Resumo
Este artigo explora os vínculos estabelecidos por Hayek ao longo de sua obra entre a ciência econômica, a psicologia teórica (em sua dimensão cognitiva) e os estudos sobre os sistemas complexos. O argumento básico é que Hayek pode ser considerado uma espécie de precursor do conexionismo, vertente teórica que hoje prepondera nos estudos sobre a Inteligência Artificial.
Palavras-chave:
Conexionismo; Complexidade; Emergência
Abstract
This paper explores the links established by Hayek throughout his work between economic science, theoretical psychology (in its cognitive dimension), and studies on complex systems. The basic argument is that Hayek can be considered a kind of forerunner of connectionism, a theoretical strand that now prevails in studies about Artificial Intelligence.
JEL: A12, B2, B4.
Keywords:
Connectionism; Complexity; Emergence
Introdução
Embora predominantemente identificado à ciência econômica, o pensamento de Hayek atravessa um arco muito grande de especialidades acadêmicas, entre as quais se destacam as ciências cognitivas, a biologia, a psicologia teórica, a jurisprudência, a teoria da informação, a cibernética e os estudos sobre os sistemas complexos. Este enfoque transdisciplinar, contudo, se baseia no entrelaçamento de uma sólida reflexão ontológica sobre os limites intrínsecos do conhecimento sobre a realidade com as noções de complexidade e de emergência. Esta abordagem possibilitou que Hayek ultrapassasse o atomismo reducionista que preponderava entre os economistas ortodoxos sem, contudo, sucumbir a visões organicistas e monolíticas que concebem a sociedade como uma espécie de entidade coletiva dotada de vontade própria (Hayek, 1992, p. 112; Lewis, 2017, p. 1344; Marsh, 2010 p. 116; Lawson, 2005 p. 134-150).
Tendo isto em mente, este artigo pretende explicitar as características mais gerais da reflexão de Hayek sobre os sistemas complexos, à luz da cibernética e do conexionismo. A influência da cibernética no pensamento de Hayek está bem documentada (Vaughn, 1999a; Rosser, 2010; Cunha, 2015). E, em sentido contrário, existem claros sinais de que a obra de Hayek – The Sensory Order em particular – exerceu uma influência direta sobre os pioneiros da tradição conexionista1, a qual se destaca hoje tanto no campo da inteligência artificial como no da neurociência. No entanto, este artigo não tem como propósito explorar a questão desse jogo de influências de forma direta e rigorosa. Propõe-se aqui uma releitura de Hayek à luz do estado das artes da teoria da complexidade e do conexionismo, usando também como referência a teoria matemática da informação derivada de Claude Shannon e seus desdobramentos. Este parece ser um bom ponto de entrada para explorar as relações lógico-formais entre a teoria conexionista da mente (e, por extensão, da inteligência artificial) e a obra de Hayek sem, contudo, adentrar no campo da história do pensamento econômico stricto senso.
1 Transcendendo o terreno da economia
No início de sua carreira como economista Hayek propunha uma correspondência quase absoluta entre ciência econômica e as explicações baseadas na ideia de equilíbrio. No entanto, por conta dos seus pressupostos irrealistas, já em meados da década de 1930, começou a questionar, de forma cada vez mais explícita, as formulações baseadas neste princípio (Caldwell, 2016, p. 155 e segs.). Isto ficou particularmente claro em “Economics and Knowledge”2, onde ele propõe uma reorientação radical das reflexões no campo da ciência econômica ao afirmar que análises baseadas no equilíbrio só são efetivas nas situações em que o problema da coordenação das ações individuais já está resolvido, fato que pressupõe exatamente o que o economista deveria explicar (Lewis, 2015, p. 1168; Angeli, 2017, p. 562). Ao mascarar o problema fundamental da necessidade de combinar o conhecimento disperso pela sociedade, as explicações baseadas na noção de equilíbrio induzem a uma formulação equivocada do célebre “problema econômico”. Deste prisma ele tende a ser entendido como a melhor forma de otimizar processos e recursos assumindo que o planejador (ou um comitê central) já possui – ou pode possuir – todos os dados relevantes.
A seguinte passagem expressa com clareza o cerne da perspectiva de Hayek sobre a questão:
The peculiar character of the problem of a rational economic order is determined precisely by the fact that the knowledge of the circumstances of which we must make use never exists in concentrated or integrated form, but solely as the dispersed bits of incomplete and frequently contradictory knowledge which all the separate individuals possess. The economic problem of society is thus not merely a problem of how to allocate “given” resources—if “given” is taken to mean given to a single mind which deliberately solves the problem set by these “data.” It is rather a problem of how to secure the best use of resources known to any of the members of society, for ends whose relative importance only these individuals know. Or, to put it briefiy, it is a problem of the utilization of knowledge not given to anyone in its totality (Hayek, 1948, p. 77).
Se o planejador tivesse acesso imediato a todas as informações relevantes e fosse capaz de processá-las instantaneamente, o problema econômico não passaria de uma trivialidade, uma questão técnica de alocação ótima de recursos que, inclusive, poderia ser totalmente automatizada. Mas não se trata disso. O “problema econômico” é, fundamentalmente, como coordenar as diversas ações individuais frente a um conhecimento tácito e disperso que nenhuma mente individual – ou núcleo administrativo – pode possuir integralmente (Hayek, 1948, p. 50-56; 77-91; Vaughn, 1999b, p. 134).
O modo como Hayek redefine o conceito de concorrência também denota a sua ruptura com os princípios basilares da economia neoclássica3. O seu argumento é que o princípio da concorrência perfeita – e a noção subjacente de equilíbrio competitivo – como referência para se pensar a competição no mercado é enganadora pois reitera o problema exposto acima:
Economists usually ascribe the order which competition produces as an equilibrium - a somewhat unfortunate term, because such an equilibrium presupposes that the facts have already all been discovered and competition therefore has ceased (Hayek, 1968, p. 308).
Se toda a informação estivesse disponível imediatamente e sem ambiguidades para os atores do mercado, a concorrência perderia o seu sentido. Não se trata de um mecanismo de homeostase, mas um princípio generativo que ao atuar produz novas informações e novas realidades, precisamente por combinar um conhecimento que é necessariamente disperso e que não pode se cristalizar em uma única mente. Logo, a questão não é como podemos encontrar as pessoas com conhecimento requerido para realizar uma tarefa particular, mas quais arranjos institucionais são necessários para que pessoas desconhecidas sejam atraídas para as tarefas nas quais seus conhecimentos sejam os mais adequados (Hayek, 1948, p. 95)4.
O aspecto decisivo da crítica de Hayek é que o mundo social é aberto e, portanto, não faz sentido afirmar que a ordem do mercado tende ao equilíbrio. Este tipo de abordagem pressupõe que nada na realidade muda essencialmente:
The real problem in all this is not whether we will get given commodities or services at given marginal costs but mainly by what commodities and services the needs of the people can be most cheaply satisfied. The solution of the economic problem of society is in this respect always a voyage of exploration into the unknown, an attempt to discover new ways of doing things better than they have been done before. This must always remain so as long as there are any economic problems to be solved at all, because all economic problems are created by unforeseen changes which require adaptation. Only what we have not foreseen and provided for requires new decisions. If no· such adaptations were required, if at any moment we knew that all change had stopped and things would forever go on exactly as they are now, there would be no questions of the use of resources to be solved (Hayek, 1948, p. 100).
Se a concorrência de fato produzisse o equilíbrio, nada de novo se manifestaria. Logo, o “desequilíbrio” deve ser visto como uma virtude, pois ele possibilita a emergência do novo e do inusitado.
O ponto destacado por Hayek é que a “economia”5 é percebida como um todo unificado, não porque seus membros sejam capazes de sondar todo o mercado, tal como os modelos de concorrência perfeita e de equilíbrio pressupõem, mas precisamente porque embora limitados, os campos de visão de cada indivíduo se sobrepõem de tal modo que, por diversos intermediários, a informação relevante é comunicada pelo sistema de preços para todos os interessados, tornando possível a coordenação descentralizada de um conjunto extremamente complexo de ações individuais desempenhadas por pessoas com inclinações, talentos e objetivos imediatos muito distintos (Hayek, 1948, p. 86). Uma proliferação de olhos articulados de forma rizomática – i.e., sem subordinação hierárquica (Simon, 1962, p. 468) – é mais eficaz para coordenar as ações de um número gigantesco de agentes do que um grande olho com pretensões centralizadoras.
Logo, o que está em jogo é uma redefinição radical da ideia de mercado e, por extensão, do estatuto do econômico. Ao definir a ordem do mercado como um sistema descentralizado de comunicação sinalizado por preços, Hayek propõe um deslocamento radical de perspectiva, que tira a tradicional ênfase na divisão social do trabalho – ou na hipotética simetria das trocas – para focar na divisão do conhecimento como a principal fonte de dinamismo da Great Society (Hayek, 1948, p. 50). O argumento é aparentemente paradoxal: quanto maior a dispersão e a fragmentação, menos incompleto é o conhecimento à disposição dos homens vivendo em sociedade (Loasby, 2004, p. 123). Esse ponto exige algum desenvolvimento, pois ele revela diversas peculiaridades da perspectiva de Hayek e funciona como uma espécie de entroncamento entre dimensões distintas, porém correlatas do seu sistema de pensamento.
A Great Society se ancora em um vínculo entre um tipo específico de conhecimento e uma forma particular de sociabilidade. Para explicitar isso, Hayek emprega, de modo bastante peculiar, uma versão extremada da clássica distinção entre comunidade e sociedade, estabelecida originalmente por Ferdinand Tönnies (Kolev, 2020, p. 42). Para Hayek os instintos inatos do homem entram necessariamente em conflito com a dinâmica da sociedade contemporânea, dado que eles só eram congruentes com comunidades relativamente homogêneas, onde os esforços individuais se orientavam para objetivos e ameaças percebidas por todos como comuns, fato que dava um colorido especial a sentimentos como solidariedade e altruísmo: eles só valem para a pequena coletividade e, em certa medida, são espontâneos (Hayek, 2013a, p. 239-40). A sociedade expandida perturba essa forma de existência social, pois ela nos obriga a lidar com a eterna tensão entre a sociabilidade densa e familiar dos pequenos grupos e as relações interpessoais anônimas que emanam da Great Society.
Formas de vida social – comunidades – em que a pressão de elementos externos é mínima ou inexistente produzem conhecimentos e práticas que são muito diferentes do que se verifica na Great Society. A questão não envolve as capacidades individuais de reter conhecimento (que são similares), mas o seu tipo e as suas modalidades de combinação. Isto é, a diferença não envolve tipos de homens, mas as formas de ordem social em que eles estão inseridos. Um caçador ou um agricultor de uma comunidade aprende na prática6 a caçar ou a plantar. Domina a tal ponto o seu ofício que é capaz de produzir as suas próprias ferramentas. Não se pode dizer que seu “trabalho” seja estranhado (provavelmente o conceito de trabalho é que lhe pareceria muito estranho). Mas, contudo, estas comunidades possuem limites territoriais e populacionais muito estreitos, assim como se baseiam em formas de segmentação social muito simples, baseadas em dualidades ou simetrias (Polanyi, 1977, p. 38 e segs.).
A Great Society exige um compartilhamento muito maior de saberes especializados que são mobilizados por indivíduos que utilizam ferramentas e instrumentos que não podem fabricar e, geralmente, sequer entendem o seu funcionamento com profundidade. Precisamente por conta disto se sobressai a necessidade de criar um dispositivo de comunicação mais abstrato, ordenado por indicadores quantitativos que possibilite combinar um conhecimento que é necessariamente fragmentário. Logo, o conhecimento combinado pelo mercado é mais vasto e mais completo exatamente porque ele se encontra disperso por indivíduos anônimos altamente especializados. A vitalidade e o caráter inovador da obra de Hayek fundamentam-se neste deslocamento radical de terreno que, contudo, evidencia a sua familiaridade com a discussão sobre a nascente teoria matemática da informação (Lewis, 2017, p. 1351; Ribeiro, 2002, cap. 3).
2 A teoria matemática da informação
De acordo com Claude Shannon, todo sistema de comunicação possui alguns elementos básicos que são invariantes. Uma fonte de informação seleciona uma mensagem dentre várias possíveis que é codificada pelo transmissor7. Por meio de um canal apropriado – um cabo coaxial, uma banda de frequência de rádio etc. – o sinal chega ao receptor que decodifica os dados e reconstitui a mensagem ao seu formato original. Uma teoria abstrata e geral da informação é importante em todas as etapas, inclusive para dimensionar o impacto das fontes de ruído – como estática no caso do rádio ou interferências em transmissões wi-fi – que podem afetar o sinal transmitido. Desenvolver esta teoria foi a contribuição seminal de Shannon ao campo das ciências da comunicação e da informação. Em um famoso artigo publicado em 1948 Claude Shannon explicitou as feições gerais da teoria da comunicação que formulou:
The fundamental problem of communication is that of reproducing at one point either exactly or approximately a message selected at another point. Frequently the messages have meaning; that is, they refer to or are correlated according to some system with certain physical or conceptual entities. These semantic aspects of communication are irrelevant to the engineering problem. The significant aspect is that the actual message is one selected from a set of possible messages. The system must be designed to operate for each possible selection, not just the one which will actually be chosen since this is unknown at the time of design (Shannon, 1948, p. 1).
Dotado de uma formidável mente analítica, ele destacou a dimensão semântica do problema técnico da comunicação das informações. Com isto foi possível criar uma unidade abstrata de medida da informação, o bit, que permitiu reduzir todas as formas de comunicação à uma lógica booleana com o propósito de facilitar a transmissão (conveyance) das informações nos processos de comunicação. Essa unidade permitiu dissociar a informação de seu suporte material e de seu conteúdo semântico eventual, destacando a especificidade da teoria de Shannon em relação aos seus antecessores8.
É importante deixar claro que a teoria proposta por Shannon não significa desprezar a questão do conteúdo ou do significado. Sua abordagem é essencialmente pragmática. De acordo com ele, a dimensão semântica envolve um problema de ordem distinta que, contudo, pode ser abordado de forma mais eficaz partindo de uma teoria capaz de identificar e manipular as unidades informacionais mais elementares. Isto abriu um quadro novo de possibilidades que se manifesta até os nossos dias. Até então cada sistema de comunicação particular – telégrafo, rádio, telefone, televisão, teletipo etc. – plasmava um conjunto de práticas e saberes específicos que permaneciam separados. Shannon favoreceu a criação de uma visão comum sobre o fenômeno geral da comunicação. Logo, ao partir de uma unidade formal e totalmente abstrata da informação, ele abriu a possibilidade de integrar logicamente os princípios operacionais de todos os dispositivos que manipulam e transmitem informações.
Esta abordagem abstrata da informação criou uma forte sinergia com o desenvolvimento da computação, uma relação que não era óbvia nesta época, pois os dispositivos que realizavam cálculos e operações lógicas eram ainda mecânicos. O ponto de vista proposto por Shannon possibilitou conceber o fenômeno da comunicação em termos completamente abstratos, ou seja, de maneira independente dos dispositivos disponíveis para processar e transmitir informações. Este procedimento é análogo ao de John Von Neumann quando ele propôs a criação de uma “máquina de Turing universal” que, na prática, pressupunha pensar o processo de computação sem ter como referência o seu substrato, mas apenas as operações lógicas envolvidas nesta tarefa, um procedimento que alicerçou a posterior separação entre hardware e software, algo inconcebível até então (Dupuy, 2009, p. 65-69).
Não é difícil perceber a forte conexão formal entre esta concepção de informação e o modo como Hayek qualifica o mercado: um mecanismo descentralizado de transmissão de informações orientado predominantemente pelos preços, um indexador geral e abstrato que, precisamente por ser puramente quantitativo, resume de forma pública os julgamentos subjetivos dos atores do mercado quando se defrontam com situações particulares (Lewis, 2015, p. 1170). Na verdade, não é exagero dizer que Hayek antecipou a definição técnica de informação tal como ela foi proposta por Shannon em 1948:
Hayek is acknowledged for having employed avant la lettre a technical definition of information. His 1945 essay “The Use of Knowledge in Society” anticipated Claude Shannon’s 1948 mathematical theory of communication, providing an operative definition of information as units of communication, more precisely, in this case, as “price signal.” Hayek is recognized also for describing avant la lettre the market as a computer or, in the language of the time, as a sort of distributed telegraph network, “a kind of machinery for registering change, or a system of telecommunications” (it must be noted that at the time the numerical computer was not yet a common technology, and no design solution, such as the von Neumann architecture, existed to be taken for granted) (Pasquinelli, 2021, p. 172).
Este foi o passo decisivo. Por operar como um transmissor e codificador de informações, o sistema de preços permite coordenar e organizar de forma dinâmica o conhecimento que está disperso entre um número gigantesco de pessoas que precisam ajustar as suas expectativas e ações, cada uma com uma subjetividade peculiar e uma gradação de valores e preferências pessoais. Mas isto não opera no vazio: o papel sinalizador dos preços necessita de um arcabouço institucional adequado e, principalmente, de um conjunto de normas de conduta abstratas que operam predominantemente como proibições (Hayek, 2013b, p. 241).
3 Ordem espontânea, emergência e complexidade
A publicação de The Constitution of Liberty em 1960 aprofundou e evidenciou ainda mais o afastamento de Hayek da economia stricto sensu, direcionando-o à jurisprudência, àquilo que ele denominou ‘filosofia da liberdade’ e ao problema da ordem social. Neste texto seminal as reflexões sobre a noção de complexidade se tornam bastante salientes. O tema já pode ser identificado nas suas preocupações metodológicas associadas ao projeto Abuse of reason da década de 1940 (Costa; Angeli, 2021). É retomado em “Degrees of Explanation” (1955) e em “The Theory of Complex Phenomena” (1964), onde ele faz uma referência direta à conexão entre emergência e complexidade9. Hayek distingue fenômenos simples de complexos, ressaltando que estes últimos dependem de um grande número de variáveis e de múltiplas conexões entre elas. Mas, como destaca Stefano Fiori (2009), é necessário explicitar também uma terceira característica que não é adequadamente frisada pelo próprio Hayek: o peso da heterogeneidade dos elementos constituintes do sistema como indutor das propriedades emergentes. Este atributo, que ocupa um papel central nos estudos contemporâneos sobre a complexidade, aparece apenas de forma implícita na teoria dos sistemas complexos desenvolvida por Hayek. Quando ele qualifica a física clássica como uma ciência que lida com fenômenos simples ele é categórico: o físico pode tratar deles como se fizessem parte de um sistema fechado que pode ser controlado porque o número de variáveis inter-relacionadas de tipos diferentes é significativamente pequeno (Hayek, 1955, p. 195). Isto é radicalmente diferente da maioria dos fenômenos sociais e biológicos nos quais a quantidade, a variabilidade e a intensidade das conexões entre elementos muito diferentes elevam tanto a sua complexidade que previsões acuradas se tornam impossíveis.
Contudo, os passos mais decisivos são dados em 1973 quando ele publica o primeiro volume de Law, Legislation and Liberty. Neste livro ele explicitou o conceito de ordem que alicerça o seu pensamento:
By ‘order’ we shall throughout describe a state of affairs in which a multiplicity of elements of various kinds are so related to each other that we may learn from our acquaintance with some spatial or temporal part of the whole to form correct expectations concerning the rest, or at least expectations which have a good chance of proving correct (Hayek, 2013a, p. 35).
Todos os componentes da definição são importantes. Uma ordem envolve um grande número de elementos com tipos ou propriedades distintas. Mas a multiplicidade não basta. O modo como eles estão conectados, isto é, a natureza da sua organização é igualmente significativa. Partindo desta concepção mais geral Hayek salientou a diferença entre as ordens exógenas criadas deliberadamente (taxis) e as ordens endógenas que emergem de forma espontânea (cosmos).
As ordens construídas (made order) sempre foram privilegiadas nas humanidades, em grande parte por conta dos nossos hábitos antropomórficos (Hayek, 2013a, p. 26-28), mas também pela crença arraigada de que uma ordem ou instituição não pode emergir espontaneamente. Afinal, costuma-se dizer que um novo fenômeno não pode ser causa dele próprio. Algo novo precisa ser deliberadamente criado ou constituído como fruto das “contradições” de um estágio ou de outro fenômeno anterior. A velha percepção de que a linguagem e a moral foram inventadas por gênios de um passado imemorial ilustra bem este modo de formular o problema (Hayek, 2013a, p. 36). Ele qualifica este tipo de ordem como exógena por ter sido criada por um ente externo a ela. É esta tradição que consubstancia o que Hayek chama pejorativamente de construtivismo (Hayek, 1967; Hayek, 1970). Este tipo de ordem, contudo, não é capaz de atingir níveis elevados de complexidade, precisamente pelo fato de ter sido criada pela mente humana (Hayek, 2013a, p. 37).
A própria constituição de uma ordem espontânea viabiliza o incremento da complexidade pois, ao se reiterar, ela possibilita uma elevação da diversidade e das modalidades de interação entre os seus elementos. Como esta ordem não é deliberadamente criada – é causa de si mesma – ela deve ser qualificada como endógena. Seu grau de complexidade não se limita à esfera em que a mente humana é capaz de dominar. Estas ordens são formadas por emergência, isto é, um processo autopoiético no qual um aglomerado muito grande de elementos adquire uma gama de propriedades que, conquanto dependam das particularidades das unidades, só se manifestam no conjunto. As propriedades emergentes do todo são abstratas10 ou estruturais, isto é, dependem tanto dos atributos dos elementos quanto da organização do conjunto (Lewis, 2015, p. 1171; Lawson, 2012, p. 348).
Uma ordem deste tipo depende sempre da regularidade da conduta dos elementos, mas não exclusivamente. A identificação destas regularidades permite discernir as feições gerais da ordem, mas nunca prever com precisão as posições particulares dos elementos ou das suas partes constituintes. “A ordem, em outras palavras, será sempre uma adaptação a um grande número de fatos particulares que não serão conhecidos na sua totalidade por ninguém” (Hayek, 2013a, p. 39). Hayek propõe um exemplo bastante familiar para ilustrar este princípio. Quando colocamos um ímã por debaixo de uma folha e jogamos sobre a superfície superior um pouco de limalha de metal, podemos imaginar a forma geral que ela tomará – pois corresponderá aproximadamente ao formato do ímã – mas nunca a disposição específica dos elementos. Se repetirmos o experimento a forma nova não será idêntica à inicial, pois pequenas variações nas condições iniciais promovem transformações significativas no resultado final.
Hayek insiste com certa veemência que a manifestação de ordens espontâneas expande radicalmente o escopo da ação humana e, ao mesmo tempo, limita a nossa capacidade de controle sobre a sociedade. Por sua vez, este atributo está ligado ao problema do conhecimento, a espinha dorsal do pensamento de Hayek:
Consequently, the concept becomes particularly important when we turn from mechanical to such ‘more highly organized’ or essentially phenomena as we encounter in the realms of life, mind and society. Here we have to deal with ‘grown’ structures with a degree of complexity which they have assumed and could assume only because they were produced by spontaneous ordering forces. (…) Since we can know at most the rules observed by the elements of various kinds of which the structures are made up, but not all the individual elements and never all the particular circumstances in which each of them is placed, our knowledge will be restricted to the general character of the order which will form itself. And even where, as is true of a society of human beings, we may be in a position to alter at least some of the rules of conduct which the elements obey, we shall thereby be able to infiuence only the general character and not the detail of the resulting order (Hayek, 2103a, p. 40).
Toda ordem complexa é necessariamente opaca, pois é impossível identificar em tempo real as propriedades e a disposição de todos os seus elementos e as circunstâncias particulares em que eles se situam. Logo, só é possível divisar a feição geral deste tipo de ordem, uma compreensão abstrata e limitada que, por sua vez, restringe intrinsecamente a nossa capacidade de controle sobre estas formas de ordem.
Esta ideia é uma condensação das reflexões de Hayek realizadas durante a década de 1960 que gravitam em torno de temas como a natureza da ciência como forma de conhecimento, a celeuma sobre a divisão entre as ciências naturais e sociais e, sobretudo, a questão da complexidade. Em termos gerais, ele sustenta que todo saber que lida com fenômenos complexos não pode oferecer uma explicação exaustiva sobre o explanandum, isto é, propor noções claras de causa e efeito nos termos de um modelo determinista. Por envolver um número muito grande de elementos e de modalidades de interação, uma ordem complexa só pode ser explicada pelo princípio que lhe é subjacente (Hayek, 1955, p. 206). Frente a fenômenos complexos como a mente, a vida e a sociedade, é impossível prever situações particulares, mas apenas delinear certos padrões gerais e quadros de possibilidades. E isto decorre da impossibilidade prática de apurar em tempo real todos os fatos particulares que seriam necessários para que uma teoria fosse capaz de prever eventos específicos (Hayek, 1973a, p. 16).
Esta visão ancora a tese de que a ordem do mercado da Great Society deve ser vista como um mecanismo cibernético de coordenação das ações frente a um conhecimento tácito e fragmentado que, precisamente por conta das múltiplas possibilidades de combinação, gera propriedades emergentes. Tais propriedades, contudo, só se manifestam pelo fato de as interações entre os indivíduos serem governadas por um certo conjunto abstrato de regras de conduta (Lewis, 2015, p. 1169). Estas regras não são conscientes ou totalmente conscientes, mas são internalizadas por um processo de mimese que é inerente à vida social (Hayek, 2013b, p. 239-240; Hayek, 1962 p. 249). Esta perspectiva deriva de duas proposições não contraditórias que emanam da tradição do iluminismo escocês: i) os seres humanos formam a sociedade por intermédio das suas ações; ii) a sociedade está além do seu controle precisamente por ser muito mais complexa do que os homens que dela fazem parte (Dupuy, 2009, p. 157).
Celia Kerstenetzky destaca com clareza as implicações desta formulação:
A ideia aqui é que as regras não conscientes que seguimos funcionam, de fato, como um fundo que confere sentido à conduta consciente: elas indicam um lugar para a ação consciente dentro de um sistema de regras mais amplo e não completamente articulado ou explícito. Na verdade, Hayek prefere chamá-las de regras supraconscientes, pois se localizariam em um plano superior à consciência, como um seu pressuposto (2007, p.104).
E, por fim:
Não se trata, portanto, do equivalente à dimensão freudiana do inconsciente, que poderia em princípio ser trazida para o plano da consciência, mas de uma dimensão que precede logicamente a consciência, sendo sua condição de possibilidade (2007, p. 105).
Hayek propõe na verdade uma espécie de reversão da topologia freudiana. Ele não questiona o fato de que existem processos mentais inconscientes que operam nos níveis fisiológicos e psicológicos inferiores (lower levels). Ele problematiza a ideia de que a consciência é o nível superior ou o decisivo, pois a Great Society é lastreada na já referida dimensão supraconsciente (Hayek, 1962, p. 251), uma zona ordenada coletivamente pelo conhecimento tácito aglutinado pelo mercado e também pelas regras abstratas de conduta plasmadas nos hábitos adquiridos pelo aprendizado (Pasquinelli, 2021, p. 165). Para aprofundar esta questão é necessário retomar as incursões de Hayek no campo da psicologia e das ciências cognitivas.
4 As incursões pela psicologia: The Sensory Order e a teoria conexionista da mente.
Hayek passou a sua juventude em dúvida se escolheria a economia ou a psicologia como profissão. Isto é relativamente bem documentado nos estudos biográficos que reconstituem o seu processo de formação intelectual (Caldwell, 2005, p. 139; Beck, 2009, p. 568). Contudo, nem sempre se destaca o peso duradouro que sua incursão na psicologia exerceu em seu pensamento. Em 1920, em Zurique, Hayek foi assistente do neuropatologista Constantin Von Monakow, um dos precursores da noção de neuroplasticidade, isto é, a tese de que o sistema neuronal é descentralizado, adaptativo e disperso (Marsh, 2010, p. 123; Caldwell, 2005, p. 136). Essa perspectiva questiona a noção de que as funções cerebrais mais elementares são especializadas e se concentram necessariamente em regiões determinadas do cérebro. A plasticidade neuronal fica evidenciada pelo fato que, quando ocorre alguma lesão em alguma localidade do cérebro associada a uma determinada função, em diversos casos os neurônios conseguem se rearranjar para exercê-la em outra região (Pasquinelli, 2021, p. 160; Loasby, 2004, p. 118).
Hayek estudou intensamente este tema na década de 1920, publicando papers e pequenos estudos ligados à psicologia e às ciências cognitivas, em sua maioria centrados na relação entre as sensações e a formação do conhecimento (Beck, 2009, p. 569). No entanto, ao decidir seguir a carreira de economista ele deixou o assunto em segundo plano. Ele retoma esta temática ao publicar The Sensory Order em 1952, um livro bastante ousado no qual uma das questões centrais envolve a natureza das correspondências estabelecidas entre a ordem sensorial da mente humana – o mundo fenomênico - e a ordem exterior, o “mundo físico” nos processos cognitivos. A primeira constatação relevante é que não há correspondência direta entre objetos ou eventos destas duas ordens. Eventos que para os nossos sentidos parecem ser do mesmo tipo podem ser classificados como tipos distintos quando analisados na ótica do mundo físico e vice-versa11. A segunda constatação é que a caracterização destas ordens não pode ser confundida com a diferenciação entre “realidade” e “aparência”. O que está em pauta é perceber a diferença entre as relações internas particulares de cada domínio: as relações recíprocas entre os objetos que independem da ordem sensorial humana (a ordem “física”) devem ser diferenciadas dos efeitos que os objetos e suas relações exercem sobre nós (i.é., a ordem fenomênica/mental). Por fim, não se trata também de diferenciar eventos conscientes de inconscientes pois, como foi apontado na seção anterior, a esfera dos eventos mentais transcende a dimensão consciente (Hayek, 1952, p. 24).
Se olharmos esta obra retrospectivamente, isto é, tendo em vista o estado da arte das ciências cognitivas contemporâneas, ela se revela ainda mais frutífera. O que a torna bastante atual é o fato de Hayek propor uma teoria da mente entendida como um sistema descentralizado e autopoiético12 capaz de identificar padrões e atribuir significado ao mundo, “filtrando” a realidade mediante conceitos abstratos que organizam a experiência humana (Boettke; Subrick, 2002, p. 58). O argumento central é que o conhecimento humano não opera mediante a formação de representações rígidas da realidade na cabeça do indivíduo tal como usualmente se pensava, mas mediante a constituição de modelos aproximados da realidade que se baseiam na categorização ativa por parte do observador dos fenômenos em classes ou tipos particulares, de modo que o conhecimento é sempre relacionado, mas nunca idêntico ao mundo que está lá fora (Pasquinelli, 2021, p. 162; Smith, 1997, p. 16-17).
O aspecto destacado por Hayek é que a mente não internaliza passivamente os estímulos recebidos do mundo físico, mas ela cria uma realidade atribuindo sentido aos padrões que ela mesma engendra:
Mind does not merely respond to a given world, mind is enacted through a particularized history of environmental coupling: perception is an act of interpretation and the generation of meaning. For the Hayek agent, to know is to cognize, and to cognize is to be a culturally bounded, rationality bounded, and environmentally located agent. Knowledge and cognition are thus dual aspects of human sociality (Marsh, 2010, p. 115).
A mente é, portanto, uma espécie de dispositivo criador de padrões que não pode existir isoladamente, pois toda cognição humana é inerentemente social. Logo, o grande projeto ideológico de Hayek se baseia no estabelecimento explícito de uma homologia entre a dinâmica do mercado – pensado como um mecanismo de transmissão e de coordenação de informações disseminadas – e o funcionamento da mente humana, uma aproximação que enfatiza a capacidade de ambos gerarem o novo e o inusitado utilizando informações fragmentadas.
A noção de que as atividades cerebrais se baseiam na operação dinâmica de uma rede descentralizada composta por bilhões de neurônios operando paralelamente é conhecida hoje como conexionismo (Pasquinelli, 2021, p. 169-170). Esta teoria do funcionamento da mente estimulou um ramo da Inteligência Artificial que se opõe à IA simbólica, tradição que concebe o pensamento como a capacidade de manipular sequencialmente símbolos – unidades dotadas de significado – que representam aspectos da realidade levando em consideração um conjunto de regras formais (Smith, 1997, p. 9). Neste caso, a ênfase recai predominantemente no plano semântico, ao contrário do conexionismo, que, manipulando valores numéricos, privilegia a sintaxe13 e a descoberta de padrões inusitados pelo agrupamento de dados heterogêneos de forma inferencial.
A diferença fica ainda mais nítida se nos lembrarmos de que o modelo simbólico trabalha com correspondências um-para-um entre os símbolos e os conceitos que representam, enquanto as representações conexionistas são distribuídas, isto é, um conceito é representado por um jogo de conexões entre diversos neurônios que operam paralelamente (Domingos, 2005, cap. 4). Tal como destaca Barry Smith, a ênfase muito precoce de Hayek na dimensão tácita e dispersa do conhecimento o colocou na rota do conexionismo:
The idea of linguistic or propositional knowledge (of knowing that), which defenders of the symbolic paradigm take as their starting point, goes hand in hand with the idea of knowledge as a memory store, with which is associated a set of fixed, explicit rules for cognitive processing. The designers of connectionist systems, in contrast, set out to model the fact that knowing how is an evolving capacity of the knowing subject and is such that the content of knowledge and the process of gaining knowledge are not clearly separable from each other. There is no storehouse of memories from the connectionists’ point of view; rather the connectionist system ‘remembers’ only in the sense that its processing patterns are subject to change, being constantly and cumulatively affected by what has been experienced in the way of processing in the past (1997, p. 12).
Para Hayek, em linha com Gilbert Ryle (1946), a dimensão tácita do conhecimento está na base – é a condição de possibilidade – das operações mentais e simbólicas mais formalizadas e explícitas que sempre estiveram, equivocadamente a seu ver, no centro das atenções.
O privilégio da dimensão tácita do conhecimento é uma das características distintivas do conexionismo e, também, um dos principais alvos dos seus críticos, especialmente dos adeptos da IA simbólica. Por serem capazes de modificar as suas próprias regras de funcionamento, os algoritmos de IA conexionista geralmente são opacos e, muitas vezes, sequer os programadores que o conceberam conseguem mais entender como eles chegam aos resultados que apresentam. Mas, para Hayek, a opacidade é uma das bases do “desenvolvimento da cultura” e, especialmente da Great Society: a expansão da escala de atuação do homem e a abertura ao desconhecido só é possível porque os homens operam ferramentas e aderem a princípios e regras de conduta que não podem ser totalmente explicados.14
Outro aspecto surpreendente é que a teoria do funcionamento da mente – e, mutatis mutandis, do mercado – proposta por Hayek é conexionista, mas todo o seu sistema de pensamento repousa em um emprego bastante peculiar da noção de Vestehen da sociologia compreensiva. Esta característica alimenta o seu ceticismo com relação à possibilidade das máquinas adquirem características humanas no plano do pensamento. A sociabilidade envolve uma dimensão empática – uma espécie de pré-cognição que diferencia aprioristicamente as relações sociais das relações do “mundo natural” – que se conecta à dimensão supraconsciente cristalizada nas regras abstratas de conduta que emergem da seleção cultural (Caldwell, 2000; Mariutti, 2016, p. 60-2). Precisamente por conta disto os computadores jamais poderiam substituir o mercado como o ordenador da Great Society. Fazê-lo significaria bloquear o novo e o inusitado, impedindo as viagens ao reino do desconhecido propiciadas pela concorrência e seu jogo de cooperação e rivalidade que conecta de forma dinâmica às idiossincrasias individuais.
5 Considerações finais
A forte sinergia estabelecida entre a neurociência, a teoria da complexidade e a Inteligência Artificial favoreceu a retomada do pensamento de Hayek. A homologia que ele estabeleceu entre a organização da mente e o ordenamento espontâneo do mercado passou a ser percebida como uma antecipação do conexionismo, a vertente que hoje é dominante nas aplicações da IA. Na década de 1950 ele chegou a conjecturar a possibilidade de que máquinas analógicas pudessem exercer funções de classificação e de ordenamento dos dados sensoriais provenientes do “mundo exterior” (Hayek, 1952, p. 48) e, também, afirmou que as atividades cognitivas que chamamos de inteligência poderiam ser realizadas em estruturas materiais distintas do cérebro humano (Smith, 1997, p. 17). O aspecto mais irônico é que ele rejeitou categoricamente a possibilidade de que sistemas computadorizados fossem capazes de organizar as transações mercantis de forma mais eficaz que o ordenamento “analógico” viabilizado pelo sistema de preços (Pasquinelli, 2021, p. 172). Ou melhor: isto até seria possível, mas tal façanha seria profundamente iliberal, pois eliminaria a dimensão criativa inerente ao ordenamento pela mão invisível, isto é, o mecanismo de combinação cega das múltiplas codificações individuais no jogo de cooperação e disputa encetado pelo mercado.
No entanto, a esperança de Hayek de que a dimensão criativa do mercado poderia passar incólume ao desenvolvimento dos sistemas computacionais e da inteligência artificial enfrenta algumas dificuldades. A racionalidade do mercado e seu potencial criativo tem sido crescentemente capturada por um conjunto de aparatos sociotécnicos que, utilizando redes neurais artificiais inspiradas na velha cibernética, estão desenvolvendo a capacidade de rastrear comportamentos sociais e práticas coletivas tendo como horizonte a constituição de um regime de extrativismo do conhecimento que tem como objetivo modular o comportamento dos indivíduos de acordo com as prerrogativas de um punhado do corporações globais em intensa concorrência (Pasquinelli, 2021, p. 166; Kaiser, 2019).
Mas, mesmo este pesadelo hayekiano se dá parcialmente nos seus termos. Ao contrário do que preconizaram os entusiastas da computação que participaram do debate sobre o cálculo socialista, os aparatos sociotécnicos que disputam a coleta e a mercantilização das informações não operam de forma centralizada ou de acordo com um planejamento central. Seu princípio de operação é análogo à teoria do funcionamento da mente e do ordenamento espontâneo do mercado tal como proposto por Hayek. Diversos algoritmos vasculham padrões de navegação na Web, cliques de mouse, vozes e imagens capturadas em smartphones, câmeras de vigilância, televisores e dispositivos conectados à internet. Essa gigantesca massa bruta de dados é trabalhada por algoritmos que, de forma inferencial e com elevada granularidade, detectam padrões e organizam as informações de acordo com perfis dos consumidores que se transformam de acordo com as circunstâncias e sob a influência dos próprios algoritmos. Operam, portanto, articulando o conhecimento fragmentário e reforçando a dimensão supraconsciente, mas em um sentido contrário à visão mais apologética da Great Society proposta por Hayek.
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(1)
Frank Rosenblatt, o criador do perceptron (a primeira rede neural artificial construída com base no modelo de McCulloch & Pitt (1943)), por exemplo, reconheceu explicitamente o seu débito com a perspectiva de Hayek (Rosenblatt, 1961, p. 5).
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(2)
O artigo se baseia no discurso proferido por Hayek ao se tornar presidente do London Economic Club em 1936. O texto foi publicado no ano seguinte em Economica e posteriormente republicado em Individualism and Economic Order (1948).
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(3)
Estou usando o termo no sentido proposto por David Dequech. Por economia neoclássica se entende a combinação de 3 características: i) ênfase na racionalidade centrada na ideia de maximização da utilidade; ii) ênfase na noção de equilíbrio; iii) rejeição da incerteza fundamental e das variantes mais extremas de incerteza (2007, p. 280).
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(4)
O grande mérito de Hayek foi dissociar a dimensão computacional da questão – a manipulação formal de uma grande quantidade de dados conhecidos – do aspecto institucional e contextual: “Many economists thought the problem was one of computational complexity, and not a problem of the institutional context within which economic decisions are to be made (and the incentives and information specific to that context). Problems of computational complexity can be solved through advancements in computing technology; problems of the contextual nature of decision-making cannot be addressed outside an examination of the institutions within which those decisions are being made (…). Confusing questions of context with questions of computation distort the nature of the task that is being addressed in economics” (Boettke; Subrick, 2002 p. 56).
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(5)
As aspas são importantes. “An economy, in the strict sense of the word, is an organization or arrangement in which someone deliberately allocates resources to a unitary order of ends. Spontaneous order produced by the market is nothing of the kind; and in important respects it does not behave like an economy proper. In particular, such spontaneous order differs because it does not ensure that what general opinion regards as more important needs are always satisfied before the less important ones. This is the chief reason why people object to it.” (Hayek, 1968, p. 307). Por este motivo, embora sem muito sucesso, Hayek tentou substituir o termo “economia” por “catalaxia” que, em seu julgamento, é mais apropriado para descrever a ordem que deriva dos múltiplos ajustes estabelecidos entre atores muito diferentes – pessoas, partidos, economias nacionais etc. – sujeitos às pressões do mercado e por regras de conduta gerais como contratos, leis sobre direitos de propriedade e de combate aos delitos (Hayek, 1992, p. 110-112; Hayek, 2013a, p. 268).
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(6)
Isto é, não há distinção clara entre “trabalho” e “lazer” nos termos de Thompson (2005, p. 302-303), assim como inexiste a forma como demarcamos as nossas esferas da existência social: educação formal, relações familiares, esfera privada etc.
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(7)
É bastante comum afirmar que codificação é o aspecto central da teoria da informação, pois um sistema de codificação eficaz reduz muito o volume das informações transmitidas e aumenta a eficácia de armazenamento. O domínio avassalador da música digital só se tornou possível depois do desenvolvimento do sistema MP3 de compactação que possibilitou a reduzir em quase 90% o tamanho dos arquivos a serem reproduzidos (ou transmitidos), sem que ocorram perdas significativas da qualidade do áudio para os ouvidos humanos. É o que afirma Erico Guizzo “Coding is at the heart of information theory. All communication processes need some sort of coding. The telephone system transforms the spoken voice into electrical signals. In morse code, letters are transmitted with combinations of dots and dashes. The DNA molecule specifies a protein’s structure with four types of genetic bases. Digital communication systems use bits to represent – or encode – information” (2003, p. 9).
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(8)
Willian Aspray (1985) destaca dois precursores da teoria da informação associada a Shannon: Harry Nyquist e Ralph V. Hartley. Tal como Shannon, ambos eram engenheiros do Bell Labs e são citados diretamente por Shannon no seu artigo mais famoso. Nyquist estava empenhado em otimizar a velocidade de transmissão de dados pelo telégrafo com fio. Ele notou que o tipo de codificação influenciava a qualidade da transmissão e, por conta disto, criou uma fórmula logarítmica para aferir a inteligência transferida que era muito similar à proposta por Shannon. Mas é importante notar a palavra que ele utiliza: inteligência. Um termo que, como frisa Aspray, ainda confunde informação com significado. Mas ele percebeu a conexão entre o número de símbolos e o ganho relativo de informação transmitida. Hartley, por sua vez, queria estabelecer uma unidade de medida para poder comparar a capacidade de transferir informação entre sistemas diferentes (sua intenção era formalizar uma teoria capaz de comparar sistemas de transmissão por rádio e por fios). Ele deu um passo importante ao afirmar que, do ponto de vista “científico”, é necessário definir informação com base em considerações “físicas” e não “psicológicas”. Isto é, ele apontou a necessidade se separar a informação do significado. Também destacou a influência do ruído na qualidade das transmissões. A diferença é que Shannon propôs uma teoria realmente geral da comunicação: “What began as a study of transmission over telegraph lines was developed by Shannon into a general theory of communication applicable to telegraph, telephone, radio, television, and computing machines-in fact, to any system, physical or biological, in which information is being transferred or manipulated through time or space” (Aspray, 1985, p. 122).
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(9)
“The ‘emergence’ of ‘new’ patterns as a result of the increase in the number of elements between which simple relations exist, means that this larger structure as a whole will possess certain general or abstract features which will recur independently of the particular values of the individual data, so long as the general structure (as described, e.g., by an algebraic equation) is preserved. Such ‘wholes’, defined in terms of certain general properties of their structure, will constitute distinctive objects of explanation for a theory, even though such a theory may be merely a particular way of fitting together statements about the relations between the individual elements” (Hayek, 1964, p. 261).
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(10)
Hayek é bastante preciso: “Spontaneous orders need not be what we have called abstract, but they will often consist of a system of abstract relations between elements which are also defined only by abstract properties, and for this reason will not be intuitively perceivable and not recognizable except on the basis of a theory accounting for their character. The significance of the abstract character of such orders rests on the fact that they may persist while all the particular elements they comprise, and even the number of such elements, change. All that is necessary to preserve such an abstract order is that a certain structure of relationships be maintained, or that elements of a certain kind (but variable in number) continue to be related in a certain manner” (Hayek, 2013a, p. 37).
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(11)
Neste livro transparece com clareza um dos critérios com que Hayek separa as ciências naturais das ciências humanas. As humanidades operam sempre com percepções idiossincráticas sobre o mundo criadas pela conexão entre o nosso sistema sensorial e as experiências concretas da vida em sociedade. Já as ciências naturais destacam regularidades identificando relações abstratas entre objetos que escapam aos nossos sentidos. Geralmente se parte das qualidades sensoriais, como é o caso da ótica e da acústica, mas a tendência é transcender esta dimensão. De acordo com ele, expressões como “luz visível” e “som audível” ilustram esse afastamento da nossa percepção sensorial (Hayek, 1952, p. 3).
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(12)
Sobre a autopoiese e a sua relação com o pensamento de Hayek ver Kessler (2012, p. 289 e segs.).
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(13)
Para ser mais preciso, o conexionismo privilegia uma nebulosa dimensão subsimbólica, que se situa em um nível inferior ao da sintaxe. Se pensarmos que os símbolos são constituídos por unidades informacionais mais elementares (ao estilo da teoria da comunicação de Claude Shannon), precisamente por desprezar a dimensão semântica, um algoritmo pode identificar padrões inusitados e, deste modo, acessar possibilidades vedadas à uma inteligência que opera de forma simbólica.
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(14)
Essa passagem é particularmente ilustrativa desta ideia: “I am convinced that humans owe their cultural development to the fact that they believe what they cannot prove, and the modern crisis is due to the emergence of a rationalism that is derived from René Descartes: do not believe in anything you cannot understand or justify. Man owes his cultural development to the fact that he accepted justifications that he could not prove, and that he followed a belief. Only this belief has contributed to the development of a tradition for which there is no scientific justification” (Hayek, 2013b, p. 253).
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Editor Responsável pela Avaliação
Fábio Antonio de Campos
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
03 Mar 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
26 Nov 2022 -
Aceito
02 Ago 2024