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A Escola Francesa de Geografia

A disponibilização em língua portuguesa da obra A Escola Francesa de Geografia: uma abordagem contextual - que aborda a disciplina no seu período formativo na passagem do século XIX para o século XX - representa, com certeza, eficaz auxílio às discussões epistemológicas que incessantemente se processam nos ambientes dos Programas de Pós-graduação em Geografia das universidades brasileiras.

Há de reconhecer que as deficiências na proficiência em línguas estrangeiras entre os alunos nesses centros devotados à ciência & tecnologia se constitui num obstáculo à formação educacional, de modo que cabe à presente tradução o importante papel de minimizar os obstáculos, ou de reduzir problemas, ao bom andamento das leituras, das aulas e das pesquisas estimuladas pela grande difusão das chances de profissionalização em geografia no Brasil que teve lugar nas últimas décadas.

O livro é sem dúvida o trabalho de um scholar na acepção mais rigorosa do termo, filiando-se a uma linhagem de obras de historiadores da geografia em língua francesa como Paul Claval e André Meinier. Vincent Berdoulay mobiliza uma vasta bibliografia que, embora naturalmente concentrada em língua francesa, está também fortemente ancorada na tradição literária geográfica cultural ou humana anglo-americana. Isso lhe concede um distinto posicionamento para o entendimento da experiência da construção da geografia antropológica franco-germânica na já mencionada passagem dos séculos.

Amparada em sólida documentação e em amplas evidências, as conclusões ou propostas de interpretação historiográfica que faz o autor sobre a formação da “escola francesa” são ponderadas, relativizadas, tentativas, desprovidas, portanto, daquelas tão comuns durezas doutrinárias. O discurso do autor, desse modo, abre espaço criativo às apreciações. O Prefácio à edição brasileira, por Eduardo Marandola Jr., esclarece o contexto de produção da obra.

Na Introdução o autor apresenta o panorama dos estudos em História das Ciências e expõe com clareza e em detalhes - originalmente foi a tese de doutoramento do autor - as suas escolhas historiográficas. Profissionais da geografia afeitos a contar a história da disciplina sabem como a historiografia se tornou controversa nas últimas décadas, nesses tempos do relativismo, da pós-modernidade, da pós-disciplinaridade e da desconstrução. O autor examina com discernimento os dilemas historiográficos - basicamente o internalismo e o externalismo -, os possíveis caminhos a seguir, e apresenta enfim a metodologia que preferiu adotar: o contextualismo. Tentando encontrar outros termos para expressar o mesmo dilema, poder-se-ia falar em historiografia doutrinária - voltada para o interior da disciplina, para a área das ideias -, por um lado; e, por outro, em historiografia relativista - procurando explorar as relações entre o caráter temático e conceitual da disciplina e o ambiente social e econômico de onde se nutre (Barros, 2006BARROS, N. A historiografia da geografia e suas controvérsias: apreciação de um debate, Revista Geográfica, México, v.139, p.83-102, 2006., 2008, 2017). Berdoulay procede a uma atenta avaliação crítica do espectro de estilos dentro da historiografia contextual.

Mobilizando perspectiva sociológica na análise da formação das ciências, o autor entende que deve atribuir grande importância à institucionalização das inovações no sistema universitário, entendendo a institucionalização como se situando na intersecção entre os fatores de mudança externos (contextuais) e os internos à disciplina. Nesse particular, é ele enfático na proposição de se evitar tratar os tais fatores de mudança nas disciplinas de forma dicotômica.

A abordagem das circunstâncias ou contextual adotada por Berdoulay, não sendo ela finalista, cumulativa, evolucionária, disciplinarmente “oficial” e nem doutrinária, permite a “suspensão” das teses, digamos, dos estilos ou paradigmas hegemônicos ou proeminentes. Desse modo, o trabalho abre campo ao reconhecimento das práticas, estilos e ideias dentro da geografia mesmo que elas tenham configurado uma tendência que não se propagou, que não foi “bem-sucedida” e que, portanto, não passou à posteridade. Reconhecer essas experiências permite não raro esclarecer o que teria feito a “corrente dominante” e que circunstâncias viveu para conseguir se impor.

O autor enfatiza que questões sociais ou políticas que possuem grande importância numa época precisam ser consideradas, não obstante elas possam não parecer diretamente ligadas à geografia. Então: como essas questões impregnam de alguma forma a geografia? Os geógrafos teriam “círculos de afinidades” com pessoas e ideias que ultrapassam o ambiente de relacionamento propriamente profissional; eles teriam interações ideológicas, políticas, intelectuais em geral, mais amplas com o mundo circundante. Os tais “círculos de afinidades” formam um conceito que seria a ferramenta metodológica para escavar as networks influenciadoras e desvendar a interação entre o pensamento geográfico e a sociedade, acredita o autor.

O trabalho está distribuído em seis capítulos, as Conclusões e um post-scriptum. No Capítulo 1, o autor expõe como a experiência da institucionalização da geografia na Alemanha inspirou e influenciou a expansão da geografia na França. Os “seminários”, aulas-atividade destinadas a pequenos grupos de estudantes, criados na Alemanha, se propagaram no ensino superior francês. Eles divergiam do padrão usual das aulas-magistrais. As missões de geógrafos franceses na Alemanha eram intensas.

Por exemplo, Vidal de La Blache com frequência viajava à Alemanha para visitas a laboratórios de geógrafos famosos como Ferdinand Richtoffen, Frederico Ratzel, Peschel, e outros. Brunhes esteve também em visitas, inclusive a Ratzel. Bolsas acadêmicas facilitavam esse intercâmbio, como a permanência de E. de Martonne na Alemanha em 1896-1897. Tal proximidade interativa no momento formador da geografia moderna entre os dois países sugere que o termo “escola” possui muito menos poder de marcar diferenças e distinção do que se possa imaginar, e o seu uso poderia ser tido como uma herança dos nacionalismos europeus impregnando a historiografia.

O Capítulo 2 expõe a expansão colonial francesa como contexto para a geografia, apresentando-se o imperialismo como um fenômeno globalmente político e econômico. Essa expansão colonial esteve associada ao ímpeto nacionalista que se seguiu à guerra de 1870, quando a Sociedade de Geografia de Paris - fundada em 1821 - experimentou grande aumento no número de membros, e outras instituições similares foram criadas (Lyon, 1873; Bourdeaux, 1874 etc.). “Em torno de 1884, havia mais sociedades de Geografia na França (26) e mais membros (18 mil) que em qualquer outro país do mundo” (p.39). O número de professores ligados ao ensino superior da geografia na França decuplica entre 1870 e 1910. Além disso, subvenções governamentais para despesas “institucionais” (publicações, encontros et.c) tornaram-se frequentes, revelando o interesse dos poderes constituídos pela disciplina.

O Capítulo 3 é dedicado a explorar a importância do ensino na edificação e na evolução da República na França, seguindo-se do exame específico da posição e das funções da geografia no Ensino Fundamental, no Médio e no Superior. O Capítulo aborda o momento crítico da fixação da universidade como instituição de estudos e pesquisa; quando, em 1877, ao lado de várias reformas nos regimentos das faculdades, são criadas 300 bolsas de estudos para estudantes de nível superior.

No Capítulo 4 se procede a uma exposição das várias ideias-guia presentes no espectro educacional, com particular atenção ao papel das ideias regionalistas na geografia. O Capítulo 5 é dirigido ao estudo do papel dos vários “círculos de afinidades” na construção da geografia na França. Três dos exemplos explorados são: o círculo de Vidal de La Blache - Sorbonne, École Normale, Annales, de onde vieram J. Brunhes, A. Demangeon, e outros -, o “círculo” dos estudiosos da geografia histórica e o “círculo” da cartografia e exploração colonial.

O Capítulo 6 expõe a concepção vidaliana da geografia, o coração epistemológico da “escola” francesa. A geografia possuiria um campo vasto, que incluiria as complexas relações entre os fenômenos que se produziam na superfície da Terra, sendo cada fenômeno, por sua vez, resultante de um conjunto de causas. A ideia básica era o complexo, a combinação, a integração, a síntese entre os fatores, fosse a superfície planetária toda, fosse dela uma pequena fração apenas. Essa maneira integrada de ver a superfície da Terra, mediante a metáfora sinfônica, é característica do scholar mandarim germânico, segundo Ringer (1990RINGER, F. K. The decline of the German mandarins: the German academic community, 1890-1933. S. l.: The University Press of New England, 1990.).

O homem teria papel ativo em modificar o ambiente, e seria por esse mesmo meio também influenciado. Cada civilização, uma vez que cada uma favorecia certas espécies de plantas e animais em detrimento de outras, tendia a uniformizar os meios que dominava. Enfim, a geografia da qual Vidal foi o grande inspirador, “pode incorporar, [...] em uma síntese notável, o essencial da contribuição geográfica alemã, assim como os elementos esparsos, mas significativos, do pensamento francês da época” (p.226).

Ao final, à guisa de Conclusão, V. Berdoulay sugere que narrar a história das ideias geográficas deve ser ação que incorpore o exame da sensibilidade da disciplina ao contexto social mais amplo. A geografia francesa do momento da institucionalização, no seu caráter, expressou sobremaneira as questões que agitaram o país na virada do século XIX. E, coerente à abordagem contextualista adotada, o autor acredita que as grandes questões sociais, políticas e educacionais da França no período explicam “que tipo de seleção particular de ideias os vidalianos fizeram e que tipo de quadro eles elaboraram para integrá-las em um todo coerente” (p.233).

Referências

  • BARROS, N. A historiografia da geografia e suas controvérsias: apreciação de um debate, Revista Geográfica, México, v.139, p.83-102, 2006.
  • _______. Delgado de Carvalho e a geografia no Brasil como arte da educação liberal, Estudos Avançados, São Paulo, v.62, p.317-34, 2008.
  • _______. Tópicos metodológicos para a historiografia da geografia, Revista de Geo- grafia, Recife, v.34, n.3, p.15-25, 2017.
  • BERDOULAY, V. A Escola francesa de geo- grafia: uma abordagem contextual. Trad. O. B. Amorim Filho. São Paulo: Perspectiva, 2017. 255p.
  • RINGER, F. K. The decline of the German mandarins: the German academic community, 1890-1933. S. l.: The University Press of New England, 1990.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    30 Jul 2019
  • Aceito
    22 Ago 2019
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