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Novas políticas de segurança pública

VIOLÊNCIA

Novas políticas de segurança pública* * Resumo elaborado pela Editoria da revista. O trabalho completo será publicado no livro Modo petista de governar (Editora Fundação Perseu Abramo).

Luiz Eduardo Soares

DESDE 1982, quando as eleições estaduais voltaram a ser disputadas de forma direta no Brasil, ainda em ambiente autoritário, o tema da segurança tem ocupado uma posição de destaque na agenda pública. Com a promulgação da primeira Constituição democrática brasileira, em 1988, criaram-se condições para uma ampla participação popular e removeram-se as barreiras tradicionais, que excluíam do direito ao voto a inúmeros segmentos da população. Dado o novo contexto político, as agendas públicas tornaram-se ainda mais sensíveis às demandas da sociedade. Sendo a segurança um item eminentemente popular - sem deixar de ser tema prioritário também para as elites e para as camadas médias - , impôs-se com mais peso à consideração dos atores políticos. O crescimento da violência criminal, ao longo da última década, reforçou essa tendência. Hoje, a questão da segurança é parte não apenas das preocupações estaduais, mas também dos municípios e governo federal, tornando-se uma das principais problemáticas nacionais, seja nas eleições, seja para além delas.

Na transição democrática, todas as instituições públicas e seus procedimentos passaram por uma revisão e reajuste ao novo momento. Uma destas instituições, entretanto, acabou esquecida: a polícia. Conservadores, liberais e progressistas debateram o destino de cada órgão público, discutiram propostas antagônicas e disputaram a liderança de cada processo de reforma. No entanto, com raríssimas exceções individuais, entre as quais nunca será demais destacar o papel pioneiro de Hélio Bicudo, deixaram de apresentar à opinião pública projetos que adequassem a polícia à democracia então estabelecida.

Essa omissão condenou a polícia1 Notas 1 Refiro-me ao complexo institucional, daí o emprego do singular - que envolve as duas corporações policiais estaduais, as polícias Civil e Militar, além da Polícia Federal. à reprodução inercial de seus hábitos atávicos: a violência arbitrária contra excluídos (particularmente pobres e negros), a tortura, a chantagem, a extorsão, a humilhação cotidiana e a ineficiência no combate ao crime, sobretudo se os criminosos pertencem a altos escalões. Claro está que sempre houve milhares de policiais honestos, corretos, dignos, que tratam todos os cidadãos com respeito e apresentam-se como profissionais de grande competência. Mas as instituições policiais, em seu conjunto e com raras exceções regionais, funcionaram e continuam a funcionar como se estivéssemos em uma ditadura ou como se vivêssemos sob um regime de apartheid social. Constrói-se uma espécie de "cinturão sanitário" em torno das áreas pobres das regiões metropolitanas, em benefício da segurança das elites. Nesse sentido, poder-se-ia afirmar que o negligenciamento para com a polícia, no momento da repactuação democrática, em certa medida, acabou contribuindo para a perpetuação do modelo de dominação social defendido pelos setores mais conservadores. Ou seja, essa negligência apresenta-se muito mais como estratégia do que uma indiferença política propriamente dita.

A conseqüência da ausência de projetos de reforma é, portanto, degradação institucional da polícia e de sua credibilidade; a ineficiência investigativa e preventiva; as ligações perigosas com o crime organizado e o desrespeito sistemático aos direitos humanos. Além disso, o fato de não ter acompanhado o processo de modernização técnica que caracterizou tantas outras instituições nacionais fez com que seu modelo gerencial permanecesse arcaico, reativo e fragmentário, refratário a procedimentos racionais.

O quadro da insegurança pública brasileira

Hoje, o medo da sociedade não é ilusório nem fruto de manipulação midiática. O quadro nacional de insegurança é extraordinariamente grave, por diferentes razões, entre as quais devem ser sublinhadas as seguintes: (a) a magnitude das taxas de criminalidade e a intensidade da violência envolvida; (b) a exclusão de setores significativos da sociedade brasileira, que permanecem sem acesso aos benefícios mais elementares proporcionados pelo Estado Democrático de Direito, como liberdade de expressão e organização, e o direito trivial de ir e vir. (c) a degradação institucional a que se tem vinculado o crescimento da criminalidade: o crime se organiza, isto é, penetra cada vez mais nas instituições públicas, corrompendo-as, e as práticas policiais continuam marcadas pelos estigmas de classe, cor e sexo.

Ainda que o problema da violência ou da criminalidade diga respeito a todos, a vitimização apresenta um elevado grau de concentração entre jovens negros e pobres do sexo masculino. No ano 2000, no Estado do Rio de Janeiro, 2.816 adolescentes morreram assassinados (107,6 por cem mil adolescentes - a média brasileira foi de 52,1 em 2000, tendo sido de trinta em 1980). O Estado do Rio de Janeiro só é superado, nessa contabilidade mórbida, pelo Estado de Pernambuco. Já a cidade do Rio de Janeiro fica atrás de outras três capitais: Recife, Vitória e São Paulo, nessa ordem. Em 1991, os homicídios dolosos no Estado do Rio, entre os jovens, correspondiam a 76,2 por cem mil jovens. Enquanto as mortes por homicídio não ultrapassam 4% das mortes no universo da população brasileira, entre os jovens o número se eleva a 39%2 2 Estes dados encontram-se no trabalho coordenado pelo professor Jacobo Waiselfisz, Mapa da violência III, publicado pela Unesco com o apoio do Ministério da Justiça e do Instituto Ayrton Senna em 2002. .

Em vários Estados, a matriz da violência é o tráfico de armas e de drogas (o segundo financiando o primeiro e ambos induzindo à expansão e à intensificação da violência envolvida nas práticas criminais), que se realiza no atacado e no varejo. A dinâmica do comércio ilegal atacadista dá-se sobretudo por meio de criminosos do colarinho branco, extremamente eficazes na lavagem de dinheiro. Esses permanecem impunes, imunes às ações repressivas e à investigação das polícias estaduais, cuja obsessão tem sido o varejo, nas favelas, vilas e periferias. Nas áreas pobres em que o comércio varejista se instala, morrem meninos em confrontos entre grupos rivais ou com policiais, em suas incursões bélicas, as chamadas "políticas de segurança". Considerando-se a importância desse tópico, vale a pena deter-se um pouco mais nas das condições que têm propiciado a reprodução ampliada do comércio ilegal de armas e drogas em muitas cidades brasileiras.

Bases sociais do recrutamento dos jovens3 3 Esse trecho foi baseado na palestra "Reforma da polícia e a segurança pública municipal", proferida na Universidade de Oxford, em 11 de maio de 2002, no Centro de Estudos Brasileiro, dirigido pelo professor Leslie Bethell.

Um menino pobre caminha invisível pelas ruas das grandes cidades brasileiras. Esse menino, que quase sempre é negro, transita imperceptível pelas calçadas sujas das metrópoles, em que muitas vezes se abriga, pois foi expulso de casa pela violência doméstica, esquecido pelo poder público, ignorado pela comunidade, excluído da cidadania. Não tem perspectivas nem esperança, não tem vínculos afetivos ou simbólicos para com a ordem social, e nada que o identifique com a cultura dominante. Assim, subtraído das condições que lhe poderiam infundir auto-estima, o menino é anulado em sua individualidade e esmagado pela indiferença pública.

Quando um traficante lhe dá uma arma, este menino recebe muito mais do que um instrumento que lhe proporcionará vantagens materiais, ganhos econômicos e acesso ao consumo; ele recebe um passaporte para a sua própria existência social, porque, com a arma, será capaz de produzir ao menos um sentimento: o medo. Recorrendo à arma, portanto, restaura as condições mínimas para a edificação da auto-estima, do reconhecimento e da construção de uma identidade; estabelece enfim uma interação, na qual torna possível sua reconstrução subjetiva e o projeto - soi disant estético - de sua auto-invenção. Trata-se de uma dialética perversa, em que o menino afirma seu protagonismo e se estrutura como sujeito, sbmetendo-se a um engajamento trágico com uma cadeia de relações e práticas que o condenarão, muito provavelmente, a um desfecho letal, cruel e precoce, antes dos 25 anos. Além disso, sendo o medo um sentimento negativo, sua auto-afirmação trará consigo o peso da culpa que corresponde à magnitude dos ressentimentos e juízos críticos sobre o ato violento pelo qual se responsabiliza. Trata-se, portanto, de uma espécie de pacto fáustico, em que o menino troca sua alma, seu futuro, seu destino, por um momento de glória, por uma experiência efêmera de hipertrofia do protagonismo, em que as relações cotidianas de indiferença se invertem: o desdém superior do outro converte-se em subalternidade humilhante, temor e obediência à autoridade armada do menino.

Observa-se assim que a arma nas mãos de nosso jovem personagem é muito mais que um meio a serviço de estratégias econômicas de sobrevivência. Há uma fome anterior muito mais profunda e radical do que a fome física: a fome de existir, a necessidade imperiosa de ser reconhecido, valorizado, acolhido. Por isso, pelo menos tão importante quanto as vantagens econômicas, destaca-se na cena da violência dos benefícios simbólicos, afetivos, psicológicos, intersubjetivos.

Ao ter acesso à arma, o menino, freqüentemente, ao menos no Brasil, tem acesso também aos grupos de traficantes de drogas e de armas, que se instalam nas vilas, favelas e periferias das cidades. Esse convívio proporciona um segundo benefício valioso para os jovens: a gratificação do pertencimento, a qual é tão mais intensa quanto mais coeso for o grupo. Essa coesão, no entanto, é diretamente proporcional ao grau de antagonismo vivenciado pelo grupo em suas relações com os outros grupos com os quais se relacione, coletivamente. Essa é a lógica segmentar apontada pelos antropólogos, sobretudo a partir das obras de Evans-Pritchard e Lévi-Strauss, e que os sociólogos já haviam codificado, desde Simmel. É importante que esse menino experimente as emoções reconfortantes do pertencimento, aderindo a grupos segmentares, os quais tornarão a vivência do pertencimento tão mais forte quanto mais violentamente confrontarem os grupos rivais. As gangues do tráfico encenam, com resultados trágicos, as regras inconscientes da vida social, na ausência de alternativas construtivas, capazes de sublimar a violência, simbolizando-a e transferindo-a para outras linguagens, como a dos esportes, por exemplo.

Políticas de segurança na esfera municipal

Os municípios, no Brasil, não têm polícias (apenas Guardas Civis, em geral limitadas à proteção do patrimônio público), portanto, só poderiam enfrentar a violência criminal com políticas preventivas de natureza não-policial, ainda que sempre contando com a colaboração das polícias estaduais (Militar e Civil). Mas essa limitação pode se converter em virtude, se houver criatividade. Seria necessário instituir fontes alternativas de atração ou recrutamento dos jovens, capazes de competir com o tráfico, oferecendo pelo menos as mesmas vantagens proporcionadas por ele. Em outras palavras, para competir com a fonte de sedução criminosa, o poder público municipal teria de proporcionar benefícios materiais, como emprego e renda, e simbólico-afetivos, como valorização, acolhimento e pertencimento, restituindo visibilidade e auto-estima, o que, por sua vez, exigiria uma espécie de "customização" das políticas públicas. Para valorizar cada jovem é preciso aplicar políticas públicas que criem oportunidades de exercício de suas virtudes e potencialidades criativas e expressivas. Mas isso ainda não basta. É necessário criar também as condições para que as virtudes expressas sejam identificadas e reconhecidas, o que requer estruturas dialógicas intra e inter-grupais.

O grande desafio está em combinar geração de emprego e renda com a sensibilidade para o imaginário jovem, para suas linguagens culturais específicas. Os jovens pobres das periferias e favelas não querem uma integração subalterna no mercado de trabalho. Não desejam ser engraxates dos nossos sapatos, mecânicos dos nossos carros ou pintores de nossas paredes. Não querem repetir a trajetória de fracassos de seus pais. Não pretendem reproduzir o itinerário de derrotas da geração precedente. Os jovens pobres desejam o mesmo que os filhos da classe média e das elites: internet, tecnologia de ponta, arte, música, cinema, teatro, tv, mídia, cultura, esporte. Desejam espaços para expressão de sua potencialidade crítica e criativa; espaços e oportunidades para sua afirmação pessoal; chances para alcançar reconhecimento e valorização, escapando ao manto aniquilador da invisibilidade social discriminatória. Assim, as novas políticas públicas, voltadas para a disputa com o tráfico e para a sedução da juventude, teriam de instituir-se em sintonia com os desejos e as fantasias que circulam nas linguagens culturais da juventude, combinando políticas de emprego e de renda, capacitação e complementação educacional, com interesse pelos temas e práticas cujos eixos são arte, música, cultura e mídia.

No plano municipal há muito a fazer, mesmo sem as polícias. Nesse nível, a intervenção efetivamente capaz de prevenir a violência e a criminalidade é aquela que visa a alteração das condições propiciatórias imediatas, isto é, das condições diretamente ligadas às práticas que se deseja eliminar; não é, portanto, a ação voltada para mudanças estruturais, cujos efeitos somente exerceriam algum impacto desacelerador sobre as dinâmicas criminais em um futuro distante - o que, evidentemente, não significa que essas mudanças, de tipo estrutural, não devam ser realizadas. Embora necessárias e urgentes, não são suficientes, nem substituem as intervenções tópicas, via políticas sociais indutivas, nas dinâmicas imediatamente geradoras da violência. Um exemplo: com freqüência, as práticas criminais concentram-se em territórios limitados, conformando padrões e permitindo tanto a previsão como a antecipação. Esse quadro constitui fenômeno amplamente reconhecido pela criminologia internacional. Sendo assim, antes mesmo que as eventuais reformas das estruturas socioeconômicas produzam seus efeitos, iniciativas tópicas, que incidam de modo adequado e eficiente sobre as condições e circunstâncias imediatamente ligadas à dinâmica criminal, podem alcançar resultados excelentes. É preciso interceptar as dinâmicas imediatamente geradoras dos fenômenos, o que exige diagnósticos sensíveis às complexidades dos contextos sociais, os quais devem ser complementados por planejamento qualificado e por avaliações sistemáticas, que propiciem permanente monitoramento de todo o processo de intervenção pública, mesmo quando se dá em parceria com iniciativas da sociedade civil.

Essas foram as linhas gerais que marcaram o diagnóstico e o plano de segurança pública, com foco preventivo, elaborado pela prefeitura de Porto Alegre, ao longo de 2001, sob o comando do prefeito Tarso Genro4 4 Esses pontos estão incluídos e especificados, em detalhes, no Plano de Segurança Pública, coordenado por Antonio Carlos Biscaia, Benedito Mariano, Luiz Eduardo Soares e Roberto Aguiar, confeccionado no âmbito do Instituto Cidadania, com assessoria especial de Paulo Brinckman, dirigido por Paulo Okamoto e presidido por Luiz Inácio Lula da Silva, apresentado à sociedade em fevereiro de 2002. .

Por meio desse plano, pode-se observar então que há a possibilidade de que os municípios colaborem para a redução da violência criminal, mesmo sem dispor de instituições policiais. Cumpre agora considerar os dados gerais do problema da violência criminal no Brasil, incorporando as questões que envolvem diretamente as instituições estaduais, particularmente as polícias.

Da denúncia à proposição de alternativas

Um dos fundamentos das políticas de segurança elaboradas e aplicadas por governos progressistas, democráticos e populares, comprometidos com os direitos humanos, é a inversão das práticas convencionais: os agentes sociais identificados com os valores que tais governos pretendem expressar costumavam relacionar-se com a problemática da violência e da criminalidade pelo viés da crítica, da cobrança, da demanda e da denúncia. Demanda dirigida ao Estado por mais eficiência no combate à violência; cobrança pela incompetência dos programas governamentais; crítica a medidas tópicas e denúncias de violações dos direitos humanos por parte do aparelho policial. Hoje, cabe aos críticos assumir as responsabilidades de governo. Por isso impõe-se a nós, experts na denúncia, o grande desafio de formular e aplicar políticas alternativas, capazes de reduzir a violência tanto do crime quanto da polícia. Passar do negativo ao positivo é difícil e exige uma preparação especializada, que não deriva automaticamente da experiência de militância na defesa dos direitos humanos, ainda que ela ajude bastante. Denunciar foi e continua sendo muito importante, mas não é suficiente. E o que se exige de nós, na medida em que assumimos responsabilidades executivas, não são mais apenas propostas de mudanças legais, mas políticas objetivas sobre como conduzir os cerca de 550 mil homens e mulheres que atuam, profissionalmente, na segurança pública brasileira. A sociedade cobra a resolução dos problemas ou, pelo menos, avanços significativos nessa direção. Hoje, avanços expressivos implicam sucesso no aprimoramento da performance policial - que se traduz em redução da impunidade - e na redução da corrupção policial. O resultado de políticas exitosas, na área, se resumiria na transformação de nossas polícias em instituições menos violentas e corruptas, mais respeitosas dos direitos humanos, mais inteligentes e eficientes, mais aptas a agir preventivamente, mais confiáveis e, portanto, mais legítimas e capazes de valorizar seus profissionais.

A tese fundamental que marca a originalidade dessas novas políticas de segurança sustenta que é possível e necessário combinar respeito aos direitos humanos com eficiência policial. Durante duas décadas de disputas políticas, desde o início da transição democrática, esses dois pólos foram antepostos, como se se contradizessem: os defensores dos direitos humanos negligenciaram a questão relativa à eficiência do aparelho policial, pressupondo, tacitamente, a correlação entre eficiência e brutalidade. Com isso, assumiam uma posição unilateralmente crítica e silenciavam ante o quadro de avanço da violência criminal e à problemática social, à qual atribuíam responsabilidade pelo agravamento da situação. Já os críticos dos direitos humanos afirmavam que a eficiência só seria alcançada com a liberdade policial para ser violenta e para matar, independentemente dos marcos legais.

Hoje, observando as experiências internacionais mais bem-sucedidas e analisando o que ocorreu no Brasil, onde o quadro de degradação das instituições policiais e de crescimento exponencial da criminalidade é fruto da hegemonia dos que defendem a brutalidade policial, conclui-se que o segredo do êxito, na segurança pública, depende exatamente da subordinação das polícias às leis. Todos os que se identificavam com os direitos humanos, como valores matriciais e inarredáveis, também descobriram que polícias eficientes são condição sine qua non para a realização desses direitos, incluindo aí o respeito à vida, à integridade e aos benefícios civis e materiais da sociabilidade civilizada. Quando esse respeito está ameaçado e o Estado não oferece instrumentos de proteção, isto é, quando as polícias são ineficientes, os direitos humanos sucumbem ao arbítrio e à violência. Evidentemente, a eficiência - objeto de nosso apreço - está circunscrita pela subordinação radical das polícias aos marcos legais, que, no contexto, corresponderiam ao universo normativo e axiológico derivado dos direitos humanos. Enquanto houver contradição entre as leis constitucionais ou infraconstitucionais e essa pauta universal de direitos, a ação policial, ao se ater ao estrito cumprimento das determinações legais, irá contra os direitos humanos.

Indispensável é compreender que segurança pública é matéria de Estado, não apenas de governo. Para ser responsabilidade superior precisa constituir-se como responsabilidade de todo o governo, não só das polícias e das secretarias de Segurança e de Justiça. A participação da sociedade civil é outro componente fundamental. Se todas as forças políticas compreendessem a complexidade do problema, a gravidade da situação e os riscos sociais e institucionais implicados, talvez se dispusessem a abandonar a postura predatória, que parece nutrir-se das tragédias e regozijar-se pelo fracasso alheio. Uma vez no poder, os críticos destrutivos costumam adotar as medidas convencionais, tradicionalmente malogradas, porque lhes falta compromisso com políticas alternativas consistentes - as críticas predatórias nada mais tendo sido que ataques políticos irresponsáveis. Preferem o voluntarismo inconseqüente e as pseudo-soluções espetaculares, porque se orientam, não pelo respeito a planos racionais e viáveis de mudança, mas pelo improviso que garante recompensa imediata, com reflexos eleitorais convenientes. Seria patriótico conceder uma trégua política - via celebração de um grande pacto pela paz - aos governos que adotassem planos consistentes, amplamente discutidos com a sociedade, profundamente comprometidos com a eficiência e o respeito aos direitos humanos. A segurança pública não será trabalhada com suficiente seriedade, no Brasil, enquanto não a preservarmos, minimamente, da demagogia oportunista associada ao ciclo eleitoral. Isso não significaria despolitizar o tema da segurança, mas, ao contrário, o politizaria em grande estilo.

Explicitando pressupostos teóricos na contramão dos tabus

As observações expostas a seguir constituem um esforço talvez redundante, mas que julgo relevante, porque pode facilitar a compreensão de alguns aspectos dos programas de segurança pública. Esses aspectos, ainda que contribuam para a estruturação dos argumentos e das propostas, têm permanecido latentes nos debates públicos. Poderiam escapar, portanto, aos leitores menos atentos. Vale a pena explicitá-los.

A matriz conceitual com que operam essas políticas refuta, tacitamente, a bipolaridade "repressão dos efeitos" versus "tratamento das causas" da violência. De um modo geral, salvo honrosas exceções, essa bipolaridade tem sido evocada para reduzir a uma caricatura simplória os significados das funções repressivas - funções, vale acrescentar, necessariamente implicadas no trabalho policial. Além disso, tem servido a uma definição equivocada, deslocada, para efeito das políticas públicas, da categoria "causas da violência". Por fim, tem sustentado a afirmação de uma falsa contradição.

Por razões perfeitamente compreensíveis, a palavra repressão provoca repulsa generalizada em todos os que resistiram à ditadura e lutaram pela democracia no Brasil. O sentimento libertário rejeita a palavra e o espírito sombrio que a cerca. Por isso, quando se discute segurança, todos os democratas se apressam em qualificá-la: desejamos uma segurança "cidadã", "humanista", orientada para o respeito aos direitos humanos e inspirada pelos direitos civis. Tudo isso é muito bom e serve para distinguir os democratas daqueles que defendem a brutalidade policial, a truculência do aparato de segurança, a tortura, o extermínio e a barbárie. No entanto, já é tempo de se analisar com rigor intelectual sobre a categoria repressão para ultrapassar as simplificações grosseiras, que servem a propósitos ideológicos e políticos, e apenas obstam o aprofundamento da reflexão sobre a problemática da segurança, do controle social e do poder.

Reprimir significa limitar a liberdade; todavia, que democrata se oporia a que fosse reprimida a ação contrária aos direitos humanos e civis? Deveria ser tolerada, em nome da repulsa à repressão, a liberdade de matar, torturar, humilhar, agredir arbitrariamente, violentar? Pelas mesmas razões, o desrespeito ou a transgressão às leis não poderiam ser aceitos, se a legislação, em sua dimensão matricial, afirma direitos humanos e civis e expressa um acordo institucional em torno de princípios legítimos. Nesse caso, tolerar a transgressão legal significaria admitir a violação de direitos e, quando no governo, tergiversar quanto à responsabilidade de fazer cumprir a lei implicaria trair o dever ético-político para com a sociedade, celebrado no contrato constitucional, além dos interesses políticos históricos das classes subalternas, como veremos a seguir.

Se houver contradições entre a legislação específica e os princípios constitucionais, a primeira traindo ou limitando os compromissos democráticos dos segundos, ainda assim deveria ser considerada a inconveniência da mera transgressão e as vantagens da adoção de procedimentos políticos, voltados para a mudança das leis mas ajustados à legalidade. Se uma Constituição democrática vigora e, a partir dela se possam promover as mudanças que, progressivamente, removam suas eventuais limitações e contradições, a aplicação das leis constitui garantia de respeito ao contrato social, expresso na edificação das instituições jurídico-políticas. Zelar pelo cumprimento do pacto é dever ético-político dos agentes sociais que aceitam o jogo ditado pelas instituições que o traduzem. Além disso, é condição de avanço rumo à radicalização dos compromissos democráticos, inibidos por resistências à afirmação plena dos princípios retores de uma Constituição que se proclama matriz da justiça e da liberdade. Em outras palavras, quando os marcos legais celebram a eqüidade e a liberdade como valores matriciais, até mesmo do ponto de vista estritamente utilitário, passa a ser do interesse dos grupos sociais subalternos, oprimidos e explorados a defesa da institucionalidade jurídico-política, uma vez que o avanço progressivo em direção ao cumprimento das metas constitucionais (isto é, dos fins socioeconômico-políticos contemplados pela enunciação dos valores axiais) representa a realização mesma do projeto de radicalização democrática, compatível com o que, grosseiramente, poder-se-ia definir como a vocação histórica dos grupos subalternos. Nesse sentido, estabelecidos pelo contrato constitucional os princípios da eqüidade e da liberdade, como regentes das regras do jogo político e articuladores dos códigos legais vigentes, os limites impostos à socialização da riqueza e do poder afirmam-se como contradições que ferem os princípios e exigem superação, o que confere ao processo histórico extraordinário vigor reformista, incorporador, democratizante, ainda que gradualista - sem prejuízo dos recuos naturais em uma dinâmica viva e tensa.

Portanto, o cumprimento do pacto constitucional é dever dos agentes políticos que admitem participar do jogo dos poderes constituídos, mas é também, e sobretudo, do interesse histórico das classes e dos grupos subalternos. Conseqüentemente, para os agentes políticos que pretendem representar essas classes e grupos, é um imperativo - tanto ético como pragmático - zelar pelo cumprimento desse pacto, o que implica zelar pelo respeito à legalidade vigente. Mudar as leis é função dos legisladores eleitos e missão da luta política; fazer cumpri-las é responsabilidade do governante, particularmente dos gestores da segurança pública, aos quais não cabem decisões sobre que leis devem ou não ser cumpridas. Por isso, o gestor que, por exemplo, se declarasse disposto a tolerar a prática do crime contra o patrimônio, entendido aqui como expressão da luta de classes ou como expropriação da burguesia, faria melhor se renunciasse ao cargo, até mesmo porque, permanecendo nele, exporia o partido no poder a intervenção legítima e legal, imediata e enérgica.

A desobediência civil já cumpriu papéis históricos positivos da maior importância e, certamente, continuará a fazê-lo, mesmo em sociedades regidas por Constituições legítimas e democráticas, uma vez que haverá sempre diferenças significativas entre os compromissos constitucionais de fundo, quanto a princípios, e a legislação infraconstitucional, assim como a própria Carta Magna, que pode apresentar contradições internas. Haverá, portanto, sempre espaço para tensões, conflitos, disputas e pressões por ajustes e redefinições, mesmo quanto aos princípios axiais, sujeitos a revisões históricas. Contudo, a desobediência civil não é, definitivamente, função do gestor responsável pelo controle da força do Estado em benefício da aplicação da lei.

Outra esfera semântico-conceitual nos conduz à discussão sobre repressão como represamento de energias, forças, movimentos - individuais, subjetivos e coletivos - , e como controle social. No início do século XX, Sigmund Freud, em seu clássico ensaio Mal-estar na civilização, referia-se ao caráter eminentemente repressor do processo civilizador, que afastava os humanos de sua natureza animal, na medida em que inibia seus impulsos primitivos, canalizando suas pulsões e criando mecanismos de sublimação, compatíveis com a assimilação progressiva e a difusão das disciplinas necessárias à vida coletiva pacífica. A cultura e a sociedade seriam tributárias da repressão. Em meados do século XX, Claude Lévi-Strauss em sua obra-prima Estruturas elementares do parentesco, reescreveu os fundamentos da antropologia, redefinindo o papel da interdição, mas reiterando seu papel estratégico na gênese da cultura e da sociabilidade. Ao longo da segunda metade do mesmo século, Norbert Elias descreveu o processo civilizatório como o progressivo deslocamento das armas e dos meios de força para o Estado, que se constituiria concentrando-os com exclusividade. Nesse contexto, a repressão surge como a atividade estatal por excelência, correspondente à inibição da violência generalizada e difusa, cujas implicações fragmentárias impediam o desenvolvimento da economia e a expansão do controle democrático sobre os poderes, nas mais diversas esferas. A prática dos exércitos feudais e das milícias privadas dificilmente poderia ser confundida com o sentido moderno da categoria repressão, pois representava a afirmação de uma força segmentar, caução de um poder também segmentar sobre outra força segmentar. Quando os exércitos feudais e as milícias privadas cedem lugar, na Inglaterra, no início do século XVIII, ao primeiro embrião do que mais tarde se denominaria força policial, a sociedade amplia o exercício da participação cívica e política, na mesma medida em que a lei se universaliza, em sua aplicação, e se liberta dos despotismos feudais e absolutistas, em sua elaboração. Quando as primeiras experiências timidamente democráticas se instalam na Europa, com as revoluções burguesas, a repressão assume seu sentido contemporâneo, associado à universalidade da lei e à legitimidade institucional do poder, cujos sentidos têm se aproximado, progressivamente, dos princípios que efetivamente regem as idéias de eqüidade e liberdade, graças a séculos de lutas sociais.

Lênin e Foucault

Outras duas vertentes relevantes, nesse debate multissecular, remetem a Lênin e Foucault. O primeiro é como autor de O Estado e a revolução, cuja tese central postula o caráter inexoravelmente ditatorial, parcial e classista de toda formação de poder, de qualquer regime político, de toda constelação estatal. As variações institucionais não passariam de manifestações formais distintas de uma mesma essência: a ditadura de uma classe sobre outras. Observe-se que essa tese já se esboçara em "A questão judaica", quando Marx denunciava por ilusória e mascaradora a igualdade formal, instaurada pela institucionalidade burguesa. Nesse quadro de referência, a lei e sua aplicação, ou seja, toda repressão - mesmo aquela orientada para a promoção do respeito às leis - representaria uma intervenção de força em benefício dos interesses de determinado domínio econômico. A ditadura do proletariado constituiria mais uma variante da mesma estrutura, ainda que Lenin a defendesse. Portanto, antes do tempo escatológico da utopia, em que o Estado deixaria de existir com o desaparecimento das classes, só haveria ditaduras. Aliás, o líder revolucionário soviético defendia a ditadura até mesmo em decorrência de sua suposta inevitabilidade: dada a premissa de que todo Estado, independentemente das aparências, seria ditatorial, preferia a ditadura dos proletários. Deduz-se que um leninista tardio, cultor da ditadura "revolucionária", considere o Estado democrático de nossos dias o império burguês sob disfarce constitucional e interprete a defesa das leis - vale dizer, a repressão policial legal - como o exercício armado e hostil do domínio de classe. Esse militante não admitiria a participação política como envolvimento com as instituições burguesas, muito menos governar sob a égide da legalidade burguesa, exercício que seria identificado com a gerência do domínio burguês. Nesse contexto, para esse agente político revolucionário, segurança pública seria o império por excelência da ditadura burguesa, assim como as polícias seriam reduzidas a braços armados dessa ditadura. Não é preciso dizer o que significaria "repressão" nesse universo ideológico. Esse militante só admitiria a participação como oportunidade de sabotar o domínio burguês e preparar o assalto insurrecional ao "Palácio de Inverno".

Lênin produziu ainda obras de alto nível, como O desenvolvimento do capitalismo na Rússia. Seria injusto julgar todo seu legado intelectual apenas por essa tese, cujo primarismo a experiência histórica do século XX incumbiu-se de revelar. A própria tradição marxista, pelo menos desde Gramsci, foi pródiga em contribuições sensíveis à complexidade da política e do Estado.

Outra referência inevitável, na matéria de que nos ocupamos, é Michel Foucault, cuja inspiração libertária contrasta com o viés assumidamente autoritário de Lênin. Ambos têm em comum, no entanto, a radicalidade simplificadora do tratamento crítico que conferem à disciplina estatal. Foucault concorda com o diagnóstico generalizante de Lênin, mas lhe confere significado cético, vale dizer, incorpora o Estado proletário ao repertório dos exemplos de tirania a repelir. Em outras palavras, o que causa repugnância a Foucault não é a natureza burguesa do domínio, é o domínio como prática de poder. O autor de As palavras e as coisas e seus epígonos reagiriam à minha observação: não se trata de causar repugnância, diriam, mas de figurar no mapa da genealogia crítica. Ou seja, Foucault não é moralista, não pretende formular juízos de valor, não manifesta repulsa nem hierarquiza regimes. Apenas descreve os jogos de poder, pervasivos e ubíquos. A repressão policial legal - respeitosa dos direitos humanos e civis, a serviço do Estado Democrático de Direito e de uma Constituição legitimamente promulgada, inspirada nos princípios da eqüidade e da liberdade - seria apenas uma variante das possibilidades e combinações de poderes examinadas pelo mestre francês. Nesse sentido, o ceticismo niilista foucaultiano nivela todas as práticas policiais, indiferente às qualificações que se reportam à legalidade dessas práticas, à sua legitimidade ou conformidade com direitos etc., assim como nivela os dispositivos policiais aos médicos, jurídicos, acadêmicos, políticos, filológicos-gramaticais e penitenciários. A partir desse quadro conceitual, soa inteiramente despropositado e até bizarro discutir políticas de segurança, na expectativa de que fariam alguma diferença significativa, ainda que dados empíricos revelassem a diferença entre seus respectivos impactos concretos, salvando vidas ou aumentando o número de mortes.

A causticidade crítica de Foucault, no entanto, tem o mérito de nos alertar para o equívoco do dualismo que pensa a temática da repressão no contexto da oposição entre o suposto controle exercido pelo Estado e a suposta passividade individual ou coletiva, essa espécie de vazio que sujeita o objeto do controle à manipulação, ao cerceamento, à canalização ou à cooptação. Do ponto de vista arqueológico-genealógico foucaultiano, o que há são poderes confrontando-se em espaços diversos e em direções variadas. A disciplina que caracteriza a sociedade moderna, segundo a teoria de Foucault, não corresponde à hipertrofia unilateral do controle panóptico do Leviatã, mas ao êxito de determinada modulação dos poderes, em arranjos que articulam fruições, gratificações e exercícios ampliados de micropoderes, estimulados por determinadas constelações institucionais. Ou seja, se analisasse políticas de segurança, o mestre da genealogia pós-nietzscheana provavelmente se deteria na descrição dos jogos de poder estimulados pelos distintos métodos de policiamento e pelas diferentes ações implementadas, interpretando o crescimento do tráfico armado e a intensificação da violência criminal como afluentes do aparato repressivo do Estado. Ainda que extremamente aguda, a abordagem foucaultiana não ajuda a construir alternativas positivas, prospectivas e reformistas, no interior do Estado Democrático de Direito, dada a sua concepção niveladora das distinções institucionais, mas certamente ajuda a evitar o maniqueísmo de tipo leninista, por levar às últimas conseqüências o reducionismo político adotado por Lênin e incluir o projeto ditatorial soviético no alvo da crítica.

Tradições liberais

Resta considerar ainda o tratamento conferido à categoria repressão pelas tradições liberais. No âmbito do liberalismo, repressão corresponde à ação do Estado contra a liberdade individual, inibindo a manifestação de opiniões, a organização cívica, a participação política, ou regulamentando o mercado, invadindo o espaço privado, abrigo doméstico da intimidade, reduto do cultivo da subjetividade e da experiência que alguns críticos denominariam solipsismo narcísico. Portanto, é nesse contexto que "repressão" assume seu sentido mais usual de imposição, pela força, da vontade do Estado, ou de contenção, sempre pelo emprego da força, de ações individuais ou coletivas. É também nesse contexto que ganham sentido as distinções dos atos repressivos, segundo sua conformidade ou incompatibilidade com leis, direitos ou princípios, definindo-os como legítimos ou ilegítimos.

Essas considerações conduzem a uma conclusão: no campo retórico-ideológico das esquerdas, as referências unilateralmente negativas à categoria "repressão" derivam sua justa motivação da história concreta da repressão - com viés étnico e de classe, e com clara orientação política - praticada pelas polícias brasileiras, especialmente durante o período ditatorial. Essas referências encontram sustentação conceitual, quase sempre, nas tradições liberais, sem que haja, entretanto, consciência dessa dívida teórica e sem que se extraiam dessa fonte algumas implicações positivas, particularmente aquelas que propiciariam a distinção entre a repressão ilegítima, negativa, contra a qual devemos nos insurgir, e a legítima, positiva e necessária. Acredito que a fonte seja liberal, porque as referências unilateralmente críticas evocam, de um modo tácito, a possibilidade de uma ordem social edificada em bases democráticas, o que as distanciam das teses leninistas ou foucaultianas. Lamentavelmente, o senso comum das esquerdas tende, com freqüência, a repelir genericamente a "repressão", como se toda repressão fosse negativa e criticável (ética, social e politicamente), e como se fosse possível preservar a ordem democrática sem controle, polícia e repressão. O trabalho policial é visto como essencialmente sujo e repugnante, com o que se desestimulam e menosprezam os investimentos reflexivos e políticos na área da segurança e se estigmatizam os policiais.

Já é tempo de olhar nos olhos a realidade da sociedade democrática, assumindo, no campo das esquerdas, nossos compromissos permanentes para com sua realização, seu desenvolvimento e para com a radicalização das conquistas que proporciona. Já é tempo de reconhecer que conviveremos com leis, limites e polícias, em benefício mesmo dos direitos, das liberdades e das conquistas sociais. Portanto, é hora de assumirmos com todas as letras que há uma dimensão positiva e indispensável nas tarefas legítimas de repressão e controle. Que elas podem e devem se dar em conformidade com o respeito aos direitos humanos e que, mais do que isso, constituem, na verdade, garantia prática de sua vigência histórica. Qualquer política séria e consistente de segurança pública envolve essa dimensão positiva da repressão, tem de preparar seu emprego, compreendê-la e valorizar sua qualidade legal e legítima. Tem de trabalhar o do uso da força e entender o papel do seu uso comedido na construção da paz e na manutenção da ordem pública democrática. As ambigüidades e hesitações de militantes e gestores de esquerda, nessa matéria, concorrem para a negação dos princípios que supostamente estariam defendendo. No vácuo de uma política correta, democrática, legítima, orientada pelo respeito aos direitos, tendem a prosperar a repressão ilegítima - aquela que desrespeita os direitos humanos - , a brutalidade policial, a violência criminal e a barbárie.

Segurança no Estado Democrático

O medo da palavra-tabu "repressão" e os rituais discursivos celebrizados nas liturgias políticas da esquerda envolvem a recusa da expressão "segurança pública", que só é admitida nos planos de governo, isto é, só é incorporada como temática legítima ou preocupação pertinente, positivamente, quando acompanhada por um adjetivo que exorcize a referência tácita à dimensão repressiva das funções policiais. Os adjetivos mais comuns são "cidadã", "democrática", "humanista". A suposição implícita é a de que "segurança cidadã" seja aquela da qual se possa falar sem vergonha e culpa, porque o qualificativo "cidadã" limpa a sujeira semântica da "segurança", preservando-lhe os sentidos sociais, positivos, preventivos, liberando-a de qualquer associação à "repressão". Por isso não costuma haver planos de segurança dos candidatos de esquerda aos governos; há, sim, planos de segurança cidadã.

Depois de tudo o que vimos sobre repressão, recuperando seu valor positivo, acredito que se compreendam as razões pelas quais considero equivocado e contraproducente esse pudor que só admite segurança adjetivando-a. Defendo a tese de que, ao contrário, o correto seria assumir o compromisso político para com a segurança pública, integrando nessa expressão todas as dimensões pertinentes, inclusive a repressão, como legítima e conforme à defesa dos direitos humanos. Essa a novidade política e esse o movimento criativo e arrojado que nos credencia a dirigir, politicamente, a sociedade também nessa área decisiva. Não há chance alguma de que uma força conquiste a hegemonia sem que se credencie a assumir a liderança na condução do processo de construção da paz e da ordem pública democrática, por métodos legais e legítimos. Nós é que temos de resignificar "segurança" e "repressão", na prática, nos programas e nos discursos, pois os novos significados que lhes atribuímos são aqueles para os quais reivindicamos o reconhecimento da sociedade como os únicos pertinentes e adequados ao Estado Democrático de Direito. Que os adversários da democracia qualifiquem segurança como truculência. Para nós, segurança significa estabilidade de expectativas positivas, compatíveis com a ordem democrática e a cidadania, envolvendo, portanto, múltiplas esferas formadoras da qualidade de vida, cuja definição subsume dignidade e respeito à justiça, à liberdade e aos direitos humanos.

É falso opor efeitos a causas da violência, quando se trata de elaborar políticas de segurança, sempre que essa dicotomia estiver a serviço do privilégio das causas, especialmente quando estas últimas remeterem a fatores estruturais. Simplesmente porque, além do fato de que a controvérsia científica é e permanecerá inconclusa, reaberta ante cada pesquisa, no caso da violência criminal as possíveis condições determinantes ou facilitadoras apenas cumprem suas eventuais funções criminogênicas pela mediação de dinâmicas bastante específicas, tópicas e contingentes, modeladas pelos respectivos contextos e variáveis com eles. Reformas estruturais não só exigem longo tempo de maturação e apenas produzem resultados a longo prazo, como podem ser promovidas sem que cessem seus supostos efeitos, desde que se autonomizem as mediações. Políticas preventivas de segurança têm de focalizar essas mediações, as quais constituem fontes que geram as dinâmicas em cujo âmbito surgem as manifestações da violência.

Uma metáfora exemplifica meu argumento: para prevenir incêndios, é indispensável cuidar da estrutura de uma casa, de sua fundação ao seu acabamento. É preciso, por exemplo, que o sistema hidráulico não prejudique o cabeamento elétrico. No entanto, engenheiros e arquitetos estarão isentos de culpa se o morador esquecer uma janela aberta e o vento balançar uma luminária suspensa, provocando um curto-circuito e um incêndio - prevenido por tantas medidas cautelares durante as obras. O gestor da segurança, além de zelar pela qualidade da obra, advertindo seus responsáveis e valorizando suas técnicas preventivas, tem de operar como um observador capaz de diagnosticar o risco que advém do gesto contingente do morador, antecipando-o e evitando-o, ou interceptando suas conseqüências. No limite, tem de ser o bombeiro.

A especificidade das políticas sociais preventivas, na área da segurança, está em sua capacidade de gerar efeitos imediatos, o que depende de sua aptidão para identificar fontes geradoras de problemas e de sua competência em interceptar as dinâmicas que produzem a violência. Para reduzir a violência, as causas que importam decisivamente, aquelas sobre as quais é necessário incidir imediatamente, são as fontes das dinâmicas em cujo movimento se produz a violência, e não são os fatores estruturais. O caso do tráfico de armas e de drogas - fundamental hoje no Brasil - é bastante peculiar, uma vez que tem produzido uma singular super-posição entre traços estruturais e contingentes, mediações culturais e dinâmicas muito particulares daquilo que se poderia denominar a política criminosa de recrutamento dos jovens.

É indispensável e urgente reformar as estruturas sociais, em benefício da justiça social, impondo uma inflexão nas desigualdades, reduzindo a miséria, expandindo a integração à cidadania e radicalizando a democracia, em todos os níveis. É igualmente indispensável e urgente interceptar as dinâmicas geradoras da violência, para salvar vidas, hoje. As duas metas são imprescindíveis e absolutamente necessárias, mesmo que a primeira não implique a produção dos efeitos visados pela segunda - ponto em torno do qual há forte controvérsia na comunidade acadêmica. Portanto, é inútil perder tempo discutindo se a primeira e a segunda são interdependentes ou autônomas. É preciso que o poder público se empenhe no cumprimento de ambas as metas, ao mesmo tempo e com a mesma energia. Nada mais falso, portanto, do que supô-las mutuamente excludentes ou contraditórias entre si. Mais uma vez, cabe destacar o caso do tráfico de armas e de drogas, para cujo enfrentamento esse duplo investimento é crucial.

A reforma das polícias

O investimento da qualificação e reforma das polícias é fundamental, valorizando-as, revigorando suas lideranças saudáveis, estimulando seu comprometimento com o trabalho preventivo, com os direitos humanos, apoiando sua presença interativa e dialógica nas comunidades, e, na esfera municipal, solicitando seu apoio permanente. Para que intervenções preventivas logrem êxito, freqüentemente, têm de ser acompanhadas por iniciativas policiais que garantam, por exemplo, a liberação dos territórios, quando eventualmente estiverem sob domínio de grupos armados. O poder público não pode permitir que espaços sociais sejam subtraídos à vigência do Estado Democrático de Direito. Todos os exemplos conhecidos de sucesso exigiram a colaboração estreita entre ações policiais qualificadas e intervenções sociais focalizadas.

Por essa razão, até mesmo um programa municipal deve ser construído em diálogo com as instituições policiais e em parceria com elas. O recrutamento dos jovens por fontes positivas que os atraiam para a sociabilidade pacífica precisa vir acompanhado da sinalização bem clara dos limites com que se chocarão, caso optem pela adesão às dinâmicas criminais e pelas práticas violentas. Os limites são estipulados pela legalidade, que garante a liberdade de cada indivíduo ante a eventual ameaça de alguma força arbitrária que pretenda violá-la.

A segunda suposição consagrada no senso comum politizado - e subvertida nos programas de segurança pública progressistas comentados a seguir - é aquela segundo a qual a violência, sobretudo a violência criminal, é filha bastarda da miséria e da desigualdade. Esse diagnóstico torna tudo muito fácil, porque reforça a crença de que a fonte única do mal é o capitalismo e, em especial, sua versão mais perversa, o neoliberalismo. O raciocínio permite que renunciemos a toda responsabilidade na matéria, ampliando o apoio popular à proposta de transformação social. Nossas convicções se revigoram e as propostas permitem síntese unificada, sob a bandeira única do combate ao neoliberalismo. Infeliz ou felizmente, o mundo social é bem mais complicado.

Os Estados brasileiros mais pobres não são os mais violentos. Os países mais miseráveis não são, necessariamente, os mais violentos. Sociedades profundamente desiguais nem sempre são violentas. Os resultados dos estudos científicos realizados nas sociedades ocidentais variam e, com freqüência, se contradizem. Minha convicção pessoal é a seguinte: a miséria e a desigualdade são extremamente importantes, no Brasil, como fatores geradores de crime, apenas na medida em que incidem sobre esses fatores determinadas mediações culturais, cujo papel é decisivo. A reação criminal e, especialmente, a reação criminal violenta não representam uma resposta natural, universal, nem correspondem a uma solução lógico-racional, ideologicamente tematizada. Essa reação só se apresenta como possibilidade real quando incorporada ao repertório inteligível e valorizado de práticas de um grupo social, ou seja, quando culturalmente acessível e moralmente assimilada, no universo de referências simbólicas e afetivas, e nos códigos morais de determinados grupos e segmentos etários. A violência, como todas as práticas humanas experimentadas na vida social, é aprendida e ensinada, transmitida pela rede de relações, no âmbito de determinados dispositivos de subjetivação que organizam saberes populares, regras morais específicas, constelações psicológicas correspondentes, estruturas locais de micropoderes, hierarquias comunitárias, valores, símbolos e linguagens compatíveis com o exercício de determinados procedimentos e métodos de ação. Ser capturado por essa teia psico-moral-simbólico-político-prática requer algumas predisposições, para as quais, a meu juízo, a fome de existir, de ser acolhido, reconhecido e valorizado, como pessoa singular e ser humano, é mais profunda, radical, sentida e impactante, mais capaz de sensibilizar os agentes - ditando-lhes cursos de ação e adesões a configurações culturais e morais alternativas - do que a fome física, ainda que esta seja, evidentemente, de grande importância, em todos os níveis - que não paire dúvida alguma quanto a esse último ponto, para que não se reduza minha posição a um idealismo simplório.

Por isso, saciar a fome de existir é imprescindível e urgente. Garantir visibilidade como ser humano requer proporcionar um olhar generoso que devolva ao outro a humanidade que só a relação e o reconhecimento podem proporcionar. Vale insistir: um ser humano não se identifica como tal sem a mediação do olhar alheio, do reconhecimento do outro, sem a relação que acolhe a alteridade, valorizando-a. Essa a matriz de qualquer intervenção que se credencie a competir com as fontes de recrutamento da juventude para práticas criminosas e modelos de autoconstituição subjetiva compatíveis com a experiência da violência. Essa a razão profunda para a abordagem sugerida, por exemplo, pelo programa de segurança municipal de Porto Alegre, referido anteriormente, voltado para a disputa por cada destino individual e para a competição com as fontes negativas de recrutamento dos jovens, por meio da constituição de fontes de recrutamento positivas.

A visão antropológica que proponho parte do caráter aprendido da violência, desnaturalizando-a, e se indaga sobre os mecanismos e instrumentos dessa educação para o crime, dessa formação para a violência, dessa anti-Paidéia, dessa Bildung perversa, dessa organização de carreiras marginais que visam ao mercado clandestino. Os jovens não caem no abismo, não são atraídos pelo vazio, assim como as práticas violentas e criminosas não são o avesso do mundo da ordem, da sociabilidade, da cultura que reconhecemos. Há conteúdo no que nossas metáforas denominam "abismo", "vazio", "avesso". Para mudar essas dinâmicas é preciso compreender sua complexidade, sua positividade sociológica, isto é, suas regras próprias de funcionamento, sua lógica específica, seus valores. O mundo que pensamos como o avesso da ordem tem densidade e apresenta vantagens comparativas, na competição com o mundo da ordem, não só por conta das inegáveis carências e injustiças deste último, mas também em razão de suas qualidades intrínsecas - qualidades que consideramos perversas e destrutivas, que tenderão a condenar esses jovens à morte precoce e estúpida, mas que apresentam atrativos e prometem vantagens para eles. Se não compreendermos essa "positividade", não entenderemos o funcionamento do universo com o qual competimos.

Portanto, a exclusão da cidadania, o empobrecimento provocado pelas políticas neoliberais, o aprofundamento da desigualdade são fatores da maior relevância, mas apenas se traduzem em mais violência pela mediação de determinadas condições culturais. Retomando a tese exposta anteriormente, é imperioso e urgente mudar esse quadro, por todas as razões imagináveis e até mesmo para reduzir a violência. Contudo, esse efeito só adviria se, além dessas mudanças estruturais, houvesse a interceptação das dinâmicas geradas nas fontes mais imediatamente vinculadas às práticas da violência, inscritas em sua esfera específica de realidade. Assim como poderíamos ter, se me é perdoado o contrafactual, o contexto econômico de carências e desigualdades sem a violência criminal que conhecemos, também poderíamos ter a redução das carências e desigualdades com a permanência e a expansão da violência criminal. As redes de condicionamentos recíprocos ultrapassa e transgride a lógica da causalidade linear. A centralidade da mediação desloca nosso problema para uma dimensão de complexidade superior, atravessada por múltiplas linhas de força e temporalidades. Por isso todo programa consistente de segurança pública não pode furtar-se a trabalhar com mediações, ao nível do diagnóstico e da terapia.

O terceiro tópico importante, neste inventário de intervenções tacitamente questionadoras, diz respeito à tese tradicional sobre a importância do emprego como vetor de integração ao mercado e à sociedade. Esse ponto também já foi discutido anteriormente, mas merece aprofundamento. Não é demais repetir, sublinhando a ênfase: os jovens pobres nem sempre estão interessados numa integração subalterna ao mercado, nem sempre estão dispostos a reproduzir o itinerário de fracassos econômicos de seus pais, sua trajetória de derrotas, sua biografia de infortúnios, tanto esforço sem recompensa. Como disse anterior mente, nem sempre esses jovens são sensíveis a uma interpelação voltada para fazê-los mecânicos de nossos carros, pintores de nossas paredes, engraxates de nossos sapatos. Vale reiterar: os jovens pobres querem o mesmo que os filhos da elite e das camadas médias. Querem internet, tecnologia sofisticada, computador, mídia, televisão, cinema, teatro, fotografia, artes, cultura, música, dança e esportes. Se pensarmos em capacitação e emprego, trabalho e renda, temos de estar preparados para ouvir, para entrar em sintonia com o desejo dos jovens pobres das vilas e periferias, com suas fantasias, com suas linguagens, ou não seremos capazes de capturar seu imaginário e de promover a integração com que sonhamos. Nesse sentido, nossa política econômica dirigida tem de se articular com a globalidade de nossa política de redução de danos, de redução da violência, de interceptação das dinâmicas geradoras da violência. Por isso, dir-se-ia com propriedade que esse programa econômico é, simultaneamente, um programa cultural e intersubjetivo, e esteticamente orientado, porque sintonizado com o estilo adotado pelas estratégias locais de autoconstituição subjetiva.

Outro ponto-chave é o cuidado necessário para evitar que se pensem as políticas públicas antiviolência como políticas de massa, voltadas para metas funcionais e genericamente referidas a populações ou grupos sociais. O segredo do programa consistente, na área da prevenção à violência, é seu esforço original de "customizar" a política pública, isto é, trabalhá-la de modo que ela satisfaça necessidades singulares e desejos individualizados. Para que uma política pública cumpra a função de restituir visibilidade, reconhecer o valor pessoal, acolher o indivíduo, é preciso que se ofereça, aos sujeitos que compõem seu público-alvo, aberta a apropriações individualizadas e apta a distinguir cada beneficiário, identificando-o em sua singularidade, isto é, atribuindo-lhe o lugar de sujeito do processo de assimilação da oportunidade que se lhe proporciona. Daí também a importância crucial das famílias, nesse esforço de evitar que os jovens sejam recrutados pelo tráfico. Justamente pelas razões expostas, o fortalecimento social, econômico e subjetivo-psicológico ou cultural (em sentido amplo) das famílias constitui a melhor barreira de proteção para os jovens, uma vez que nenhuma política de Estado, assim como nenhuma ação de organizações da sociedade civil, consegue ser tão individualizada, tão capilarizada, tão afetivamente competente e certeira como o acolhimento familiar. Portanto, as famílias devem ser o alvo prioritário das políticas públicas dirigidas aos jovens.

Participação, democracia e cidadania

"Protagonismo" é uma palavra emblemática, no léxico político das esquerdas e das tradições humanistas. Remete a participação, democracia e cidadania. Refere-se ao valor que se confere à sociedade, às suas iniciativas espontâneas, à sua própria organização e à sua autonomia. É sinônimo de respeito à independência dos agentes individuais e coletivos não-partidários, sobretudo dos sem-poder. Nessa medida, implica a recusa das velhas práticas da cooptação - à direita, pela via do fisiologismo clientelista; à esquerda, pela via do monopólio centralizador e burocratizante do partido stalinista, que se confunde com o Estado e a sociedade, esmagando-a.

"Protagonismo" muitas vezes é enunciado como um bordão saudável, libertador, que ajuda a exorcizar os riscos do poder. Como toda chave semântico-política, entretanto, pode degradar-se em chavão e, invertendo seu sentido, passar a servir aos propósitos que se destinava a evitar, reiterando o velho paradigma narodinik, em que é típico o vocabulário do protagonismo popular. Para evitar essa hipótese, impõe-se o cuidado de evitar seu emprego fácil, como um simples selo artificial de qualidade democrática, que se cola nos produtos e serviços fornecidos pelo estado ou pela prefeitura. Nem sempre a palavra se aplica. Só faz sentido usá-la, em alguns contextos, se há contextos e casos aos quais ela não se aplica. Como reconheço que faz sentido usá-la e como a valorizo, devo reconhecer que ela não se aplica a certos casos e contextos. Para identificá-los, sinteticamente, por dedução lógica e antecipadamente me desculpando pelo truísmo, diria que tais contextos são aqueles nos quais não é pertinente atribuir à população ou a indivíduos determinados a responsabilidade pela decisão ou pela condução de processos. Nos programas de segurança há casos em que o protagonismo popular deve ser proposto com ênfase, mas há também aqueles em que a palavra não deve aparecer, porque os processos em pauta não permitem. O mais interessante a destacar aqui é que há circunstâncias em que o protagonismo popular não apenas é impertinente como sua impropriedade é que deve ser enfatizada. Por mais estranho que soe, há situações em que a virtude da política pública está justamente no estabelecimento claro de que o "protagonismo" é função única e exclusiva do poder público.

Um exemplo: sem nenhuma dúvida é positivo, mais que isso, é essencial atribuir protagonismo aos jovens, para que se eduquem na participação cívica, cooperativa e solidária, para que valorizem sua inserção pacífica e construtiva na sociedade, e para que exibam suas virtudes, reforçando a auto-estima. Por outro lado, quando jovens precisam de acolhimento e reconhecimento de seu valor, necessitam vivenciar uma relação plena, a qual, por sua vez, só existe se o outro assumir inteiramente sua diferença, sua autonomia, sua alteridade. Esses jovens precisam encontrar outros significativos, outros que exponham sem hesitações sua alteridade, sua autonomia, o poder que afirma e garante essa autonomia, isto é, sua autoridade. Esses meninos e meninas precisam de agentes públicos humanizados que se afirmem como autoridades e que os valorizem, e necessitam também do contato com a alteridade representada pela instituição pública como tal, qualificada em sua alteridade pela autoridade de que se reveste e pela especificidade das regras que norteiam suas decisões. Essa tese vale para muitos casos que envolvem jovens em situação de risco social. Respeitar unilateral e ilimitadamente as vontades juvenis pode significar grave desrespeito aos direitos desses mesmos jovens à proteção, à segurança, a condições dignas de vida, saúde, alimentação, moradia, acolhimento afetivo e educação.

Confusão análoga seria aquela que tratasse a problemática dos meninos e meninas de rua com a mesma categoria: "protagonismo". Isso levaria à suposição absurda de que essas vítimas lançadas à rua poderiam converter-se em sujeitos, como personagens da rua, como se esse pudesse ser o espaço da realização de sua liberdade. O equívoco do raciocínio se desvela invertendo-se o contexto e perguntando-se a quem defende esse argumento: o que você faria se seu filho, criança ou adolescente, lhe declarasse que agora é livre e vai mudar-se para a rua? Você saudaria o protagonismo recém-conquistado de seu filho ou imporia sua autoridade, dizendo-lhe que você o ama, o quer em casa, que seu lugar é em casa e que, mesmo que ele/a não entenda e não queira, será forçado/a a ficar em casa, onde o protagonismo continuará sendo dos pais?

O sétimo argumento tematiza a unidade dos seis pontos precedentes e, por esse viés, focaliza a importância crucial da unidade de todo programa de segurança que se quer consistente, não apenas no sentido trivial de que a integração entre os projetos e as iniciativas os fortalece mutuamente, ampliando as chances de sucesso do conjunto, mas no sentido talvez contra-intuitivo de que a unidade de um programa desse tipo é diferente, qualitativamente, e mais importante do que o somatório ou mesmo a articulação orgânica de suas partes ou dos segmentos que o compõem.

A qualidade do programa, como unidade, se reporta, produzindo-a, à legitimidade e à autoridade da agência gestora, cuja personalidade singular é igualmente indispensável, mesmo do ponto de vista político e simbólico, não só da perspectiva operacional. Ambas, a qualidade ou eficácia do programa e a legitimidade ou autoridade da agência gestora - sua liderança, sua capacidade de dialogar e, principalmente, sua sensibilidade e sua humildade para ouvir - , constituem condição sine qua non para que se promova um efeito absolutamente decisivo: a circunscrição da problemática, sua inscrição na agenda pública por uma linguagem particular e a focalização política dos territórios ou espaços sociais nos quais se implantarão, gradual e progressivamente, os projetos - sempre que esse método de implantação for viável, considerando-se a natureza dos projetos e dos problemas visados, ele deveria ser adotado.

Essa focalização é indispensável para que se dêem os resultados esperados. Por várias razões, entre as quais a motivação dos atores locais, a mobilização societária que enseja, a convergência entre os movimentos suscitados e, sobretudo, a formação e disseminação de novo padrão de expectativas, geradoras de profecias positivas que se autocumprem, acionando ciclos virtuosos, nos jogos cotidianos da sociabilidade. Os operadores locais das agências públicas e os policiais passam a supor a presença insidiosa e pervasiva, quase ubíqua, do "observador societário universal", e tendem a acomodar-se às novas circunstâncias, agindo em conformidade com a transparência presumida. Dinâmica homóloga - com sentido invertido - se instala entre os operadores do mercado clandestino do crime e entre os agentes da violência.

Sendo a segurança pública matéria, por excelência, de expectativas, atua-se sobre o nervo mesmo da problemática, graças à focalização política, que depende, insisto, de circunscrição da problemática - com determinado tratamento da agenda pública - e de demarcação territorial, para que se potencializem os efeitos de contágio metonímico positivo, alterando padrões de expectativas.

* * *

Os pontos destacados talvez ajudem a esclarecer alguns aspectos dos programas expostos, aspectos insuficientemente explorados no corpo do texto que os expõe ou apenas tacitamente referidos. Convém salientar esses tópicos especialmente controversos para que o debate se enriqueça, mas, sobretudo, para que sua compreensão não seja prejudicada pela projeção acrítica das pressuposições inspiradas no senso comum.

O conjunto dessas observações também serve para demarcar, com mais clareza, a especificidade dos programas propostos pelas políticas de segurança expostas, distinguindo-as das políticas usualmente elaboradas e aplicadas pelos governos conservadores.

Luiz Eduardo Soares é secretário nacional de Segurança Pública e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Foi professor-visitante das universidades de Columbia, Virginia e Pittsburg, nos Estados Unidos.

  • Notas

    1 Refiro-me ao complexo institucional, daí o emprego do singular - que envolve as duas corporações policiais estaduais, as polícias Civil e Militar, além da Polícia Federal.
  • 2
    Estes dados encontram-se no trabalho coordenado pelo professor Jacobo Waiselfisz,
    Mapa da violência III, publicado pela Unesco com o apoio do Ministério da Justiça e do Instituto Ayrton Senna em 2002.
  • 3
    Esse trecho foi baseado na palestra "Reforma da polícia e a segurança pública municipal", proferida na Universidade de Oxford, em 11 de maio de 2002, no Centro de Estudos Brasileiro, dirigido pelo professor Leslie Bethell.
  • 4
    Esses pontos estão incluídos e especificados, em detalhes, no Plano de Segurança Pública, coordenado por Antonio Carlos Biscaia, Benedito Mariano, Luiz Eduardo Soares e Roberto Aguiar, confeccionado no âmbito do Instituto Cidadania, com assessoria especial de Paulo Brinckman, dirigido por Paulo Okamoto e presidido por Luiz Inácio Lula da Silva, apresentado à sociedade em fevereiro de 2002.
  • *
    Resumo elaborado pela Editoria da revista. O trabalho completo será publicado no livro
    Modo petista de governar (Editora Fundação Perseu Abramo).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Ago 2008
    • Data do Fascículo
      Abr 2003
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