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Financeirização na abordagem Stock-Flow Consistent

Financialization and the Stock-Flow Consistent Approach

Resumo

Embora a maior parte dos trabalhos acadêmicos a respeito da financeirização seja de caráter descritivo ou empírico, na última década surgiram tentativas de inserir os aspectos da financeirização em modelos macroeconômicos formais. Diante de insuficiências das análises formais anteriores, alguns autores têm empregado a abordagem chamada Stock-Flow Consistent na concepção de modelos macroeconômicos a respeito da financeirização. Este trabalho é dedicado a analisar o esforço realizado para incorporar a financeirização em modelos macroeconômicos formais utilizando a abordagem Stock-Flow Consistent, buscando avaliar em que medida a abordagem é capaz de representar formalmente a financeirização, tal como concebida pela literatura descritiva e empírica, e superar as deficiências que as demais tentativas de análise formal apresentam.

Palavras-chave:
Financeirização; Investimento; Abordagem Stock-Flow Consistent; Modelos macroeconômicos; Macroeconomia pós-keynesiana

Abstract

Although most of the academic works on financialization are descriptive or empirical, in the last decade attempts have been made to represent its features in formal macroeconomic models. Given the deficiencies of previous analyses, some authors have used the Stock-Flow Consistent (SFC) approach to elaborate formal macroeconomic models of financialisation. This work analyzes the effort to incorporate financialisation into macroeconomic models using the Stock-Flow Consistent approach, in an attempt to evaluate the degree to which the referred approach is able to formally represent financialisation in the way it is conceived by descriptive and empirical literature and overcome the deficiencies present in the previous formal analyses.

Keywords:
Financialisation; Investment; Stock-Flow Consistent approach; Macroeconomic models; Post-Keynesian macroeconomics

Introdução

Na Economia, às vezes, menos é mais. Bastaram a Kalecki o princípio da demanda efetiva, duas classes sociais e uma hipótese comportamental (os trabalhadores não poupam) para derivar resultados surpreendentes acerca da relação entre salários e lucros. O insight foi apropriado por uma legião de economistas heterodoxos e usado como base para modelos formais e teorias muito distintos, por autores como Kaldor, Joan Robinson, Steindl e Minsky, entre outros. Nos anos 1980, a vertente neo-kaleckiana (Rowthorn, Dutt, Lance Taylor...) estendeu para o longo prazo o que era apenas um desdobramento potencial da demonstração por Kalecki de que aumentos dos salários nominais não necessariamente pressionam os lucros. Surgiram então modelos que descreviam regimes de crescimento nos quais um choque salarial positivo poderia aumentar o crescimento em steady state e, mesmo, a taxa de lucro. Tais modelos ajustavam-se bem aos fatos estilizados da era de crescimento do pós-guerra e auguravam tempos difíceis para a ordem (neoliberal) em implantação, que prometia romper o círculo virtuoso que conectara crescimento e desconcentração da renda. A introdução de modificações na função investimento (Marglin e Bhaduri, 1990, e Bhaduri e Marglin, 1990BHADURI, A.; MARGLIN, S. Unemployment and the real wage: the economic basis for contesting political ideologies. Cambridge Journal of Economics, v. 14, p. 375-393, 1990.) permitiria mostrar que o mesmo aparato teórico era consistente, conforme o valor dos parâmetros, com regimes nos quais a aceleração do crescimento é compatível com a piora da distribuição da renda.

Mas em outras vezes, na Economia, é imprescindível revisar drasticamente a noção de parcimônia. Nos últimos dez anos, ficou patente que nem só de piora na distribuição da renda vive - e cresce, até consideravelmente - o capitalismo neoliberal. Segundo autores como Aglietta (1998)AGLIETTA, M. Le capitalisme de demain. Paris: Foundation Saint-Simon, 1998., Chesnais (1999)CHESNAIS, F (Org.). A mundialização financeira: gênese, custos e riscos. Trad. de Carmen Cristina Cacciacarro (Coord.). São Paulo: Xamã, 1999., Boyer (2000)BOYER, R. Is a finance-led growth regime a viable alternative to Fordism: a preliminary analysis. Economy and Society, v. 29, n. 1, 2000., Duménil e Lévy (2005)DUMÉNIL, G.; LÉVY, D. Costs and benefits of neoliberalism: a class analysis. In: EPSTEIN, G. A. Financialization and the world economy. Cheltenham: Edward Elgar, 2005. e Palley (2008)PALLEY, T. Financialisation: what it is and why it matters. Düsseldorf, Germany: Institut für Makrookonomie und Konjunkturfoschung, 2008 (IMK Working Paper, n. 4) / Annandale-on-Hudson, NY, Bard College, 2007. (Working Paper, n. 525)., as transformações associadas à liberalização e globalização financeiras deram origem a uma modalidade de capitalismo na qual as finanças ganharam papel preponderante.

O fenômeno da financeirização1 1 A mais citada definição de financeirização parece ser a de Epstein (2005, p. 3), que remete ao “papel crescente dos motivos financeiros, dos mercados financeiros, dos atores financeiros e das instituições financeiras na operação das economias domésticas e internacional”. tornou clara a necessidade de modelos mais complexos. A literatura empírica tem ressaltado, entre suas características, a adoção de políticas monetárias mais restritivas2 2 Com a exceção, é claro, dos períodos em que se deve enfrentar ou mitigar os efeitos das recorrentes crises financeiras - de que é exemplo notável a década transcorrida após a crise de 2007-2008. e o aumento do poder dos acionistas (e proprietários de riqueza financeira em geral), com uma série de implicações importantes sobre o padrão de financiamento das firmas produtivas. Obviamente, modelos “reais” não são adequados ao estudo das implicações dinâmicas dessas mudanças. Mas a incorporação “parcimoniosa” (e parcial) de variáveis financeiras tampouco é suficiente (Hein; van Treeck, 2007HEIN, E.; VAN TREECK, T. ‘Financialisation’ in Kaleckian/Post-Kaleckian models of distribution and growth. IMK Working Paper, v. 7, 2007., comentam os primeiros esforços neo-kaleckianos nesse sentido).

O tratamento formal e exaustivo das finanças permite obter uma série de outros resultados surpreendentes. Aprendemos com Keynes e Kalecki que os salários são custo e poder de compra que, despendido, torna-se receita das empresas. O mesmo, porém, pode valer para os juros. Sob certas circunstâncias, o aumento das taxas de juros, ainda que afete negativamente o investimento, acaba por determinar um aumento da renda e do consumo dos rentistas suficientemente grande para acelerar o crescimento3 3 Resolvendo assim o paradoxo dos regimes de “lucros sem investimento”, originado da literatura de natureza mais descritiva que relatava como implicações da financeirização a desaceleração do investimento e o aumento das taxas de lucro (juntamente com o aumento da razão entre lucros financeiros e lucros totais), sem perceber - dada a ausência de uma reflexão macroeconômica mais rigorosa - a possível contradição (kaleckiana) entre o comportamento do investimento e da taxa de lucros. Para uma rigorosa análise da literatura informal sobre a financeirização, acompanhada da ardente defesa da utilidade da reflexão macroeconômica, ver Treeck (2008); as vicissitudes da passagem do micro ao macro são também discutidas por Stockhammer (2004, 2005-2006). , mais do que compensando a desaceleração inicial. O mesmo pode valer para uma redução dos lucros retidos pelas empresas e para uma redução da fração do investimento financiada pela emissão de ações, a depender dos efeitos dessas mudanças sobre o valor das ações, e do impacto da valuation ratio, de Kaldor (mais conhecida como o “q de Tobin”)4 4 A razão entre o valor de mercado das firmas e o custo de reposição do equipamento - ou entre preço de demanda e preço de oferta, como no capítulo 12 da Teoria Geral (Keynes, 1936) - foi aventada como um determinante do investimento por Kaldor, em 1966, e por Brainard e Tobin, dois anos depois (Lavoie, 2014). Para um breve (e pouco otimista) balanço sobre a variável, ver (por exemplo) van Treeck (2009). sobre o investimento. Se, no entanto, as firmas reagem à imposição das políticas pró-shareholder value com um aumento dos preços, na tentativa de elevar os lucros retidos, será necessário levar em conta os impactos contracionistas da concentração da renda. Evidentemente, se já os modelos neo-kaleckianos mais simples (como os de Marglin; Bhaduri (1990)BHADURI, A.; MARGLIN, S. Unemployment and the real wage: the economic basis for contesting political ideologies. Cambridge Journal of Economics, v. 14, p. 375-393, 1990., basicamente uma variação em torno ao mote da interação multiplicador/acelerador) podem gerar diferentes regimes de crescimento, o mesmo vale, a fortiori, para modelos que, tratando seriamente das finanças, devem incorporar um grande número de parâmetros e variáveis adicionais.

Não por acaso, parte significativa do esforço teórico empenhado em compreender a financeirização tem lançado mão de modelos heterodoxos stock-flow consistent (SFC). A metodologia SFC, afinal, tem por objetivo central a construção de modelos nos quais as inter-relações patrimoniais (tão enfatizadas por Minsky) são precisa e integralmente mapeadas (Macedo e Silva e Dos Santos, 2011MACEDO E SILVA, A. C.; Dos SANTOS, C. H. Peering over the edge of the short period: the Keynesian roots of Stock-Flow Consistent macroeconomic models. Cambridge Journal of Economics, v. 35, n. 1, 2011.). É portanto, especialmente apropriada a investigações sobre economias nas quais as finanças desempenham papel de relevo5 5 Naturalmente, é possível argumentar que, no capitalismo, as finanças sempre desempenham papel de relevo. É exatamente por essa razão que Dos Santos e Macedo e Silva (2009) questionam a adequação de modelos reais (como os de Marglin; Bhaduri) ou que incorporem de forma truncada somente algumas variáveis financeiras (como Boyer, 2000) para análises que pretendam ir além do curto prazo. .

Este texto apresenta uma análise das estratégias de modelagem e do tratamento teórico adotados pela literatura SFC no tratamento da financeirização, bem como dos principais resultados obtidos até aqui. Por razões que aqui não interessa discutir, a metodologia SFC tem sido associada, em geral, ao aparato teórico neo-kaleckiano, como nos casos dos trabalhos, aqui comentados, de Godley, Lavoie, Hein, van Treeck e Le Heron. Entretanto, como argumentam Macedo e Silva e Dos Santos (2011)MACEDO E SILVA, A. C.; Dos SANTOS, C. H. Peering over the edge of the short period: the Keynesian roots of Stock-Flow Consistent macroeconomic models. Cambridge Journal of Economics, v. 35, n. 1, 2011., os procedimentos SFC são consistentes com todas as abordagens que prezam a complexidade e a história, assertiva que é ao menos fortalecida pela presença, em nosso corpus de textos, das contribuições (harrodianas) de Skott e Ryoo.

A primeira parte do artigo discute a forma pela qual os modelos definem a estrutura social e as funções comportamentais. A segunda, que antecede uma breve conclusão, aborda as implicações de longo prazo6 6 Vale dizer, estuda-se o comportamento de variáveis como produto e emprego em steady-state. A abordagem SFC certamente é compatível com a visão de Kalecki, para quem o longo prazo não era senão o resultado de uma sucessão de “curtos prazos”. O estudo das flutuações cíclicas e crises associadas à financeirização é, no entanto, um campo ainda pouco explorado pela literatura. da financeirização no que tange às taxas de crescimento e de lucros, bem como ao grau de utilização. Os choques associados à financeirização são aquelas acima referidos: o aumento das taxas de juros, o aumento na distribuição de dividendos e a redução na emissão líquida de ações por parte das firmas produtivas.

1 Os modelos: estrutura social e funções comportamentais

Modelos SFC são estruturalistas (Taylor, 1991TAYLOR, L. Income distribution, inflation, and growth. Cambridge: MIT, 1991.) e intrinsecamente dinâmicos: partem de uma descrição circunstanciada da estrutura social, descrição na qual classes e setores institucionais são definidos pela composição de seus respectivos portfólios. Especificam então os fluxos associados tanto à posse de ativos e passivos quanto às decisões (derivadas de funções comportamentais) relacionadas às compras de bens e serviços. Da contraposição entre fluxos e despesas resultam os saldos financeiros de cada segmento e as correspondentes alterações nos portfólios. A inclusão dos ganhos e perdas de capital permite, por fim, compor um quadro completo das mudanças na distribuição da riqueza e da renda ao longo de um período contábil - o que define as condições iniciais do período subsequente.

A maior parte dos artigos realiza essa descrição por meio de um conjunto de matrizes. Aqui, por razões de espaço, restringimo-nos aos balanços patrimoniais (Quadro 1), mas discutimos em simultâneo as funções comportamentais empregadas.

Quadro 1
Ativos (+) e passivos (-) dos setores institucionais

Nos artigos selecionados, famílias e firmas são invariavelmente apresentadas como setores distintos; em alguns deles (ver o Quadro 2), mais à maneira de Steindl do que de Kalecki, as famílias são ainda decompostas em assalariados e rentistas. Na maior parte dos casos, o setor financeiro (“bancos”) é também explicitado. Duas óbvias limitações são o fato de todos descreverem economias fechadas e, no caso de três deles, sem governo.

Quadro 2
Hipóteses subjacentes aos modelos estudados

Supõe-se que o único ativo acumulado pelas firmas seja capital fixo (à exceção de Lavoie, 2008LAVOIE, M. Financialisation issues in a Post-Keynesian stock-flow consistent model. Intervention, European Journal of Economics and Economic Policies, n. 5, 2008., que contempla o investimento voluntário em estoques). Essa hipótese impede o estudo de uma das dimensões comumente referidas à financeirização, que é a importância crescente dos ganhos não-operacionais (e, obviamente, deixa os modelos alguns passos aquém da teoria geral da aplicação de capital apresentada no capítulo 17 da Teoria Geral). A lacuna não é fruto da desatenção. Reflete, em primeiro lugar, o fato de que o tratamento das firmas, nesses artigos, não é multisetorial; aquisições de ações e empréstimos inter-firmas são, portanto, cancelados quando se descreve o portfólio do setor como um todo. Reflete também as opções pela parcimônia que mesmo modelos grandes (e por vezes enormes...) precisam exercer. Mais realista o modelo, maior o número de funções comportamentais que é necessário incorporar. Para que o modelo contemple um comportamento financeiro mais sofisticado por parte das firmas, por exemplo, é necessário incluir funções que descrevam de que forma dividem suas aplicações entre bens de capital e os ativos financeiros considerados, para analisar depois as interações com os demais agentes na definição da oferta e da demanda desses ativos. Maior o realismo, maiores as dificuldades a superar para a obtenção de informações empíricas relevantes. Maior também o número de lacunas empíricas efetivamente insuperáveis e maior, portanto, a necessidade de operações de calibragem; maior a complexidade do modelo e menor, enfim, a inteligibilidade da economia artificial criada (ver Dos Santos; Macedo e Silva, 2010DOS SANTOS, C. H.; MACEDO E SILVA, A. C. Revisiting “New Cambridge”: the three financial balances in a general Stock-flow Consistent applied modeling strategy. Annandale-On-Hudson, NY: Levy Economics Institute, 2010. (Working Paper, n. 594).).

Esta simplificação do portfólio das firmas implica que os lucros operacionais retidos (líquidos de juros e dividendos) só podem ter por destino o investimento ou a redução dos passivos do setor. Decidido o investimento, caso este supere os lucros retidos, a função comportamental relativa às preferências das firmas por fontes externas de financiamento determina a fração financiada por ações, adquiridas pelas famílias (em Le Heron, 2009LE HERON, E. Confidence, banking behavior and economic policy in post-keynesian stock-flow consistent model. In: COLÓQUIO Internacional: O Capitalismo com dominância financeira, Instituto de Economia, Unicamp, Campinas, 1-2 out. 2009., pelos bancos). Os artigos supõem que o resíduo seja financiado com empréstimos junto aos bancos. Na maior parte dos artigos (Quadro 2; as exceções aqui são Le Heron, 2009LE HERON, E. Confidence, banking behavior and economic policy in post-keynesian stock-flow consistent model. In: COLÓQUIO Internacional: O Capitalismo com dominância financeira, Instituto de Economia, Unicamp, Campinas, 1-2 out. 2009., e Lavoie, 2008LAVOIE, M. Financialisation issues in a Post-Keynesian stock-flow consistent model. Intervention, European Journal of Economics and Economic Policies, n. 5, 2008.), supõe-se, em consonância com a abordagem horizontalista, que a oferta de crédito é infinitamente elástica, o que, em princípio, prejudica a utilização desses modelos para o estudo da hipótese da instabilidade financeira.

Como seria de se esperar, diferentes hipóteses quanto às funções investimento têm implicações decisivas sobre os efeitos dos vários choques7 7 Como veremos, as hipóteses quanto ao crédito bancário e à oferta de mão-de-obra são também cruciais. . Nos modelos neo-kaleckianos, resultados qualitativamente distintos são obtidos quando a função investimento inclui o q de Tobin e este ultrapassa um valor crítico. Outra clivagem importante é a que separa a abordagem neo-kaleckiana, na qual o grau de utilização da capacidade no longo prazo pode não ser o desejado pelas firmas, da abordagem harrodiana, que supõe a convergência do grau de utilização efetivo ao desejado (sobre a polêmica entre neo-kaleckianos, sraffianos e marxistas acerca do grau de utilização no longo prazo ver, por exemplo, Lavoie, 1995LAVOIE, M. The Kaleckian model of growth and distribution and its neo-Ricardian and neo-Marxian critiques. Cambridge Journal of Economics, v. 19, p. 789-818, 1995.).

Em um artigo que procura ir decididamente além das primeiras tentativas neo-kaleckianas de contemplar as finanças (mas fica alguns graus aquém da completa consistência entre fluxos e estoques), Hein e van Treeck (2007)HEIN, E.; VAN TREECK, T. ‘Financialisation’ in Kaleckian/Post-Kaleckian models of distribution and growth. IMK Working Paper, v. 7, 2007. revisitam a controvérsia entre os neo-kaleckianos acerca da função investimento, introduzida pelos artigos (neo-marxistas, segundo Lavoie, 1995LAVOIE, M. The Kaleckian model of growth and distribution and its neo-Ricardian and neo-Marxian critiques. Cambridge Journal of Economics, v. 19, p. 789-818, 1995.) de Marglin e Bhaduri. Para isso, exploram duas variantes da função de acumulação (investimento normalizado pelo estoque nominal de capital)8 8 Na impossibilidade de reproduzir todas as equações de todos autores, selecionamos aquelas que nos pareceram mais interessantes e/ou mais úteis para a compreensão das tabelas. :

(1) g = α + β · u + ρ r i · λ d · γ ε · d
(2) g = α + β · u + τ · h θ i · λ + d · γ ε · d

Na primeira (que os autores chamam “kaleckiana”), a acumulação é função do grau de utilização da capacidade u e da taxa de lucros líquida ρ (taxa de lucros r menos os pagamentos de juros i · λ e dividendos d · γ, sobre o estoque de capital). Na segunda (“pós-kaleckiana”, e semelhante à função investimento proposta por Marglin e Bhaduri), a taxa de lucros cede lugar a um de seus determinantes (ao lado de u), a fração h dos lucros na renda agregada. Como se sabe, essa fração, nesses modelos, depende estritamente do mark-up das firmas, em geral considerado exógeno. O parâmetro α representa os “animal spirits”. O parâmetro ε, de sinal negativo, multiplica a parcela dos lucros distribuída como dividendos. Os autores aqui seguem Stockhammer (2008)STOCKHAMMER, E. Some stylized facts on the finance-dominated accumulation regime. In: SEMINÁRIO CEPN, MSH, Paris-Nord, Apr. 4, 2008.: o maior poder dos acionistas aumenta a distribuição de dividendos; ceteris paribus, isso restringe o investimento ao reduzir a capacidade de autofinanciamento das firmas e ao alterar sua estratégia de investimentos. O termo pode ser considerado análogo à “norma financeira” que integra a função de investimento do modelo de Boyer (2000)BOYER, R. Is a finance-led growth regime a viable alternative to Fordism: a preliminary analysis. Economy and Society, v. 29, n. 1, 2000..

Curiosamente, o tratamento da taxa de lucros, embora fizesse toda a diferença para os modelos neo-kaleckianos mais simples, perde relevância no âmbito do modelo quasi-SFC de Hein e van Treeck (ver adiante). Talvez por essa razão, van Treeck (2009, p. 474)VAN TREECK, T. A synthetic stock-flow consistent macroeconomic model of financialisation. Cambridge Journal of Economics, n.3 3, May 2009. trabalhe apenas com a função “kaleckiana”. Acrescenta, porém, o q de Tobin como argumento.

A inclusão do q, se não é consensual, não é inusitada e nem uma afronta à tradição heterodoxa. A variável aparece também em Lavoie e Godley (2002)GODLEY, W.; LAVOIE, M. Monetary economics: an integrated approach to credit, money, income, production and wealth. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2007.. Estes, não sem constrangimento, admitem (equivocadamente, a nosso ver)9 9 Não só pelas semelhanças entre o q e a razão entre preço de demanda e preço de oferta, discutida por Keynes na Teoria Geral e depois retrabalhada por Davidson e Minsky, mas também porque não há nada de intrinsecamente neoclássico na ideia de que as decisões dos agentes quanto a suas aplicações financeiras (e que, sob hipóteses simplificadoras, dizem respeito não a seu estoque total de riqueza mas à sua poupança) ... importam. , com Basil Moore, que a presença do q restitui a proposição neoclássica de que a taxa de acumulação é controlada pelas decisões de poupar das famílias. Citam também um intercâmbio com Kaldor, que adverte, com toda razão, que a relevância do q deve refletir a importância (em geral diminuta) das ações como fonte de financiamento10 10 Na atual fase do capitalismo, em que a emissão líquida de ações é frequentemente negativa, a existência de um efeito positivo do q sobre o investimento é ainda mais discutível (Hein; van Treeck, 2008, p. 12). . É importante ressaltar que essa alteração da função investimento possui consequências relevantes: valores suficientemente elevados da sensibilidade do investimento ao q conduzem a conclusões divergentes daquelas comumente extraídas de modelos keynesianos e kaleckianos.

Em Le Heron (2009)LE HERON, E. Confidence, banking behavior and economic policy in post-keynesian stock-flow consistent model. In: COLÓQUIO Internacional: O Capitalismo com dominância financeira, Instituto de Economia, Unicamp, Campinas, 1-2 out. 2009., o tratamento neo-kaleckiano habitual é enriquecido por um índice de condição financeira (FCI), que entra na função de acumulação com coeficiente negativo:

(3) FCI = μ 1 · i l · L / K + μ 2 · i cb · CP / K μ 3 · E / Y

Na expressão, os µi são coeficientes, il e icp são, respectivamente, os juros sobre empréstimos L e papéis comerciais CP e E é o valor nominal das ações. Em nosso corpus, o modelo de Le Heron distingue-se por não adotar a hipótese de que o investimento planejado pelas firmas sempre se efetiva, uma vez que, nele, o nível de alavancagem das firmas pode levar os bancos a racionar o crédito.

Para além de reiterar a perspectiva harrodiana tão cara a Skott - e que se materializa na hipótese de que o investimento reage ao desvio (nulo, em steady state) entre grau de utilização corrente e grau desejado - seu artigo com Ryoo (2008) é interessante por mostrar como mudam os resultados de choques conforme se suponha um modelo harrodiano (que, por sua vez, pode operar nos marcos de uma economia “madura” ou numa economia “dual”) ou um modelo kaleckiano. A noção (kaldoriana) de maturidade corresponde a uma economia em que a taxa de crescimento de steady state é igual à taxa natural, dada pelo crescimento da oferta de trabalho (os autores supõem produtividade do trabalho constante). Já a dualidade, é claro, remete a uma economia na qual a oferta de trabalho (dada a existência de um setor atrasado) é infinitamente elástica, o que é uma forma de justificar a hipótese de salários constantes adotada em boa parte dos modelos neo-kaleckianos11 11 Skott e Ryoo argumentam, com razão, que, nos modelos com oferta de trabalho infinitamente elástica, o desemprego não pode ser definido de forma rigorosa (como a razão entre trabalhadores desempregados e população economicamente ativa). . De fato, em Lavoie e Godley (2002)GODLEY, W. ; LAVOIE, M. Kaleckian models of growth in a coherent stock-flow monetary framework: a Kaldorian view. Journal of Post Keynesian Economics, v. 24, n. 2, Winter, 2001-2002., Hein e van Treeck (2007)HEIN, E.; VAN TREECK, T. ‘Financialisation’ in Kaleckian/Post-Kaleckian models of distribution and growth. IMK Working Paper, v. 7, 2007., van Treeck (2009)VAN TREECK, T. A synthetic stock-flow consistent macroeconomic model of financialisation. Cambridge Journal of Economics, n.3 3, May 2009. e Le Heron (2009)LE HERON, E. Confidence, banking behavior and economic policy in post-keynesian stock-flow consistent model. In: COLÓQUIO Internacional: O Capitalismo com dominância financeira, Instituto de Economia, Unicamp, Campinas, 1-2 out. 2009., inexiste barreira à expansão da capacidade pelo lado da oferta de trabalho

Lavoie (2008)LAVOIE, M. Financialisation issues in a Post-Keynesian stock-flow consistent model. Intervention, European Journal of Economics and Economic Policies, n. 5, 2008. é de certa forma complementar a Skott e Ryoo (2008)SKOTT, P.; RYOO, S. Financialization in Kaleckian economics: with and without labor constraints. Cambridge, Mass.: Department of Economics of University of Massachusetts, 2008. (Working Paper, n. 5)., pois apresenta um caso neo-kaleckiano em que o crescimento também se dá à taxa natural (determinada, porém, por uma taxa de crescimento da produtividade dada e pela hipótese de oferta de trabalho constante).

O estudo da financeirização tem induzido a literatura neo-kaleckiana a mover-se para além da zona de conforto representada pela hipótese simplificadora de mark-up fixo - preservada, em nosso corpus, apenas por Lavoie e Godley (2002)GODLEY, W. ; LAVOIE, M. Kaleckian models of growth in a coherent stock-flow monetary framework: a Kaldorian view. Journal of Post Keynesian Economics, v. 24, n. 2, Winter, 2001-2002.. Hein e van Treeck (2007)HEIN, E.; VAN TREECK, T. ‘Financialisation’ in Kaleckian/Post-Kaleckian models of distribution and growth. IMK Working Paper, v. 7, 2007., van Treeck (2009)VAN TREECK, T. A synthetic stock-flow consistent macroeconomic model of financialisation. Cambridge Journal of Economics, n.3 3, May 2009. e Lavoie (2008)LAVOIE, M. Financialisation issues in a Post-Keynesian stock-flow consistent model. Intervention, European Journal of Economics and Economic Policies, n. 5, 2008. procuram articular os já mencionados fatos estilizados da financeirização a um outro fato estilizado contemporâneo, a tendência à concentração da renda nos países desenvolvidos, representado nos modelos pelo aumento do mark-up (e interpretado, por sua vez, como uma tentativa das firmas de recuperar os lucros retidos)12 12 Em Hein e van Treeck (2007) e van Treeck (2009), não há inflação, logo, esse aumento do mark-up necessariamente implica uma redução dos salários. Em Lavoie (2008), a aceleração inflacionária é que reduz o salário real. . Em Lavoie (2008)LAVOIE, M. Financialisation issues in a Post-Keynesian stock-flow consistent model. Intervention, European Journal of Economics and Economic Policies, n. 5, 2008., ademais, como há estoques (que absorvem desequilíbrios entre oferta e demanda de bens), a formação de preços leva em consideração os juros necessários para financiá-los. Já Le Heron (2009)LE HERON, E. Confidence, banking behavior and economic policy in post-keynesian stock-flow consistent model. In: COLÓQUIO Internacional: O Capitalismo com dominância financeira, Instituto de Economia, Unicamp, Campinas, 1-2 out. 2009. determina a inflação por meio de uma curva de Philips “especial”, em que há um intervalo em que a inflação (que corresponde à meta do Banco Central) não é sensível ao emprego; a inflação, porém, não altera a distribuição da renda, determinada pelo mark-up exógeno. Em Skott e Ryoo (2008)SKOTT, P.; RYOO, S. Financialization in Kaleckian economics: with and without labor constraints. Cambridge, Mass.: Department of Economics of University of Massachusetts, 2008. (Working Paper, n. 5)., variações na demanda se expressam primeiramente em variações nos preços (e portanto na distribuição da renda) e só depois em variações na quantidade.

Passemos agora às decisões das famílias. A parcimônia, aqui, se manifesta na hipótese simplificadora, adotada em todos esses modelos, de que as famílias não investem13 13 Mesmo (e particularmente) em imóveis. Obviamente, nenhum desses modelos tem por propósito a explicação da bolha imobiliária norte-americana. . As decisões do setor, então, dizem respeito apenas ao consumo e à alocação de sua riqueza (ou do acréscimo dessa riqueza na forma de poupança) em ativos financeiros. Nos modelos que contemplam apenas a economia privada, a alocação de poupança das famílias se distribui entre ações das firmas e depósitos bancários. Por simplicidade, estas duas formas de riqueza são exclusivas das famílias em quase todos os modelos estudados.

Em Lavoie (2008)LAVOIE, M. Financialisation issues in a Post-Keynesian stock-flow consistent model. Intervention, European Journal of Economics and Economic Policies, n. 5, 2008., as famílias também carregam riqueza na forma de títulos da dívida pública de curto e longo prazo (bills e bonds). As letras de curto prazo rendem uma taxa de juros exógena14 14 Em Godley e Lavoie (2007, capítulo 11), em que é apresentado o mesmo modelo, propõem-se formas de tornar a taxa endógena com funções de reação do Banco Central que levam em consideração a inflação e nível de emprego. . Os bonds, por simplicidade perpetuidades, rendem um valor anual fixo, de modo que seu preço é endógeno, como é o caso das ações. Além disso, as famílias retêm papel moeda e são proprietárias dos fundos próprios dos bancos15 15 No modelo, os bancos retêm parte dos seus lucros para fazer frente a perdas decorrentes de empréstimos não pagos, constituindo um fundo que é, porém, de propriedade das famílias, como as ações das empresas. .

A renda das famílias nos modelos pode, portanto, incluir salários, dividendos e juros sobre depósitos e sobre títulos da dívida pública. Até os modelos mais simples comportam ganhos de capital (resultantes do market clearing de um ou mais mercados financeiros), que se mostram uma alavanca importante para a expansão do consumo e um aspecto central dos regimes de crescimento em que o aprofundamento da financeirização tem por efeito acelerar o crescimento.

Em Lavoie e Godley (2002)GODLEY, W. ; LAVOIE, M. Kaleckian models of growth in a coherent stock-flow monetary framework: a Kaldorian view. Journal of Post Keynesian Economics, v. 24, n. 2, Winter, 2001-2002., a restrição orçamentária das famílias é

(4) pC + Δ ep e + Δ M = W + Div + iM 1 ,

onde pC é o consumo nominal, W os salários, ΔM a variação no volume de depósitos, Div os dividendos distribuídos pelas firmas e iM-1 os juros sobre os depósitos16 16 O subscrito significa que é considerado o volume de depósitos do período anterior. .

Os ganhos de capital são o estoque de ações defasado em um período multiplicado pela variação no preço (market-clearing) desses títulos:

(5) CG = e 1 Δ p e

A renda, somada aos ganhos de capital, à poupança e à variação patrimonial são, respectivamente,

(6) Y HS = W + Div + iM 1 + CG
(7) S H = Δ e . pe + Δ M = W + Div + i . M 1 pC
(8) Δ V H = Δ M + Δ e . pe + e 1 . Δ pe

Nos modelos com governo, as famílias pagam impostos, podendo também receber juros de títulos públicos17 17 Em Lavoie (2008), o imposto é cobrado sobre a renda. Em Le Heron (2009), os salários são a única renda tributada, sendo que os dividendos das firmas são pagos aos bancos, que acumulam fundos e não pagam impostos. . Em Lavoie (2008)LAVOIE, M. Financialisation issues in a Post-Keynesian stock-flow consistent model. Intervention, European Journal of Economics and Economic Policies, n. 5, 2008. e van Treeck (2009)VAN TREECK, T. A synthetic stock-flow consistent macroeconomic model of financialisation. Cambridge Journal of Economics, n.3 3, May 2009., as famílias podem tomar empréstimos junto aos bancos e portanto acumular dívida em seu passivo. Hipóteses comportamentais adicionais regem a oferta e a demanda por esses empréstimos.

Em Lavoie e Godley (2002)GODLEY, W. ; LAVOIE, M. Kaleckian models of growth in a coherent stock-flow monetary framework: a Kaldorian view. Journal of Post Keynesian Economics, v. 24, n. 2, Winter, 2001-2002., Lavoie (2008)LAVOIE, M. Financialisation issues in a Post-Keynesian stock-flow consistent model. Intervention, European Journal of Economics and Economic Policies, n. 5, 2008. e Skott e Ryoo (2008)SKOTT, P.; RYOO, S. Financialization in Kaleckian economics: with and without labor constraints. Cambridge, Mass.: Department of Economics of University of Massachusetts, 2008. (Working Paper, n. 5)., as famílias são consideradas um conjunto homogêneo. Em Hein e van Treeck (2007)HEIN, E.; VAN TREECK, T. ‘Financialisation’ in Kaleckian/Post-Kaleckian models of distribution and growth. IMK Working Paper, v. 7, 2007. e van Treeck (2009)VAN TREECK, T. A synthetic stock-flow consistent macroeconomic model of financialisation. Cambridge Journal of Economics, n.3 3, May 2009., distinguem-se duas classes de famílias18 18 No modelo de van Treeck (2009) os balanços de rentistas e trabalhadores se encontram explicitamente separados. Já em Hein e van Treeck (2007) (como em Dos Santos e Zezza, entre muitos outros textos da tradição SFC), a distinção de classes está implícita no fato de toda a renda de salários ser consumida, enquanto que a poupança privada é a soma dos lucros retidos pelas firmas com a poupança de parte dos juros pagos e dividendos distribuídos que caracterizam a renda capitalista ou rentista. : capitalistas (ou rentistas) e trabalhadores. As classes são definidas pela modalidade de renda: trabalhadores recebem salários; os demais fluxos de renda são atribuídos aos rentistas. Por simplicidade, ou para frisar as diferenças entre as classes, supõe-se que os salários sejam integralmente gastos em consumo, deixando as decisões de poupança e portfólio para os rentistas. A divisão em classes aumenta o impacto sobre consumo e poupança de mudanças na distribuição da renda entre lucros e salários, com implicações sobre utilização da utilização da capacidade, investimento e lucros. Le Heron (2009)LE HERON, E. Confidence, banking behavior and economic policy in post-keynesian stock-flow consistent model. In: COLÓQUIO Internacional: O Capitalismo com dominância financeira, Instituto de Economia, Unicamp, Campinas, 1-2 out. 2009., por seu turno, considera somente as famílias de trabalhadores, que recebem salários, pagam impostos, consomem e poupam o restante da renda em depósitos bancários19 19 Entretanto, considera propensões marginais a poupar diferentes com respeito à renda de salários e aos juros sobre depósitos, procurando inserir um certo comportamento de classe com respeito à poupança. Lavoie e Godley (2002) admitem uma propensão a consumir igual para as diversas modalidades de renda (dividendos, juros e salários), porém supõem, em linha com a evidência empírica, uma propensão marginal a consumir menor com respeito a ganhos de capital. .

Geralmente, a riqueza das famílias é considerada na função consumo (a exceção é Hein e Van Treek, 2007HEIN, E.; VAN TREECK, T. ‘Financialisation’ in Kaleckian/Post-Kaleckian models of distribution and growth. IMK Working Paper, v. 7, 2007.). Lavoie (2008)LAVOIE, M. Financialisation issues in a Post-Keynesian stock-flow consistent model. Intervention, European Journal of Economics and Economic Policies, n. 5, 2008. apresenta, a nosso ver, a forma mais elegante e rigorosa (à la Tobin) de modelar as decisões de portfólio, com base em “adding up constraints”, de modo que a demanda por cada ativo leva em consideração as remunerações sobre todos os demais e de modo a respeitar a condição de que a soma dos valores demandados de cada ativo seja igual à riqueza disponível para aplicação. Skott e Ryoo (2008)SKOTT, P.; RYOO, S. Financialization in Kaleckian economics: with and without labor constraints. Cambridge, Mass.: Department of Economics of University of Massachusetts, 2008. (Working Paper, n. 5). testam tratamentos alternativos: no mais simples, as relações estoque-fluxo no portfólio das famílias - demanda de depósitos bancários e demanda de ações como razões da renda - são consideradas dadas; no mais complexo, refletem (como em Lavoie) os retornos desses ativos.

A incorporação do endividamento das famílias junto aos bancos (van Treeck, 2009VAN TREECK, T. A synthetic stock-flow consistent macroeconomic model of financialisation. Cambridge Journal of Economics, n.3 3, May 2009.; Lavoie, 2008LAVOIE, M. Financialisation issues in a Post-Keynesian stock-flow consistent model. Intervention, European Journal of Economics and Economic Policies, n. 5, 2008.) acrescenta uma entrada passiva no balanço das famílias e mais algumas equações aos modelos. A nosso ver, o custo analítico é mais do que compensado pelo benefício. Como argumentam Bhaduri et al. (2006)BHADURI, A., LASKI, K.; RIESE, M. A model of interaction between the virtual and the real economy. Metroeconomica, n. 57, 2006., a abstração do crédito para consumo é uma lacuna grave na análise do capitalismo contemporâneo. Isto porque, como a valorização financeira é um acréscimo de riqueza virtual, é importante que seu efeito sobre o consumo se dê por meio de criação de crédito. Devesse esse consumo ser financiado pela realização dos ganhos de capital, a liquidação desses ativos poderia provocar a queda de seus preços, limitando o estímulo ao consumo. Segundo Bhaduri et al. (2006, p. 414)BHADURI, A., LASKI, K.; RIESE, M. A model of interaction between the virtual and the real economy. Metroeconomica, n. 57, 2006., um arranjo institucional no qual os bancos têm acesso a reservas emprestadas pelo banco central é essencial para a manutenção de um boom fomentado pelo crédito, e não pela realização de ganhos de capital.

Van Treeck (2009)VAN TREECK, T. A synthetic stock-flow consistent macroeconomic model of financialisation. Cambridge Journal of Economics, n.3 3, May 2009. formula a demanda por crédito pelas famílias de forma bastante fiel a Bhaduri et al. (2006)BHADURI, A., LASKI, K.; RIESE, M. A model of interaction between the virtual and the real economy. Metroeconomica, n. 57, 2006.:

(9) Δ L r = b 1 1 BUR V exp rep . L r 1 ,

onde b1 é um coeficiente; BUR , a razão entre juros e amortizações pagos pelas famílias sobre a renda; Vexp, a riqueza esperada das famílias e rep, a taxa de amortização do estoque de dívida.

A função consumo tem a forma:

(10) C d = C w + C r = W s + a 1 Y dr exp + a 2 Δ L r ,

Sendo Ws os salários, a1e a2 parâmetros e Ydrexp a renda esperada dos rentistas. Nem os ganhos de capital nem a riqueza aparecem na função consumo diretamente: o efeito da riqueza (e dos ganhos de capital) sobre o consumo se transmite pelo crédito contraído, que é função da riqueza financeira.

Em Lavoie (2008)LAVOIE, M. Financialisation issues in a Post-Keynesian stock-flow consistent model. Intervention, European Journal of Economics and Economic Policies, n. 5, 2008., o crédito às famílias depende essencialmente da renda disponível corrente e da taxa de juros sobre o crédito, o que é uma diferença importante com relação a van Treeck (2009)VAN TREECK, T. A synthetic stock-flow consistent macroeconomic model of financialisation. Cambridge Journal of Economics, n.3 3, May 2009.. Outra diferença crucial é que, no último, o crédito é apenas destinado à classe rentista: uma elevação dos salários causaria um aumento no crédito às famílias em Lavoie que não haveria em van Treeck. Por outro lado, os ganhos de capital no segundo promoveriam um aumento do crédito, o que não ocorreria no primeiro. Qual das duas modelagens é a mais adequada para descrever o capitalismo sob dominância financeira é objeto para discussão futura. Porém, van Treeck parece capturar de maneira mais satisfatória os mecanismos descritos por Bhaduri et al. (2006)BHADURI, A., LASKI, K.; RIESE, M. A model of interaction between the virtual and the real economy. Metroeconomica, n. 57, 2006. e Boyer (2002), pois o principal mecanismo por meio do qual o acréscimo de riqueza financeira se traduz em expansão do crédito é a utilização daquela como colateral.

Os bancos são em geral representados de maneira consideravelmente simplificada20 20 Uma observação atenta do Quadro 1 registrará que os bancos jamais investem. Aqui se trata, acreditamos, de uma inverdade completamente perdoável: afinal, nenhuma teoria dá qualquer atenção aos suntuosos investimentos imobiliários das instituições financeiras... . Nos modelos sem governo, apenas aceitam depósitos (remunerados por juros) e fornecem empréstimos, passivamente. Por vezes, os juros pagos sobre depósitos e recebidos sobre empréstimos são iguais, de modo que os bancos não auferem lucros. Em outros casos, as taxas de juros sobre empréstimos são determinadas por um mark-up sobre as taxas sobre depósitos; nesses casos, predomina a hipótese de que o lucro bancário é distribuído às famílias21 21 A exceção é o modelo de Le Heron (2009) no qual os lucros são retidos pelos bancos na sua totalidade. (rentistas, quando se distinguem rentistas e trabalhadores); Lavoie (2008)LAVOIE, M. Financialisation issues in a Post-Keynesian stock-flow consistent model. Intervention, European Journal of Economics and Economic Policies, n. 5, 2008., como se explica a seguir, é aqui uma exceção. Os empréstimos são concedidos pelos bancos de maneira perfeitamente elástica à demanda22 22 A oferta perfeitamente elástica de crédito pelos bancos também significa que não há exigência de reservas pelos bancos centrais ou que essas exigências não são capazes de induzir os bancos a alterar as taxas cobradas sobre empréstimos. , exceto em Lavoie (2008)LAVOIE, M. Financialisation issues in a Post-Keynesian stock-flow consistent model. Intervention, European Journal of Economics and Economic Policies, n. 5, 2008. e Le Heron (2009)LE HERON, E. Confidence, banking behavior and economic policy in post-keynesian stock-flow consistent model. In: COLÓQUIO Internacional: O Capitalismo com dominância financeira, Instituto de Economia, Unicamp, Campinas, 1-2 out. 2009.. Segundo Lavoie e Godley (2002)GODLEY, W. ; LAVOIE, M. Kaleckian models of growth in a coherent stock-flow monetary framework: a Kaldorian view. Journal of Post Keynesian Economics, v. 24, n. 2, Winter, 2001-2002., no modelo (horizontalista) que propõem, a redução do crédito concedido em função de uma deterioração da situação financeira dos clientes está representada pelo efeito negativo do nível de alavancagem das firmas na função de investimento. Os modelos em que os bancos não geram ou não retêm lucros deixam, assim, de contemplar uma das dimensões da financeirização, que é a participação crescente das instituições financeiras nos lucros totais; os modelos em que o crédito pode se expandir de forma ilimitada, por seu turno, são obviamente pouco adequados à exploração da hipótese minskyana da instabilidade financeira.

Lavoie (2008)LAVOIE, M. Financialisation issues in a Post-Keynesian stock-flow consistent model. Intervention, European Journal of Economics and Economic Policies, n. 5, 2008. incorpora o governo: além de os bancos possuírem títulos e dinheiro do governo (high-powered money) em seus ativos, administram uma meta para a razão entre títulos do governo e depósitos conforme as exigências legais de reservas. Caso essa razão caia abaixo de determinado patamar, os bancos aumentam os juros pagos sobre depósitos (aumentando o spread em relação aos juros sobre títulos públicos) a fim de atraí-los e restabelecer a liquidez; caso a razão supere a meta, os bancos reduzem os juros sobre depósitos. Em linha com a hipótese pós- keynesiana habitual, o volume de empréstimos é determinado pelos demandantes de recursos e não pelos bancos23 23 Vale dizer, apesar de os bancos terem necessidade de observar a proporção entre depósitos e títulos do governo que possuem, a quantidade de moeda na economia continua sendo endógena. . O modelo ainda compreende a possibilidade de certa proporção dos empréstimos realizados não ser paga. Assim, por conveniência e por exigência legal, os bancos devem manter fundos próprios para fazer frente a eventuais perdas de capital. Os bancos então possuem uma meta para a razão entre fundos próprios e empréstimos, a qual administram por intermédio de variações nos juros sobre empréstimos. Os fundos se constituem de lucros retidos; os juros cobrados também são administrados de modo a proporcionar os lucros distribuídos na forma de dividendos às famílias. Como referido anteriormente, as variações endógenas nas taxas de juros em função da necessidade de adequação da posse de títulos e capital próprio têm implicações importantes.

O setor bancário em Le Heron (2009)LE HERON, E. Confidence, banking behavior and economic policy in post-keynesian stock-flow consistent model. In: COLÓQUIO Internacional: O Capitalismo com dominância financeira, Instituto de Economia, Unicamp, Campinas, 1-2 out. 2009. concentra as decisões de portfólio atribuídas às famílias nos demais modelos apresentados. Como proprietários das ações, os bancos recebem os dividendos. No modelo, os bancos retêm seus lucros, que são alocados entre os diversos ativos emitidos pelas firmas e os títulos do governo. Os bancos alocam seus fundos em quatro diferentes modalidades de ativos emitidos pelas firmas: empréstimos, papéis de curto prazo (papéis comerciais), ações e títulos de remuneração fixa (bonds), além de títulos da dívida pública e reservas compulsórias (high powered money). A alocação da riqueza aplicável dos bancos entre os diversos ativos emitidos pelas firmas se dá seguindo a orientação tobiniana, considerando “adding up constraints” (da mesma forma pela qual as famílias alocam a sua riqueza em Lavoie, 2008LAVOIE, M. Financialisation issues in a Post-Keynesian stock-flow consistent model. Intervention, European Journal of Economics and Economic Policies, n. 5, 2008.). Os bancos têm em seu passivo os depósitos e as reservas que porventura precisarem tomar emprestadas junto ao banco central, pagando juros sobre ambos.

O modelo de Le Heron é o único que contempla o racionamento endógeno do crédito bancário. O autor supõe que os bancos definem um grau de alavancagem convencional (Levc) das firmas; desvios positivos (negativos) do grau de alavancagem corrente (Lev) com respeito a esse grau normal ensejam aumento (diminuição) na avaliação do risco por parte dos bancos. O grau de alavancagem é definido como:

(11) Lev = L + CP + OF / K ,

sendo L os empréstimos, CP os papéis comerciais; OF os bonds e K o estoque de capital.

Aumentos na alavancagem corrente (assim como reduções no grau de confiança ou na taxa de valorização das ações) aumentam o racionamento de crédito e o prêmio de risco que, com os juros básicos do banco central e a um mark-up, determinam as taxas de juro de longo prazo24 24 Os de curto prazo sobre CP não levam lr em consideração. .

No modelo, o grau convencional de alavancagem é constante. Como se sabe, empiricamente é possível observar períodos em que bancos toleram o endividamento crescente das firmas25 25 E de consumidores, como foi o caso nos Estados Unidos da segunda metade da década de 1990 até a crise que eclodiu em 2008. . Essa tolerância é geralmente acompanhada por uma valorização de ativos, financeiros ou não. A nosso juízo, o procedimento adotado por Le Heron pode modelar esse tipo de situação de maneira satisfatória, pois a valorização das ações das firmas em sua abordagem age como elemento redutor da percepção do risco do emprestador, permitindo aumento da alavancagem das firmas acima do convencional por períodos longos.

O tratamento habitual do governo em modelos SFC é tipificado por Dos Santos e Zezza (2008)DOS SANTOS, C. H. dos; ZEZZA, G. A simplified Stock-Flow Consistent post-Keynesian growth model. Metroeconomica, v. 59, p. 441-478, 2008.: o governo tributa uma fração constante da renda, efetua um gasto público de proporção fixa com respeito ao estoque de capital e financia seu déficit com emissão de títulos de curto prazo. Veremos, mais adiante, que a forma pela qual o governo financia o déficit público pode ter implicações importantes.

Em Lavoie (2008)LAVOIE, M. Financialisation issues in a Post-Keynesian stock-flow consistent model. Intervention, European Journal of Economics and Economic Policies, n. 5, 2008., o comportamento do governo é basicamente o mesmo, mas separam-se os balanços do governo propriamente dito e do banco central. Este supre a base monetária mediante a aquisição de títulos de curto prazo do governo, cuja emissão é determinada pelo déficit público. As decisões de portfólio das famílias determinam parte da demanda por títulos públicos; o resíduo é adquirido pelos bancos. Os juros sobre títulos de curto e longo prazo são determinados de maneira exógena, sendo que o segundo é igual ao primeiro acrescido de um mark-up. O banco central realiza um lucro, advindo dos juros sobre os títulos de curto prazo retidos, que é transferido ao governo.

Em Le Heron (2009)LE HERON, E. Confidence, banking behavior and economic policy in post-keynesian stock-flow consistent model. In: COLÓQUIO Internacional: O Capitalismo com dominância financeira, Instituto de Economia, Unicamp, Campinas, 1-2 out. 2009., duas modalidades de política fiscal são testadas. Na primeira, o gasto público se mantém como proporção constante do produto, sendo, portanto, pró-cíclico. Porém, se houver aumento na taxa básica de juros e queda no produto, haverá aumento no déficit fiscal, contribuindo para a estabilização da economia. Isso não pode ocorrer na segunda modalidade de política fiscal, na qual o governo procura manter a razão déficit-receita constante; o artigo supõe que os impostos incidem somente sobre os salários.

Ainda em Le Heron (2009)LE HERON, E. Confidence, banking behavior and economic policy in post-keynesian stock-flow consistent model. In: COLÓQUIO Internacional: O Capitalismo com dominância financeira, Instituto de Economia, Unicamp, Campinas, 1-2 out. 2009., a política monetária do banco central, ou seja, a determinação da taxa de juros se realiza por meio de uma regra monetária, o que torna a taxa básica de juros endógena. Também no caso da política monetária o autor considera duas modalidades distintas. Uma leva em consideração a regra de Taylor, com os juros sendo determinados em função do hiato do produto e do desvio da inflação em relação à meta. A outra política é uma regra de Taylor “truncada”, que restringe o mandato do Banco Central ao controle da inflação. No modelo, o banco central realiza lucros, pois seu passivo (papel-moeda), não paga juros, enquanto seu ativo (reservas emprestadas aos bancos) é remunerado pela taxa básica. Os lucros do banco central são repassados ao governo.

2 Os impactos da financeirização

Stockhammer (2004)STOCKHAMMER, E. Financialisation and the slowdown of accumulation. Cambridge Journal of Economics, n. 28, 2004., entre outros autores, sugere que a busca do shareholder value foi responsável por uma redução na propensão a investir das firmas, tanto por reduzir a disposição dos administradores das companhias a perseguir o crescimento das mesmas como por reduzir a capacidade de autofinanciamento pela distribuição de maior parcela dos lucros na forma de dividendos. Contudo, a lógica dessas proposições, embora pareça convincente no plano microeconômico, pode esconder uma falácia de composição, se aplicada diretamente ao plano macroeconômico (Stockhammer, 2005-2006STOCKHAMMER, E. Shareholder value orientation and the investment-profit puzzle. Journal of Post Keynesian Economics, n. 28, 2005-2006.; van Treeck, 2008VAN TREECK, T. The political economy debate on ‘financialisation’ - a macroeconomic perspective. IMK Working Paper, n. 1, 2008.). A distribuição dos lucros na forma de dividendos pode ter impacto positivo sobre a demanda agregada tanto por ampliar diretamente o consumo como por proporcionar ganhos de capital com a valorização das ações (afetada adicionalmente pela tendência à queda na emissão desses papeis); esses ganhos de capital podem ser usados como colateral para a tomada de empréstimos por parte de famílias que, ademais, podem reduzir sua propensão a poupar; por fim, o investimento pode também se ampliar em função do aumento da utilização da capacidade produtiva e dos lucros (a qual é trivialmente explicada pelo aparato kaleckiano habitual).

A literatura formal SFC procura estabelecer, mediante uma série de “experimentos”, se e em que condições os choques normalmente atribuídos à financeirização geram resultados expansionistas. O experimento mais comum em nosso corpus é o aumento da fração dos lucros distribuídos na forma de dividendos (Ld). Um exercício similar consiste em supor um aumento na taxa de juros (r) sobre empréstimos às firmas: os juros constituem um custo financeiro para as firmas do mesmo modo que o pagamento de dividendos; nos modelos em que os lucros dos bancos (que dependem dos juros pagos) são transferidos às famílias26 26 Também em modelos onde os bancos não auferem lucros, mas a taxa de juros sobre depósitos e empréstimos é a mesma, um aumento nos juros reduz os lucros retidos nas firmas e os juros pagos terminam nas mãos das famílias como remuneração de seus depósitos; o resultado é equivalente (Lavoie; Godley, 2002). , essa transferência impulsiona o consumo e a demanda agregada. Por outro lado, a condução de políticas monetárias mais restritivas por parte dos governos também é (ou foi, até a crise financeira de 2008) um fato estilizado associado à financeirização. Um terceiro experimento é a redução da razão (ΔE) entre emissão de ações e tomada de empréstimos no financiamento do investimento. Enquanto a alteração da taxa de dividendos e nas emissões de novas ações são mudanças que concernem a práticas das próprias firmas, alterações na taxa de juros são de responsabilidade, de um lado, dos bancos e, de outro, dos governos, na condução da política monetária.

Em Lavoie e Godley (2002)GODLEY, W. ; LAVOIE, M. Kaleckian models of growth in a coherent stock-flow monetary framework: a Kaldorian view. Journal of Post Keynesian Economics, v. 24, n. 2, Winter, 2001-2002. os três experimentos mencionados acima (entre vários outros) são realizados. No caso do efeito de um aumento de r sobre a taxa de acumulação de capital fixo (g)27 27 Equivalente à taxa de crescimento no steady-state. e o grau de utilização da capacidade (u), dois regimes se revelaram possíveis: o aumento de r pode retardar ou acelerar g; a primeira possibilidade corresponde ao que os autores chamaram regime “normal” (mais intuitivo de um ponto de vista pós-keynesiano); a segunda, chamada regime puzzling ocorre caso o efeito do “q” de Tobin sobre o investimento seja suficientemente alto em relação ao efeito de u.

O uso de simulações numéricas - como nesse artigo (ver Quadro 2) - facilita a visualização das trajetórias das variáveis e ilustra a necessidade de ir além do curto prazo. Em ambos os regimes, o efeito do aumento r, nos primeiros períodos, é uma queda no investimento (g), nos lucros e na utilização da capacidade (u). Porém, em ambos os regimes, no steady-state u é mais alto do que o valor inicial; consequentemente, a taxa de lucro é maior28 28 Com o grau de utilização elevado e uma margem de lucro sobre salários constante dada pelo mark-up, a razão entre lucros e capital fixo também se eleva. . O impacto negativo inicial da alta de r passa a ser compensado pelo fato de que, com a renda crescente proveniente dos juros, crescem o consumo das famílias e sua demanda por ações, o que leva à recuperação de q. Para um coeficiente do q na função de acumulação suficientemente elevado (“puzzling regime”), g no longo prazo pode estacionar em um patamar mais alto do que o inicial. Cabe observar que este aumento em g pode implicar uma maior razão entre dívida e capital fixo para as firmas, ou seja, uma maior fragilidade financeira.

O efeito de variações em Ld independe qualitativamente dos coeficientes de q e de u. O resultado é univocamente positivo no caso de um aumento na fração distribuída dos lucros: ganhos de capital para as famílias (com a valorização das ações) e aumento do consumo; dessa forma q, u e lucros (lucros totais, apesar da redução dos lucros retidos no curto prazo) aumentam, estimulando o investimento. O efeito inicial sobre g é negativo; a variável, porém, estabiliza-se em um patamar mais alto do que o inicial.

Por fim, uma redução da razão ΔE também produz efeito univocamente positivo sobre g, u e lucros; nesse caso, nem mesmo no curto prazo há algum efeito negativo. A redução de ΔE acelera o processo de valorização das ações, o que gera novamente um ganho de capital para as famílias; novamente o consumo expande seu ritmo de crescimento e, como no exercício anterior, u e q e g sobem.

Os dois últimos resultados contradizem o que boa parte da literatura a respeito da financeirização afirma acerca dos efeitos da ascensão do “shareholder value orientation” como forma predominante de gerenciamento corporativo: a diminuição de ΔE (ou mesmo a recompra de ações) e a menor retenção de lucros implicam aumento, e não redução, de g e u. O argumento de Kaldor, mencionado anteriormente, sugere uma observação crítica: se cai a importância de emissões líquidas de ações no financiamento do investimento, deveria cair também a importância de q para as decisões de investimento, reduzindo a possibilidade de um regime puzzling.

Hein e van Treeck (2007)HEIN, E.; VAN TREECK, T. ‘Financialisation’ in Kaleckian/Post-Kaleckian models of distribution and growth. IMK Working Paper, v. 7, 2007. testam o efeito do aumento em Ld sobre g, u e taxa de lucros29 29 Como se viu anteriormente, o artigo examina duas variantes da função de acumulação. Entretanto, os resultados utilizando ambas as funções não mostram diferenças qualitativas. , primeiramente supondo mark-up e, portanto, participação dos lucros no produto dados.

Três casos se revelaram possíveis: no primeiro (normal), resultam variações negativas em g, na taxa de lucros e em u. No segundo (puzzling), os sinais se invertem30 30 Cabe observar que, ao simular o modelo numericamente, constatamos que, para parte significativa das combinações dos valores dos parâmetros, a ocorrência do regime virtuoso (puzzling) requer um uso da capacidade produtiva maior do que a unidade, o que pode ser interpretado como uma restrição “pelo lado da oferta” que não é perceptível na solução analítica do modelo. . Esse último resultado deriva do aumento da renda e do consumo dos rentistas, o qual aumenta u e os lucros das firmas; assim, via efeitos indiretos, g também cresce, desde que a propensão marginal a consumir dos rentistas seja suficientemente alta. No caso intermediário (ou de “lucros sem investimento”, análogo ao regime normal de Godley e Lavoie), lucros e u aumentam com o consumo dos rentistas, mas não o suficiente para compensar o efeito negativo direto dos dividendos na função de acumulação, a qual então se contrai31 31 Os autores associam o regime de “lucros sem investimento” ao período tardio da década de 1980 na economia americana. Neste período os lucros vinham se recuperando após a crise do começo da década, mas a taxa de investimento continuava deprimida. Notam ainda que um regime deste tipo enfrentaria problemas quanto à evolução da produtividade, o que traria problemas de inflação e crescimento, apesar do avanço da produtividade não ser contemplado pelo modelo. .

Dado um conjunto de valores de parâmetros e variáveis exógenas, o espectro do caso normal é ampliado quando se adota a hipótese de que as firmas simultaneamente aumentam a distribuição de lucros e o mark-up. A presença do componente de sinal negativo que representa o poder dos acionistas (ver acima) na função de investimento tem o mesmo efeito; porém, constatamos em simulações que, matematicamente, o resultado é possível mesmo na ausência do termo.

O modelo possui uma fragilidade decorrente da atribuição de valores exógenos e constantes às razões entre dívida e ações em poder dos rentistas, de um lado e, de outro, capital fixo acumulado. Partindo de uma situação de equilíbrio, uma alteração nos dividendos distribuídos leva necessariamente a uma alteração de pelo menos uma das relações passivo/capital das firmas. Portanto, considerar essas relações constantes impossibilita a consistência fluxo-estoque do modelo. Uma alternativa é considerar essas alterações desprezíveis, o que seria aceitável apenas no curto prazo, reduzindo o alcance das conclusões extraídas do modelo. Com vistas a eliminar está fragilidade, Hein (2009)HEIN, E. A (post-) Keynesian perspective on ‘financialisation’. IMK Studies, 2009. reapresenta o modelo, com razões passivo/capital endógenas. Constata-se que um aumento em Ld aumenta a razão passivo/capital das firmas; tal elevação segue uma trajetória explosiva nos casos normal e intermediário e atinge um equilíbrio estável no regime puzzling. O fato de que somente este último regime gere estabilidade no longo prazo não significa, a nosso ver, que os outros dois regimes sejam irrelevantes, pois podem ser empregados para o estudo de trajetórias que “se resolvem” em crises financeiras.

Em van Treeck (2009)VAN TREECK, T. A synthetic stock-flow consistent macroeconomic model of financialisation. Cambridge Journal of Economics, n.3 3, May 2009. os resultados do experimento são praticamente os mesmos: novamente emergem os três casos acima referidos. Influencia na incidência de cada um dos casos o coeficiente associado ao q de Tobin, agora considerado na função de investimento; menor o coeficiente, menos provável se torna o caso puzzling. O autor chama atenção para o fato de que, nos dois casos extremos, observa-se um comportamento das variáveis que remete ao “paradoxo da dívida” de Steindl (1952)STEINDL, J. Maturity and stagnation in American capitalism. New York: Monthly Review Press, 1952.: no caso normal, apesar de as firmas reduzirem seu gasto com investimento, a dívida cresce mais rapidamente, porque a queda nos lucros retidos obriga as firmas a financiarem uma parte maior do investimento por meio de empréstimos; no caso puzzling, apesar de as empresas ampliarem os gastos com investimento, o crescimento da dívida das firmas é menor, pois os lucros retidos aumentam de maneira a permitirem uma demanda proporcionalmente menor de crédito32MAZIER, J.; ALITI, G. T. T. World imbalances, exchange rates and macroeconomic adjustments: a stock flow consistent approach. In: COLÓQUIO Internacional: O Capitalismo com dominância financeira, Instituto de Economia, Unicamp, Campinas, 1-2 out. 2009..

Van Treeck (2009)VAN TREECK, T. A synthetic stock-flow consistent macroeconomic model of financialisation. Cambridge Journal of Economics, n.3 3, May 2009. também analisa os efeitos de uma redução em ΔE. Para um coeficiente de q suficientemente pequeno, o resultado é semelhante ao obtido em Bhaduri et al. (2006)BHADURI, A., LASKI, K.; RIESE, M. A model of interaction between the virtual and the real economy. Metroeconomica, n. 57, 2006.: a riqueza financeira e os lucros crescem, enquanto g cai; o comportamento da economia persiste por período considerável, até que a riqueza financeira passa a cair, acompanhando a trajetória da riqueza e renda reais. No segundo caso contemplado, no qual q tem influência relativamente maior sobre o investimento, o efeito sobre o desempenho geral da economia é positivo.

Os resultados obtidos por Skott e Ryoo (2008)SKOTT, P.; RYOO, S. Financialization in Kaleckian economics: with and without labor constraints. Cambridge, Mass.: Department of Economics of University of Massachusetts, 2008. (Working Paper, n. 5). variam de acordo com as hipóteses sobre o mercado de trabalho (com ou sem restrição na oferta de mão-de- obra) e regime de acumulação (harrodiano ou kaleckiano, como descritos na seção que tratou das funções de acumulação). Na variante que apresenta a economia harrodiana “madura” (com oferta de trabalho restrita), o crescimento no steady-state é exógeno e igual ao crescimento da força de trabalho e, portanto, não é afetado pelos experimentos.

No caso em que consumo e poupança e o portfólio das famílias se distribui em proporções fixas, o efeito dos três experimentos sobre o nível de emprego é positivo e a participação dos lucros na renda aumenta. Curiosamente, é o oposto do que diz boa parte da literatura sobre financeirização. Em primeiro lugar, o aumento de r no modelo se traduz em uma transferência das firmas para as famílias (lucro dos bancos) o que significa uma menor poupança em proporção à renda e maior consumo; a elevação da demanda agregada leva a um maior nível de emprego. A redução em ΔE, por sua vez, determina uma valorização mais rápida das ações, o que aumenta os ganhos de capital e o consumo. Por fim, a redução dos lucros retidos acarreta menor taxa de poupança e, por isso, maior consumo. Todos esses resultados dependem da hipótese de crescimento constrangido pela oferta de força de trabalho, que congela g a uma taxa constante.

Os resultados podem ser opostos caso se considerem a poupança e a sua alocação elásticas em relação às variáveis r, ΔE e Ld, dependendo dos parâmetros. Porém, os autores ainda argumentam que os valores dos parâmetros mais plausíveis diante das evidências empíricas estão dentro de limites em que os resultados são qualitativamente iguais. Essa observação vale para todos os modelos presentes no artigo.

Os autores também formulam o modelo de regime harrodiano de acumulação combinado com a hipótese de oferta ilimitada de força de trabalho. Nesse caso os efeitos dos três experimentos sobre o crescimento podem ser positivos ou negativos dependendo da magnitude do efeito (sempre positivo) da participação dos lucros na renda sobre a acumulação: os efeitos são os mesmos da “economia madura”, se o efeito da participação dos lucros é suficientemente baixo; acima do valor crítico, os efeitos são revertidos33 33 Os autores consideram que esse segundo caso o mais plausível. . A razão é bem simples: livre da restrição de força de trabalho, menor a taxa de retenção, menores as emissões de ações e maiores os juros, menor a taxa de investimento e, consequentemente o crescimento.

Por fim é avaliado o modelo “kaleckiano” cujas especificações são muito semelhantes àquelas usadas por Hein e van Treeck (2007)HEIN, E.; VAN TREECK, T. ‘Financialisation’ in Kaleckian/Post-Kaleckian models of distribution and growth. IMK Working Paper, v. 7, 2007.. A redução em Ld tem efeitos ambíguos sobre o crescimento. Um maior grau de retenção aumenta o investimento por disponibilizar recursos, porém, ao fazer com que a poupança aumente, a maior retenção reduz u; esse efeito pode predominar e representar um efeito líquido negativo sobre renda e investimento. O aumento de r produz resultados também ambíguos: o efeito direto de r sobre o investimento é negativo, mas também determina menor poupança, o que aumenta u e afeta renda e investimento positivamente. Apenas a redução de ΔE produz um efeito univocamente positivo sobre g; nesse caso, então, o modelo rejeita a suposição de que a redução de ΔE característica da financeirização teria impacto negativo sobre o crescimento.

Em Hein e van Treeck (2007)HEIN, E.; VAN TREECK, T. ‘Financialisation’ in Kaleckian/Post-Kaleckian models of distribution and growth. IMK Working Paper, v. 7, 2007., apesar de haver ambiguidade quanto aos efeitos de um maior Ld e maior r sobre g (como em Skott e Ryoo no modelo kaleckiano), o efeito negativo é mais provável se se supõe, como eles, que r mais alto e maior Ld implicam maior mark-up e aumento da participação dos lucros na renda total, pois esse último significa um aumento da poupança e redução de u.

Além disso, na função consumo utilizada por Skott e Ryoo não se diferencia a propensão marginal a consumir em função de diferentes modalidades de renda, seja proveniente de salários, juros ou dividendos. Se considerarmos a função consumo de uma família em particular, essa suposição é bem plausível, porém, esta é uma função consumo agregada. Se é certo que é uma característica do capitalismo contemporâneo que cada vez mais rendas financeiras e ganhos de capital façam parte dos ganhos dos trabalhadores, essas fontes não se distribuem em proporções iguais entre os trabalhadores e muito menos entre trabalhadores e capitalistas (ou rentistas), portanto, é razoável supor que a propensão marginal a consumir em função de salários seja maior do que aquela em função de dividendos e juros (e também ganhos de capital)34 34 Considerando que os salários sejam uma fração mais significativa nas rendas familiares mais baixas e que as famílias possuam uma menor propensão a poupar quanto menor for sua renda, como é comum supor em diversas correntes e pensamento econômico. . Skott e Ryoo argumentam que o “caso normal” de Hein e van Treeck ocorre sob hipóteses implausíveis a respeito de parâmetros funcionais, porém aqui a hipótese de Skott e Ryoo parece ser a menos plausível. A suposição de mark-up elástico em relação aos lucros retidos, associada à hipótese de propensões marginais a consumir diferentes com relação a diferentes modalidades de renda, torna mais provável a obtenção do “caso normal”.

É importante lembrar que o aumento de Ld em Hein e van Treeck (2007)HEIN, E.; VAN TREECK, T. ‘Financialisation’ in Kaleckian/Post-Kaleckian models of distribution and growth. IMK Working Paper, v. 7, 2007. tem um duplo efeito negativo na função de acumulação: primeiramente por reduzir os fundos disponíveis para investimento (como em Skott; Ryoo). Já o segundo efeito deriva da suposição de que os lucros distribuídos representam uma proxy da distribuição de poder entre gerência e acionistas, sendo que quanto maior Ld, menor o poder da gerência; o que tem um efeito adicional negativo sobre o investimento por ser um constrangimento aos objetivos de crescimento da gerência. O argumento é relativamente fraco, pois nesse caso não estamos falando de fato do efeito de um aumento em Ld, mas de uma alteração na função de investimento das firmas, o que no modelo de Skott e Ryoo também produz um efeito negativo direto sobre o investimento. Essa alteração na função de investimento, porém, não acrescenta nenhum suporte formal para a argumentação de que o modo de governança voltado à maximização do “shareholder-value” seja prejudicial ao investimento (e crescimento) como os autores pretendem35 35 Argumentação compartilhada por Stockhammer (2004/2006), Lazonick e O’Sullivan (2000) e Aglietta e Breton (2001). . Pelo contrário, ela demonstra que, mesmo que haja de fato uma mudança no comportamento do investimento das firmas sob a forma de governança predominante no capitalismo contemporâneo, com a mudança no comportamento financeiro das firmas (o de distribuir maior parte dos lucros na forma de dividendos e financiar uma parcela menor do investimento via emissão de ações), é ainda possível a obtenção de um resultado expansionista.

Estas são as razões pelas quais as formulações kaleckianas de Skott e Ryoo e de Hein e van Treeck, à primeira vista tão similares, chegam a resultados diferentes.

O modelo de Lavoie (2008)LAVOIE, M. Financialisation issues in a Post-Keynesian stock-flow consistent model. Intervention, European Journal of Economics and Economic Policies, n. 5, 2008., conforme referido, apresenta muitas diferenças com relação aos demais, advindas não só de sua maior complexidade como da adoção da hipótese de força de trabalho constante; o produto depende do emprego da força de trabalho e da produtividade, que cresce a uma taxa constante. O modelo é o mesmo apresentado no capítulo 11 de Godley e Lavoie (2007)GODLEY, W.; LAVOIE, M. Monetary economics: an integrated approach to credit, money, income, production and wealth. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2007.; agregamos os resultados de alguns experimentos lá apresentados, pois são bastante esclarecedores quanto a características do modelo que não são percebidas apenas pela descrição dos ativos e passivos de cada setor, das transações entre estes e das equações comportamentais.

Godley e Lavoie (2007)GODLEY, W.; LAVOIE, M. Monetary economics: an integrated approach to credit, money, income, production and wealth. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2007. estudam um processo que resulta em um patamar inflacionário mais elevado, desencadeado pelo aumento da taxa de crescimento do salário real desejada pelos trabalhadores, com o consequente aumento dos preços pelas firmas, no intuito de manter a lucratividade desejada. A inflação, no modelo, exerce efeitos perniciosos sobre acumulação de capital e emprego. Há um efeito positivo sobre o investimento pela redução provocada no juro real, que consegue manter a acumulação quase à mesma taxa. Segundo os autores, a principal causa dos efeitos depressivos sobre emprego e produto é a redução do dispêndio real do governo com o financiamento de sua dívida, pois a inflação a reduz em termos reais, além de reduzir o juro real incidente sobre a mesma, que faz com que sua contribuição à demanda agregada se reduza; o experimento mostra como a presença do setor público no modelo pode influenciar seu comportamento. Caso o banco central eleve os juros nominais para manter o juro real constante, o efeito depressivo sobre renda e emprego permanece, agora devido também à desvalorização dos títulos de longo prazo (bonds) do governo, que reduz a riqueza das famílias e, consequentemente, o seu consumo. Além disso, os juros mais altos desviam a alocação da poupança das famílias da aquisição de ações, gerando sua desvalorização e diminuindo ainda mais a riqueza das famílias.

Por seu turno, a elevação no nível de gasto público em relação ao produto (e ao estoque de capital) mostrou-se capaz de ampliar permanentemente o emprego e a renda (normalizada pelo estoque de capital). As relações dívida-produto e déficit- produto, apesar de apresentarem aumento (sensível quanto ao segundo) no curto prazo, regridem aos níveis originais no longo prazo. No entanto, no caso de um aumento permanente do crescimento do gasto público acima do crescimento do produto, a situação das finanças públicas se deteriora dramaticamente, a despeito de qualquer esforço do banco central com relação à política monetária.

Os efeitos do aumento de r também são analisados na publicação de Godley e Lavoie de 2007GODLEY, W.; LAVOIE, M. Monetary economics: an integrated approach to credit, money, income, production and wealth. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2007.. Com a presença do setor público no modelo, o aumento de r sobre empréstimos às firmas pelos bancos comerciais pode ocorrer de mais de uma maneira: pode-se considerar que os bancos simplesmente aumentem o mark-up sobre a taxa de juros cobrada sobre os títulos públicos; alternativamente, o banco central pode, aplicando uma política monetária mais restritiva, aumentar os juros sobre os seus títulos levando ao aumento dos juros bancários, ativos e passivos. O resultado inicial do aumento de r é o normalmente esperado: emprego, consumo e renda caem. Essa queda se explica pelos efeitos diretos para investimento e consumo (lembrando que o modelo contempla crédito para consumo) e pela desvalorização dos títulos de longo prazo, que afeta negativamente a riqueza e o consumo das famílias. Porém, no longo prazo, emprego, consumo e renda se estabilizam em valores maiores que os iniciais. Isso se deve ao crescimento das despesas do governo com serviço de dívida pública, que tem efeito multiplicador sobre a economia. Enfim, o aumento de r mostrou ter um efeito positivo sobre a economia no longo prazo. O resultado, porém, como visto, se dá por razões diferentes daquelas que concorrem para o mesmo resultado no experimento no modelo de Lavoie e Godley (2002)GODLEY, W. ; LAVOIE, M. Kaleckian models of growth in a coherent stock-flow monetary framework: a Kaldorian view. Journal of Post Keynesian Economics, v. 24, n. 2, Winter, 2001-2002.: neste, o aumento da poupança estimulado pelos juros de fato acarreta maior acumulação por disponibilizar recursos para investimento e o paradoxo da poupança se apresenta como fenômeno apenas de curto prazo; no modelo de Lavoie (2008)LAVOIE, M. Financialisation issues in a Post-Keynesian stock-flow consistent model. Intervention, European Journal of Economics and Economic Policies, n. 5, 2008., com a presença do setor público, o que ocorre é um aumento do gasto público proporcionalmente à renda de modo que a demanda agregada alcance níveis maiores e recupere renda e emprego; o aumento da renda disponível das famílias eleva o consumo. A razão entre dívida pública e PIB cresce, porém se estabiliza no longo prazo, mesmo que a um nível maior do que o anterior; caso o governo buscasse tomar medidas para restringir o crescimento da razão dívida pública-renda, as consequências para emprego e renda seriam danosas no curto e longo prazo.

No artigo de 2008, Lavoie realiza dois dos experimentos sobre o modelo a respeito de alterações no comportamento das firmas relacionados à financeirização: a redução em ΔE e o aumento de Ld. O primeiro experimento supõe um aumento do mark-up pelas firmas, já que no modelo os empréstimos financiam essencialmente estoques e, apenas residualmente, investimento; assim, a redução em ΔE precisa ser compensada por um aumento nos lucros retidos. Como resultado a inflação acelera, dado que, com o aumento do mark-up, a demanda por aumentos nominais de salário por parte dos trabalhadores também sobe. O efeito sobre o emprego e consumo é extremamente negativo no curto prazo e o novo steady-state revela níveis de emprego e consumo também inferiores aos iniciais; a valorização das ações (aumento do preço real) é positiva e acentuada no curto prazo e se estabiliza a uma taxa maior do que a inicial. O efeito negativo sobre consumo e emprego é atribuído parcialmente à aceleração inflacionária decorrente do aumento do mark-up das firmas. Um modelo ligeiramente modificado, no qual o investimento fosse também financiado por empréstimos junto aos bancos comerciais como em Skott e Ryoo (2008)SKOTT, P.; RYOO, S. Financialization in Kaleckian economics: with and without labor constraints. Cambridge, Mass.: Department of Economics of University of Massachusetts, 2008. (Working Paper, n. 5). e, parcialmente, em Hein e van Treeck (2007)HEIN, E.; VAN TREECK, T. ‘Financialisation’ in Kaleckian/Post-Kaleckian models of distribution and growth. IMK Working Paper, v. 7, 2007., parece mais adequado para a realização desse experimento, pois o efeito de um aumento da proporção de investimentos financiada por empréstimos frente emissão de ações e consequente aumento na relação dívida-capital das firmas simula o processo de substituição de capital próprio por capital de terceiros que, de fato, caracteriza o capitalismo financeirizado.

O aumento de Ld gera efeitos semelhantes aos do primeiro experimento, mesmo porque se considerou também um aumento do mark-up e, consequentemente, há aceleração da inflação de salários e preços. Porém, neste caso, o efeito sobre produto, emprego e consumo no curto prazo é positivo, segundo o autor, por duas razões: primeiramente, porque o consumo das famílias aumenta pelos dividendos recebidos, em segundo, porque o aumento de Ld gera um processo de valorização no mercado de ações. Apesar disso, no longo prazo emprego, consumo e renda são menores que os iniciais.

São propostos dois experimentos relativos ao comportamento das famílias: um aumento no desejo de carregar ações e um aumento na razão entre novos empréstimos e renda corrente. O aumento da participação de ativos financeiros na composição da riqueza das famílias é um fato observado no capitalismo financeirizado à medida que a posse de ativos financeiros (direta ou indiretamente) tornou-se uma forma de alocação de poupança mais abrangente socialmente. Esse aumento na proporção de ações acarretou a redução da fração de outras formas de riqueza (no modelo, depósitos bancários). O aumento da demanda por ações provoca um aumento na relação entre preço e retorno das mesmas. Essa valorização no curto prazo é abrupta e cai posteriormente; porém, o nível se estabiliza em um valor mais alto do que o inicial. Consumo e renda crescem em função da valorização da riqueza, porém, no longo prazo consumo e renda são menores do que os iniciais. Essa queda se explica pelo aumento dos juros cobrados pelos bancos comerciais sobre empréstimos, pois foram obrigados a elevar a remuneração dos depósitos para atraí-los e recuperar a liquidez que perderam inicialmente pela redução dos depósitos36 36 A utilização de uma hipótese não horizontalista com respeito ao fornecimento de crédito então é importante para o resultado do experimento, lembrando em Lavoie e Godley (2002), a hipótese horizontalista está presente. . Os juros altos, por sua vez, reduzem o investimento. Caso houvesse uma redução da proporção de títulos do governo carregados pelas famílias no lugar de depósitos o efeito seria o inverso, pois a liquidez dos bancos aumentaria quando comprassem esses títulos e os juros cairiam favorecendo o investimento.

O segundo exercício consistiu no aumento da razão entre o crescimento líquido dos empréstimos e a renda disponível. Esta alteração pode ser tratada como uma mudança tanto na preferência das famílias como na facilidade de contrair dívidas junto aos bancos. De maneira similar ao que ocorre em Bhaduri et al. (2006)BHADURI, A., LASKI, K.; RIESE, M. A model of interaction between the virtual and the real economy. Metroeconomica, n. 57, 2006., o efeito expansivo sobre o consumo leva a um aumento da renda e emprego no curto prazo, porém, como o serviço da dívida restringe o consumo das famílias no longo prazo o efeito sobre a economia passa ser negativo e, como a razão entre dívida e renda se estabiliza em um patamar maior do que o inicial, renda e emprego se estabilizam em um nível menor. Outros setores da economia são atingidos de maneira curiosa: os bancos não enfrentam dificuldade em adequar a razão entre reservas e empréstimos; no caso do governo, a redução da poupança e o crescimento acelerado no curto prazo reduzem a razão entre déficit fiscal e PIB e dívida pública e PIB; porém, à medida que a situação se reverte no longo prazo, essas razões atingem valores maiores que os iniciais, resultado que é interessante para mostrar que o nível de endividamento do governo também depende de fatores fora do seu controle.

Quadro 3
Redução da taxa de lucros retidos
Quadro 4
Redução das emissões de ações
Quadro 5
Aumento dos juros

O modelo proposto em Le Heron (2009)LE HERON, E. Confidence, banking behavior and economic policy in post-keynesian stock-flow consistent model. In: COLÓQUIO Internacional: O Capitalismo com dominância financeira, Instituto de Economia, Unicamp, Campinas, 1-2 out. 2009., como descrito, possui algumas peculiaridades relevantes. Uma das mais importantes está no fato de as ações das firmas estarem nas mãos dos bancos, pois, como foi visto, desse modo nenhuma fração dos dividendos pagos pelas firmas é gasta com consumo. Assim, não é surpreendente que o efeito do aumento de Ld tenha um efeito negativo sobre u e g. Por outro lado, este aumento reduz a capacidade de autofinanciamento das firmas; como no modelo o risco do tomador é considerado na função de acumulação, a necessidade de buscar mais empréstimos para financiamento reduz o investimento desejado pelas firmas; finalmente, como o risco do emprestador também é considerado, a restrição de crédito pelos bancos pode reduzir ainda mais o investimento. O mecanismo pelo qual a distribuição de dividendos poderia determinar um crescimento mais acelerado seria aparentemente um aumento da participação das emissões de ações no financiamento do investimento possibilitado pela valorização das ações em função do próprio aumento dos dividendos pagos37 37 Porém, os trabalhos empíricos de Kripner (2005) e Stockhammer (2006) mostram que nas últimas décadas a contribuição proporcional de emissões de ações para o investimento na verdade caiu. . Os dividendos seriam reciclados pelos bancos na compra de ações, porém, seria necessário que a necessidade de financiamento por empréstimos por parte das firmas não subisse de modo a afetar negativamente o investimento desejado e nem a provocar uma restrição do crédito pelos bancos.

O resultado do aumento dos juros praticados pelo banco central sobre o crescimento também foi negativo38 38 O autor não menciona o ocorre com a utilização da capacidade; provavelmente a omissão significa que o efeito sobre a utilização da capacidade foi também negativo. : a elevação dos juros sobre os títulos públicos provoca o aumento dos juros sobre empréstimos e sobre depósitos; o primeiro surte efeito direto negativo sobre g e o segundo, efeito positivo sobre a renda e, consequentemente, sobre a riqueza das famílias, estimulando o consumo. O efeito negativo prevalecer sobre o positivo pode derivar dos valores dados às variáveis e parâmetros, porém, como no experimento anterior, há a questão da necessidade de aumento da alavancagem das firmas, o que pode restringir o investimento desejado das firmas ou o crédito fornecido pelos bancos. Resta mencionar que os efeitos negativos sobre u e emprego são mais acentuados em ambos os experimentos quando se considera o modelo de política econômica mais conservador entre os dois propostos pelo autor no artigo (conforme descrito na seção que trata do setor público nos modelos); pelo próprio fato desta política provocar um efeito depressor maior sobre a economia a alavancagem das firmas sofre menor elevação.

Considerações finais

Comecemos essas considerações por um truísmo. Nenhum modelo é - ou será - capaz de dar conta da dinâmica do capitalismo contemporâneo. A financeirização, como afirma Guttmann (2008, p. 15)GUTTMANN, R. Uma introdução ao capitalismo dirigido pelas finanças. Trad. de Hélio de Mello Filho. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, N. 82, nov. 2008., é “um processo complexo que abrange muitas e diferentes facetas”39 39 De forma mais agnóstica, Skott e Ryoo (2008, p. 254) escrevem que, embora o termo “financeirização” seja uma conveniente expressão taquigráfica para as transformações dos últimos 30 anos, tais “desenvolvimentos podem não possuir a coerência e a unidade sugeridas pelo termo e podem não assinalar a transição a um novo regime”. . A modelagem, porém, “tipicamente exige um indicador representativo bastante simplificado e facilmente quantificável da financeirização (por exemplo, a taxa de pagamento de dividendos), que trate toda a complexidade do fenômeno de uma forma muitíssimo compactada” (id. ibid.).

Quer isso dizer que a modelagem (mesmo quando realizada sob a disciplina da metodologia SFC, que minimiza a possibilidade de deslizes lógicos) deva ser desprezada como uma estratégia simplista? É interessante lembrar que representantes do projeto regulacionista, que apresenta uma das interpretações mais abrangentes da financeirização, procuraram formalizar alguns de seus argumentos (ver Boyer, 2000BOYER, R. Is a finance-led growth regime a viable alternative to Fordism: a preliminary analysis. Economy and Society, v. 29, n. 1, 2000.). Esse esforço de formalização por parte dos regulacionistas, talvez realizado no intuito de estabelecer um maior diálogo com outras correntes heterodoxas, mostrou algumas fragilidades, apontadas, entre outros, por Skott e Ryoo (2008)SKOTT, P.; RYOO, S. Financialization in Kaleckian economics: with and without labor constraints. Cambridge, Mass.: Department of Economics of University of Massachusetts, 2008. (Working Paper, n. 5)., Hein e van Treeck (2007)HEIN, E.; VAN TREECK, T. ‘Financialisation’ in Kaleckian/Post-Kaleckian models of distribution and growth. IMK Working Paper, v. 7, 2007. e Dos Santos e Macedo e Silva (2009)DOS SANTOS, C. H.; MACEDO E SILVA, A. C. Revisiting (and connecting) Marglin-Bhaduri and Minsky: a SFC look at financialization and profit-led growth. Campinas: Unicamp. IE, mar. 2009. (Texto para discussão, IE/Unicamp, n. 158)..

A abordagem SFC, a nosso juízo, permite uma investigação mais rigorosa do que os esforços, mais parciais, de autores como Aglietta e Breton (2001)AGLIETTA, M.; BRETON, R. Financial systems, corporate control and capital accumulation. Economy and Society, v. 30, n. 4, 2001., Stockhammer (2004-6)STOCKHAMMER, E. Financialisation and the slowdown of accumulation. Cambridge Journal of Economics, n. 28, 2004. e Boyer (2000)BOYER, R. Is a finance-led growth regime a viable alternative to Fordism: a preliminary analysis. Economy and Society, v. 29, n. 1, 2000.. Assim, só podemos concordar com Guttmann, quando estima que a abordagem SFC foi capaz de gerar “insights valiosos com relação à dinâmica de crescimento do capitalismo dirigido pelas finanças” (id. ibid.). Ora, permitir a exposição clara dos argumentos e gerar insights estão entre as principais ambições da análise formal heterodoxa, que de forma alguma pretende substituir análises literárias ou empíricas. E insights, de fato, foram gerados.

Não há uma convergência completa nas conclusões obtidas a partir dos modelos propostos nos diversos trabalhos estudados - e seria muito surpreendente se houvesse. Contribui para isso, antes de tudo, a própria complexidade do fenômeno em tela, que pode ser definido e abordado de diversas formas e recorrendo a diferentes hipóteses. Essas diferenças entre as hipóteses refletem, por sua vez, a existência de divergências teóricas, além das escolhas e da destreza de cada pesquisador no manejo da navalha de Occam. A matriz de possibilidades é imensa. A discussão realizada nesse artigo revela, ao menos, a flexibilidade da abordagem SFC no tratamento de fenômenos complexos, bem como seu potencial como plataforma para o diálogo entre as vertentes heterodoxas. Exemplar, desse ponto de vista, é Skott e Ryoo (2008)SKOTT, P.; RYOO, S. Financialization in Kaleckian economics: with and without labor constraints. Cambridge, Mass.: Department of Economics of University of Massachusetts, 2008. (Working Paper, n. 5)., no qual são apresentadas variantes do modelo em relação às características da oferta de mão-de-obra, da função de acumulação e da alocação de portfólio por parte das famílias.

O fato de que um mesmo modelo possa gerar diferentes regimes40 40 Como já previam Boyer (2002) e Stockhammer (2006). apenas confirma o esperado, quando se tem em vista que isso já ocorre em modelos neo- kaleckianos muito mais simples (como em Marglin e Bhaduri). A depender dos valores de certos parâmetros e variáveis exógenas, a financeirização gera trajetórias muito diferentes nos modelos de Lavoie e Godley (2002)GODLEY, W. ; LAVOIE, M. Kaleckian models of growth in a coherent stock-flow monetary framework: a Kaldorian view. Journal of Post Keynesian Economics, v. 24, n. 2, Winter, 2001-2002., Skott e Ryoo (2008)SKOTT, P.; RYOO, S. Financialization in Kaleckian economics: with and without labor constraints. Cambridge, Mass.: Department of Economics of University of Massachusetts, 2008. (Working Paper, n. 5)., Hein e van Treeck (2007)HEIN, E.; VAN TREECK, T. ‘Financialisation’ in Kaleckian/Post-Kaleckian models of distribution and growth. IMK Working Paper, v. 7, 2007. e van Treeck (2009)VAN TREECK, T. A synthetic stock-flow consistent macroeconomic model of financialisation. Cambridge Journal of Economics, n.3 3, May 2009.. Tampouco seria surpreendente que variações desses valores pudessem revelar a presença de diferentes regimes também em Le Heron (2009)LE HERON, E. Confidence, banking behavior and economic policy in post-keynesian stock-flow consistent model. In: COLÓQUIO Internacional: O Capitalismo com dominância financeira, Instituto de Economia, Unicamp, Campinas, 1-2 out. 2009. e Lavoie (2008)LAVOIE, M. Financialisation issues in a Post-Keynesian stock-flow consistent model. Intervention, European Journal of Economics and Economic Policies, n. 5, 2008..

Um denominador comum dos modelos tratados diz respeito à alavancagem do sistema: em quase todos os casos a financeirização determina maior grau de endividamento por parte das firmas, de modo que, mesmo em casos em que se observam efeitos positivos sobre crescimento e emprego, a fragilidade financeira das firmas aumenta41 41 De fato, o maior endividamento das firmas é um fenômeno que está contemplado na análise empírica em Kripner (2005). . Em Le Heron (2009)LE HERON, E. Confidence, banking behavior and economic policy in post-keynesian stock-flow consistent model. In: COLÓQUIO Internacional: O Capitalismo com dominância financeira, Instituto de Economia, Unicamp, Campinas, 1-2 out. 2009., como descrito, a alavancagem das firmas decorrente de uma aceleração do investimento pode acarretar uma restrição ao crédito em função do aumento na percepção de risco por parte dos bancos, o que pode precipitar uma recessão. Algo semelhante é apresentado em Dos Santos e Macedo e Silva (2008), que procuram simular um processo minskiano de expansão, fragilização e crise.

Cabe observar, ainda a respeito do endividamento das firmas nos modelos, que a possibilidade de emergência de regimes virtuosos a partir da financeirização nos modelos também depende do tratamento da oferta de crédito para as firmas: a hipótese horizontalista favorece regimes virtuosos; já a restrição ao endividamento das firmas, tanto pela demanda quanto pela oferta, opera no sentido oposto (Le Heron, 2009LE HERON, E. Confidence, banking behavior and economic policy in post-keynesian stock-flow consistent model. In: COLÓQUIO Internacional: O Capitalismo com dominância financeira, Instituto de Economia, Unicamp, Campinas, 1-2 out. 2009. e Lavoie, 2008LAVOIE, M. Financialisation issues in a Post-Keynesian stock-flow consistent model. Intervention, European Journal of Economics and Economic Policies, n. 5, 2008.).

Entretanto, é forçoso reconhecer que o potencial da abordagem SFC para representar fenômenos relativos à financeirização não parece ter sido explorado totalmente, pois, como vimos, a atenção dos autores estudados se voltou essencialmente para a análise do comportamento das firmas com respeito à emissão de ações e distribuição de dividendos.

Entre os pontos insuficientemente estudados, estão os mecanismos do crédito e sua articulação à hipótese da instabilidade financeira. Somente no modelo de Le Heron (2009)LE HERON, E. Confidence, banking behavior and economic policy in post-keynesian stock-flow consistent model. In: COLÓQUIO Internacional: O Capitalismo com dominância financeira, Instituto de Economia, Unicamp, Campinas, 1-2 out. 2009. está presente explicitamente o mecanismo pelo qual a valorização bursátil das firmas favorece seu acesso ao crédito, permitindo a ampliação do investimento42 42 Embora o a presença do q de Tobin na função de investimento possa ser uma maneira implícita de se considerar esse processo, como comentam Lavoie e Godley (2002). . Somente em van Treeck (2009)VAN TREECK, T. A synthetic stock-flow consistent macroeconomic model of financialisation. Cambridge Journal of Economics, n.3 3, May 2009. e em Lavoie (2008)LAVOIE, M. Financialisation issues in a Post-Keynesian stock-flow consistent model. Intervention, European Journal of Economics and Economic Policies, n. 5, 2008. o crédito ao consumidor está presente; embora o primeiro associe o crédito à riqueza financeira das famílias, não propõe nenhum experimento que explore a ampliação do crédito ao consumo. Nenhum dos artigos explicita o investimento em imóveis (e muito menos a complexa e obscura institucionalidade financeira que, nos Estados Unidos, financiou a bolha imobiliária)43 43 Essas duas últimas lacunas são reveladoras do hábito keynesiano de buscar a origem de toda a dinâmica econômica no investimento realizado pelas firmas no intuito de manter ou criar capacidade produtiva. Há, porém, boas razões (além da postura cética apropriada à investigação científica) para duvidar que essa fração da formação bruta de capital fixo seja invariavelmente a “causa causans” (Keynes, 1937). Vários autores heterodoxos - inclusive pós-keynesianos (ver Fiebiger, no prelo, e Fiebiger e Lavoie, no prelo) e sraffianos (ver Serrano, 1995) têm explorado outras possibilidades. Há, de fato, evidências de que, ao menos nos Estados Unidos, as oscilações cíclicas são lideradas pelo investimento residencial e pelo consumo de duráveis - gastos fortemente afetados pelas condições financeiras (ver Leamer, 2009; Fiebiger, 2017). .

Outra completa omissão diz respeito às aplicações em ativos financeiros por parte das firmas produtivas (embora recompras de ações pelas firmas possam ser contempladas sem maiores complicações). Não é difícil incorporar aos modelos uma escolha de portfólio mais sofisticada por parte das firmas; mais complicada seria a elaboração de modelos multisetoriais, o que permitiria a representação de transações entre as firmas.

Os modelos têm se concentrado na análise de economias fechadas quando uma das características fundamentais do capitalismo atual é a mobilidade intensa de capitais no plano internacional. Mas tampouco é impossível elaborar modelos de economia aberta, como demonstram (entre outros) os exemplos de Godley e Lavoie (2007)GODLEY, W.; LAVOIE, M. Monetary economics: an integrated approach to credit, money, income, production and wealth. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2007. e Mazier (2009)MAZIER, J.; ALITI, G. T. T. World imbalances, exchange rates and macroeconomic adjustments: a stock flow consistent approach. In: COLÓQUIO Internacional: O Capitalismo com dominância financeira, Instituto de Economia, Unicamp, Campinas, 1-2 out. 2009..

A metodologia SFC, de fato, não impõe limites ao grau de realismo dos modelos44 44 Para um survey mais amplo dos resultados obtidos pela vertente, ver Caversazi e Godin (2015). . Porém, nem sempre mais (realismo) é melhor. O aumento da complexidade torna imperativo o uso de simulações numéricas. E estas, como admite Lavoie (2008)LAVOIE, M. Financialisation issues in a Post-Keynesian stock-flow consistent model. Intervention, European Journal of Economics and Economic Policies, n. 5, 2008., têm como inconveniente o fato de que as trajetórias passam a depender crucialmente dos valores dos parâmetros, nem sempre estimados com base em informações empíricas (pois estas podem não existir). Maior o realismo, mais complexo, menos transparente e mais dependente da calibragem será o modelo. Por essa razão, acreditamos que a exploração de modelos mais simples (justamente a proposta de Dos Santos; Zezza, 2008DOS SANTOS, C. H. dos; ZEZZA, G. A simplified Stock-Flow Consistent post-Keynesian growth model. Metroeconomica, v. 59, p. 441-478, 2008.) ainda pode ser interessante, uma vez que permite soluções analíticas mais robustas e inteligíveis45 45 A nosso ver, porém, as soluções numéricas são úteis: não apenas tornam mais fácil a compreensão da trajetória rumo ao steady state (i.e., supondo que o modelo produza esse tipo de trajetória), mas algumas vezes revelam que resultados algebricamente possíveis só o são mediante a atribuição de valores irrealistas para variáveis e parâmetros. .

Deixamos para o final uma observação que, a nosso juízo, é de grande importância. O estudo da dinâmica das economias capitalistas deve conter - mas não se contentar com - a descrição da configuração de steady state. A ressalva aqui não se baseia na desconfiança que muitos economistas heterodoxos nutrem em relação à utilidade de um steady state que nós, pós-keynesianos, sabemos que jamais será atingido. Por razões que aqui não cabe elaborar, achamos que a descrição dessas configurações pode, sim, ser muito esclarecedora (ver, a respeito, Macedo e Silva; dos Santos, 2011MACEDO E SILVA, A. C.; Dos SANTOS, C. H. Peering over the edge of the short period: the Keynesian roots of Stock-Flow Consistent macroeconomic models. Cambridge Journal of Economics, v. 35, n. 1, 2011.). Nossa tese, aqui, é que o esforço SFC deve analisar com mais cuidado o que está além do curto prazo e aquém do longo (ainda que, muitas vezes, o steady state dos modelos SFC não possa ser rigorosamente qualificado como correspondente ao longo prazo, dadas as hipóteses usuais de ausência de progresso técnico e de oferta ilimitada de mão de obra). Talvez a virtude nem sempre esteja no meio. No caso, porém, o desafio está realmente no desenvolvimento de análises de médio prazo nas quais sistemas SFC que incorporem uma dose manejável de elementos realistas tenham a liberdade até mesmo de revelar trajetórias explosivas (ou de ter sua convergência ao steady state obstaculizada pela existência de thresholds)46 46 Esses thresholds, como sugerem Dos Santos e Macedo e Silva (2009) podem expressar a avaliação pelos agentes da fragilidade financeira (da própria e daquela dos demais segmentos por eles tidos em conta), bem como o segmento confortável da utilização da capacidade - o que possibilitaria uma maior aproximação entre as abordagens kaleckiana e harrodiana (ou sraffiana). Para uma primeira tentativa de apresentar o supermultiplicador sraffiano com base em um aparato SFC, ver Brochier e Macedo e Silva (s.d.). . Afinal, se uma coisa caracteriza o capitalismo contemporâneo é a recorrência de crises - e o que são as crises senão a consequência (e a interrupção, mais ou menos dolorosa) de trajetórias em algum sentido insustentáveis? Não estão essas trajetórias entre as mais importantes causas das mudanças nas políticas econômicas, nas estratégias dos agentes e mesmo na institucionalidade?

  • JEL E12, B50.
  • 1
    A mais citada definição de financeirização parece ser a de Epstein (2005, p. 3)EPSTEIN, G. A. Introduction. In: EPSTEIN, G. A. Financialization and the world economy. Cheltenham: Edward Elgar, 2005., que remete ao “papel crescente dos motivos financeiros, dos mercados financeiros, dos atores financeiros e das instituições financeiras na operação das economias domésticas e internacional”.
  • 2
    Com a exceção, é claro, dos períodos em que se deve enfrentar ou mitigar os efeitos das recorrentes crises financeiras - de que é exemplo notável a década transcorrida após a crise de 2007-2008.
  • 3
    Resolvendo assim o paradoxo dos regimes de “lucros sem investimento”, originado da literatura de natureza mais descritiva que relatava como implicações da financeirização a desaceleração do investimento e o aumento das taxas de lucro (juntamente com o aumento da razão entre lucros financeiros e lucros totais), sem perceber - dada a ausência de uma reflexão macroeconômica mais rigorosa - a possível contradição (kaleckiana) entre o comportamento do investimento e da taxa de lucros. Para uma rigorosa análise da literatura informal sobre a financeirização, acompanhada da ardente defesa da utilidade da reflexão macroeconômica, ver Treeck (2008)VAN TREECK, T. The political economy debate on ‘financialisation’ - a macroeconomic perspective. IMK Working Paper, n. 1, 2008.; as vicissitudes da passagem do micro ao macro são também discutidas por Stockhammer (2004STOCKHAMMER, E. Financialisation and the slowdown of accumulation. Cambridge Journal of Economics, n. 28, 2004., 2005-2006)STOCKHAMMER, E. Shareholder value orientation and the investment-profit puzzle. Journal of Post Keynesian Economics, n. 28, 2005-2006..
  • 4
    A razão entre o valor de mercado das firmas e o custo de reposição do equipamento - ou entre preço de demanda e preço de oferta, como no capítulo 12 da Teoria Geral (Keynes, 1936) - foi aventada como um determinante do investimento por Kaldor, em 1966, e por Brainard e Tobin, dois anos depois (Lavoie, 2014LAVOIE, M. Post-Keynesian economics: new foundations. Cheltenham: Edward Elgar, 2014.). Para um breve (e pouco otimista) balanço sobre a variável, ver (por exemplo) van Treeck (2009)VAN TREECK, T. A synthetic stock-flow consistent macroeconomic model of financialisation. Cambridge Journal of Economics, n.3 3, May 2009..
  • 5
    Naturalmente, é possível argumentar que, no capitalismo, as finanças sempre desempenham papel de relevo. É exatamente por essa razão que Dos Santos e Macedo e Silva (2009)DOS SANTOS, C. H.; MACEDO E SILVA, A. C. Revisiting (and connecting) Marglin-Bhaduri and Minsky: a SFC look at financialization and profit-led growth. Campinas: Unicamp. IE, mar. 2009. (Texto para discussão, IE/Unicamp, n. 158). questionam a adequação de modelos reais (como os de Marglin; Bhaduri) ou que incorporem de forma truncada somente algumas variáveis financeiras (como Boyer, 2000BOYER, R. Is a finance-led growth regime a viable alternative to Fordism: a preliminary analysis. Economy and Society, v. 29, n. 1, 2000.) para análises que pretendam ir além do curto prazo.
  • 6
    Vale dizer, estuda-se o comportamento de variáveis como produto e emprego em steady-state. A abordagem SFC certamente é compatível com a visão de Kalecki, para quem o longo prazo não era senão o resultado de uma sucessão de “curtos prazos”. O estudo das flutuações cíclicas e crises associadas à financeirização é, no entanto, um campo ainda pouco explorado pela literatura.
  • 7
    Como veremos, as hipóteses quanto ao crédito bancário e à oferta de mão-de-obra são também cruciais.
  • 8
    Na impossibilidade de reproduzir todas as equações de todos autores, selecionamos aquelas que nos pareceram mais interessantes e/ou mais úteis para a compreensão das tabelas.
  • 9
    Não só pelas semelhanças entre o q e a razão entre preço de demanda e preço de oferta, discutida por Keynes na Teoria Geral e depois retrabalhada por Davidson e Minsky, mas também porque não há nada de intrinsecamente neoclássico na ideia de que as decisões dos agentes quanto a suas aplicações financeiras (e que, sob hipóteses simplificadoras, dizem respeito não a seu estoque total de riqueza mas à sua poupança) ... importam.
  • 10
    Na atual fase do capitalismo, em que a emissão líquida de ações é frequentemente negativa, a existência de um efeito positivo do q sobre o investimento é ainda mais discutível (Hein; van Treeck, 2008HEIN, E.; VAN TREECK, T. ‘Financialisation’ in a comparative static, stock-flow consistent post-Kaleckian distribution and growth model. IMK Working Paper, v. 21, 2008., p. 12).
  • 11
    Skott e Ryoo argumentam, com razão, que, nos modelos com oferta de trabalho infinitamente elástica, o desemprego não pode ser definido de forma rigorosa (como a razão entre trabalhadores desempregados e população economicamente ativa).
  • 12
    Em Hein e van Treeck (2007)HEIN, E.; VAN TREECK, T. ‘Financialisation’ in Kaleckian/Post-Kaleckian models of distribution and growth. IMK Working Paper, v. 7, 2007. e van Treeck (2009)VAN TREECK, T. A synthetic stock-flow consistent macroeconomic model of financialisation. Cambridge Journal of Economics, n.3 3, May 2009., não há inflação, logo, esse aumento do mark-up necessariamente implica uma redução dos salários. Em Lavoie (2008)LAVOIE, M. Financialisation issues in a Post-Keynesian stock-flow consistent model. Intervention, European Journal of Economics and Economic Policies, n. 5, 2008., a aceleração inflacionária é que reduz o salário real.
  • 13
    Mesmo (e particularmente) em imóveis. Obviamente, nenhum desses modelos tem por propósito a explicação da bolha imobiliária norte-americana.
  • 14
    Em Godley e Lavoie (2007, capítulo 11)GODLEY, W.; LAVOIE, M. Monetary economics: an integrated approach to credit, money, income, production and wealth. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2007., em que é apresentado o mesmo modelo, propõem-se formas de tornar a taxa endógena com funções de reação do Banco Central que levam em consideração a inflação e nível de emprego.
  • 15
    No modelo, os bancos retêm parte dos seus lucros para fazer frente a perdas decorrentes de empréstimos não pagos, constituindo um fundo que é, porém, de propriedade das famílias, como as ações das empresas.
  • 16
    O subscrito significa que é considerado o volume de depósitos do período anterior.
  • 17
    Em Lavoie (2008)LAVOIE, M. Financialisation issues in a Post-Keynesian stock-flow consistent model. Intervention, European Journal of Economics and Economic Policies, n. 5, 2008., o imposto é cobrado sobre a renda. Em Le Heron (2009)LE HERON, E. Confidence, banking behavior and economic policy in post-keynesian stock-flow consistent model. In: COLÓQUIO Internacional: O Capitalismo com dominância financeira, Instituto de Economia, Unicamp, Campinas, 1-2 out. 2009., os salários são a única renda tributada, sendo que os dividendos das firmas são pagos aos bancos, que acumulam fundos e não pagam impostos.
  • 18
    No modelo de van Treeck (2009)VAN TREECK, T. A synthetic stock-flow consistent macroeconomic model of financialisation. Cambridge Journal of Economics, n.3 3, May 2009. os balanços de rentistas e trabalhadores se encontram explicitamente separados. Já em Hein e van Treeck (2007) (como em Dos Santos e Zezza, entre muitos outros textos da tradição SFC), a distinção de classes está implícita no fato de toda a renda de salários ser consumida, enquanto que a poupança privada é a soma dos lucros retidos pelas firmas com a poupança de parte dos juros pagos e dividendos distribuídos que caracterizam a renda capitalista ou rentista.
  • 19
    Entretanto, considera propensões marginais a poupar diferentes com respeito à renda de salários e aos juros sobre depósitos, procurando inserir um certo comportamento de classe com respeito à poupança. Lavoie e Godley (2002)GODLEY, W. ; LAVOIE, M. Kaleckian models of growth in a coherent stock-flow monetary framework: a Kaldorian view. Journal of Post Keynesian Economics, v. 24, n. 2, Winter, 2001-2002. admitem uma propensão a consumir igual para as diversas modalidades de renda (dividendos, juros e salários), porém supõem, em linha com a evidência empírica, uma propensão marginal a consumir menor com respeito a ganhos de capital.
  • 20
    Uma observação atenta do Quadro 1 registrará que os bancos jamais investem. Aqui se trata, acreditamos, de uma inverdade completamente perdoável: afinal, nenhuma teoria dá qualquer atenção aos suntuosos investimentos imobiliários das instituições financeiras...
  • 21
    A exceção é o modelo de Le Heron (2009)LE HERON, E. Confidence, banking behavior and economic policy in post-keynesian stock-flow consistent model. In: COLÓQUIO Internacional: O Capitalismo com dominância financeira, Instituto de Economia, Unicamp, Campinas, 1-2 out. 2009. no qual os lucros são retidos pelos bancos na sua totalidade.
  • 22
    A oferta perfeitamente elástica de crédito pelos bancos também significa que não há exigência de reservas pelos bancos centrais ou que essas exigências não são capazes de induzir os bancos a alterar as taxas cobradas sobre empréstimos.
  • 23
    Vale dizer, apesar de os bancos terem necessidade de observar a proporção entre depósitos e títulos do governo que possuem, a quantidade de moeda na economia continua sendo endógena.
  • 24
    Os de curto prazo sobre CP não levam lr em consideração.
  • 25
    E de consumidores, como foi o caso nos Estados Unidos da segunda metade da década de 1990 até a crise que eclodiu em 2008.
  • 26
    Também em modelos onde os bancos não auferem lucros, mas a taxa de juros sobre depósitos e empréstimos é a mesma, um aumento nos juros reduz os lucros retidos nas firmas e os juros pagos terminam nas mãos das famílias como remuneração de seus depósitos; o resultado é equivalente (Lavoie; Godley, 2002GODLEY, W. ; LAVOIE, M. Kaleckian models of growth in a coherent stock-flow monetary framework: a Kaldorian view. Journal of Post Keynesian Economics, v. 24, n. 2, Winter, 2001-2002.).
  • 27
    Equivalente à taxa de crescimento no steady-state.
  • 28
    Com o grau de utilização elevado e uma margem de lucro sobre salários constante dada pelo mark-up, a razão entre lucros e capital fixo também se eleva.
  • 29
    Como se viu anteriormente, o artigo examina duas variantes da função de acumulação. Entretanto, os resultados utilizando ambas as funções não mostram diferenças qualitativas.
  • 30
    Cabe observar que, ao simular o modelo numericamente, constatamos que, para parte significativa das combinações dos valores dos parâmetros, a ocorrência do regime virtuoso (puzzling) requer um uso da capacidade produtiva maior do que a unidade, o que pode ser interpretado como uma restrição “pelo lado da oferta” que não é perceptível na solução analítica do modelo.
  • 31
    Os autores associam o regime de “lucros sem investimento” ao período tardio da década de 1980 na economia americana. Neste período os lucros vinham se recuperando após a crise do começo da década, mas a taxa de investimento continuava deprimida. Notam ainda que um regime deste tipo enfrentaria problemas quanto à evolução da produtividade, o que traria problemas de inflação e crescimento, apesar do avanço da produtividade não ser contemplado pelo modelo.
  • 32
    Como em Lavoie e Godley (2002)GODLEY, W. ; LAVOIE, M. Kaleckian models of growth in a coherent stock-flow monetary framework: a Kaldorian view. Journal of Post Keynesian Economics, v. 24, n. 2, Winter, 2001-2002., o aumento dos custos financeiros para as firmas provoca no curto prazo quedas em g, na taxa de lucro e em u.
  • 33
    Os autores consideram que esse segundo caso o mais plausível.
  • 34
    Considerando que os salários sejam uma fração mais significativa nas rendas familiares mais baixas e que as famílias possuam uma menor propensão a poupar quanto menor for sua renda, como é comum supor em diversas correntes e pensamento econômico.
  • 35
    Argumentação compartilhada por Stockhammer (2004/2006), Lazonick e O’Sullivan (2000)LAZONICK, W.; O’SULLIVAN, M. Maximizing shareholder value: a new ideology for corporate governance. Economy and Society, v. 1, n. 29, 2000. e Aglietta e Breton (2001)AGLIETTA, M.; BRETON, R. Financial systems, corporate control and capital accumulation. Economy and Society, v. 30, n. 4, 2001..
  • 36
    A utilização de uma hipótese não horizontalista com respeito ao fornecimento de crédito então é importante para o resultado do experimento, lembrando em Lavoie e Godley (2002)GODLEY, W. ; LAVOIE, M. Kaleckian models of growth in a coherent stock-flow monetary framework: a Kaldorian view. Journal of Post Keynesian Economics, v. 24, n. 2, Winter, 2001-2002., a hipótese horizontalista está presente.
  • 37
    Porém, os trabalhos empíricos de Kripner (2005) e Stockhammer (2006)STOCKHAMMER, E. Shareholder value orientation and the investment-profit puzzle. Journal of Post Keynesian Economics, n. 28, 2005-2006. mostram que nas últimas décadas a contribuição proporcional de emissões de ações para o investimento na verdade caiu.
  • 38
    O autor não menciona o ocorre com a utilização da capacidade; provavelmente a omissão significa que o efeito sobre a utilização da capacidade foi também negativo.
  • 39
    De forma mais agnóstica, Skott e Ryoo (2008, p. 254)SKOTT, P.; RYOO, S. Macroeconomic implications of financialisation. Cambridge Journal of Economics, n. 32, Apr. 2008. escrevem que, embora o termo “financeirização” seja uma conveniente expressão taquigráfica para as transformações dos últimos 30 anos, tais “desenvolvimentos podem não possuir a coerência e a unidade sugeridas pelo termo e podem não assinalar a transição a um novo regime”.
  • 40
    Como já previam Boyer (2002) e Stockhammer (2006)STOCKHAMMER, E. Shareholder value orientation and the investment-profit puzzle. Journal of Post Keynesian Economics, n. 28, 2005-2006..
  • 41
    De fato, o maior endividamento das firmas é um fenômeno que está contemplado na análise empírica em Kripner (2005).
  • 42
    Embora o a presença do q de Tobin na função de investimento possa ser uma maneira implícita de se considerar esse processo, como comentam Lavoie e Godley (2002)GODLEY, W. ; LAVOIE, M. Kaleckian models of growth in a coherent stock-flow monetary framework: a Kaldorian view. Journal of Post Keynesian Economics, v. 24, n. 2, Winter, 2001-2002..
  • 43
    Essas duas últimas lacunas são reveladoras do hábito keynesiano de buscar a origem de toda a dinâmica econômica no investimento realizado pelas firmas no intuito de manter ou criar capacidade produtiva. Há, porém, boas razões (além da postura cética apropriada à investigação científica) para duvidar que essa fração da formação bruta de capital fixo seja invariavelmente a “causa causans” (Keynes, 1937KEYNES, J. M. The General Theory of Employment, Interest and Money. London: Macmillan. 1937. v. VII.). Vários autores heterodoxos - inclusive pós-keynesianos (ver Fiebiger, no prelo, e Fiebiger e Lavoie, no prelo) e sraffianos (ver Serrano, 1995SERRANO, F. Long period effective demand and the Sraffian supermultiplier. Contributions to Political Economy, v. 14, n. 1, p. 67-90, 1995) têm explorado outras possibilidades. Há, de fato, evidências de que, ao menos nos Estados Unidos, as oscilações cíclicas são lideradas pelo investimento residencial e pelo consumo de duráveis - gastos fortemente afetados pelas condições financeiras (ver Leamer, 2009LEAMER, E. E. Macroeconomic patterns and stories. Berlin: Springer-Verlag, 2009.; Fiebiger, 2017FIEBIGER, B.; LAVOIE, M. Trend and business cycles with external markets: non-capacity generating semi-autonomous expenditures and effective demand. Metroeconomica, 2017. Disponível em: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/meca.12192/full#references.
    http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.11...
    ).
  • 44
    Para um survey mais amplo dos resultados obtidos pela vertente, ver Caversazi e Godin (2015)CAVERSAZI, E.; GODIN, A. Post-Keynesian stock-flow-consistent modelling: a survey. Cambridge Journal of Economics, v. 39, p. 157-187, 2015..
  • 45
    A nosso ver, porém, as soluções numéricas são úteis: não apenas tornam mais fácil a compreensão da trajetória rumo ao steady state (i.e., supondo que o modelo produza esse tipo de trajetória), mas algumas vezes revelam que resultados algebricamente possíveis só o são mediante a atribuição de valores irrealistas para variáveis e parâmetros.
  • 46
    Esses thresholds, como sugerem Dos Santos e Macedo e Silva (2009)DOS SANTOS, C. H.; MACEDO E SILVA, A. C. Revisiting (and connecting) Marglin-Bhaduri and Minsky: a SFC look at financialization and profit-led growth. Campinas: Unicamp. IE, mar. 2009. (Texto para discussão, IE/Unicamp, n. 158). podem expressar a avaliação pelos agentes da fragilidade financeira (da própria e daquela dos demais segmentos por eles tidos em conta), bem como o segmento confortável da utilização da capacidade - o que possibilitaria uma maior aproximação entre as abordagens kaleckiana e harrodiana (ou sraffiana). Para uma primeira tentativa de apresentar o supermultiplicador sraffiano com base em um aparato SFC, ver Brochier e Macedo e Silva (s.d.).

Os autores agradecem as sugestões de Claudio Hamilton Matos dos Santos e do parecerista anônimo de Economia e Sociedade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    11 Abr 2017
  • Aceito
    18 Set 2017
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