Resumo
A MMT, em sua formulação geral, enfatiza que o refluxo dos impostos para o Tesouro implica na eliminação de reservas bancárias e base monetária, parecendo não atribuir aos impostos um papel relevante para as operações de gastos do governo. Este trabalho se propõe a contribuir com o debate, argumentando que os impostos são um refluxo no circuito monetário iniciado pelo gasto público, para o qual constituem financiamento final. Recorrendo ao modelo do Supermultiplicador Sraffiano visamos mostrar a relevância dos impostos para reabastecer a conta do Tesouro, reduzindo o déficit e a emissão de dívida, dando estabilidade ao processo orçamentário e às operações do governo. Abordaremos, por fim, a tributação sob a ótica da economia política, mostrando que a expansão da oferta de bens e serviços públicos não se dissocia da ampliação da carga tributária, e que contextos político-institucionais são determinantes para a aceitação de elevações ou cortes de impostos.
Palavras-chave:
Macroeconomia; Economia política; MMT; Carga tributária; Supermultiplicador Sraffiano
Abstract
The MMT, in its general formulation, emphasizes that the reflux of taxes to the Treasury implies in the destruction of bank reserves and high-powered-money, not seeming to attribute to taxes a relevant role in government spending operations. This paper aims to contribute to the debate, arguing that taxes are a reflux in the monetary circuit initiated by public expenditure, for which they constitute final funding. Using the Sraffian Supermultiplier model, we aim to show the relevance of taxes to replenish the Treasury account, reducing the deficit and debt issuance, providing stability to the budget and government operations. Finally, we will approach taxation from the perspective of political economy, showing that the expansion of the supply of public goods and services is not dissociated from the rise of the tax burden, and that political-institutional contexts are decisive for the acceptance of increases or cuts in taxes.
JEL: E60, H60, P00, B52, B51.
Keywords:
Macroeconomics; Political economy; MMT; Tax burden; Sraffian Supermultiplier
1 Introdução
A controvérsia entre os economistas a respeito da magnitude da carga tributária e do papel da política tributária foi renovada nas últimas décadas com a difusão das ideias da Teoria Monetária Moderna (Modern Monetary Theory ou Modern Money Theory – MMT), que vem se constituindo como um forte contraponto heterodoxo às proposições ortodoxas em relação à política fiscal. De acordo com os proponentes da MMT, em um país emissor de moeda soberana, o governo pode emitir moeda para financiar seus gastos, independentemente de sua arrecadação tributária. Partindo da relação lógica do Princípio da Demanda Efetiva, em que o gasto precede a renda e o produto, o governo não gasta sua receita de impostos pois os impostos são vazamentos a partir da renda gerada em decorrência da decisão de gasto. Para além disso, a MMT enfatiza que o refluxo dos impostos para o Tesouro implica na eliminação de reservas bancárias e base monetária, equivalentes à arrecadação, dissociando completamente as despesas do governo e a tributação (Wray, 2019; Bell, 1998; Rezende, 2009; Fullwiler, 2005).
De modo geral, a forma como a MMT aborda a questão da tributação parece não atribuir aos impostos um papel relevante para as operações de gastos do governo, o que desperta críticas inclusive no campo heterodoxo. Lavoie (2013), por exemplo, afirma que o argumento da MMT de que os impostos não financiam as despesas de um governo com moeda soberana é contraintuitivo e desprovido de realismo legal e operacional1. Palley (2019), por sua vez, alega que a MMT se omite quanto ao papel e necessidade da tributação, ressaltando que os impostos são, sim, necessários para financiar as despesas do governo2.
Respondendo a críticas que apontam para um excesso de simplificação da teoria, suas limitações empíricas e institucionais e pouca aderência com as experiências reais dos governos, Fullwiler (2010) esclarece que o caso geral apresentado pela MMT para os aspectos operacionais dos governos emissores de moeda soberana difere dos casos específicos, os quais levariam em conta as restrições autoimpostas que geram as particularidades apontadas pelos críticos à teoria. Da mesma forma, Mitchell (2016) afirma que o caso geral mostra outro nível da realidade, em que é possível explicitar estas restrições autoimpostas. Em relação ao seu artigo de 2013, posteriormente Lavoie reconheceu os argumentos de Fullwiler e Mitchell, mas salientando que a apresentação de um caso geral extremamente simplificado pode causar mal-entendidos ou parecer contrafactual (Lavoie, 2019, p. 99; p. 105).
Diante disso, este trabalho se propõe a contribuir com o debate, aprofundando aspectos teóricos e empíricos/institucionais importantes, enfatizando elementos concretos com relação ao papel da receita tributária no funcionamento das operações do governo no que tange diferentes arranjos institucionais entre o Tesouro e a autoridade monetária. Recorrendo à distinção entre financiamento inicial e financiamento final, podemos argumentar que, de fato, o gasto do governo prescinde de arrecadação tributária como financiamento inicial. Este ponto está em linha com o princípio da demanda efetiva, em que os impostos, assim como a poupança, são coletados ex post. Entretanto, a partir desse princípio lógico, avaliaremos as implicações da carga tributária para o funcionamento das operações do governo utilizando o modelo de crescimento do Supermultiplicador Sraffiano, em que a receita tributária é induzida, e em que o orçamento do governo pode ser deficitário, mas não necessariamente. Neste modelo, em que o crescimento de longo prazo da economia é puxado pelo crescimento dos gastos autônomos, a partir da criação endógena de crédito, o governo realiza suas despesas e o mecanismo do supermultiplicador3 gera a renda ex post sobre a qual são cobrados os impostos. Estes são um refluxo no circuito monetário iniciado pelo gasto público, para o qual constituem financiamento final. Recorrendo ao modelo do Supermultiplicador, visamos mostrar a interação entre despesa e receita creditada à conta do Tesouro4.
Argumentaremos, a partir deste exercício que a tributação tem um papel importante em reabastecer o saldo da conta do Tesouro, dada a institucionalidade brasileira, que impede um financiamento direto por parte do Banco Central, e, com isso, garante um funcionamento mais suave das operações de venda de títulos de dívida pelo governo.
No contexto institucional, comum a diversos países atualmente, em que o Banco Central não está autorizado a financiar diretamente as despesas do Tesouro, os déficits do governo requerem emissão de títulos para garantir o financiamento indireto5. Mostraremos que na ausência de financiamento direto, a receita oriunda dos impostos reduz as pressões sobre os leilões primários do Tesouro. Ao recompor o saldo da conta do Tesouro, a tributação reduz o déficit e a necessidade de emissão de dívida, dando estabilidade ao processo orçamentário e às operações do Tesouro e do Banco Central. Por outro lado, essa redução das necessidades de emissão de dívida tem relevantes impactos distributivos.
Outra contribuição deste trabalho será tratar de aspectos políticos e institucionais que, ainda que não alterem em nada o argumento lógico de que a arrecadação de impostos se dá ex post, precisam ser discutidos em uma visão realista e prática das operações do governo. Abordando a questão da tributação sob a ótica da economia política, usaremos exemplos históricos para mostrar que a expansão da oferta de bens e serviços públicos não se dissocia da ampliação da carga tributária, e que contextos políticos, institucionais e geopolíticos são determinantes para a aceitação, por parte da sociedade, de elevações da carga tributária ou de cortes de impostos.
Além desta introdução, este trabalho divide-se em outras três seções. Na seção 2 apresentaremos os princípios em que a MMT se baseia e como eles levam à visão desta teoria sobre a tributação. Na seção 3, tendo como ponto de partida a abordagem do circuito monetário liderado pela demanda, discutiremos as noções de financiamento inicial e financiamento final dos gastos do governo. A partir disso, na seção 4 apontaremos a relevância da carga tributária na estrutura orçamentária do governo, e analisaremos a carga tributária sob a ótica da economia política. Uma breve conclusão encerra o trabalho.
2 MMT e a tributação
Wray (2019) enfatiza que a análise de política fiscal e monetária proposta pela MMT se aplica apenas a governos nacionais que emitam moedas soberanas. De acordo com a MMT, uma moeda é considerada soberana quando o governo escolhe a unidade de conta na qual a moeda será denominada, impõe obrigações denominadas na unidade de conta escolhida, emite moeda denominada na unidade de conta, a aceita como pagamento das obrigações impostas, e emite outros passivos contra si mesmo, igualmente denominados na unidade de conta escolhida e que podem ser pagos na própria moeda do governo. Um argumento central para os proponentes da MMT é o de que a situação financeira de um governo que emite a própria moeda é diferente daquela das famílias e empresas: governos sempre podem honrar suas obrigações pagando-as na própria moeda, não estando, portanto, sujeitos a uma “restrição orçamentária”.
A MMT é baseada e inteiramente consistente com o Princípio da Demanda Efetiva (PDE) e com os princípios das finanças funcionais. O PDE estabelece a primazia do gasto ao afirmar que são as decisões de gasto que determinam a renda e o produto. Dentro da lógica do PDE, as decisões de gasto e produção requerem injeção autônoma de poder de compra antes da renda ser gerada, ou seja, o financiamento/crédito deve ser fornecido antes que a renda possa ser poupada.
Já pelos princípios das finanças funcionais, propostos por Abba Lerner na década de 1940, o governo deveria usar seus instrumentos de política fiscal para garantir alto nível de emprego sem causar inflação por excesso de demanda. Logo, as medidas fiscais deveriam ser avaliadas pelos seus resultados ou efeitos sobre a economia, sem se preocupar com o equilíbrio orçamentário: os resultados do orçamento do governo implicariam em emissão de mais moeda (se deficitário) ou entesouramento ou destruição de moeda (se superavitário) (Lerner, 1943). No caso da tributação, ela não deve ser vista como necessária para que o governo efetue seus pagamentos, mas, sim, pelo seu efeito direto de reduzir a disponibilidade de renda dos contribuintes para gastar. A política tributária deve ser definida, então, de acordo com o quanto de recursos é socialmente desejável que certos grupos de indivíduos, certas atividades ou a economia como um todo tenham à disposição, alterando a distribuição de renda e riqueza, e desencorajando ou incentivando determinados gastos. De um modo geral, ao cortar o gasto privado, a tributação também deveria ser usada para evitar excesso de demanda agregada e, consequentemente, a inflação (Lerner, 1944, cap. 24, p. 308). Em suma, a importância da tributação é influenciar o comportamento econômico do público (Lerner, 1951, cap. 8, p. 131).
Além da contribuição de Abba Lerner, uma referência central para a visão da MMT com relação à tributação, e que visa dar embasamento histórico à teoria, é a abordagem neo-cartalista da moeda, baseada na teoria da moeda estatal de G.F. Knapp e nos trabalhos de J.M. Keynes e A.M. Innes. De acordo com essa abordagem, historicamente, os governos soberanos não passaram a emitir moedas com o intuito de facilitar as trocas, como é comumente aceito por grande parte dos economistas; pelo contrário, os mercados só se tornaram possíveis com a existência de uma moeda de conta (Wray, 2019, p. 9). Para tornar aceita a moeda fiduciária emitida, os governos soberanos impõem obrigações denominadas nessa moeda, emitem seus próprios passivos denominados nessa moeda e cobram impostos nessa mesma moeda, criando demanda do público por ela (ver, por exemplo, Wray, 2002). Com base no neo-cartalismo, a imposição e a coleta de tributos têm a função de criar demanda pela moeda soberana emitida pelo governo.
Com isso, é necessário que o governo gaste para que o público tenha meios para pagar seus impostos e até mesmo adquirir títulos do Tesouro. Neste contexto, e em linha com as finanças funcionais, a MMT dá ênfase à função da carga tributária em conter os excessos de liquidez para prevenir a inflação6 e em implementar mudanças na distribuição de renda. Mais especificamente, Wray (2015, cap. 5) afirma que o ideal seria uma estrutura tributária contracíclica, que aumenta a arrecadação durante os períodos de crescimento e reduz em cenários de recessão, estabilizando a demanda agregada.
O argumento de que os impostos não podem financiar os gastos do governo está logicamente de acordo com o PDE: como o gasto precede a renda, o gasto de um governo emissor de moeda soberana necessariamente antecede a sua arrecadação. Assim como a poupança é residual e, por conseguinte, não pode ser fonte ex ante de financiamento para o investimento, os impostos também são vazamentos que não podem ser fonte de financiamento para os gastos do governo, pois decorre deles. Logicamente, os contribuintes não poderiam pagar seus impostos denominados em uma determinada moeda se ela não for posta em circulação pelo gasto do governo. Nos princípios das finanças funcionais, o gasto deficitário necessário para manter a economia em pleno emprego não exige financiamento tributário, podendo ser sustentado pela emissão de moeda. Assim, os impostos têm como função reduzir a renda disponível, enquanto a política tributária atua como instrumento para conter excessos de demanda e pressões inflacionárias.
Para embasar o argumento de que os governos podem efetuar seus gastos independente de sua arrecadação de impostos, Wray (2019) cita um episódio histórico narrado pelo historiador econômico Farley Grubb:
The American colonial governments were always short of British coins (but prohibited by the Crown from coining their own) to finance their activities so they each came up with their own money of account (for example the Virginia pound or the North Carolina pound), imposed taxes in that money of account, issued paper notes in the money of account, spent the paper notes, collected those notes in taxes, and then burned their tax revenue (Wray, 2019, p. 9).
Partindo deste episódio histórico, Wray usa um exemplo de Eric Tymoigne para argumentar que o refluxo da arrecadação para a conta do Tesouro não é relevante para garantir o gasto subsequente, que pode ser financiado por nova moeda emitida7:
Eric Tymoigne uses “free pizza coupons” as an example to demonstrate the logic of a sovereign currency. Your local pizza joint issues coupons for free pizzas. When a coupon does come in, the restaurant must bake a pizza. The outstanding coupons represent liabilities of the restaurant and assets of the holders. Each coupon is worth a pizza until the expiration date, after which its value immediately drops to zero. When a coupon is presented to the restaurant for redemption, it is torn and tossed in the recycling bin. Only a misguided restaurant manager would lock them up in a safe deposit “lockbox” thinking they are valuable assets. The manager knows they represent claims and thus potential costs in terms of labor, ingredients, and fuel involved in pizza production. It would be silly to accumulate them to be counted as assets that would help defray the costs of meeting the future demand of customers for pizzas (Wray, 2019, p. 12).
Bell (1998) também faz menção à “destruição” das receitas oriundas de impostos e títulos:
It’s further argued that the proceeds from taxation and bond sales are not even capable of financing government spending since their collection implies their destruction. (Bell, 1998, p. 3; grifo no original).
Mais adiante, a autora deixa mais clara sua colocação:
The argument is a technical one and requires an understanding that Federal Reserve notes (and reserves) are booked as liabilities on the Fed’s balance sheet and that these liabilities are extinguished/discharged when they are offered in payment to the State. It must also be recognized that when currency or reserves return to the State, the liabilities of the State are reduced and high-powered money is destroyed (Bell, 1998, p. 20-21).
Trata-se de uma questão lógica, como colocado por Rezende (2009):
As a matter of logic, the federal government is not spending tax revenue, because taxes are collected by debiting bank accounts. It means that bank reserves are destroyed; the state is eliminating its own IOUs (Rezende, 2009, p. 89).
Ao efetuar seus gastos, o governo credita contas bancárias do setor público, expandindo as reservas bancárias e, consequentemente, a base monetária. A arrecadação de impostos, por sua vez, tem o efeito contrário, reduzindo as reservas bancárias e, com isso, a base monetária. Em linha com a abordagem da taxa de juros exógena, como a taxa básica de juros é uma variável institucional de política, fixada pelo governo exogenamente e é a meta operacional da política monetária, o comprometimento do Banco Central com sua meta para a taxa básica de juros e com a estabilidade do sistema de pagamentos garante que o Banco Central cooperará com as operações do Tesouro (Serrano; Summa, 2013). Fullwiler (2005) aprofunda os efeitos das operações de gasto e arrecadação do Tesouro sobre as reservas bancárias e, consequentemente, sobre a interação entre Tesouro de Banco Central: quando os contribuintes recolhem seus impostos, o sistema bancário usa suas reservas para poder compensar estes débitos, podendo ficar com menos reservas do que o desejado e pressionando a taxa básica de juros para cima; quando o Tesouro realiza suas despesas, creditando as contas correntes dos favorecidos, o sistema bancário pode ficar com mais reservas do que o desejado, pressionando, nesse caso, a taxa básica de juros para baixo. Em qualquer situação em que o volume de reservas esteja abaixo ou acima do desejado pressionando a taxa básica de juros para cima ou para baixo, respectivamente, o Banco Central, através de operações de venda e compra de títulos no mercado secundário acomoda as demandas dos bancos por reservas, mantendo a taxa básica de juros próxima à sua meta.
Rezende (op. cit.) apresenta uma análise empírica da interação entre o Tesouro e o Banco Central no Brasil. Como as operações de gasto e arrecadação do Tesouro não são coordenadas diariamente, o Banco Central precisa atuar através de seus instrumentos para minimizar as distorções que estas operações causam sobre o volume de reservas bancárias, de acordo com suas metas de política monetária. As razões práticas que levariam à coordenação das operações do governo estão relacionadas ao impacto que o gasto e a arrecadação têm sobre as reservas bancárias e não à necessidade de o governo arrecadar impostos para financiar seus gastos:
Coordinating taxes and government spending to try to manage the reserve effects of these two operations gives the illusion that the government must somehow match tax receipts with government expenditures. It fosters the misleading idea that taxes are needed to finance government spending and that the treasury and the central bank are coordinated to satisfy fiscal policy needs. It supports the conventional view that taxes finance government spending because, otherwise, why would the government work so hard to make sure that tax receipts come in to offset government spending? (Rezende, 2009, p. 93).
Na mesma linha de raciocínio, o endividamento do governo (em moeda soberana nacional) não está relacionado diretamente com a necessidade de recursos para que o governo efetue seus gastos. Dentro do escopo das finanças funcionais, o efeito primordial da emissão de dívida pública é o de afetar a alocação de portfólio do setor privado a partir da renda previamente gerada pelo gasto, ou seja, o quanto de títulos e o quanto de dinheiro é desejável que o público retenha, afetando, por conseguinte, a taxa de juros (Lerner, 1943, 1944, cap. 24, p. 309). Obviamente, a discussão em torno da sustentabilidade da dívida não é central para a abordagem de finanças funcionais.
Assim, nas análises de Fullwiler e Rezende mencionadas acima, o leilão de títulos do Tesouro não visa o financiamento dos gastos. Seu papel é o de reduzir eventuais excessos de reservas bancárias, que, caso contrário, teriam que ser reduzidas pelo Banco Central através de operações no mercado aberto8. Ou seja, tal como as operações do Banco Central no mercado aberto, os leilões, de títulos do Tesouro são parte da estratégia de política monetária, sendo uma operação de manutenção da taxa de juros9.
Disso decorre que a compra de títulos e o pagamento de impostos pelo setor privado requerem que bancos tenham reservas, que, por sua vez, só podem vir do gasto do Tesouro, da compra de ativos pelo Banco Central, ou de empréstimos concedidos pelo Banco Central. Mais uma vez, nem os impostos, nem a venda de títulos poderiam ser fontes líquidas de financiamento do governo: os meios para pagar impostos ou para comprar títulos são fornecidos pelo governo.
Nesse contexto, Palley (2019) argumenta que a questão entre os impostos financiarem o governo ou destruírem moeda “antiga” para dar espaço à emissão de moeda “nova” para financiar o gasto torna-se uma questão de semântica. Aqui, argumentamos que não se trata de uma questão de semântica, mas sim, de distinguir entre o argumento lógico ou a descrição geral das operações do governo e os aspectos institucionais e políticos que permeiam as operações de gasto e tributação do governo na prática – distinguir o “caso geral” dos “casos específicos”, como afirmaram Fullwiler (2010) e Mitchell (2016). A premissa de que o propósito dos impostos é apenas o de resgatar a moeda emitida, tirando-a de circulação, de que a receita tributária é destruída (ou “queimada”) e de que os governos prescindem inteiramente da receita obtida pelos impostos em seus orçamentos, pode ter a vantagem de refutar a visão, a nosso ver equivocada, de que o governo tem algum tipo de “restrição” para se financiar. No entanto, é uma visão pouco aderente quando confrontada com as experiências reais das economias contemporâneas. Se a receita tributária não é utilizada para financiar novos gastos do governo, na prática, os governos recorrem à emissão de títulos, o que tem impactos distributivos relevantes, uma vez que o pagamento dos juros da dívida pública gera transferência de recursos para os rentistas e as classes mais altas10. Seguindo a lógica do PDE e da abordagem da taxa de juros exógena, podemos argumentar que os impostos possuem, sim, uma função de financiamento dentro da estrutura orçamentária do governo e que essa função apresenta aspectos de economia política relevantes que precisam ser debatidos no que diz respeito à tributação. É o que apresentaremos nas próximas duas seções.
3 Financiamento inicial e final
Nosso primeiro passo será argumentar que a receita tributária é um refluxo no circuito monetário iniciado pelo gasto do governo, e que, desta forma, ainda que o governo prescinda da arrecadação de impostos para efetuar seus gastos, esta receita constitui financiamento final do governo, reduzindo seu déficit e a dívida pública. Para isso, adotaremos a abordagem do circuito monetário liderado pela demanda sugerida por Cesaratto (2016b) e Cesaratto e Pariboni (2022), em que as despesas do governo constituem um dos componentes da demanda autônoma, puxando o crescimento da economia.
Frequentemente, a literatura da MMT analisa os gastos do governo sob a hipótese de consolidação, em que o Banco Central e o Tesouro são tratados como uma única instituição, o governo consolidado, o que Fullwiler (2010) e Mitchell (2016) deixam claro tratar-se do que ele chama de “caso geral” da teoria. A hipótese de consolidação está em linha com a abordagem cartalista e com o argumento da MMT de que as despesas do Tesouro ocorrem a partir de moeda recém-criada pelo Banco Central. De acordo com essa visão de consolidação entre o Banco Central e o Tesouro, os títulos são emitidos por questões de política monetária e não para financiar as despesas do governo, reforçando a ideia de consolidação, dado que as políticas monetárias e fiscais se tornam indistinguíveis (Cesaratto, 2016a). Ao levar em conta a proibição de o Banco Central de financiar diretamente o Tesouro (“caso específico”), obviamente o Tesouro precisará abastecer sua conta junto ao Banco Central antes de creditar as contas bancárias do setor privado. No entanto, quando as operações do Tesouro e do Banco Central são analisadas à luz dos seus balanços e do balanço do setor privado financeiro, o cenário final é o mesmo, considerando ou não a hipótese de consolidação11. De qualquer forma, seguindo Cesaratto (2016a) e Cesaratto e Di Bucchianico (2021), o financiamento dos gastos do governo em um contexto institucional em que o Banco Central está proibido de financiar diretamente o Tesouro pode ser descrito pelas seguintes etapas:
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(i) O Tesouro faz leilão de títulos para os bancos comerciais, que transferem recursos para a conta do Tesouro12.
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(ii) O Tesouro transfere seu depósito dos bancos comerciais para sua conta no Banco Central, reduzindo o volume de reservas bancárias, o que tende a pressionar a taxa básica de juros para cima.
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(iii) Para manter a taxa básica de juros em torno de sua meta de política monetária, o Banco Central compra títulos dos bancos comerciais repondo as reservas que foram reduzidas na etapa anterior.
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(iv) O Tesouro realiza suas despesas creditando as contas dos beneficiários nos bancos comerciais, aumentando as reservas bancárias, o que tende a pressionar a taxa básica de juros para baixo.
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(v) Novamente visando sua meta para a taxa básica de juros, o Banco Central vende títulos aos bancos comerciais, enxugando o excesso de reservas bancárias que eventualmente possam existir nas operações entre as instituições financeiras.
Neste exemplo, dada a institucionalidade de financiamento do gasto público brasileiro, o gasto do governo é deficitário, totalmente financiado pela emissão de novos títulos. Para os que defendem a hipótese de consolidação, as etapas (i), (ii) e (iii) seriam desnecessárias, pois, ao final delas, o Banco Central fica com títulos do Tesouro e o Tesouro com depósitos em sua conta no Banco Central, da mesma forma que ocorreria se o Banco Central comprasse diretamente os títulos do Tesouro. O cenário final dos balanços do Tesouro e do Banco Central ficaria igual com ou sem a hipótese de consolidação. No entanto, em termos da operação do governo, o que as etapas (i), (ii) e (iii) mostram é que a emissão de títulos do Tesouro leva o Banco Central a garantir financiamento indireto para os gastos, o que pode ser descrito por dois canais. Um deles é o descrito na etapa (iii), em que o Banco Central compra os títulos dos bancos comerciais após o leilão, visando manter a taxa básica de juros em torno de sua meta após o leilão. O outro, se dá quando o Banco Central fornece liquidez aos dealers do Tesouro previamente ao leilão. Os dealers selecionados pelo Tesouro são obrigados a fazer propostas de compra destes títulos, as quais o Tesouro pode recusar, caso os dealers estejam pedindo taxas de juros mais altas do que as desejadas pelo Tesouro. As operações do Banco Central no mercado secundário de títulos acomodam as demandas por reservas bancárias e garantem que os dealers tenham fundos para adquirir os títulos ofertados pelo Tesouro em seus leilões primários, tornando a demanda elástica nos leilões primários (Jorge; Bastos, 2019).
Seguindo a análise, quando o governo decide gastar, ele gera demanda para o setor privado, induzindo decisões de produção financiadas por moeda/crédito endógeno. Através dos efeitos multiplicadores da renda são geradas poupanças e receitas de impostos que fornecem financiamento final ao governo (ou parte dele). Isso não contradiz a proposição lógica de que o governo gasta primeiro: é a partir da decisão de gasto pelo governo, que se dá a expansão do crédito privado e que são gerados os impostos e as poupanças no setor privado (Cesaratto, 2016a). As etapas abaixo complementam a análise:
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(vi) A demanda autônoma adicional gerada pelo gasto do governo põe em funcionamento o mecanismo do supermultiplicador da renda gerando poupanças e arrecadação de impostos13.
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(vii) Com os impostos arrecadados, o Tesouro compra de volta parte da dívida gerada pela emissão de títulos na etapa (i), de forma que os títulos que ainda permanecem no mercado correspondem ao gasto deficitário ex post.
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(viii) O setor privado usa suas poupanças para comprar os títulos públicos dos bancos. Desta forma, ao final, o gasto deficitário é, em parte, financiado pelo setor privado não financeiro.
Apesar do contexto institucional em que o Banco Central está proibido de financiar diretamente as despesas do Tesouro, as etapas acima mostram que mesmo sem a hipótese de consolidação, a lógica de que o gasto do governo antecede a sua receita não muda, uma vez que o Tesouro pode captar recursos junto ao setor privado, com o Banco Central dando suporte à operação tendo em vista suas metas de política monetária e a capacidade do governo em expandir a base monetária. Em termos da situação final dos balanços do Tesouro, Banco Central e do setor privado financeiro, a solução para o governo gastar primeiro sem consolidar Tesouro e Banco Central é igual àquela em que há criação direta de moeda/crédito endógena a favor do setor privado, mas não em termos dos processos descritos, de forma que a consolidação ou não do Tesouro com o Banco Central nos ajudam a compreender aspectos diferentes das operações do governo14.
As decisões de gasto do governo, seja comprando bens de consumo ou de capital, seja pagando salários e transferências de renda, implica em decisões de gasto e produção por parte do setor privado. A expectativa de demanda provocada pela decisão de gasto do governo incentiva a expansão do crédito para o setor privado, colocando em funcionamento o mecanismo multiplicador da renda, o que gera arrecadação de impostos e poupança, que, como descrito acima, fornecem o financiamento final ao governo (Cesaratto; Di Bucchianico, 2021).
4 Gastos públicos, tributação e orçamento
4.1 Aspectos macroeconômicos
Pelo que vimos na seção anterior, em linha com a lógica Keynesiana do PDE, o governo prescinde da carga tributária para financiar inicialmente seu gasto. De fato, o financiamento inicial (tanto público quanto privado) diz respeito à criação endógena de crédito (ex nihilo). No entanto, vimos que a carga tributária constitui financiamento ex post aos gastos públicos e, como mostraremos a seguir, refluxo para a conta do Tesouro, reabastecendo-a.
Para demonstrar a importância da tributação em realimentar o saldo da conta do Tesouro, podemos fazer uma simulação simples, utilizando a lógica do multiplicador Keynesiano, analogamente ao exemplo apresentado por Cesaratto (2016a, p. 53). Vamos supor que no primeiro período, a conta do Tesouro é abastecida com a emissão ex nihilo de 100 unidades monetárias para que o governo efetue uma despesa neste mesmo valor. No segundo período, o governo gasta 50 unidades monetárias e, nos períodos subsequentes, as despesas do governo passam a crescer 5% com relação ao período anterior. Considerando a propensão marginal a consumir, c=0,7, e a carga tributária incidente sobre a renda a cada período, t=0,25, constantes a cada período, teríamos a seguinte situação, apresentada na Tabela 1 a seguir.
Por simplicidade, supomos que inicialmente foi realizado um “saque direto” na conta do Tesouro, sem que ela tivesse sido previamente abastecida através da arrecadação de impostos ou por um leilão de títulos, e que o governo realizou suas despesas, depositando valores nas contas bancárias do setor privado, e, após o processo do multiplicador da renda, coletando impostos. O governo poderia “desconsiderar” a receita obtida pela tributação, “queimando suas notas”, e emitindo nova moeda para as despesas do período seguinte. No entanto, na prática, não é isso que ocorre. A arrecadação de impostos reabasteceu a conta do Tesouro para o período seguinte. Sendo o gasto deficitário, como no nosso exemplo, inevitavelmente, em algum momento o saldo da conta do Tesouro chegará a zero e o governo terá que recorrer a nova emissão de moeda ou à emissão de títulos da dívida pública para financiar seus gastos: se não houver emissão de dívida, a soma do saldo em conta mais a arrecadação, após alguns períodos, não cobre o total de gastos.
As três simulações a seguir, utilizam um modelo mais completo, o do Supermultiplicador Sraffiano. No modelo do Supermultiplicador, em que o componente central da política fiscal para determinação da taxa de crescimento econômico de longo prazo é o crescimento do gasto, a tributação tem relevância para estabelecer o nível de produto (Freitas; Christianes, 2020). Neste modelo, no longo prazo, a taxa de crescimento da economia depende da taxa de crescimento dos gastos autônomos, entre os quais se inclui o gasto público. (Freitas; Serrano 2015). Os impostos são arrecadados ex post, a partir das rendas geradas pela operação do supermultiplicador, com a tributação incidindo não apenas sobre a produção de bens e serviços comprados pelo governo, mas sim sobre toda a renda gerada. Mudanças na carga tributária alteram a taxa de crescimento do produto apenas transitoriamente, mas têm efeito definitivo sobre o nível do produto, pois altera a propensão a gastar15.
Primeiramente, vamos considerar uma economia fechada em que o gasto autônomo tem apenas um componente, o gasto do governo (G_t), que o consumo corresponde a uma parcela da renda disponível após impostos, C_t=c(1-t) Y_t, e que a taxa de investimento (h) é um parâmetro dado16, de forma que I_t=hY_t, temos que nível de produto será dado por:
Vamos supor que no primeiro período a conta do Tesouro é abastecida com a emissão de 100 unidades monetárias para que o governo efetue uma despesa neste mesmo valor, e que nos períodos subsequentes, as despesas do governo cresçam a uma taxa constante de 5% por período. Considerando a propensão marginal a consumir, c=0,7, a taxa de investimento, h=0,2 e a carga tributária, t=0,25, constantes a cada período17, teríamos a seguinte situação, apresentada na Tabela 2 a seguir.
Usando o modelo do Supermultiplicador, que trata o investimento como gasto induzido, temos que o mesmo gasto do governo em t = 1 gera um produto adicional maior do que o obtido na simulação anterior e, consequentemente, uma maior arrecadação. Assim, mesmo com o gasto crescente do governo, o saldo da conta do Tesouro leva mais períodos para se exaurir: na simulação da Tabela 1, o saldo estava negativo no período t = 4; na Tabela 2, o saldo só chegou a zero no período t = 918.
Podemos ainda considerar o caso em que além dos gastos do governo, há outro gasto autônomo na economia (Z_t). Neste caso, o nível de produto será dado por:
Supomos mais uma vez que no primeiro período, a conta do Tesouro é abastecida com a emissão de 100 unidades monetárias, para que o governo efetue uma despesa neste mesmo valor, e que nos períodos subsequentes, as despesas do governo cresçam a uma taxa constante de 5% por período. Vamos supor que o outro gasto autônomo não cresça de um período para o outro, permanecendo constante em 50 u.m. Considerando os mesmos parâmetros da simulação anterior, teríamos a seguinte situação, apresentada na Tabela 3 a seguir.
A parcela dos gastos do governo sobre o total dos gastos autônomos que equilibra o resultado primário do governo é dada por20:
A relação deste resultado acima com o saldo da conta do Tesouro é mostrada no gráfico 1 a seguir. Enquanto a parcela dos gastos do governo sobre o total dos gastos autônomos for menor que 0,9091, o governo terá superávit e o saldo final da conta do Tesouro será maior que o inicial. O contrário ocorre quando a parcela dos gastos do governo sobre o total dos gastos autônomos for maior que 0,9091 (o que ocorre a partir do período t = 34) e o saldo da conta do Tesouro passa a se reduzir a cada período, até zerar.
Por fim, consideraremos que, assim como os gastos do governo, o outro gasto autônomo também cresça a uma taxa de 5% por período. Mantendo os parâmetros da simulação anterior, a Tabela 4 mostra a nova situação:
O propósito destas simulações é mostrar que, no modelo do Supermultiplicador Sraffiano, dependendo da proporção dos gastos do governo com relação aos demais gastos autônomos, mesmo com uma expansão dos gastos públicos e com uma carga tributária constante, podemos obter uma situação de orçamento superavitário, em que o Tesouro não teria que emitir títulos da dívida pública com a finalidade de abastecer sua conta (a proporção entre os gastos do governo e o total de gastos autônomos determinará se o resultado primário do governo será ou não deficitário). A arrecadação de impostos reabastece a conta do Tesouro a cada período, e o governo não precisa nem de nova emissão monetária nem de emissão de dívida para realizar seus gastos no período seguinte. Ainda que possível, consideramos este um caso particular21.
Na visão geral apresentada pela MMT, o governo emitiria títulos públicos para conter o excesso de liquidez, mantendo a taxa de juros dentro da meta estabelecida pela política monetária, o que não teria a ver com o financiamento dos gastos. Entretanto, sendo o gasto deficitário (como ele passa a ser na simulação acima, após alguns períodos), se essa venda de títulos (visando apenas manter a taxa de juros na meta estabelecida pelo Banco Central) não for suficiente para cobrir o déficit, ainda que ela retardasse o esgotamento do saldo da conta do Tesouro, ceteris paribus, em algum momento, o saldo da conta chegaria a zero.
Na seção 3, assumindo que o Banco Central não pode financiar diretamente os gastos do Tesouro, como é o contexto institucional de diversos países, mostramos a importância que os leilões de títulos têm para que o Tesouro obtenha financiamento inicial junto aos bancos comerciais, ainda que antes do leilão do Tesouro o Banco Central possa fazer operações no mercado aberto, comprando títulos dos bancos, expandindo a base monetária e fornecendo liquidez aos dealers do Tesouro. Ou seja, na prática, o gasto deficitário do governo acaba sendo necessariamente acompanhado da emissão de títulos, ou em outras palavras, a emissão de título é um instrumento necessário para que, ainda que indiretamente, a autoridade monetária financie o governo/emita moeda. Assim, a parte da despesa inicial do governo que não é coberta ex post pela arrecadação de impostos, é coberta por dívida do setor público. Como vimos, a arrecadação de impostos permite que o governo recompre parte da dívida emitida como financiamento inicial. O financiamento final para a parte da despesa não coberta pela arrecadação fica na forma de dívida, captada através das poupanças do setor privado (ver etapa [viii] na seção 3).
Com um orçamento deficitário, o saldo da conta do Tesouro se reduziria, mas, na prática, ele não chega a zero, pois o Tesouro faz leilão de novos títulos da dívida, para os quais os dealers são obrigados a fazer propostas. Em circunstâncias, como por exemplo, momentos de tensão política, as propostas apresentadas pelos dealers podem ser consideradas inadequadas pelo Tesouro, e este pode preferir não realizar a venda dos títulos nas condições propostas. Nesse caso, o governo utiliza o saldo da conta do Tesouro para comprar os títulos vincendos que não sejam rolados em tais leilões22. Ou seja, a existência de um saldo positivo em sua conta permite que o Tesouro realize seus leilões primários de forma mais estável: os recursos em conta podem comprar títulos vincendos ou que não tiveram proposta aceita no leilão, migrando esses recursos para as operações compromissadas. Uma vez restabelecida a “calmaria nos mercados”, o Tesouro pode realizar um novo leilão, recebendo propostas a taxas de juros mais de acordo com o que deseja. Portanto, um baixo saldo na conta do Tesouro pode exercer pressão circunstancial sobre o governo23.
Assim, do ponto de vista do financiamento das despesas do governo, a receita tributária gera um refluxo para a conta do Tesouro, que favorece um funcionamento mais suave das operações do governo. A emissão de dívida pública, por sua vez, não apenas atende à demanda do setor privado por esse ativo em seus portfolios, determinando o quanto de sua riqueza os agentes privados reterão na forma de moeda, mas também abastece a conta do Tesouro, garantindo a estabilidade das operações do governo24. Sem a arrecadação de impostos, a dívida pública teria que aumentar significativamente, o que traz à tona questões relacionadas a uma exploração “política” de um suposto problema de sustentabilidade da dívida25 e aspectos distributivos relacionados a maior pagamento de juros para os rentistas.
Como mencionado na seção 2, dentro da abordagem de finanças funcionais, qualquer nível de dívida em moeda soberana é sustentável e, portanto, não há discussão em torno da sustentabilidade da dívida. Lerner, no entanto, não considera que uma política fiscal baseada nos princípios das finanças funcionais implicará necessariamente em crescimento ilimitado da dívida pública. O próprio aumento da dívida, ao elevar o estoque de riqueza privada, poderia reduzir o déficit por meio de dois mecanismos: ao elevar endogenamente a arrecadação tributária através dos impostos sobre altas rendas e heranças; e ao gerar um efeito riqueza sobre o consumo, com menores incentivos a poupar a renda corrente diante de maior riqueza acumulada, o que reduziria a necessidade do gasto deficitário do governo para manter um nível elevado de emprego e renda (Lerner, 1943, p. 48-49). Com maior crescimento do PIB e com a redução do gasto deficitário, haveria redução do estoque da dívida.
Domar (1944) discute as trajetórias da dívida que permitem compatibilizar a existência de déficits primários persistentes e uma tendência à estabilidade da fração dívida/PIB, o que ocorre desde que o governo consiga estimular um crescimento da economia que seja superior à taxa de juros exogenamente influenciada pela atuação da autoridade monetária. Caso a taxa de juros seja superior à taxa de crescimento da economia, a trajetória da fração dívida/PIB torna-se explosiva.
Já no que diz respeito a questões distributivas, o aumento da dívida pública tem impactos distributivos negativos, direcionando recursos do governo cada vez maiores para segmentos da sociedade de rendas mais elevadas com capacidade de poupar. Logo, a carga tributária, ao reduzir a necessidade do governo se financiar através da emissão de títulos, tem relevância para reduzir o montante de dívida em relação ao PIB necessário para financiar as despesas do Tesouro e impedir que a razão dívida/PIB torne-se insustentável26 e é igualmente relevante do ponto de vista dos possíveis efeitos regressivos de uma maior expansão da dívida.
4.2 Uma abordagem de economia política
Até aqui, aprofundamos aspectos macroeconômicos da relação entre o gasto público e a tributação. Agora, acrescentaremos uma perspectiva de economia política à análise, focando aspectos políticos e institucionais relevantes ao tema.
Um primeiro ponto diz respeito à associação entre a tributação e o controle de demanda. Na prática, a elevação de impostos para conter excessos de demanda é muito difícil de ser implementada. Elevações de impostos podem gerar resistências políticas com prolongados confrontos no legislativo, sem falar de eventuais restrições legais para alterações de ordem tributária. De fato, mudanças na legislação tributária frequentemente levam tempo, fazendo com que a implementação de alterações tributárias inevitavelmente fique defasada com relação ao ciclo econômico, podendo acentuá-lo ao invés de suavizá-lo. Mais especificamente, no Brasil, há uma defasagem legal, em que um novo tributo ou a majoração de um tributo já existente, salvo exceções, só pode passar a ser cobrado no exercício seguinte ou 90 dias após a aprovação da lei que o instituiu ou o elevou – o chamado princípio da anterioridade tributária. Assim, a carga tributária não pode ser usada de forma ágil e flexível como instrumento de contenção de demanda agregada. Ademais, esta proposição acaba sancionando no debate sobre macroeconomia a ideia de que inflação estaria ligada a excesso de demanda e que teria na política fiscal seu instrumento mais importante de controle.
No que diz respeito à política tributária, o artigo de Beardsley Ruml27 de 1946, frequentemente citado por proponentes da MMT (ver, por exemplo, Wray, 2019, p. 10; Wray, 2018, p. 2), aborda aspectos importantes da tributação do ponto de vista da economia política. Tal como Lerner (1943, 1944, 1951), mencionado na seção 2, o ponto central de Ruml (1946) é que a consideração primordial a ser feita com relação à tributação não diz respeito à elevação das receitas do governo, mas sim, aos propósitos econômicos e sociais de suas políticas. Ou seja, a tributação deve ser concebida como um instrumento e avaliada pela forma como ela atende aos propósitos das políticas públicas. Dentre estes propósitos, além de assinalar a importância da tributação como instrumento das políticas fiscal e monetária, garantindo a estabilidade do poder de compra da moeda nacional, numa visão convencional de inflação de demanda, são colocadas outras finalidades relevantes da política tributária. Uma delas é a de que a política tributária deve se voltar para questões como a distribuição da renda e da riqueza, ou seja, as políticas tributárias devem se basear em impostos progressivos e ser avaliadas de acordo com seus efeitos sobre a concentração de renda e riqueza. Outro ponto seria o incentivo ou a penalização de algumas indústrias ou grupos econômicos, direcionando subsídios e impostos de acordo com interesses econômicos e industriais, como, por exemplo, instituindo tarifas sobre importações e estabelecendo um piso acima do qual a produção doméstica possa concorrer com os produtos importados. A tributação também permitiria uma avaliação mais isolada dos custos de certos benefícios, como os da previdência social28 e os do seguro-desemprego, o que ressalta a relação entre gasto público e tributação, em linha com o que argumentamos anteriormente a respeito do processo orçamentário29.
Há uma característica fundamental do processo de formulação orçamentária que tem uma conexão direta com o que chamamos de “financiamento final” por tributos através do refluxo da renda gerada pelo gasto público. Como já mencionado, a discussão e formação de orçamentos públicos refletem disputas políticas quanto à organização da sociedade e cuja arena de disputa é o Estado. Se o gasto público deve ser decidido visando gerar pleno emprego, a ausência de tributação geraria disputas entre grupos políticos e conflitos distributivos ainda maiores pelos recursos no orçamento. Assim, dentro de uma perspectiva de planejamento de médio e curto prazo, é natural que seja discutida alguma forma de relação entre financiamento e gasto, que se concretiza exatamente através de alguma previsão de arrecadação tributária. Obviamente que este valor é uma previsão, que pode ser frustrada pela variação dos diferentes gastos autônomos ou, no curto prazo, induzidos. Entretanto, essa perspectiva é completamente diversa de uma perspectiva absolutamente “em aberto” que resultaria de uma “queima”, como na metáfora usada por Wray, dos recursos que refluem ao caixa único do tesouro através dos impostos.
Como, na prática, a tributação é inerente ao orçamento, a expansão dos gastos públicos em direção ao pleno emprego, frequentemente encontra resistências políticas por conta da consequente expansão da carga tributária. Como apresentamos, ainda que seja logicamente incorreto afirmar que o governo arrecada impostos antes de gastar, a elevação das despesas públicas está associada a maiores receitas tributárias por parte do governo (ex post), e historicamente observa-se que a aceitação por parte de diversos segmentos da sociedade de cargas tributárias mais elevadas depende dos contextos históricos, políticos, institucionais e geopolíticos em que a expansão dos gastos públicos se dá.
Foi o que ocorreu ao longo do século XX, em que a oferta de bens e serviços públicos nos países mais avançados expandiu-se significativamente. É justamente esse processo de expansão das atividades governamentais que Adolf Wagner descreveu no final do século XIX, em seu Finanzwissenschaft de 1983 (Esping-Andersen, 1990). A chamada “Lei de Wagner” (“Lei da expansão crescente das atividades públicas e estatais”) afirma que o desenvolvimento da sociedade moderna industrial aumenta a pressão por progresso social, ou seja, pela expansão contínua do setor público e de sua participação na economia. Assim, a determinação dos gastos públicos reflete fatores históricos, subjacentes às mudanças na estrutura econômica e ao processo de desenvolvimento de um país (Musgrave; Musgrave, 1989). Situada no âmbito da economia política, a “Lei de Wagner” é coerente com os fatos estilizados observados ao longo do século XX.
Todavia, o aumento da oferta de bens e serviços públicos é acompanhado por aumentos de carga tributária, como claramente pode ser constatado com a experiência da Europa Ocidental no período da Golden Age (1950-1973). Com o fim da Segunda Guerra Mundial, após a grande instabilidade tanto econômica quanto política e social das décadas anteriores e diante da ameaça de expansão do comunismo no contexto da Guerra Fria, um elemento central para a manutenção do pacto social em torno do sistema capitalista foi a expansão dos Estados de bem-estar social na Europa Ocidental e a manutenção de altas taxas de crescimento econômico associadas a melhorias na distribuição de renda (Milanovic, 2016). Foi dentro desse contexto histórico e geopolítico que se formou um consenso nos países mais avançados em torno da importância de um papel mais ativo dos Estados na economia, em contraste com a defesa de políticas liberais de não intervenção que prevaleceu até a Primeira Guerra Mundial (Medeiros, 2010; Panitch; Gindin, 2012), tendo como contrapartida a elevação das cargas tributárias desses países.
A relação entre gasto social e carga tributária é claramente demostrada na comparação feita por Orair e Gobetti (citado em IEDI, 2021) entre 35 países da OCDE. Os diferentes modelos de bem-estar social adotados por estes países, enfatizando políticas mais universais ou mais residuais, são determinantes dos montantes de gasto social e dos níveis e composições da carga tributária em cada país (IEDI, 2021, p. 18).
Ao final da Golden Age, com maiores reivindicações dos trabalhadores, descolando os aumentos salariais dos aumentos de produtividade, e com o choque do petróleo em 1973, o acordo em torno da manutenção de altas taxas de crescimento observado no pós-guerra dá lugar a um paradigma anti-inflacionário. Nesse novo contexto, é exemplar o movimento favorável ao corte de impostos nos EUA, que culminou com o “Economic Recovery Tax Act” (ERTA) de 1981, no começo do governo Reagan.
O partido Republicano, que até os anos 1970 mantinham uma agenda de comprometimento com o orçamento equilibrado, fez da mobilização pelo corte de impostos um novo apelo eleitoral, um contraponto à defesa de políticas de bem-estar social por parte dos Democratas. Apontando o corte de impostos como solução alternativa para a inflação e recorrendo ao apelo simbólico do ideal americano de menor tamanho do Estado, a retórica Republicana fomentou a insatisfação em torno da carga tributária (Prasad, 2018). Quanto à preocupação com cortes de gastos que afetassem a oferta de bens e serviços públicos, o argumento de Reagan baseou-se na alegação de que o corte de impostos não demandaria um trade-off com relação à oferta de bens e serviços públicos, pois seriam reduzidos os desperdícios e as fraudes nas despesas do governo (Prasad, 2018, p. 208-209).
No entanto, Reagan não reduziu o tamanho do Estado e tampouco houve elevação das taxas de investimento e poupança no longo prazo (Prasad, 2018, p. 227). A consequência imediata do ERTA foi o aumento do déficit público, o que gera pressões dos defensores de um orçamento equilibrado para que o governo reduza seus gastos. Posteriormente, como consequência do déficit ocasionado pelo corte de impostos, houve elevação da participação das contribuições sociais na arrecadação total30.
Disso decorre que o corte de impostos gera impactos distributivos negativos em duas frentes. Primeiramente, o corte de impostos leva ao aumento do déficit e, com isso, à elevação da dívida pública, que, como já dito na seção 4.1, direciona parcelas crescentes do gasto público para os rentistas, tendo efeito concentrador sobre a distribuição de renda e riqueza. Em um segundo momento, a redução da carga tributária sobre a renda, lucro e ganhos de capital das empresas foi compensada por uma elevação da carga tributária sobre as contribuições sociais, o que tem efeito regressivo do ponto de vista tributário. Com isso, a insatisfação inicial que levou ao corte de impostos, teve como consequência primeiro o déficit e a elevação da dívida, e posteriormente um aumento da regressividade do sistema tributário, o que reforça a insatisfação da sociedade com relação à carga tributária, realimentando a retórica favorável ao corte de impostos.
Ou seja, lidando com as experiências concretas das economias modernas, não podemos dissociar a expansão dos gastos públicos de elevações da carga tributária. Cortes de impostos, ceteris paribus implicam em maior déficit e maior emissão de dívida. Além das consequências distributivas do aumento da dívida pública, a elevação dos déficits públicos reforça as pressões por redução de gastos, sob o argumento da necessidade de equilibrar o orçamento. Nesse cenário, a retórica favorável a uma redução do papel Estado na economia, especificamente quanto a seus gastos, ou seja, a estratégia política chamada por Prasad (2018) de “Starving the beast”, e a alegação em torno dos desperdícios e fraudes envolvendo o orçamento do governo obtém forte ressonância em diversos segmentos da sociedade. Se por um lado, dentro do contexto histórico e geopolítico do pós-guerra, houve um consenso nos países mais avançados favorável a maior atuação dos Estados nas economias e à expansão das políticas de bem-estar social, a partir da década de 1970, a visão em torno do foco em políticas anti-inflacionárias associados a uma menor intervenção dos governos ganhou força. Em realidade essa coalização em prol do crescimento do Estado com maior intervenção social desde seu início foi atacada por grupos econômicos que criaram uma série de organizações e grupos de pressão cujo objetivo central era combater tal tendência (para uma descrição pormenorizada do surgimento e crescimento destes grupos, ver Phillips-Fein (2010). Nesse contexto, os movimentos a favor de cortes de impostos mobilizam uma resistência natural a políticas de elevações da carga tributária para, através de uma “deterioração” dos resultados fiscais, criar um terreno propício à redução da oferta de bens e serviços públicos, os quais, per se, são geralmente apreciados pela população.
Conclusão
As proposições gerais da MMT têm sido alvo de frequentes críticas, inclusive de autores heterodoxos. Em linha com o PDE, do qual decorre que o componente central da política fiscal é a determinação do gasto público, e com a abordagem da taxa de juros exógena, a MMT argumenta, corretamente a nosso ver, que o gasto público é financiado por moeda criada ex nihilo. O argumento de que a arrecadação de impostos não é um elemento necessário para que o governo realize seus gastos, ainda que logicamente correto, pode soar contraintuitivo quando confrontado com as experiências concretas dos diversos países e dar margem à noção (falsa) de que, na prática, os governos não precisam cobrar impostos da população, salvo para gerar demanda pela moeda soberana e para conter pressões inflacionárias. Diante disso, este trabalho buscou contribuir com o debate, aprofundando questões macroeconômicas e de economia política em torno da relação entre gasto e tributação do governo, enfatizando as práticas operacionais e aspectos institucionais e políticos vigentes nas economias contemporâneas.
Primeiramente, argumentamos que a carga tributária tem papel relevante ex post, ao fornecer financiamento final aos gastos do governo. Utilizando o modelo de crescimento do Supermultiplicador Sraffiano, mostramos a interação entre as despesas do governo e sua arrecadação, e a relevância desta ao recompor o saldo da conta do Tesouro, dando flexibilidade operacional aos seus gastos. Se a arrecadação de impostos não for suficiente para cobrir o saldo da conta do Tesouro após suas despesas, o Tesouro realiza leilões de títulos para reabastecer sua conta. Para um dado gasto, quanto menor a arrecadação, maior terá que ser a emissão de dívida, o que tem efeitos distributivos regressivos. A emissão de títulos da dívida pública acompanha o déficit do governo além de ser um instrumento institucional fundamental para o financiamento indireto do gasto público pela autoridade monetária. Portanto, ainda que os governos soberanos tenham espaço para executar políticas fiscais financiadas por emissão de moeda, há impactos em outras variáveis macroeconômicas e custos para isso.
Sob a ótica de economia política, ressaltamos a importância da identidade orçamentária do governo e dos mecanismos políticos e institucionais subjacentes a ela. O orçamento do governo não pode ser apresentado sem uma previsão de receitas como contrapartida para suas despesas e a ausência desta contrapartida acirraria as disputas políticas em torno do processo orçamentário. Na prática, a tributação e o gasto ocorrem de forma consolidada: a cobrança de impostos é intrínseca ao sistema político-econômico.
Por fim, de acordo com a abordagem de finanças funcionais, o governo não tem restrições financeiras para promover políticas macroeconômicas de forma a ajustar a demanda efetiva ao nível de produto potencial. Lerner ressalta que este princípio não é em si uma política e pode ser aplicado a diversas visões de política econômica (Lerner, 1951, p. 135; ver também Summa, 2022). Assim, entendemos que a defesa de políticas de pleno emprego e de expansão do Estado de bem-estar social ganhará mais consistência e clareza se, aos aspectos lógicos já explicitados pela MMT, acrescentarmos aspectos macroeconômicos e de economia política, tomando ciência dos possíveis desdobramentos políticos e institucionais que permeiam a implementação de tais políticas.
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EDITOR RESPONSÁVEL PELA AVALIAÇÃO
Bruno De Conti
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(1)
“(…) there is no point in making the counter-intuitive claim that securities and taxes do not finance the expenditures of central governments with a sovereign currency” (Lavoie, 2013, p. 15). “(…) why do neo-chartalists insist on presenting their counter-intuitive stories, based on an abstract consolidation and an abstract sequential logic, deprived of operational and legal realism?” (Lavoie, 2013, p. 16-17).
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(2)
“Taxes are needed to pay for on-going programs, and money financed deficit spending is at best a temporary free lunch” (Palley, 2019, p. 19). “Taxation and spending occur simultaneously, and taxes are an intrinsic part of the system and cannot be done away with. Even when the economy is far from the full employment/inflation target, taxes are needed to finance the vast bulk of spending” (Palley, 2019, p. 19-20).
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(3)
Como explicaremos com mais detalhe adiante (ver nota 13 e seção 4), o modelo do supermultiplicador considera que não apenas o consumo, mais também o investimento, é induzido.
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(4)
O modelo do Supermultiplicador Sraffiano é inteiramente compatível com os princípios da MMT e será utilizado aqui para estudar um caso particular no qual um aumento de gastos pode não gerar déficit e consequentemente não afetar negativamente o saldo da conta única do Tesouro.
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(5)
Na seção 3, mostraremos que, independentemente de adotarmos ou não a hipótese de consolidação entre o Tesouro e o Banco Central, a situação final dos balanços do Tesouro, Banco Central e do setor privado financeiro é a mesma.
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(6)
Note que a atribuição de conter a inflação é dada à política fiscal. A ênfase da MMT quanto à política monetária é manter as taxas de juros muito baixas no longo prazo através da monetização da dívida.
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(7)
A ênfase que os autores ligados à MMT dão com relação ao refluxo dos impostos para o Tesouro é sua relevância para gerar demanda pela moeda emitida pelo governo e posteriormente resgatá-la: “What backs the government’s liability is that, like any liability, it must reflux back to the issuer and it is redeemable by the mechanism of taxation” (Rezende, 2009, p. 94).
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(8)
“Treasury bond sales have thus been referred to as interest rate maintenance operations (Mosler 1995; Wray 1998) since (…) without them it would be necessary for the Fed itself to drain the same quantity of reserve balances through open market sales to support a non-zero federal funds rate target” (Fullwiler, 2005, p. 3-4).
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(9)
“Functionally, the national treasury’s public bond sales and the central bank’s open market operations are actually both part of the monetary policy strategy” (Rezende, 2009, p. 90).
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(10)
Isso se deve à institucionalidade restritiva adotada pela maioria dos países. Vale destacar que, de acordo com parecerista anônimo, tais restrições são alvo de crítica por parte de diversos autores da MMT.
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(11)
A hipótese de consolidação entre Banco Central e Tesouro está no centro da crítica de Lavoie (2013). Lavoie (2019, p. 105) aceita o argumento de Fullwiler e Mitchell de que se trata de um caso geral, ressalvando, no entanto, que a hipótese de consolidação é útil para uma análise preliminar, mas não como uma característica real da economia.
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(12)
Com relação à venda de títulos do Tesouro para os bancos comerciais e o depósito na conta do Tesouro, ver tabela 3 em Lavoie (2013, p. 15) e tabela 5 em Cesaratto (2016a, p. 54-58).
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(13)
O efeito do supermultiplicador da renda é maior que o do multiplicador, pois considera o investimento como gasto induzido. Na seção seguinte descrevemos brevemente o modelo do Supermultiplicador Sraffiano e apresentamos duas simulações do saldo da conta do Tesouro utilizando esse modelo (Serrano 1995; Freitas e Serrano, 2015).
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(14)
Tal como nos referimos ao argumento lógico ou “caso geral” ao final da seção 2, a hipótese de consolidação teria a vantagem de evitar a visão, a nosso ver equivocada, de que o governo tem algum tipo de “restrição” para se financiar. Quando ocorrem os leilões do Tesouro e os dealers têm que apresentar uma oferta, basta que a taxa aceita pelo Tesouro seja maior que a taxa de juros de curto prazo, para que, normalmente, a venda dos títulos ocorra. No entanto, a hipótese de consolidação pode levar à conclusão, igualmente equivocada, de que a emissão de títulos públicos serve apenas para ajustes ex post, atendendo às metas de política monetária, sem identificar a sua importância como instrumento institucional.
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(15)
Na equação do Supermultiplicador Sraffiano, a alíquota de impostos é aplicada antes da propensão marginal a consumir, ou seja, quanto maior a alíquota, menor o efeito multiplicador da renda, restringindo a demanda agregada e o crescimento do produto.
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(16)
O exercício aqui proposto adotou como hipótese, dado seus objetivos e também para gerar resultados relativamente simples que apenas tratassem de um exercício ilustrativo, uma propensão a investir, h, dada. Essa hipótese deve e pode ser relaxada em uma discussão sobre a estabilidade de modelos de crescimento, especificamente do modelo do supermultiplicador aqui utilizado, como é explicitado em Serrano, Freitas, Bhering (2018, p. 13): “gradual or partial adjustment of demand expectations is known as the“flexible accelerator “ as opposed to the“rigid accelerator”in which firms try to adapt capacity to demand immediately and treat all changes in demand as permanent. Thus, the gradual adjustment of the propensity to invest can be represented as follows: ht =vget.
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(17)
Considerando tais parâmetros, o valor do supermultiplicador é 3,6364.
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(18)
Com relação à carga tributária que equilibraria o resultado primário do governo neste caso, Pimentel (2018, cap. 2) mostra que esta seria dada por: , o que, de acordo com os parâmetros utilizados aqui, daria t* = 0,3333…
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(19)
Como os parâmetros são os mesmos, o valor do supermultiplicador é o mesmo. No entanto, agora temos mais um gasto autônomo além do gasto do governo.
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(20)
Ver Pimentel (2018, cap. 2). Ver também em Freitas e Christianes (2020, p. 7) um modelo mais completo em que é demonstrada a relação entre a carga tributária e a parcela dos gastos do governo sobre o total dos gastos autônomos que equilibra o resultado primário do governo.
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(21)
As simulações apresentadas aqui reforçam que não estamos discutindo a existência ou não de gasto deficitário do governo (como em Lavoie, 2013, p. 8-9), mas sim, a importância da tributação.
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(22)
Analisando os leilões do Tesouro Nacional Brasileiro entre os anos 2000 e 2017, Jorge e Bastos (2019), apontam que os anos que tiveram maior percentual de leilões sem venda de títulos com relação ao total de leilões realizados, foram os de 2002, 2008, 2013 e 2015, respectivamente os anos da eleição presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, da crise financeira global e, os dois últimos, anos de crises políticas domésticas (p. 15).Um menor montante de título vendidos pelo Tesouro, em relação ao total ofertado, no final de 2015 e início de 2016 também pode ser explicado pela perda do “grau de investimento” dado pelas agências internacionais de classificação de risco (p. 19).
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(23)
É importante ressaltar que essa pressão é apenas circunstancial, e que de forma alguma o governo quebrará na moeda em que emite. Em situações como, por exemplo, as de tensões políticas, é possível que o Tesouro realize um leilão e não consiga vender seus títulos. Por isso, o saldo da conta do Tesouro é relevante para dar flexibilidade às suas operações de gasto e retomar os leilões em uma circunstância mais oportuna (ver Jorge; Bastos, 2019).
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(24)
Estamos nos referindo sempre ao governo central. No caso dos governos subnacionais, como eles não emitem dívida em sua própria moeda, na ausência de suas receitas tributárias, estes entes seriam constantemente dependentes do governo central para realizar as suas despesas, o que, além de complexo em termos práticos, os deixaria politicamente à mercê do governo central.
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(25)
Essa é uma questão que foge do escopo deste trabalho, qual seja como, à parte do aspecto político do termo “sustentabilidade da dívida”, poder-se-ia dar algum sentido teórico e de política econômica mais preciso ao termo. Na verdade, de acordo com os modelos marginalistas intertemporais problemas de impacto inflacionário relacionados à dívida derivam de um desequilíbrio intertemporal entre superávit primários esperados e o volume presente da dívida. De qualquer forma, mesmo neste caso não há um número preciso em percentual do PIB para definir sua sustentabilidade no presente e a análise intertemporal depende de hipóteses sobre variáveis expectacionais de gasto e tributação. Na mesma linha, o Fundo Monetário Internacional, em manual publicado em 2007, afirma ser difícil estabelecer um nível de endividamento que seria excessivo, sugerindo que a sustentabilidade da dívida pública de cada país seja analisada caso a caso (ver Silva, 2022, p. 32). Obviamente que a discussão é inexistente para a abordagem das finanças funcionais (ver Lerner, 1943).
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(26)
Salvo se houvesse uma elevada propensão a gastar sobre os juros da dívida pública, o que, empiricamente, parece pouco provável.
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Ruml foi conselheiro do New Deal e presidente do Federal Reserve Bank de Nova York.
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Um caso paradigmático desta relação é a criação das contribuições sociais para financiamento da previdência pública. A rigor, um sistema de contribuição constitui-se de um esquema de “taxação e transferências”: taxação dos indivíduos ativos e transferências para os inativos. Entretanto, quando tais esquemas foram criados, como pode-se ver no debate em torno do Beveridge Report (ver Cesaratto, 2005 p. 26-28), houve uma escolha pela criação de contribuições ligadas diretamente à previdência, como se houvesse uma ficção do seguro, ou como se o sistema de transferências fosse uma “forma de seguro individual”, quando não é, com o intuito de fazer com que esses recursos tivessem alguma forma de carimbo quando da sua utilização. Esse pensamento foi tão forte que se optou por uma forma de financiamento que é ao mesmo tempo mais regressiva, do que, por exemplo, uma taxação de renda mais progressiva, e que passa um sinal equivocado quanto à verdadeira natureza do próprio sistema (para uma discussão ampla sobre este ponto ver Cesaratto, 2005, cap. 1).
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Lerner cita o uso na Suécia de diferentes tipos de orçamento, separados, como uma forma fazer com que as finanças funcionais se pareçam com as finanças tradicionais, convencendo os empresários de que o orçamento está equilibrado, ressaltando, no entanto, tratar-se apenas de um “disfarce” (Lerner, 1944, cap. 24, p. 321).
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A ênfase do ERTA estava na redução de impostos sobre renda, lucros e ganhos de capital das empresas: entre 1971 e 1980, a carga tributária sobre a renda das empresas foi em média de 2,85% do PIB e equivaleu, em média a 11,50% da arrecadação total. Entre 1981 e 1990, a carga tributária média sobre a renda das empresas foi para 1,99% do PIB e a participação média sobre a arrecadação total caiu para 7,88%. A participação das contribuições sociais na arrecadação total, passou da média de 19,67% entre 1971-1980 para 24,73% entre 1981-1990. Em proporção ao PIB, as contribuições sociais corresponderam em média a 4,88% do PIB entre 1971 e 1980 e a 6,24% do PIB entre 1981 e 1990 (OCDE – Revenue Statistics – disponível em: https://stats.oecd.org/viewhtml.aspx?datasetcode=REV⟨=en#. Acesso em: 3 ago. 2022).
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
03 Mar 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
18 Nov 2022 -
Aceito
15 Ago 2024