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A crise e a realidade política

DOSSIÊ CRISE DO CONGRESSO

A crise e a realidade política

Luiz Werneck Vianna (Entrevista)

O CIENTISTA POLÍTICO Luiz Werneck Vianna foi entrevistado pelo editor executivo de ESTUDOS AVANÇADOS, o jornalista Marco Antônio Coelho, para falar sobre a crise do Congresso. A entrevista foi realizada em 21 deagosto de 2009, no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj).

Além de analisar as causas do impasse que ocorre no Parlamento brasileiro, Luiz Werneck Vianna deu sua opinião sobre diversos problemas políticos. Comentou questões candentes como a atuação de Lula, qualificado por ele como o grande negociador que monopoliza a política no Brasil. Enfatizou o enfraquecimento do Partido dos Trabalhadores (PT), a judicialização da política, as perspectivas das eleições presidenciais em 2010 e fez um prognóstico do que acontecerá quando Lula sair da Presidência. Assinalou que a mídia, a Polícia Federal e o Ministério Público são hoje uma presença explosiva na vida republicana brasileira.

Luiz Werneck Vianna é graduado em Direito e Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É mestre em Ciência Política e Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro e doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Recebeu o título de pós-doutor na Universita Degli Studi di Milano. Ele é professor no Iuperj. Entre seus diversos livros, destaca-se Esquerda brasileira e tradição republicana: estudos de conjuntura sobre a era FHC-Lula (2006).

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ESTUDOS AVANÇADOS - Como o senhor analisa a crise do Congresso?

Luiz Werneck Vianna - Antes de ser uma crise do Congresso, ela é mais ampla, é uma crise da representação política no Brasil, em razão de um quadro permissivo, que se tornou dominante após o fim, em meados dos anos 1980, do regime de exceção. A expectativa era a de que com o tempo houvesse uma sedimentação, uma definição, uma relação mais tangível entre a "classe política" (categoria que somente se pode usar com liberdade poética), a população e a cidadania.

Essa sedimentação não ocorreu tal como se previa. Ficamos com um sistema constituído por uma multidão de agremiações partidárias, o que não ajudou a estabelecer uma relação sólida e estável entre o representante (o parlamentar) e o representado (o eleitorado).

Esse é um dado que não se deve obscurecer. Por mais que o tema tenha sido examinado pelos pesquisadores da política brasileira, não se consegue um consenso mínimo para se instituir uma reforma política no Brasil. Reforma que seja capaz de criar um novo campo em que os parlamentares falem menos para cima, olhem menos para o Executivo e tentem estabelecer relações estáveis e permanentes com a sociedade civil.

Na verdade, vivemos uma lógica em que a principal preocupação da "classe política" é a sua reprodução. Nesse sentido, para ela, torna-se essencial o acesso à dimensão governamental onde estão os recursos, as possibilidades de obras que interessam à região do parlamentar, porque está fundamentalmente orientada para sua autoperpetuação.

Esse fenômeno é mundial, o que não remedia seus efeitos negativos entre nós. Fala-se disso na França, nos grandes países desenvolvidos do Ocidente, onde a democracia deveria estar "madura". Mas, aqui, esse processo atingiu um nível paroxístico, especialmente desde que se introduziu esse arranjo político qualificado como um "presidencialismo de coalizão".

No passado recente, ocorreu o impeachment do Collor, um presidente que tentou governar sem a maioria no Congresso. Desde então, os presidentes que o sucederam têm como estratégia fundamental de seu governo criar uma coligação de diferentes partidos para conseguir sustentação no Congresso. Embora esse poder esteja fraco e cronicamente em crise, o Executivo, que está forte e poderoso, calcula, com razão, que não pode governar sem contar com uma maioria confiável nele. E assim se vê obrigado a abdicar de partes importantes do programa que o levou à vitória eleitoral, uma vez que elas não são consensuais entre os partidos que vão constituir sua base parlamentar.

ESTUDOS AVANÇADOS - Como Lula montou o apoio parlamentar a seu governo?

Luiz Werneck Vianna - O governo de Lula ficou atento aos riscos decorrentes dessa fraqueza parlamentar. No início, procurou uma via institucional que era aparentemente promissora. Organizou o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, nele colocando representantes da vida associativa da sociedade brasileira - empresários, trabalhadores, diversos tipos de profissionais etc.

A ideia era criar um lugar onde pudesse se formatar opiniões, robustecidas em razão da sua própria origem, levando-as ao Parlamento com essa credencial. Nessa época temeu-se inclusive que esse Conselho viesse a significar um complô, um atalho, que deixasse o Poder Legislativo um tanto destituído de poder. O Conselho não ocupou esse papel e teve pouco resultado na formação da opinião pública e pouco alcance nas opiniões do Congresso.

Isso ocorreu na medida em que o próprio Executivo criou mecanismos que facilitaram o acesso à vida congressual, ou seja, mobilizar partidos (não necessariamente consistentes com o programa de governo original de Lula), mas que assegurassem sustentação política ao governo. Essa sustentação política era garantida pela abertura, na máquina da Administração, aos representantes desses partidos, de um loteamento da máquina pública a serviço desses interesses. Na verdade, estabeleceu-se um mercado - a política constituiu-se num mercado - e o episódio do "mensalão" é um registro da existência desse mercado. O apoio político se traduzia em um fato mercantil, os partidos e os seus representantes parlamentares recebiam prebendas institucionalizadas que garantiam a sustentação política do governo no Congresso.

A luta do Executivo exigido para estabilizar o seu poder diante da desorganização da vida congressual não é pequena. O Executivo que aí está atua em razão da lógica desse sistema, da estrita lógica política desse sistema, do Fernando Henrique ao Lula. Atua no sentido de capturar setores muito pouco expressivos da vida política brasileira, no sentido de compor uma maioria, e fazendo isso com uma gramática mais dominada pela vida mercantil do que pela vida política.

Essa exposição foi perigosa, como se demonstrou no episódio do "mensalão", experiência negativa que, a partir do segundo mandato de Lula, significou o abandono de uma política de varejo pela de atacado - isto é, coligar com o principal partido político brasileiro que é o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB).

Abrindo a Administração pública, em seus diferentes níveis, aos interesses dos dignitários desse partido que, em cada região, visam assegurar a sua perpetuação e seus quadros e sua votação. É uma política dominada por interesses fragmentários de regiões e de microrregiões. Cabe ao Executivo a concepção da grande política que, no entanto, tem de respeitar os limites impostos pela natureza da coalizão política realizada.

Com a radicalização dessas tendências nessa última fase, não satisfeito em atendê-las com postos do segundo escalão da Administração, Lula chamou a todos para dentro do governo: o capitalismo agrário e, digamos, o seu contrário, o Movimento Sem-Terra (MST); os grandes empresários da indústria, das finanças e os trabalhadores. (Os sindicatos estão mais presentes no governo Lula do que em qualquer outro momento da vida republicana brasileira, inclusive com Getulio.)

Com essa prática, instituiu um Parlamento paralelo dentro do governo, acamando e arbitrando os diferentes interesses contraditórios que se manifestam na sociedade. Nesse sentido as chamadas reformas - tributária, política, trabalhista, sindical - não são processadas no interior da sociedade nem no seu cenário principal, isto é, no Congresso. A arena principal é intramuros, é no governo.

Sob a arbitragem do presidente da República, que decide sobre os interesses conflitantes, essa é uma engenharia que tem levado o Executivo brasileiro a um protagonismo imenso. Todavia, através de diferentes instituições e procedimentos, Lula atenua a força do Parlamento. E, mais do que isso, se credencia a atuar a partir de seus interesses no interior do Congresso.

A crise da presidência do Senado é uma testemunha desse fato. O principal sistema de defesa do senador Sarney estava fora do Congresso, sob o controle do presidente da República. A crise tinha o poder de ameaçar a base do governo, inclusive os quadros de seu próprio partido, com obstáculos futuros na condução de sua batalha eleitoral. Tal fato ficou claro no episódio com o senador Aloysio Mercadante.

A discussão sobre o sistema de orientação e o projeto de Brasil, questão que é essencial, não encontra seu lugar no Parlamento. Por sua vez, a sociedade se acha inteiramente deslocada da política, que é vista por ela como um lugar de espetáculo, os parlamentares encenando sua comédia de erros à frente de todos.

Podem ocorrer coisas como as que se passaram na Receita Federal. A secretária da Receita, uma militante do PT, indicada pelo sindicato de petistas, toma posse e substituiu os homens da administração anterior. A ação dessa secretária e de seu grupo de sindicalistas ligados ao PT provoca uma crise profunda, vindo a atingir o governo, que vai encontrar sua melhor defesa na crítica do antigo secretário no governo do Partido Social Democrata Brasileiro (PSDB), Everardo Maciel, ao comportamento da secretária petista demitida da Receita.

Uma comédia de erros é o resultado dessa inarticulação entre o Executivo e os demais Poderes, a sociedade e com sua própria burocracia. De passagem, diga-se que esses casos da Receita Federal e na Polícia Federal são sinais de que a política não está controlando, não está exercendo jurisdição sobre a burocracia, que está tendendo a atuar de forma autônoma.

Lula monopolizou a política

Só quem faz política hoje no Brasil é o senhor Luiz Inácio Lula da Silva, que monopolizou a política. Ele e seu grupo mais reduzido têm um programa, um projeto que inclui temas notoriamente relevantes, como a questão nacional, a Justiça Social, o desenvolvimento das forças produtivas materiais, mas isso desaba de cima para baixo, para a sociedade organizada e não organizada, incluindo os partidos e parlamentares.

Temos aí um decisionismo do Executivo muito evidente e com instrumentos capazes de reduzir os outros à impotência e à submissão. Inclusive porque esse Executivo está identificado com políticas de largo alcance social, como a Bolsa Família, a elevação do salário mínimo e agora uma revisão das aposentadorias.

O Executivo desfruta de um prestígio imenso diante da maioria da população, especialmente da população que não tem uma tradição de relacionamento com a vida pública e com os partidos, uma população desorganizada que é a contraface desse processo que mencionava antes. Ou seja, o fato de o Executivo contar com os recursos capazes de favorecer ou desfavorecer a reprodução da "classe política", enquanto tem na massa da população um apoio autêntico, genuíno, derivado de suas políticas públicas.

O quadro eleitoral de 2010

ESTUDOS AVANÇADOS - A crise política vai ter consequências nas eleições do próximo ano?

Luiz Werneck Vianna - Já está tendo. A saída da senadora Marina Silva do PT ingressando no Partido Verde (PV) não é apenas a transferência de uma parlamentar. É a saída de uma bandeira que não tem apenas importância e relevância nacional na medida em que afeta hoje a esfera internacional. Não é um fato de alcance reduzido porque vai mexer com a estrutura partidária brasileira. E mexer para melhor. Na esteira da Marina já se fala inclusive na possibilidade da candidatura de Ciro Gomes pelo "bloquinho", do Partido Socialista Brasileiro (PSB), do Partido Comunista do Brasil (PC do B) e de outras agremiações. Não sei se essas gestões irão se viabilizar.

Mas, de qualquer forma, tudo isso resulta em certa animação política, sobretudo porque se percebe no horizonte, independente de qual será o resultado eleitoral em 2010, não se terá mais Lula como grande operador. Esse dado não será um resultado trivial, mesmo que vença sua candidata.

Dilma Rousseff não tem as credenciais pessoais para administrar o inventário que Lula irá deixar. Para a grande massa da população, ela não tem carisma e não tem um bom perfil para enfrentar as contradições dos grandes interesses. A identidade política dela é mais definida do que a de Lula, enquanto este desde o começo de sua vida sindical sempre foi e permanece sendo o grande negociador.

Na medida em que o tempo transcorre vai indicando que, quando o grande operador se retirar para o São Borja dele, lá em São Bernardo, o jogo se tornará mais fluido. Especialmente porque o partido do governo, o PT, perdeu força ao longo dos dois governos do seu presidente. O partido está mais fraco, mais desorientado, mais inarticulado.

Além disso, o PT é um partido que não encontrou um caminho da homogeneização política e ideológica e onde não aparecem novas lideranças poderosas. As grandes lideranças do PT, como Genuíno e José Dirceu, não gozam mais da glória antiga. O Palocci volta, mas sem a força de antes. Quais são os quadros que o PT formou ao longo de oito anos? São peças burocráticas, operativas. O presidente atual, Berzoini, é uma dessas, um homem sem luz própria, não é um condutor, é um conduzido.

Haverá um cenário sem o Lula mais construtivo do que o cenário que tivemos com ele. Pois, com ele tivemos oito anos de paz, mas, em contrapartida, a oposição foi reduzida à impotência e o Congresso foi levado para a área de influência do Executivo, que imobilizou os setores subalternos da sociedade pela sua política social assistencialista e pela sua política de integração simbólica.

O presidente sempre reivindica sua origem popular e faz isso com enorme autenticidade. Com Dilma ou com Serra que têm projetos mais ou menos definidos, os conflitos irão se aprofundar porque não vamos mais atuar nesse cenário criado por Lula, que impedia que os conflitos saíssem das câmaras palacianas para as ruas. Conflitos arbitrados por ele.

Uma reforma política possível e o parlamentarismo

ESTUDOS AVANÇADOS - Tendo em vista esse futuro, o senhor acredita que esses choques irão se aguçar ou encaminharemos para a solução de muitos problemas se for realizada uma reforma política. Mas como poderia ser essa reforma política?

Luiz Werneck Vianna - Não sei como seria porque não há reforma política ideal. Os países encontram seu sistema partidário e sua forma de representação política por ensaio de tentativa e erro. Veja a França, quantas tentativas até 1958 com De Gaulle! E de 1958 para cá o sistema tem funcionado. Uma reforma política não é feita na base do trabalho de um sábio, que, após consultar todas as legislações do mundo, afinal descobre aquela reforma política que se adaptaria melhor ao país. Não é disso que se trata. Ela é feita no calor da luta política. Um sistema exclui determinados setores, outro mantém as maiorias representadas... Tudo depende da luta política. Para mim, a palavra-chave é entender que o mandato pertence ao partido político e não ao parlamentar. Qualquer reforma que não avance nessa direção está condenada à frustração, pois irá reiterar o que já temos.

ESTUDOS AVANÇADOS - O senhor seria a favor do distrital puro ou misto?

Luiz Werneck Vianna - Eu seria favorável a uma combinação do sistema majoritário com o proporcional, isto é, um sistema misto. Outro tema que também me parece absolutamente indispensável, associado a esse, é o financiamento público das campanhas eleitorais, a fim de descontaminar as eleições do dinheiro.

ESTUDOS AVANÇADOS - Num passado até recente apresentava-se a tese do parlamentarismo. Será que não chegou a hora e a vez de reviver a movimentação em favor do parlamentarismo?

Luiz Werneck Vianna - Não, para isso precisaria antes ter algumas coisas prontas: esferas públicas mais organizadas, além de partidos mais encorpados. O parlamentarismo agora soaria como uma perda de poder por parte da grande massa da população, que se vê representada na Presidência da República. Esse é o seu lugar de representação. Também não devemos esquecer nossa tradição imperial...

O moralismo e a batalha contra a corrupção

ESTUDOS AVANÇADOS - Aparentemente, a crise política que cresceu e permaneceu nas manchetes da imprensa teve como origem denúncias de corrupção. Não foi causada por nenhuma questão relacionada com a economia. Esse fato não mostra que as questões ligadas à corrupção têm uma influência decisiva na vida política? Relembro que no episódio do suicídio de Getulio, em 1954, o que desencadeou a crise foi o problema da corrupção no governo. Como analisa o fator da moralidade pública no processo político brasileiro?

Luiz Werneck Vianna - Peço licença para ir contra o senso comum e advertir para os perigos da penalização da República, fazendo com que o Código Penal ameace se tornar um dos instrumentos principais da vida republicana brasileira. Esse entendimento é responsável inclusive pela conversão da arena política numa enorme arena judiciária. Penso que a mídia é a principal protagonista nessa questão, especialmente através da sua linha do jornalismo investigativo. A mídia, a Polícia Federal e o Ministério Público hoje atuam juntos e significam uma presença explosiva na vida republicana brasileira. Não é pouco frequente a percepção de que alguns casos mais evidentes, mais notórios e que mais mobilizam a opinião pública decorrem de uma articulação dos três - a mídia, a Polícia Federal e o Ministério Público.

O propósito alegado seria o da luta pela moralidade e pela criação de virtudes republicanas. Tudo isso deixa de ser assunto dos partidos e da sociedade organizada e passa a ser assunto de corporações de Estado e da mídia que não estão sujeitas a quaisquer mecanismos de controle social. Entendo que a ordem racional-legal, o tema da moralidade pública são questões fundamentais que devem ser protegidas e desenvolvidas. Mas não creio que isso seja objeto de monopólio de uma corporação ou de uma mídia que não presta contas a ninguém, a não ser a si mesma.

Note que, apesar da notoriedade desses últimos escândalos, a sociedade não se deixou mobilizar. Não foi tocada politicamente, como sucedeu no impeachment do Collor. Contudo, certamente tudo isso nos serve de sinalização para mudanças de comportamento e de atitude. Penso que, a partir de agora, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal terão formas de governo da sua vida interna e administrativa diferentes daquelas preponderantes até então.

O Brasil moderno deve respeitar o atraso

ESTUDOS AVANÇADOS - Não houve uma mobilização da opinião pública em torno do problema do Senado. Isso seria talvez uma decorrência do fato de que Collor assumiu a Presidência da República sem o apoio de base e sem tomar medidas em favor das grandes massas, enquanto outra é a conduta de Lula?

Luiz Werneck Vianna - Concordo inteiramente. Mas, se a questão fosse tão sensível para as grandes maiorias, elas já teriam se antenado com essa crise, com esse escândalo no Senado. Mas elas não se antenaram e acho que não vão se antenar.

Chamo sua atenção para outra coisa que necessita ser analisada. Refiro-me ao fato de que os governos de Fernando Henrique e de Lula são expressões do moderno, de interesses modernos de São Paulo. Enfim, dos setores mais renovadores. Mas há um outro país, como esse Norte que é meio selvagem, com um capitalismo novo, com heróis empresários de tipo novo, muitos deles originários de setores subalternos da sociedade, especialmente na lavoura de soja, nessa fronteira do capitalismo brasileiro. Essa fronteira é enérgica, tem uma vida mercantil poderosa, não passou pelo batismo da civilização, não tem o verniz da civilização. Ela é apetitiva e apaixonada por seus próprios interesses. Ela não conhece a vida republicana.

ESTUDOS AVANÇADOS - Mas, ao mesmo tempo, esse setor tem uma representação política muito grande, a começar pela presença no Senado.

Luiz Werneck Vianna - Eu sei e aí é que está o problema. Esse setor, não só pelo seu peso na vida social e econômica do país, mas também pela sua representação política, tem de ser considerado apesar da hipoteca de atraso que encarna. Não é isso? Então, o moderno tem sido obrigado a incorporar o atraso para estabilizar seu governo, estabilizar seu poder. Isso foi feito pelo Fernando Henrique, é feito pelo Lula, mas não se pode exagerar na dose.

ESTUDOS AVANÇADOS - É significativa, por exemplo, a influência no Senado Federal dessas lideranças - de Roraima, de Rondônia, do Amapá e até mesmo do Maranhão. Não é assim?

Luiz Werneck Vianna - Sim. O que obriga o Executivo a também fazer esse cálculo. Ou seja, não governar apenas orientado por setores modernos, mas tendo que considerar a tradição - não gosto do termo, mas vou usar -, a tradição patrimonialista desses setores vitoriosos nos rincões do interior, os heróis capitalistas do hinterland com suas marcas de nepotismo, mando pessoal e coisas do estilo, envolvendo-os em uma política de mudanças na questão social e mesmo na forma do Estado.

A judicialização na política

ESTUDOS AVANÇADOS - Como o senhor analisa a intervenção do Judiciário em questões no Poder Legislativo? Há opiniões que julgam positivo esse fato. Outras, apoiadas na clássica declaração do princípio dos três Poderes, consideram um absurdo essa ingerência. Ela veio para ficar?

Luiz Werneck Vianna- Veio para ficar. O exemplo mais anedótico disso agora é a atitude do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) pleiteando ao Supremo Tribunal Federal (STF) a revogação do encerramento da discussão, na Comissão de Ética do Senado, das representações contra o Sarney. Um ato como esse demanda que o Judiciário interfira na vida interna do Legislativo, a fim de alterar uma decisão tomada pela maioria parlamentar. Indicador mais forte que esse eu não conheço. Valendo notar que o PSOL é um partido de esquerda radicalizada, digamos assim.

Essa conduta leva à judicialização da política, um fenômeno mundial, mas que ocorre apenas em países democráticos. Países em que o regime político é autoritário não conhecem a judicialização da política.

Ademais, por atrás de cada projeção de influência do Judiciário sobre a sociedade e a política está o Poder Legislativo, pois cauciona, desvenda, abre essas fronteiras de atuação nova para o Judiciário. Vou dar exemplos: a ação direta de inconstitucionalidade perante o STF, as ações civis públicas, todas são instrumentos, criados pelo legislador, através dos quais a sociedade pode mobilizar o Judiciário no sentido de produzir determinados resultados na vida política.

Tudo se passa como se o Legislativo entendesse sua impotência diante da cena contemporânea, criando instituições e mecanismos por meio dos quais a sociedade possa se defender do Estado e das empresas: direitos do consumidor, estatutos das cidades, leis do idoso, leis de proteção do menor, Lei Maria da Penha etc. A própria criação da União Europeia é a maior demonstração desse fato. A União Europeia, até hoje, não conhece uma constituição política e foi criada, em boa parte, através da mediação do direito e de suas instituições.

Temos também leis supranacionais e tribunais supranacionais que a essa altura interferem na vida de Estados-nação. Além do fato de que são criados também novos institutos no mundo, como o Tribunal Penal Internacional, para punir genocídios, crimes de guerra, ultrapassando as fronteiras do Estado-nação.

Essa presença do direito na política e na vida contemporânea é um fenômeno inarredável, sendo que não podem ser obscurecidos os elementos interessantes que aí aparecem. Pois surgem novas arenas para a vida democrática fora da representação política no mundo da representação funcional, pois o Judiciário faz parte do mundo da representação funcional. Surgem novas possibilidades, através de formas cada vez mais francas de acesso à Justiça e de mecanismos cada vez mais manipuláveis - como a ação civil pública - para que a sociedade participe da elaboração do direito. É um fenômeno que já existe e atua.

ESTUDOS AVANÇADOS - Não é visível a pequena modernização da Justiça no Brasil, inclusive com a criação de juizados especiais e várias outras iniciativas? Simultaneamente a atuação do Congresso, em Brasília, parece um mastodonte sem eficácia.

Luiz Werneck Vianna - Temos um Executivo muito poderoso e um Judiciário que se torna cada vez mais poderoso. Os palácios do Judiciário em Brasília são assustadores, monumentais e, como sempre, estão se expandindo, fazendo um anexo disso, um anexo daquilo. O Legislativo, representação da soberania popular por excelência, está definhando. É essa a situação existente.

Eu diria que a ação do Executivo tem sido a de extrair proveito da inarticulação e das disfunções do Poder Legislativo, que não reage, e se confina à lógica de suas demandas de autorreprodução. O Executivo encontra, então, pasto suficiente para avançar na política e dominar a esfera publica. Isso é o que está ocorrendo entre nós. A grande política não tem lugar na cena congressual. Somente encontra lugar no Executivo. Mas isso é inevitável? Não, não é, mas temos uma tradição, uma história de clientela. Além de tudo, temos uma poderosa história de clientela que inibe a formação de uma vontade coletiva forte.

A experiência das favelas no Rio

Marco Antônio, vou dar um exemplo com um tema que sempre foi referência para mim - as favelas no Rio de Janeiro. Nesses últimos 50 anos, elas não fortaleceram sua vida associativa, não conseguiram projeção na esfera pública, mas realizaram toda sua agenda (água, gás, solo) sem impor essa agenda à sociedade por meio de uma ação política autônoma.

Por que os poderes públicos nesses últimos tempos tomaram as favelas no Rio de Janeiro como um tema central? Por causa da violência. Não porque desejem que as favelas se organizem. Os programas sociais chegam de cima, não animam um espírito de cidadania.

Com isso não se formam lideranças políticas. Mas não pode se dizer que o resultado não tenha sido eficaz, pois foi o mais eficaz possível. Nunca vi uma luta cívica no interior dessa favela de que somos vizinhos aqui no Iuperj. Porém, nela montaram um elevador, as casas estão pintadas e tudo mais. Isso aqui é um centro de ciências sociais. A favela está ali, mas não há comunicação entre nós. Como transcorreu a vida? Como esse mundo viveu? Fez política? Sim, onde? Nas clientelas.

A violência fez com que a favela deixasse apenas de ser um fenômeno local e passasse a ocupar um papel central na vida das metrópoles brasileiras, especialmente no Rio de Janeiro, já mobilizando o próprio governo federal e importantes grupos empresariais. O grupo Atlântica está com um trabalho social no Pavão-Pavãozinho que me parece muito eficaz, orientado para o problema do solo urbano e do usucapião coletivo.

ESTUDOS AVANÇADOS - Atuei no Rio de Janeiro há 30 anos e naquela época era forte a movimentação dos sindicatos de trabalhadores. Hoje o que sucede?

Luiz Werneck Vianna - O sindicalismo está forte, mas inteiramente dominado pelo vértice, pela cúpula, porque é outro ator trazido para o interior da máquina estatal. O Paulo Pereira da Silva flutua na esfera pública brasileira como um grande protagonista. E é. Mas a sociedade está inteiramente desmobilizada do ponto de vista do seu acesso à vida pública. Ela está retraída, o que não quer dizer que os seus interesses não estejam contemplados. O Paulo Pereira da Silva está operando em nome de todos para que a aposentadoria seja tal ou qual, para que a jornada de trabalho seja tal ou qual, embora os sindicatos estejam esvaziados. Esse processo todo também é derivado dessa assimetria entre o vértice do Estado e a sociedade, pois é tudo controlado por cima. A tradição brasileira tem essa natureza e isso é desorganizador.

ESTUDOS AVANÇADOS - Mas esse também não é só um fenômeno nacional, pois nota-se, pela mídia, que isso ocorre na Itália, na França, na Inglaterra, países que tinham uma tradição de luta associativa e sindical.

Luiz Werneck Vianna - Mas a França mantém suas garras. De vez em quando, pelo menos uma vez por ano, elas aparecem, embora, é verdade, sem a força antiga. Esse período então tem sido um período de perdas, vamos pensar desse jeito. Principalmente no plano da política, em que a sociedade se encontra infantilizada pelo estilo paternalista e tutelar do governo Lula. Mas há ganhos evidentes na economia, na questão social, na projeção do Brasil na cena internacional, por exemplo. Para mim, abre-se com o fim do governo que aí está um novo momento para que a sociedade se repense em torno de suas organizações políticas e sociais. Entre as coisas boas que o governo Lula nos deixa, uma - de não pequena importância - foi a de abdicar da pretensão por um terceiro mandato, garantindo o princípio democrático da alternância do poder.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2010
  • Data do Fascículo
    2009
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