da gênese e fundamento dos procedimentos aplicados. Neste sentido, todo e qualquer processo de conhecimento inclui algo de arqueológico no sentido lógico e/ou no sentido histórico: a compreensão do como, do porquê e do a partir de que. Objetiva-se com isto fazer com que a transmissão do conhecimento aproxime-se o mais possível de uma reprodução do percurso da descoberta, do conhecer no sentido dinâmico.

Ora, não é difícil constatar que poderíamos, a partir daqui, dizer pura e simplesmente que a Filosofia no Segundo Grau aparece com o escopo de concretizar a ligação entre o currículo e a formação, de estabelecer os liames intradisciplinares entre conteúdo e processo cognitivo e de proporcionar os meios para a articulação entre a experiência de aprender e a experiência de viver, fazendo com que o ato educativo se transforme em participação e em construção de uma relação equilibrada entre a escola, o indivíduo e a sociedade, ilustrando primeiramente tais relações através do fornecimento de instrumentos para que o aluno reconheça ou construa a articulação interna ao seu aprendizado e deste com a sua vida concreta e o conjunto das suas perspectivas. Mesmo que admitíssemos ser este o papel da Filosofia, mesmo que lhe conferíssemos este papel tão árduo e difícil quanto necessário, ainda assim, no entanto, com dose mínima de realismo, teríamos também que reconhecer as dificuldades praticamente insuperáveis que se colocam efetivamente e que fazem com que o ensino da Filosofia esteja hoje cercado por obstáculos e por riscos. O principal obstáculo é o estado de coisas configurado na herança do Primeiro Grau. Isto não significa apenas que se queira mais uma vez atirar a culpa das dificuldades do ensino nos estágios antecedentes do sistema educacional como forma de justificar as deficiências dos estágios subseqüentes. E forçoso reconhecer, a partir do que expusemos no início, que o conjunto de hábitos intelectuais e a soma de procedimentos que o sistema encoraja explícita ou implicitamente não perfazem o mínimo de condições para que o aluno ingresse no universo da cultura. Sabemos que, na faixa etária que em geral corresponde ao Segundo Grau, opera-se uma mudança qualitativa nas expectativas do indivíduo e isto se deve em parte à situação configurada no limiar da inserção social, no momento em que o, indivíduo está entrando no mercado de trabalho, preparando-se para isto ou projetando a futura formação profissional no nível universitário. A especialização crescente que caracteriza a divisão de trabalho nas sociedades modernas faz com que, de certa forma, a oferta profissional atue retrospectivamente de forma negativa sobre a formação do aluno no Segundo Grau propedêutico. O contexto social encoraja o aluno a menosprezar a formação global em nível propedêutico, pois se costuma conjugar a excelência profissional com a especialização exacerbada. O aluno é levado a ver na multiplicidade curricular um fator de dispersão e de perda de tempo, valorizando uma perspectiva mais unilateral e especializada. Acrescente-se a isto que, em geral, não existe, no nível de Segundo Grau, e por razões que todos conhecemos bem, uma integração curricular que demonstre ao aluno a necessidade da diversificação e o fato de não existir obrigatoriamente uma contradição entre diversificação curricular e formação unitária. Em parte, isto decorre ou de um divórcio entre a sociedade e a escola ou de uma relação distorcida entre as duas instâncias. No primeiro caso, temos um alheamento completo da escola em relação às necessidades sociais, o que faz com que a formação escolar seja, em sua maior parte, um ritual que se cumpre para obter requisitos formais de ingresso no mercado de trabalho, mas que não contribui em nada para uma inserção adequada do indivíduo no contexto sócio-profissional. No segundo caso, temos o estabelecimento de uma relação direta, guiada por critérios utilitaristas e imediatistas, entre escola e sociedade. A partir da constatação de que a escola existe para atender necessidades sociais (preparar o indivíduo para a sociedade), supõe-se que a escola só estará cumprindo seu papel se for uma instância de adestramento para as várias funções que o indivíduo poderá desempenhar concretamente. Foi esta a perspectiva dos cursos profissionalizantes do Segundo Grau e é esta a perspectiva que pode existir no curso propedêutico quando seus objetivos se voltam para o adestramento para o Vestibular, numa concorrência equivocada com os cursinhos. A mudança qualitativa das expectativas dos alunos que ingressam no Segundo Grau deve servir de base para tentativas de um melhor relacionamento entre currículo e formação e é neste nível que a Filosofia pode desempenhar um papel relevante (1).

A especialização exacerbada, característica de nossa época, apesar de toda a carga negativa que carrega em termos de formação, pode ser vista de uma perspectiva um pouco mais favorável, se considerarmos que a unilateralidade solicitada pela competitividade profissional deveria, pelo menos, ser compensada por uma interdependência entre os vários aspectos daquilo que seria, ainda que idealmente, a formação integral. Na verdade, isto ocorre em certa medida, posto que o equacionamento de questões dotadas de algum grau de complexidade exige a colaboração de várias áreas do saber. Isto ocorre em nível de planejamento governamental e em nível de gestão empresarial, por exemplo. E claro que os objetivos finais do planejamento e da gestão determinam a importância relativa das áreas chamadas a colaborar, fazendo com que as finalidades ditem de maneira definitiva aquilo que é principal e aquilo que é subsidiário, fazendo com que a colaboração que algumas disciplinas possam dar possua valor apenas instrumental. Ainda assim, podemos entender este limiar mínimo e extremamente insatisfatório de integração como um sintoma da insuficiência do adestramento unilateral e, em conseqüência, como um reconhecimento implícito da inadequação da especialização precoce.

A adequada relação entre currículo e formação deveria se traduzir na constituição de uma base cultural para compreensão do significado do processo educativo enquanto parte integrante da dinâmica de socialização. A relação mediata entre escola e sociedade, a consciência que educandos e educadores devem ter destas mediações é condição para a aquisição de instrumentos básicos para vivenciar um processo crítico de socialização, principalmente para uma inserção autêntica no mundo do trabalho. A pluralidade curricular só pode ser adequadamente compreendida com a introdução da problemática do valor do conhecimento e das condições de recepção e elaboração de valores éticos.

Ora, a problemática do valor do conhecimento se explicita na conjugação do aprendizado dos conteúdos com a avaliação dos processos cognitivos, uma vez que se supõe que, ao contrário do que ocorria na fase anterior do processo educativo, o aluno agora tem condições de acompanhar processos intelectuais de abstração que lhe permitem aprofundar descritiva e significativamente os procedimentos cognitivos supostos nas diversas ciências cujos conteúdos vem apreendendo. Existe, na verdade, algo como uma base factual formada pelos conteúdos curriculares que o aluno, via de regra, não inter-relaciona. A partir daí, trata-se de construir uma base cultural que permita ao aluno relacionar os diferentes conteúdos, aproximando-se daquilo que seria em geral a experiência da cultura. Ao mesmo tempo, a diversidade presente no núcleo humanístico do currículo deve permitir relacionar a experiência da cultura com a construção e avaliação do universo ético e político.

Há, portanto, pelo menos três condições para o estabelecimento disto a que chamamos base cultural:

1) adestramento de raciocínio na prática do aprendizado das ciências exatas;

2) conhecimento da diversificação histórico-cultural e da variabilidade de critérios fundamentadores da esfera ético-política, através da familiaridade com os conteúdos do núcleo humanístico;

3) relativa ampliação do imaginário e domínio da linguagem através dos conteúdos de língua e literatura.

Estas três condições são necessárias para a articulação do conhecimento e para a articulação entre a história e a experiência vivida: a base cultural é, portanto, a possibilidade concreta de articulação da cultura, no nível em que seus produtos se apresentam no estágio da formação educativa correspondente ao Segundo Grau.

A Filosofia aparece, então, ao menos primeiramente, como ocasião, lugar e instrumento de articulação. Isto, aparentemente, traz um problema que é importante discutir. Teria a Filosofia, a partir do que expusemos, um caráter meramente instrumental? Faz sentido a questão, na medida em que o caráter da Filosofia é em si mesmo objeto de discussão, sobretudo quando se torna mais extensiva, nos EUA e em alguns países da Europa, a função consultiva da Filosofia, uma espécie de aconselhamento filosófico relativamente a questões de ética e assuntos conexos. No que diz respeito à Filosofia enquanto disciplina ministrada no Segundo Grau, entendemos que ela tem um acervo próprio de questões, uma história que a destaca suficientemente das outras produções culturais, métodos peculiares de investigação e conceitos sedimentados historicamente. O fato de constituir-se a história da Filosofia num percurso sem progresso não afeta em nada o peso cultural dos sistemas que se sucederam e que coexistem como diferentes formações teóricas sem que se configure qualquer superação. Existe, portanto, um lado pelo qual a Filosofia ocupa na estrutura curricular uma posição análoga a qualquer outra disciplina: há o que aprender, há o que memorizar, há técnicas a serem dominadas, há, sobretudo, uma terminologia específica a ser devidamente assimilada. Não devemos nos iludir com o adágio "não se aprende filosofia", algo que pode levar a um comodismo ou a uma descaracterização da disciplina. Ó que a Filosofia tem de diferente das outras disciplinas é que o ato de ensiná-la se confunde com a transmissão do estilo reflexivo, e o ensino da Filosofia somente logrará algum êxito na medida em que tal estilo for efetivamente transmitido. No entanto, isto ocorre de forma concomitante à assimilação dos conteúdos específicos, da carga de informação que pode ser transmitida de variadas formas. O estilo reflexivo não pode ser ensinado formal e diretamente, mas pode ser suficientemente ilustrado quando o professor e os alunos refazem o percurso da interrogação filosófica e identificam a maneira peculiar pela qual a Filosofia constrói suas questões e suas respostas.

Ora, é desta maneira específica que a Filosofia realiza o trabalho de articulação cultural. Pensar e repensar a cultura não se cunfunde com compatibilização de métodos e sistematização de resultados; é uma atividade autônoma e de índole crítica. Não devemos, portanto, entender que a Filosofia estará no currículo do Segundo Grau em função das outras disciplinas, quase num papel de assessoria metodológica. No entanto, seria grave infidelidade ao espírito filosófico entender que a Filosofia virá se agregar ao currículo apenas para tornar-se mais uma parte de um todo desconexo, ou pelo menos com profundos problemas de integração e conexão. Neste sentido, não representa pretensão dizer que a Filosofia não é apenas mais uma disciplina; ao dize-lo, estaremos apenas reafirmando a natureza do estudo filosófico. A Filosofia tem uma função de articulação cultural e, ao desempenhá-la, realiza também a articulação do indivíduo enquanto personagem social, se entendermos que o autêntico processo de socialização requer a consciência e o reconhecimento da identidade social e uma compreensão crítica da relação homem-mundo. No contexto curricular, a Filosofia mantém com as demais disciplinas um contato que deve traduzir-se concretamente numa aproximação do caráter geral da experiência de conhecimento. Isto é feito, de um lado, pensando as questões atinentes à fundamentação metodológica e, de outro, pela remissão às origens históricas da experiência teórica. Neste último sentido, a Filosofia presentifica a tradição esclarecendo o significado do progresso do conhecimento e das relações entre civilização e progresso técnico, para além da perspectiva sociológica do progresso de hominização. A fundamentação metodológica cumpre a função da articulação intradisciplinar que mencionamos no início, auxiliando o indivíduo a reconhecer-se na experiência do conhecer, isto é, despertando-o para a problemática da relação cognitiva. A presentificação da tradição tem a função de mostrar que o domínio racional é a um tempo dinâmico e permanente e que o conhecimento não é episódico e descontínuo, assim como a ação não é a justaposição de respostas instantâneas às solicitações da praxis.

Àqueles a quem tais considerações pareçam um tanto abstratas, responderíamos alertando para o fato de que na faixa etária que em geral corresponde ao Segundo Grau o indivíduo vive uma fase de afirmação pessoal que redundará na consolidação da personalidade. É uma fase de busca da identidade e por isto de grande riqueza existencial, que a escola não pode ignorar. Mas aquilo a que devemos atentar, principalmente, é o fato de que o conjunto de circunstâncias que cercam esta fase educacional faz com que ela seja a preparação imediata para o exercício da cidadania. Devemos considerar o caráter real da sociedade em que se dará este exercício, para que a escola possa cumprir com autenticidade a sua parte nesta tarefa de preparação. No que diz mais diretamente respeito à escolaridade formal, o aspecto que interessa ressaltar aqui é a relação entre a pluralidade e a unidade na formação. Somos forçados a reconhecer que os currículos universitários não dão a devida importância à interdisciplinaridade, principalmente no âmbito dos cursos profissionais. O atendimento às exigências correntes de mercado torna-se justificativa para o afunilamento da formação. Por outro lado, a competitividade profissional encoraja a especialização exacerbada mormente nas áreas técnicas. Isto significa que um tratamento de questões que possam fornecer os contornos da base cultural que mencionamos antes ou se dá no nível do Segundo Grau ou, na prática e na maioria das vezes, nunca mais. Supondo que o exercício consciente da cidadania é incompatível com a alienação na vida sócio-profissional, temos de convir que está entre as responsabilidades do Segundo Grau fornecer instrumentos mínimos para que o indivíduo possa, em qualquer ramo de atividade, manter um equilíbrio ou realimentar constantemente a tensão existente entre os dois pólos de sua condição: a multilateralidade e a unilateralidade, entendendo-se que a opção exclusiva pela unilateralidade é a queda na inconsciência social e histórica e a alienação. O imediatismo tecnocrata encoraja a alienação por motivos de eficiência profissional; o oportunismo político encoraja a alienação para neutralizar o potencial de conflito inerente à cidadania consciente. Em suma, a Filosofia é um fardo para um sistema educacional balizado por parâmetros de treinamento e aferição quantitativa de rendimentos e retornos. Mesmo nas universidades, o núcleo de humanidades, e especialmente a Filosofia, é visto muitas vezes apenas como pesada e incômoda herança do passado. Mas, tendo em vista a indigência da atualidade, o arcaísmo pode ser uma virtude. Sobretudo se necessitamos de precauções que nos lembrem que o processo escolar de socialização não deve ser entendido como adaptação e ajuste de pessoas como de peças numa máquina, mas sim como realização plena do significado do trabalho pedagógico, que não é outra coisa senão a arte de conduzir o próximo à sua própria emancipação.

Nota

O risco que por vezes se corre ao tentar compensar esta lacuna é o de tentar utilizar como única base da atividade reflexiva a vivência concreta e o espontaneísmo dos alunos. Embora se deva levar em conta a experiência singular e aquilo que o aluno traz em termos de experiência vivida, é preciso reconhecer que a escola é ocasião de promoção cultural e de abertura de horizontes, e não apenas de reafirmação da experiência natural. É preciso que a reflexão parta de paradigmas qualitativos que exponenciem aspectos da experiência de vida e de conhecimento, para uma justa apreensão do potencial do pensamento. A escola tem que proporcionar os meios para que o indivíduo vá além dele mesmo, do seu círculo familiar, social, religioso, enfim, que enriqueça sua experiência e que se torne capaz de avaliar criticamente a delimitação e as causas da delimitação de sua situação, canto no nível político-social quanto existencial.

Franklin Leopoldo e Silva é professor do departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Este texto foi escrito originalmente para servir de subsídio para a elaboração das sugestões curriculares pela equipe de Filosofia da Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas (CENP), da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo.

  • 1
    Do ponto de vista da interação concreta do plano curricular, existe uma dificuldade que decorre do que expusemos acerca da posição da Filosofia no currículo, da sua função e da relação que ela mantém com as outras disciplinas. Esta dificuldade, por vezes, transforma-se num obstáculo que compromete de forma irremediável o trabalho do professor de Filosofia. Refiro-me ao fato de que o professor de Filosofia é seguramente, dentre todos, aquele que mais depende de seus colegas. A construção da base cultural que deve permitir a articulação dos conhecimentos só é possível a partir de um mínimo de informação e de vivência do trabalho intelectual. Certo grau de familiaridade com os estilos de raciocínio científico, com a diversidade histórica e com a literatura é condição e ponto de partida para o trabalho crítico e reflexivo. Sem esta condição, a atividade na aula de Filosofia torna-se abstrata por não dispor de pontos de referência. Isto não significa que devamos pensar sempre e obrigatoriamente numa relação de apoio entre a Filosofia e as outras disciplinas; mas não podemos conceber, também, uma atividade de reflexão que não leve em conta uma base sistemática de experiências culturais.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Fev 2006
    • Data do Fascículo
      Abr 1992
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