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A discussão acerca da oferta de trabalho e dos salários nominais na Teoria Geral: novos caminhos?

The controversy about labour supply and monetary wages in General Theory: new ways?

Resumo

O artigo tem como objetivo central defender a ideia de que a plena aceitação do princípio da demanda efetiva é dificultada pelos parcos desenvolvimentos de uma função oferta de trabalho capaz de gerar resultados tipicamente keynesianos, ainda quando alicerçada em microfundamentos comportamentais de otimização. Identifica ainda no modelo de Hoover (1995) o melhor caminho disponível para fazer avançar uma agenda de pesquisas neste campo, de forma perfeitamente compatível com a interpretação heterodoxa da estrutura teórica da Teoria Geral.

Palavras-chave:
Macroeconomia; Princípio da demanda efetiva; Oferta de trabalho; Salários nominais; Modelo de Hoover

Abstract

The paper argues that the full acceptance of the principle of effective demand is hampered by the meager developments of a labour supply function. This function is able to generate typical Keynesian results, even when grounded in behavioral micro-optimization. It also identifies the Hoover (1995) model as the best available way to develop a research agenda in this field. This model is perfectly compatible with a heterodox interpretation of the General Theory theoretical framework.

Keywords:
Macroeconomy; Principle of effective demand; Labour supply; Monetary wages; Hoover’s model

Introdução

At different points in this chapter we have made the classical theory to depend in succession on the assumptions:

1. that the real wage is equal to the marginal disutility of the existing employment;

2. that there is no such thing as involuntary unemployment in the strict sense;

3. that supply creates its own demand in the sense that the aggregate demand price is equal to the aggregate supply price for all levels of output and employment.

These three assumptions, however, all amount to the same thing in the sense that they all stand and fall together, any one of them logically involving the other two (Keynes, 1936KEYNES, J. M. The General Theory of Employment, Interest and Money. London: Macmilan, 1936., p. 19).

Quase 80 anos após o lançamento da Teoria Geral, a economia global ainda se ressente dos efeitos da Grande Recessão (2008-?). É intrigante tentar entender porque, do ponto de vista da teoria macroeconômica, uma crise de tais dimensões ainda não foi completamente debelada (Bibow, 2013BIBOW, J. On the Franco-German Euro contradiction and ultimate Euro battleground. New York: Levy Economics Institute of Bard College, Apr. 2013. (Working Paper, n. 762).; Tcherneva, 2012TCHERNEVA, P. R. Reorienting fiscal policy after the great recession. New York: Levy Economics Institute of Bard College, May 2012. (Working Paper, n. 719).; Ireland, 2010IRELAND, P. N. A new Keynesian perspective on the great recession. Journal of Money, Credit and Banking, v. 43, n. 1, Feb. 2011.). Ainda mais quando se tem em vista o arsenal disponível de técnicas, construído desde a Grande Depressão. O consequente cenário de milhões de desempregados, de deterioração dos indicadores sociais e de conflitos sociais em muitos países certamente demanda uma discussão mais profunda.

Uma possível (mas reconhecidamente incompleta) explicação para a utilização insuficiente do arsenal disponível de medidas econômicas advém da forma pela qual a Teoria Geral de Keynes foi interpretada e incorporada ao pensamento da corrente principal da teoria macroeconômica. Ao adotar essa interpretação, não se nega que certas forças econômicas, políticas e sociais estejam engajadas em limitar o uso daquele arsenal. Pelo contrário, se ressalta que, neste processo, essas forças têm recebido sanção acadêmica da corrente principal da teoria macroeconômica. Tal sanção, por sua vez, tem contribuído para incrementar o poder de persuasão dessas forças, ajudando-as a galgar posições de maior poder político (Kalecki, 1943/1977KALECKI, M. Political aspects of full employment. The Political Quarterly, v. 14, n. 4, p. 322-330, 1943/ Tradução para português: Aspectos políticos do pleno emprego. In: MIGLIOLI, J. (Org.). Crescimento e ciclo das economias capitalistas. São Paulo: Hucitec, 1977.; Klein, 2008KLEIN, N. The shock doctrine. New York: Metropolitan, 2008.; Krugman, 2012KRUGMAN, P. End this depression now! New York: WW Norton & Company, 2012.).

Como é sabido, a escola de pensamento econômico hegemônica durante os “anos dourados”, a “síntese neoclássico-keynesiana”, tinha como mote a tentativa de combinar a prática de política econômica de cores keynesianas com a preservação de parte do núcleo teórico convencional. Do ponto de vista metodológico, o artifício empregado consistia em restringir o alcance teórico da teoria keynesiana a certo curto prazo. Este era definido, em termos estritamente teóricos, como aquele consistente com situações de desequilíbrio do mercado de trabalho, causadas pela incapacidade de preços e/ou salários nominais ajustarem-se instantaneamente. Em simultâneo, preservava-se um aspecto essencial da teoria convencional intocado: o de que o sistema econômico era auto ajustável no longo prazo. Ou seja, eventualmente o movimento dos salários nominais em resposta aos desequilíbrios operaria no sentido de reconduzir a economia ao seu equilíbrio walrasiano único e estável com pleno emprego.

Em um primeiro momento isto não pareceu uma grande concessão ao neoclassicismo. Afinal, a experiência da Grande Depressão parecia ter mostrado que o tempo necessário para reconduzir a economia a tal equilíbrio era longo demais para que este mecanismo fosse considerado de qualquer utilidade prática (Patinkin, 1956PATINKIN, D. Money, interest, and prices: an integration of monetary and value theory. [s.l.]: Row, Peterson, 1956.). Tratava-se quase de uma curiosidade teórica, talvez uma pequena concessão para que seu argumento prático fosse mais bem aceito entre os economistas supostamente preocupados com o “rigor teórico” do modelo. Afinal, desde que a política econômica seguisse o que foram considerados os ensinamentos de Keynes, os teóricos poderiam tranquilamente se digladiar em torno de seus detalhes. Assim parecia aos olhos do (quase) consenso pragmático então estabelecido (Leijonhufvud, 1968LEIJONHUFVUD, A. On Keynesian economics and the economics of Keynes. London: Oxford University Press, 1968.).

Como agora é perceptível, tratava-se de uma armadilha (Macedo e Silva, 2008-9MACEDO e SILVA, A. C. Missing details and conspicuous absences: from the Treatise to the General Theory. Journal of Post Keynesian Economics, v. 31, n. 2, Winter 2008-9.), ou, mais propriamente, de uma espécie de “porta dos fundos” desguarnecida. Ela será crucial para a tessitura do argumento de que a macroeconomia de Keynes é um caso particular da macroeconomia do equilíbrio geral walrasiana, que continua a ser utilizada até os dias de hoje (Mankiw, 1991MANKIW, N. G. The reincarnation of Keynesian economics. Cambridge, MA: National Bureau of Economic Research, Oct. 1991. (NBER Working Papers, n. 3885).) nos manuais da disciplina. Exatamente o inverso do que Keynes havia proposto no curto capítulo 1 da Teoria Geral. Também seria crucial para as propostas contrarrevolucionárias de monetaristas e novos clássicos.

Além da presente Introdução e das Considerações Finais, o presente artigo, subdividido em cinco itens, tem como objetivo central lançar luz sobre a intrincada relação entre o princípio da demanda efetiva, a função oferta de trabalho e o comportamento dos salários nominais na Teoria Geral. A metodologia empregada consistiu na revisão bibliográfica da literatura considerada pertinente a esses três grandes temas.

Esse objetivo se desdobra em objetivos específicos, abordados sequencialmente em cada um dos itens do trabalho. O primeiro item defende que a plena compreensão do princípio da demanda efetiva é facilitada pela sua separação em dois estágios, denominados curto e longo prazos, sendo a aceitação do primeiro estágio de natureza estritamente lógica, mas a do segundo estágio demandando uma clara conexão entre o comportamento da oferta e da demanda por trabalho e os salários nominais. A conclusão (sem pretensão de originalidade) é de que a interpretação neoclássica da obra de Keynes, que a considera válida apenas no curto prazo, parece carecer de adequada sustentação.

O segundo item visa demonstrar, porém, que uma resposta adequada a tal interpretação só estará de fato completa quando uma função de oferta de trabalho com propriedades “keynesianas” for plenamente desenvolvida. O terceiro item identifica no modelo de Hoover (1995HOOVER, K. D. Relative wages, rationality, and involuntary unemployment in Keynes’ labor market. History of Political Economy, v. 27, n. 4, 1995.) um possível caminho para fazer avançar uma agenda de pesquisas no campo da função oferta de trabalho capaz de gerar os resultados identificados no item anterior. O quarto item discute as principais características do modelo de Hoover (1995HOOVER, K. D. Relative wages, rationality, and involuntary unemployment in Keynes’ labor market. History of Political Economy, v. 27, n. 4, 1995.), seus aspectos positivos e outros aspectos que exigem considerável desenvolvimento, enquanto o quinto item faz algumas contraposições em relação a outras tentativas de desenvolvimento da função oferta de trabalho.

1 Keynes e a importância da função oferta de trabalho

Embora Keynes realmente tenha enfatizado a presença de rigidez nominal dos salários no capítulo 2 da Teoria Geral, neste mesmo capítulo ele é bastante claro acerca do verdadeiro status teórico dessa rigidez em sua teoria:

In this summary we shall assume that the money-wage and other factor costs are constant per unit of labour employed. But this simplification, with which we shall dispense later, is introduced solely to facilitate the exposition. The essential character of the argument is precisely the same whether or not money-wages, etc., are liable to change (Keynes, 1936KEYNES, J. M. The General Theory of Employment, Interest and Money. London: Macmilan, 1936., p. 39).

Em vários pontos do mesmo livro, Keynes demonstra que sua crítica se dirige ao modelo de equilíbrio (longo prazo), e não apenas a afirmar que a economia se afasta desse equilíbrio, como nos modelos (formais ou não) de ciclo em desequilíbrio já existentes à época (Aftallion, 1913AFTALION, A. Les crises périodiques de surproduction. Paris: M. Rivière et cie, 1913.; Mitchell, 1927MITCHELL, W. C. Business cycles: the problem and its setting. New York: National Bureau of Economic Research, 1927.; Harberler, 1939HABERLER, G. Prosperity and depression. Geneva: League of Nations, 1933.).

Ademais, aceita a ideia de que a grande inovação teórica da Teoria Geral é a hipótese de rigidez salarial - e dada sua utilização prévia por vários autores, como Marshall (1925MARSHALL, A. A fair rate of wages. In: MARSHALL, A. Memorials of Alfred Marshall. [s.l.: s.n.], 1925.), Irving Fisher (1925FISHER, I. Our unstable dollar and the so-called business cycle. Journal of the American Statistical Association, v. 20, n.150, p. 170-202, 1925.) e outros - fica implícita na análise uma crítica velada: a de que Keynes teria feito ‘too much ado for nothing’ (Carvalho, 1992CARVALHO, F. J. C. Mr. Keynes and the post Keynesians: principles of macroeconomics for a monetary production economy. Aldershot: Edward Elgar, 1992.).

Infelizmente, como reconheceu o próprio Keynes (1937KEYNES, J. M. The General Theory of employment. Quarterly Journal of Economics, Feb. 1937.), a exposição de sua teoria careceu de melhor acabamento, o que parece ter também contribuído para que o argumento de inversão de generalidade obtivesse tão grande aceitação. Depois de tantos anos de debate, talvez seja interessante recuperar certos elementos da determinação dos salários e do emprego no âmbito da exposição de Keynes do princípio da demanda efetiva. A sequência de exposição escolhida, diferente da original, visa facilitar a visualização da generalidade do argumento de Keynes vis-à-vis o convencional.

Partindo da exposição didática de Dequech (2006DEQUECH, D. A determinação da produção e do emprego no período curto: uma breve apresentação pedagógica da teoria de Keynes. In: FERRARI FILHO, F. (Org.). Teoria geral setenta anos depois: ensaios sobre Keynes e teoria pós- Keynesiana. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2006.), enfatizamos que o princípio da demanda efetiva, como exposto na Teoria Geral, envolve três recortes temporais distintos: os períodos de produção e de mercado marshallianos, e o longo prazo (entendido aqui como uma sucessão de vários períodos de produção e de mercado). Parece-nos que a justaposição desses períodos no original é o que torna o argumento particularmente difícil de entender. Também parece ser daí que nasce a falsa ideia da imposição da hipótese de rigidez salarial como necessária à validade do princípio da demanda efetiva.

Um bom ponto de partida para a apresentação do argumento parece ser o capítulo 5, no qual Keynes expõe a importância das expectativas e, portanto, da separação no tempo entre produção e vendas:

All production is for the purpose of ultimately satisfying a consumer. Time usually elapses, however-and sometimes much time-between the incurring of costs by the producer (with the consumer in view) and the purchase of the output by the ultimate consumer. Meanwhile the entrepreneur (including both the producer and the investor in this description) has to form the best expectations he can as to what the consumers will be prepared to pay when he is ready to supply them (directly or indirectly) after the elapse of what may be a lengthy period; and he has no choice but to be guided by these expectations, if he is to produce at all by processes which occupy time (Keynes, 1936KEYNES, J. M. The General Theory of Employment, Interest and Money. London: Macmilan, 1936., p. 37).

Então, as decisões de produção e emprego são tomadas antes que a produção seja vendida. Por isso,

The actually realised results of the production and sale of output will only be relevant to employment in so far as they cause a modification of subsequent expectations (Keynes, 1936KEYNES, J. M. The General Theory of Employment, Interest and Money. London: Macmilan, 1936., p. 37).

Um primeiro contato com o mercado ocorre após o planejamento da produção, quando o “período de mercado” do mercado de trabalho se “abre” (Chick, 1978CHICK, V. The nature of the Keynesian revolution: a reassessment. Australian Economic Papers, Jun. 1978.) e os empresários passam a contratar e/ou demitir. É neste momento que se dá a determinação do emprego e dos salários nominais da economia. Dadas as expectativas de demanda (combinação quantidade-preço), de produtividade e de salários, pelo lado dos empresários; e de preços e salários nominais por parte dos trabalhadores, cada empresário contratará empregados até obter seu ponto de maximização do lucro esperado1 1 Parece haver aqui uma função de demanda por trabalho keynesiana do tipo desenvolvido por Davidson e Smolensky (1964), que possui como argumento a demanda esperada pelas empresas por seus produtos. ,2 2 Para um debate acerca da possibilidade de agregação dessas decisões individuais para a construção de uma função de oferta agregada, vide Hartwig (2011) e Hayes (2007). . E os trabalhadores aceitarão os empregos oferecidos, enquanto não for atingido o teto de pleno emprego (ou seja, enquanto o salário real superar a desutilidade marginal do trabalho).

O ponto fundamental (Asimakopulos, 1978ASIMAKOPULOS, A. Keynesian economics, equilibrium, and time. The Canadian Journal of Economics, v. 11, Supplement, Nov. 1978. (The Harry Johnson Memorial Symposium).), porém, é que a menos que se imponha a presença de um “leiloeiro walrasiano” ou mecanismo similar, não haverá nenhuma razão para acreditar que o resultado da barganha entre empresários e empregados conduza a economia ao estado de pleno emprego (em concorrência perfeita), ou mesmo à Nairu (em condições de imperfeição concorrencial). A economia do mundo real não possui mecanismos de coordenação ex ante capazes de impedir a manifestação mesma de desequilíbrios entre produção e vendas. As empresas podem parar de contratar trabalhadores antes que o salário real se iguale à desutilidade marginal do trabalho. Trabalhadores podem rejeitar propostas das empresas na expectativa de propostas melhores mais tarde e acabarem desempregados.

Tal resultado, contudo, ao contrário do que se pressupõe na interpretação convencional de Keynes, não exige rigidez salarial. Os salários podem ser tão flexíveis quanto se queira, e podem naturalmente se modificar durante o período de mercado. Os salários podem tanto subir quanto cair, e neste processo, podem levar os empresários à revisão de seus planos iniciais de produção3 3 Bem como à revisão da oferta de trabalho por parte dos trabalhadores. . O que eles não podem fazer é interromper a marcha do tempo e impedir que desequilíbrios entre oferta e demanda de trabalho efetivamente se manifestem.

É neste ponto, porém, que um problema metodológico (terminológico?) chave se coloca. A teoria convencional entende que Keynes impôs, como vimos, a hipótese de rigidez salarial em substituição à presença do leiloeiro walrasiano, necessária para fechar a determinação do equilíbrio no modelo convencional (como em Pigou, 1933PIGOU, A. C. A theory of unemployment. London: Macmillan, 1933.). Além de criticar explicitamente este tipo de fechamento (Keynes, 1936KEYNES, J. M. The General Theory of Employment, Interest and Money. London: Macmilan, 1936., p. 171), considerado como apriorístico, Keynes abandonou a hipótese de rigidez no capítulo 19. Ademais, propôs no capítulo 21 a seguinte expressão:

(1)

onde W é o salário nominal, D é a demanda “efetiva” (esperada), e 0 ≤ ew ≤ 1 é a elasticidade dos salários nominais em resposta às variações desta demanda “efetiva” medida em termos nominais. Implicitamente, tem-se aí os salários nominais como uma função direta do nível de emprego (posto que N = f(D), com f’(D) > 0 pelo menos enquanto não houver pleno emprego), e portanto inversa da taxa de desemprego4 4 Para uma derivação formal das funções keynesianas mais importantes, vide Heller (2009). . Os salários nominais nesta formulação não são, portanto, rígidos - ao menos no sentido de serem constantes. Mas tampouco conduzem instantaneamente o mercado de trabalho ao equilíbrio walrasiano de pleno emprego, o que de fato não acontecerá a menos que seja imposta a presença do leiloeiro ou de qualquer outro mecanismo de coordenação ex ante (Clower, 1965CLOWER, R.W. The Keynesian counter-revolution: a theoretical appraisal. In: HAHN, F. H.; BRECHLING, F. P. R (Org.). The theory of interest rates. London: Macmillan, 1965.; Leijonhufvud, 1968LEIJONHUFVUD, A. On Keynesian economics and the economics of Keynes. London: Oxford University Press, 1968.) inexistente na economia real5 5 Ademais, a relação acima apresentada não é uma função de oferta de trabalho, pois se como tal fosse considerada seria necessário admitir que a economia operasse permanente a pleno emprego (ou à NAIRU), em flagrante contradição à intenção de Keynes. A função oferta de trabalho convencional é usada na Teoria Geral apenas como determinante do limite superior absoluto ao nível de emprego, e não do nível de emprego em si. Contudo, nesta obra o nível de emprego é determinado endogenamente, assim como o nível de salário nominal, o que supõe a existência de algum tipo de função oferta de trabalho. Keynes, porém, não discute em profundidade a fundamentação econômica dessa função, nem a expõe explicitamente, o que parece dificultar a compreensão da possibilidade de equilíbrio permanente abaixo do pleno emprego. .

Na teoria convencional, por outro lado, se define virtualmente “rigidez” como qualquer situação na qual não haja um leiloeiro walrasiano (ou mecanismo similar) equilibrando instantaneamente o mercado de trabalho. Ou seja, a própria ausência do leiloeiro foi definida como rigidez. É imediato então considerar o “equilíbrio aquém do pleno emprego” como sendo causado pela rigidez salarial assim definida; e a teoria econômica que descreve o mundo real (sem o leiloeiro) como “um caso particular” de uma teoria “mais geral”, na qual os salários seriam “flexíveis” - isto é, na qual o leiloeiro opera.

Colocada a questão nestes termos, parece difícil não concluir que a operação lógica impetrada pela teoria convencional envolve sério abuso terminológico, posto que só há “flexibilidade” quando se impõe a priori a existência de um artifício metodológico capaz de resolver ex ante qualquer eventual desequilíbrio que possa se manifestar. Ou seja, o conceito de “flexibilidade” usado pela teoria convencional implica só considerar os salários nominais como de fato flexíveis quando a velocidade de correção dos desequilíbrios do mercado de trabalho é infinita. E isso implica reduzir a zero o tempo necessário para a correção dos desequilíbrios - em outras palavras, a interrupção da passagem do tempo econômico, exatamente o cerne da operação do leiloeiro e mecanismos similares.

Parece então equivocado atribuir os desequilíbrios do mercado de trabalho à “rigidez salarial” nos termos definidos pela teoria convencional. A argumentação acima procura localizar a razão desses desequilíbrios na ausência de mecanismos de coordenação ex ante do mercado de trabalho - inevitável em uma economia de mercado6 6 Perceba que o apelo às expectativas racionais não resolve o problema, pois, ainda quando desconsideradas as críticas ao conceito em si, a hipótese em questão não é a mesma coisa que conhecimento perfeito. Mesmo no caso simplificado de expectativas homogêneas, subsiste um termo de erro aleatório, o qual é suficiente para impedir um equilíbrio de mercado na ausência de um leiloeiro. Também as versões mais sofisticadas do modelo walrasiano, como o Arrow-Debreu, DSGE e similares padecem do mesmo mal: em algum momento é imposta uma condição extremamente restritiva para que os desequilíbrios no período de mercado possam ser eliminados, envolvendo algum mecanismo de reversão temporal capaz de emular o leiloeiro. .

Há, assim, uma inversão logicamente inaceitável na pretensão de que a Teoria Geral seja um caso particular da teoria convencional. Procuramos mostrar que os que argumentam neste sentido estão considerando como geral uma situação na qual o leiloeiro walrasiano e mecanismos similares operem, e como particular uma situação na qual eles não se encontram presentes.

Fechado o mercado de trabalho, não há mais o que fazer para resolver os desequilíbrios ali remanescentes. Mesmo que os preços sejam muito flexíveis no posterior período de mercado do produto, as decisões de produção e emprego não podem mais ser revertidas. Trata-se de uma consequência inevitável do fato da economia capitalista operar no tempo real. O resultado em certo período de mercado só terá consequência sobre os períodos de produção futuros, se, e na medida em que, afetar as expectativas.

Justamente por isso, porém, ainda não é possível a esta altura do raciocínio imputar a Keynes uma vitória completa sobre a teoria convencional no campo lógico, no que concerne à sua arguição por maior generalidade. Isto porque a demonstração acima cobre apenas os acontecimentos restritos a um único curto período.

Não é possível, porém, no presente estágio da argumentação, negar a evidente possibilidade de que ao longo de vários desses períodos curtos, a flexibilidade de salários nominais, por menor que seja, consiga, após um período mais ou menos longo de tempo, fazer com que uma economia de mercado convirja para a posição de pleno emprego/Nairu. Isto porque embora tenhamos negado a possibilidade de que tais forças operem como mecanismos de equilíbrio ex ante, cabe ainda discutir a possibilidade de sua efetividade ex post.

Parece ser por isso que Keynes considerou conveniente aguardar o Capítulo 19 da Teoria Geral para alcançar algumas de suas conclusões fundamentais. A discussão ali encetada é tratada como crucial para a conclusão acerca de maior generalidade da teoria keynesiana vis-à-vis a (neo)clássica, ou do princípio da demanda efetiva em relação a lei de Say.

A questão central a perpassar tal capítulo é se, ao longo de vários períodos de produção e de mercado, variações salariais conseguem conduzir de fato o mercado de trabalho ao equilíbrio7 7 Perceba que esta é a versão coeteris paribus do argumento. Em uma versão geral, trata-se de obter o sinal da derivada do nível de emprego em relação ao nível de salários nominais. A resposta da teoria convencional é de que o sinal dessa derivada é inevitavelmente negativo, implicando que uma queda dos salários nominais eleva o nível de emprego. A de Keynes, que ele é ambíguo, podendo até mesmo ser zero ou positivo. . Com este intuito, analisa os efeitos das quedas dos salários nominais sobre produção e emprego. Como em uma economia fechada a função de oferta agregada medida em unidades de salários não é afetada por mudanças salariais8 8 Para um debate sobre esse ponto, vide Heller (2009); Arthmar e Brady (2010); Hartwig (2011) e Ambrosi (2011). , o resultado final sobre o emprego pode ser inferido dos seus efeitos sobre a função demanda agregada também medida nessa unidade.

Keynes apresenta uma impressionante descrição dos possíveis efeitos decorrentes da queda de salários. Alguns operam no sentido de realmente restaurar o equilíbrio a pleno emprego, como quer a teoria convencional; outros porém, ao contrário, operam no sentido de ampliar os desequilíbrios iniciais. Aqui, contudo, convém apenas recuperar suas conclusões. Antes de averiguar os possíveis efeitos da queda dos salários sobre a taxa de juros, ele conclui que:

It follows that with the actual practices and institutions of the contemporary world it is more expedient to aim at a rigid money-wage policy than at a flexible policy responding by easy stages to changes in the amount of unemployment;-so far, that is to say, as the marginal efficiency of capital is concerned (Keynes, 1936KEYNES, J. M. The General Theory of Employment, Interest and Money. London: Macmilan, 1936., p. 166).

E, após observar tais efeitos:

There is, therefore, no ground for the belief that a flexible wage policy is capable of maintaining a state of continuous full employment;-any more than for the belief that an open-market monetary policy is capable, unaided, of achieving this result. The economic system cannot be made self-adjusting along these lines (Keynes, 1936KEYNES, J. M. The General Theory of Employment, Interest and Money. London: Macmilan, 1936., 166).

It follows, therefore, that if labour were to respond to conditions of gradually diminishing employment by offering its services at a gradually diminishing money-wage (…). The chief result of this policy would be to cause a great instability of prices, so violent perhaps as to make business calculations futile in an economic society functioning after the manner of that in which we live (Keynes, 1936KEYNES, J. M. The General Theory of Employment, Interest and Money. London: Macmilan, 1936., p. 168).

A posição de Keynes acerca da maior generalidade de sua teoria vis-à-vis a convencional pode finalmente ser exposta em sua inteireza. Em suma, Keynes previa a possibilidade de que as forças desequilibradoras pudessem ser tão ou mais fortes do que as equilibradoras (Palley, 1999PALLEY, T. I. General disequilibrium analysis with inside debt. Journal of Macroeconomics, v. 21, n. 4, 1999.). Assim, uma queda nos salários nominais poderia ser inócua, ou mesmo causar uma redução da produção e do emprego, resultante do seu impacto negativo sobre a demanda agregada em unidades de salários9 9 Entre os poucos economistas da corrente principal que insistiam nos resultados de Keynes a este respeito, Tobin (1975) parece ser o mais conhecido. . Tal argumentação está claramente assentada na análise do cap. 19. Caberia à teoria convencional, por sua vez, o ônus da prova de que as forças equilibradoras seriam sempre mais fortes do que as desequilibradoras, caso contrário a validade geral de seu argumento seria colocada em xeque10 10 Curiosamente, poucos estudos abordaram a questão dos efeitos da flexibilidade salarial diretamente, do ponto de vista aplicado. De Long e Summers (1986), por exemplo, chegaram à surpreendente conclusão de que a flexibilidade salarial opera, como temia Keynes, de forma desestabilizadora: um pouco a mais de flexibilidade tende a aumentar a variabilidade do produto, exceto, naturalmente, nas cercanias da “flexibilidade infinita” do leiloeiro walrasiano. .

A resposta convencional não tardaria. Sua ideia chave consistiu em reintroduzir o efeito da quantidade real de moeda como determinante direto da demanda agregada real, tal como na teoria quantitativa da moeda, e não via investimento, como em Keynes. Considerando a oferta nominal de moeda como independente do nível geral de preços, as quedas de salários nominais, ao reduzirem os preços e portanto aumentarem a oferta real de moeda, dariam lugar a um aumento do consumo real.

Denominado posteriormente de ‘efeito Pigou’ (1941PIGOU, A. C. Employment and equilibrium. London: Macmillan, 1941.) ou ‘saldo real’, este mecanismo se somaria ao efeito Keynes e outros efeitos equilibradores no sentido de reforçar a argumentação convencional. Curiosamente, porém, esse efeito parece ter sido o elemento-chave para a consolidação da ideia de que a teoria de Keynes era uma versão particular de uma teoria convencional mais geral. E, portanto, para compor o réquiem para o conceito keynesiano de ‘equilíbrio abaixo do pleno emprego’ como uma situação persistente.

Em parte, esse elevado status teórico ao qual foi guindado o efeito Pigou se explica pela utilização que ele fez do consumo como mecanismo de transmissão da flexibilidade salarial. Ao assim proceder, ele evita o contra-argumento de que possíveis baixas elasticidades do investimento à taxa de juros, e/ou dessa taxa à oferta real de moeda, poderiam tornar a flexibilidade salarial inócua11 11 O efeito dos saldos reais no consumo foi “confirmado” estatisticamente para alguns países e períodos - por exemplo, Mayer (1959); Schotta (1964) - mas a despeito de sua relativa fraqueza empírica, foi considerado fundamental, uma vez que apontava que a economia tenderia a reagir ao desequilíbrio no mercado de trabalho na direção correta. Essa fraqueza foi interpretada como uma confirmação da ideia de que a flexibilidade salarial operava apenas lentamente, e que portanto as políticas de gestão da demanda keynesianas eram de grande relevância prática. Chama a atenção, contudo, do ponto de vista da econometria contemporânea, a falta de controle adequado de outras variáveis (como salário real, taxa de câmbio real, investimento real, riqueza real, crédito) que podem interferir significativamente na estimativa, ao afetar a relação entre demanda agregada, consumo e preço. . Contudo, isso ainda parece pouco para explicar tanta proeminência, considerando a multiplicidade de efeitos estabilizadores e desestabilizadores presentes no cap. 19.

Além da sua ausência na Teoria Geral - o que em tese faria com que sua introdução na análise fizesse pender mais a balança em favor dos efeitos estabilizadores12 12 Keynes, contudo, havia afirmado explicitamente que pretendia apenas elencar os fatores mais importantes do ponto de vista prático (Keynes, 1936, p. 164). - parece ser preciso encontrar outras explicações para a facilidade com a qual o efeito Pigou foi aceito como elemento teórico tão importante. Outra parte dessa explicação parece derivar da ideia de que vários dos efeitos promotores da desestabilização citados por Keynes no capítulo 19 são de caráter expectacional. Ocorre que em uma análise que intenta abarcar o longo prazo, é comum que sejam desconsiderados os elementos resultantes de erros na formação de expectativas, posto que neste prazo é usual se supor que as expectativas sejam satisfeitas13 13 Repare que o argumento em si é questionável, na medida em que se pretende justamente discutir o status das posições de longo prazo. Só parece fazer sentido eliminar as discrepâncias entre expectativas e resultados efetivamente observados em uma análise ao se supor que a economia se dirija para um equilíbrio cuja posição e trajetória de convergência em sua direção sejam independentes dessas discrepâncias. Mas admitir isso nos termos dessa discussão parece implicar uma imposição apriorística do resultado. . A aceitação de tal argumento reduziria os efeitos desequilibradores de uma queda salarial: 1) à redistribuição de renda em detrimento dos trabalhadores, que reduziria a propensão marginal a consumir da sociedade como um todo; e 2) ao posteriormente apelidado ‘efeito Fisher’, associado ao impacto negativo das deflações na situação financeira dos devedores e, portanto, em sua capacidade de gasto14 14 Mesmo esse último efeito, segundo Tobin (1980), deveria ser restrito a um prazo limitado, enquanto os contratos de dívidas feito sobre expectativas inflacionárias excessivamente altos, vencessem e/ou fossem substituídos por novos contratos de dívidas com expectativas reajustadas. Isso pode implicar um lapso de tempo cronológico bastante elevado, tendo em vista os longos prazos que os títulos de dívida típicos dos mercados financeiros dos países desenvolvidos tendem a alcançar. Contudo, ele também parece supor que as discrepâncias entre expectativas e resultados devem ser desconsideradas, nos mesmos moldes da arguição da nota de rodapé anterior. .

Em prol da estabilização operavam primordialmente, afora o próprio efeito Pigou: a) o efeito preço dos bens de investimento; b) o efeito Keynes; c) o efeito câmbio real. Os dois primeiros estavam fragilizados pelas já citadas objeções acerca das baixas elasticidades presentes na conexão moeda - juros - investimento. O efeito câmbio real, por outro lado, enfrenta a possível violação da condição de Marshall-Lerner como obstáculo ao seu uso. Ademais, é claro, se tratará sempre de um mecanismo beggar thy neighbour, incapaz de gerar empregos líquidos em termos globais.

É ainda interessante observar que tanto o efeito Keynes quanto o Pigou dependem crucialmente da hipótese de que a oferta nominal de moeda seja exogenamente estabelecida pela política econômica. Mesmo nos manuais de Macroeconomia, porém, é possível encontrar situações nas quais a oferta de moeda seja endógena. O regime de câmbio fixo é um conhecido exemplo. Outro, independentemente do regime cambial, é quando se admite que o multiplicador bancário é função direta da taxa nominal de juros (Dornbusch e Fischer, 1984). Isto se explicaria devido à capacidade de uma taxa de juros mais elevada estimular maiores empréstimos bancários, criando portanto maior quantidade de depósitos à vista (moeda escritural). Em qualquer situação na qual a oferta de moeda seja endógena, a capacidade estabilizadora dos efeitos Keynes e Pigou fica, na melhor das hipóteses, comprometida, e na pior, completamente obstruída. É possível, como observara o próprio Keynes (1936KEYNES, J. M. The General Theory of Employment, Interest and Money. London: Macmilan, 1936., p. 132), que a oferta nominal de moeda acompanhe concomitantemente a queda dos salários nominais e dos preços, caso em que esses efeitos perderiam a efetividade.

No mundo contemporâneo, a condução da política monetária através do estabelecimento da taxa básica de juros visando manter a economia em uma meta pré-estabelecida de inflação tornaria o efeito Pigou, em tese, prescindível. É o banco central que, ao visar manter a inflação estável, e diante da suposta presença de uma curva de Phillips com características aceleracionistas15 15 Ou, mais precisamente, dotada de característica de ter a soma dos coeficientes dos termos da inflação retrospectiva e da inflação prospectiva igual a um. , se encarregaria de fazer a economia convergir para seu produto potencial. Contudo, a própria crise contemporânea mostra os limites desse argumento, quando a taxa básica de juros se aproxima de zero, e quando o potencial estabilizador da política fiscal é julgado (corretamente ou não) virtualmente exaurido. O velho efeito Pigou reaparece então como o elemento crítico sob o qual repousam numerosas posições no debate contemporâneo, de forma frequentemente velada16 16 A explicação de Krugman das recessões como tendo causas estritamente monetárias, a partir da famosa parábola da cooperativa de pais-babás, é uma na qual o argumento parece particularmente discernível. Vide Hens, Reiner e Vogt (2007). .

Quando o conflito entre a lei de Say e o princípio da demanda efetiva foi interpretado no contexto de um único período de produção, se observou que o contraponto não se dá entre flexibilidade e rigidez salarial, mas acerca da aceitabilidade (ou não) do emprego de métodos artificiais de coordenação ex ante das atividades econômicas na análise teórica. Observando-o em uma sequência de períodos de produção e mercado, percebemos a existência de um conflito perene entre mecanismos estabilizadores e desestabilizadores que não parece passível de solução apriorística.

Diante desses questionamentos, em especial a continuada operação de forças no sentido oposto, parece temerário adotar a ideia de que a introdução do efeito Pigou resolveria de forma definitiva o embate entre forças estabilizadoras e desestabilizadoras desencadeadas pela queda dos salários nominais em prol das primeiras. Até onde esta pesquisa conseguiu averiguar, não foi produzida uma argumentação teórica capaz de garantir que os efeitos estabilizadores sempre seriam capazes de sobrepujar a força dos mecanismos desestabilizadores. Tampouco no campo empírico parece ter sido obtida evidência suficiente (confirmada em vários países e em diferentes momentos históricos) para transformar tal fenômeno em um fato estilizado das economias de mercado.

É difícil então escapar à conclusão que, do ponto de vista estritamente lógico, a maior generalidade da teoria de Keynes até agora ainda não pode ser superada pela teoria convencional. Sob tal luz, o keynesianismo aparece então como uma espécie de opção essencialmente prudente acerca das dificuldades de generalização dos efeitos de uma queda de salários nominais. Essa conclusão não é evidentemente uma novidade, como atesta a literatura citada ao longo de toda a argumentação. Contudo, a reapresentação do argumento nessa forma fornece encadeamento lógico importante para o que se segue. Como veremos, essa forma de ver o assunto terá de ser apropriadamente qualificada pelo tratamento do lado da oferta de trabalho.

Isso porque, como o próprio Keynes afirmou (vide epígrafe), existe uma profunda conexão entre a aceitação do princípio da demanda efetiva e a rejeição da função oferta de trabalho tradicional Convém então tratar mais pormenorizadamente do mercado de trabalho e, em particular, da determinação dos salários nominais na Teoria Geral.

2 Interpretações acerca da determinação dos salários nominais na Teoria Geral

Em várias passagens da TG, Keynes deixa claro que a estrutura causal postulada implica a determinação do nível de emprego pelas funções de oferta17 17 Note-se a distinção para a qual Heller (2009) e Brady (2004) chamaram a atenção entre a função de oferta agregada (ex ante) e a curva de oferta agregada (ex post). Esta última é a função inversa da função do emprego do cap. 20 da TG. e demanda agregadas apresentadas no Capítulo 3. O salário real é então determinado pela produtividade marginal do trabalho àquele nível de emprego.

Da estrutura lógica apregoada, resulta uma propriedade interessante: os salários nominais não afetam os salários reais, a não ser por eventuais efeitos indiretos que eles venham a exercer sobre o próprio nível de emprego. Este, contudo, como frisou Keynes, qualquer que seja sua direção, deve ser relativamente pequeno, posto que parece improvável que o confronto entre os efeitos estabilizadores e desestabilizadores tenha um vencedor por larga margem. Chegamos então ao que Hicks (1974HICKS, J. R. Crisis in Keynesian economics. New York: Basic Books, 1974.) denominou “teorema dos salários”: os salários nominais em Keynes funcionam como uma espécie de numeraire: afetam preços e outras variáveis nominais equiproporcionalmente, mas, por isso mesmo, não afetam significativamente as variáveis reais (a começar pelo próprio salário real).

No que concerne à própria determinação dos salários nominais, contudo, impera certa confusão. No Apêndice ao capítulo 19, ao comentar criticamente a obra de Pigou (1933PIGOU, A. C. A theory of unemployment. London: Macmillan, 1933.), Keynes sugere que a melhor hipótese comportamental (naquele contexto) é a de rigidez dos salários nominais. No capítulo 21, contudo, como vimos, em um contexto de maior generalidade, ele apresenta a equação (1) acima, a qual implica que o nível de emprego é um dos seus determinantes (mas não o único, como frisou Chick, 1983CHICK, V. Macroeconomics after Keynes. Amherst: MIT Press, 1983.). Uma das coisas mais intrigantes da Teoria Geral é a falta de uma adequada fundamentação teórica para esse comportamento. Uma série esparsa de comentários do autor ao longo deste capítulo permite extrair algumas de suas propriedades:

  • A elasticidade ew = 1 quando a economia atinge a situação de pleno emprego18 18 “The condition ew = 1 means that the wage-unit in terms of money rises in the same proportion as the effective demand (...)”(Keynes, 1936, pág. 152). E: “(...In the) point of full employment (...) money-wages have to rise, in response to an increasing effective demand in terms of money, fully in proportion to the rise in the prices of wage-goods (...)” (Keynes, 1936, p. 150). ;

  • A elasticidade ew tende a se tornar elevada em situações de “fuga da moeda” (inflação muito alta); é possível então postular que:

(2)

onde πe é a inflação esperada19 19 “(... In) the case of a 'flight from the currency' in which ed and ew become large (...)” (Keynes, 1936, p. 153). .

  • O aumento dos salários em resposta a aumentos da demanda nominal é descontínuo, ou seja, ew (N) não é uma função contínua20 20 “(...) the wage-unit does not change continuously in terms of money in response to every small change in effective demand; (...)” (Keynes, 1936, p. 150). ;

  • Não há uma tendência de queda contínua dos salários nominais quando a economia está abaixo do pleno emprego21 21 “If, on the contrary, money-wages were to fall without limit whenever there was a tendency for lessthan full employment, the asymmetry would, indeed, disappear. But in that case there would be no resting -place below full employment until either the rate of interest was incapable of falling further or wages were zero. In fact we must have some factor, the value of which in terms of money is, if not fixed, at least sticky, to give us any stability of values in a monetary system” (Keynes, 1936, p. 152). .

Das passagens acima pode-se apreender que o salário nominal é uma variável determinada e endógena para Keynes. Não parece incompatível com seu pensamento postular a existência de funções de demanda e oferta de trabalho implícitas na determinação dos salários nominais; afinal, vários mercados da TG são descritos por funções desse tipo. Ressalte-se, evidentemente, que o ponto de equilíbrio do mercado de trabalho, gerado pela interseção dessas funções, precisaria se mostrar compatível com qualquer nível de emprego, e não apenas com a posição de pleno emprego.

Contudo, essas funções não foram apresentadas na Teoria Geral - como visto, há no máximo algumas possíveis inferências sobre seu comportamento suposto, o que destoa nitidamente do nível de detalhe da apresentação das demais funções lá presentes. Se, e em que medida isso torna a TG incompleta e, portanto, frágil e suscetível à neoclassicização, é uma questão sobre a qual se pretende arguir a seguir.

A despeito da sua aparente ausência na TG, outros autores já se incumbiram do desenvolvimento de uma função demanda por trabalho que parece compatível com seu arcabouço teórico. De acordo com Davidson e Smolensky (1964DAVIDSON, P.; SMOLENSKY, E. Aggregate supply and demand analysis. New York: Harper & Row, 1964.), tal função pode ser obtida a partir da determinação do emprego como resultado da interseção das funções de oferta e demanda agregada de Keynes22 22 A “correção de Brady e Heller” implicaria considerar a curva de oferta agregada, e não a função de oferta agregada. , transladando-as porém do plano receitas esperadas x nível de emprego (como são apresentadas na Teoria Geral) para o plano salário nominal x nível de emprego. Sua inclinação pode em princípio ser tanto negativa quanto positiva, refletindo o conflito entre os citados efeitos estabilizadores ou desestabilizadores em resposta a variações salariais23 23 Será negativamente inclinada se os efeitos estabilizadores forem mais fortes, e vice-versa, e vertical se os efeitos forem exatamente equivalentes. . À luz desses conflitos, Keynes parece ter aceitado a ideia de que ela deva ser aproximadamente vertical24 24 Mas repare que também que não há incompatibilidade da visão keynesiana com uma função demanda por trabalho não linear e mesmo não monotônica, conforme os elementos conflitantes que operam sobre tal função se tornem predominantes para diversas combinações salário/emprego. , refletindo um “empate técnico” aproximado entre os dois conjuntos de forças25 25 Vide nota de rodapé 21. .

Mesmo se fosse possível argumentar que a função demanda por trabalho é sempre e exatamente vertical, ainda não poderíamos nos despreocupar completamente com as características da função oferta de trabalho, mesmo para efeito de determinação do emprego. Se, por exemplo, tivéssemos uma função de oferta convencional, chegaríamos à estranha conclusão de que um aumento exógeno da demanda agregada, ao deslocar a função demanda por trabalho ao longo desta função de oferta, aumentaria o nível de emprego de pleno emprego; e todo desemprego continuaria sendo voluntário ou friccional, qualquer que fosse o nível de demanda agregada implícita na função demanda por trabalho.

O ponto acima é importante para a urdidura do argumento em elaboração. Ele mostra que, qualquer que seja o formato da função demanda por trabalho, a função oferta de trabalho ainda é crucial para estabelecer a natureza do emprego (e do desemprego) vigente. Talvez por estar ciente disso Keynes tenha escolhido começar sua crítica da teoria (neo)clássica já no capítulo 2, logo após a breve introdução do capítulo 1. O capítulo 19 então assume sua importância crucial apenas após o abandono da função oferta de trabalho convencional.

À luz da história do pensamento econômico contemporâneo, parece pouco promissor apostar em uma inclinação específica para a função demanda por trabalho, posto que esse tipo de argumento é sensível à crítica da falta de generalidade. Davidson e Smolensky (1964DAVIDSON, P.; SMOLENSKY, E. Aggregate supply and demand analysis. New York: Harper & Row, 1964.), por exemplo, parecem convencidos de que o melhor procedimento metodológico consiste em aceitar a inclinação negativa da função demanda por trabalho (Vide Gráfico 1 abaixo). Ainda que esta possa não ser a alternativa mais realista, é necessário convir que é a que indubitavelmente assume caráter mais geral. Se fosse possível encontrar um equilíbrio no mercado de trabalho mesmo supondo que as forças equilibradoras desencadeadas por uma queda de salários sejam mais fortes do que as desequilibradoras, então o argumento da generalidade da solução keynesiana certamente resultará robustecido. Parece, contudo, que nenhum argumento neste sentido foi posteriormente gerado.

Gráfico 1
A determinação simultânea do emprego e dos salários em Keynes segundo Davidson e Smolensky (1964DAVIDSON, P.; SMOLENSKY, E. Aggregate supply and demand analysis. New York: Harper & Row, 1964.)

Contudo, quando os mesmos autores tentaram preencher o vácuo representado pela ausência de uma função oferta de trabalho na obra de Keynes, fizeram-no sem grandes novidades em relação à versão convencional26 26 Trata-se rigorosamente da mesma função, com a peculiaridade de que, ao ser plotada em termos de salários nominais, e não reais, passa a exibir a propriedade de ser deslocada em decorrência de mudanças no nível geral de preços. . O desapontador resultado foi que o equilíbrio resultante era necessariamente o de pleno emprego, e a existência de desemprego involuntário dependia crucialmente da existência de um piso salarial nominal ad hoc27 27 Vide Figura 11.5 na mesma página. Curiosamente, uma vez que a posição da função demanda por trabalho depende dos determinantes da função demanda agregada, a solução adotada torna o próprio nível de emprego de pleno emprego dependente desses determinantes, o que não parece ser o que Keynes tinha em mente. :

Involuntary unemployment can exist because the supply curve for labor (in money units) has a perfectly elastic floor which is set by institutional forces (Davidson; Smolensky, 1964DAVIDSON, P.; SMOLENSKY, E. Aggregate supply and demand analysis. New York: Harper & Row, 1964., p. 172).

Posteriormente, Davidson (1994DAVIDSON, P. Post Keynesian macroeconomic theory: a foundation for successful economic policies for the twenty first century. Aldershot: Edward Elgar, 1994.) parece ter adotado a visão de que a curva de demanda por trabalho mais adequada é em princípio vertical, mas com seus extremos superior e inferior achatados no sentido convencional, justamente em função do efeito Pigou. A generalidade desta solução resulta novamente fragilizada.

A impropriedade da solução de Davidson e Smolensky (1964DAVIDSON, P.; SMOLENSKY, E. Aggregate supply and demand analysis. New York: Harper & Row, 1964.) tem a vantagem de tornar nítido o que parece ser o foco do problema: a função oferta de trabalho utilizada. Isso ressalta a importância dessa função na determinação do resultado de Keynes, e sua diferença em relação ao tratamento convencional (Leontieff, 1936LEONTIEFF, W.W. The fundamental assumptions of Mr. Keynes monetary theory of unemployment. The Quarterly Journal of Economics, v. 51, n. 1, Nov. 1936.). Sua centralidade só pode ser evitada caso supusermos:

  1. uma prevalência geral das forças de desequilíbrio citadas no cap. 19 sobre as de equilíbrio, acarretando uma função demanda por trabalho com inclinação suficientemente positiva para que a interseção com a função oferta de trabalho gere um equilíbrio único, porém instável (repulsor); além da dificuldade de provar a generalidade dessa solução, ela implicaria na prática desequilíbrio cumulativo, com resultados paradoxais28 28 Neste caso, por exemplo, os sinais das derivadas parciais das variáveis de demanda agregada se invertem, provocando resultados opostos aos postulados por Keynes. Alguns autores, como Oreiro (1997), parecem ter apostado nesta interpretação. ; ou

  2. que um formato supostamente não monotônico da função demanda por trabalho gere soluções com equilíbrios múltiplos (por exemplo, Tobin, 1980TOBIN, J. Asset accumulation and economic activity. Chicago: University of Chicago Press, 1980.) para o mercado de trabalho; talvez, porém, as relações não lineares entre salário real e demanda por trabalho padeçam da mesma falta de generalidade resultante de postularem-se formatos restritivos; ou

  3. que a oferta de trabalho aquém do pleno emprego seja indeterminada, como proposto por Sicsú (1999SICSÚ, J. Keynes e os novos keynesianos. Revista de Economia Política, v. 19, n. 2(74), abr./jun. 1999.); contudo, tal tratamento parece contrariar a própria TG, pois implica a indeterminação dos salários nominais, ao contrário da determinação salarial endógena (como vimos) nela presente; ou ainda,

  4. que se abandone completamente o referencial de equilíbrio de mercado da teoria econômica (Possas, 1987POSSAS, M. L. Dinâmica da economia capitalista: uma abordagem teórica. São Paulo: Brasiliense, 1987.); independentemente do mérito da proposta, evidentemente não é isso que Keynes tinha em mente; ademais, há novamente a necessidade de supor aprioristicamente a ausência de equilíbrio a partir de algum filtro metodológico, o que também pode ocasionar questionamentos acerca da generalidade do argumento.

Assim, concluímos que uma característica fundamental da TG, a possibilidade de equilíbrio com desemprego involuntário, só parece razoável se, e na medida em que, se puder encontrar uma função oferta de trabalho compatível com desemprego involuntário, mas que ainda assim o mercado de trabalho possa estar em equilíbrio. Excetua-se evidentemente um possível ramo vertical, no qual a oferta de trabalho deixa de ser salário elástica, o que ocorre ao nível de emprego de pleno emprego.

Contudo, e isso pode parecer pouco palatável para os keynesianos formados na tradição da demanda agregada, a especificação mais ou menos sofisticada desta função não parece fundamental para a possibilidade de existência de equilíbrio com desemprego involuntário e de insuficiência de demanda agregada. O ponto pode ser melhor apreciado a partir do próprio Keynes:

Let us write MV = D where M is the quantity of money, V its income-velocity (…) and D the effective demand. If, then, V is constant, prices will change in the same proportion as the quantity of money provided that ep (= (Dpd)/(pdD)) is unity. This condition is satisfied (…) if eo = 0 or if ew = 1. The condition ew = 1 means that the wage-unit in terms of money rises in the same proportion as the effective demand, since ew = (DdW) /(WdD) and the condition eo = 0 means that output no longer shows any response to a further increase in effective demand, since eo = (DdO) /(OdD). Output in either case will be unaltered (Keynes, 1936KEYNES, J. M. The General Theory of Employment, Interest and Money. London: Macmilan, 1936., p. 152).

Assim, para que mudanças na demanda nominal tenham impacto no produto real - situação típica em uma economia aquém do pleno emprego - é preciso apenas que eo > 0 e ew < 1. Tais condições, repare, são sempre satisfeitas se o equilíbrio do mercado de trabalho se estabelecer no ramo não vertical de uma função de oferta de trabalho com características keynesianas. E isso continua sendo válido mesmo caso se supusesse que a velocidade-renda de circulação da moeda fosse constante, e a oferta de moeda fosse completamente exógena. Tais hipóteses dão lugar a uma teoria da demanda agregada bastante convencional, mas que ainda assim, combinada com uma função de oferta de trabalho não convencional, gera resultados tipicamente keynesianos.

Parece, portanto, necessário prestar mais atenção à estranha falta de desenvolvimento da função oferta de trabalho pós-TG. O (compreensível) superdesenvolvimento do lado da demanda na economia pós-keynesiana pode ter criado um problemático subdesenvolvimento da descrição da oferta, em particular da de trabalho.

3 A oferta de trabalho na Teoria Geral e a contribuição de Hoover (1995HOOVER, K. D. Relative wages, rationality, and involuntary unemployment in Keynes’ labor market. History of Political Economy, v. 27, n. 4, 1995. )

Embora não haja na Teoria Geral uma teoria acabada da função oferta de trabalho, tampouco se pode dizer que não haja alguns elementos teóricos capazes de inspirar sua construção (Trevithick, 1976TREVITHICK, J. A. Money wage inflexibility and the Keynesian labour supply function. The Economic Journal, v. 86, n. 342, p. 327-332, Jun. 1976.). O capítulo 2, em particular, concentra vários desses elementos. Convém relembrar alguns:

  • Keynes afirma que, dentro de certa faixa de valores, é possível que a desutilidade marginal do trabalho esteja associada ao valor do salário nominal, e não do real;

  • Os trabalhadores consideram fundamental o salário real relativo na determinação da desutilidade marginal do trabalho, e não apenas do salário real absoluto;

  • Por consequência, dentro de certos limites, a resposta dos trabalhadores a um corte dos salários nominais e a um aumento do nível geral de preços que atuem de forma equiproporcional sobre o salário real é assimétrica: há maior resistência dos trabalhadores ao primeiro fenômeno do que ao segundo, pelo menos em um regime de inflação moderada.

Keynes não parece ter se perturbado pela ausência de um desenvolvimento completo dessa função. Os elementos críticos anteriormente elencados pareciam suficientes para abrir espaço para a ação da demanda agregada e das políticas governamentais de estímulo ao emprego. Ainda estavam distantes os tempos da contrarrevolução monetarista e novo-clássica, quando a função oferta de trabalho voltaria ao centro do palco do debate macroeconômico.

À luz da perspectiva histórica, parece razoável afirmar que a ausência de uma função oferta de trabalho keynesiana plenamente desenvolvida pode ser, portanto, ao menos corresponsável por Keynes ter sido relegado ao curto prazo. Na ausência de uma teoria alternativa, é fácil argumentar que a teoria convencional da oferta de trabalho seguia sendo a referência central, ao menos no longo prazo. Desvios de curto prazo podiam ser atribuídos às rigidezes típicas do mercado de trabalho e do ajuste salarial, à inércia das expectativas inflacionárias ou às inevitáveis imperfeições informacionais.

Se é compreensível a ausência do pleno desenvolvimento de uma função oferta de trabalho alternativa na TG, é mais difícil explicar tal ausência entre seus seguidores, até recentemente. Não pretendemos fazer essa discussão, mas apenas especular acerca de alguns de seus elementos.

Em primeiro lugar, muitos keynesianos, de várias estirpes, parecem ter se afeiçoado à ideia de que o nível de emprego é determinado no mercado de bens, e não no mercado de trabalho. Contudo, a interconexão dos diversos mercados na TG impede que se proceda a esse tipo de isolamento: os mercados de bens e de trabalho interagem decisivamente para a determinação do nível de emprego e da natureza do desemprego. A função demanda (agregada) por bens deve estar implícita na função demanda por trabalho, bem como a função oferta de trabalho está implícita na função (ou curva, conforme Brady, 2004BRADY, M. E. Essays on J.M. Keynes and... Bloomington, Indiana: Xlibris Corp., 2004. e Heller, 2009HELLER, C. Keynes’s slip of the pen: aggregate supply curve vs employment function. Munich, Germany: MPRA, 2009. (MPRA Paper, n. 12837).) oferta (agregada) de bens. A nosso ver, não é outro o motivo pelo qual o próprio Keynes colocou a lei de Say e a função oferta de trabalho convencional como equivalentes29 29 Aparecem na TG: funções de oferta e demanda por bens (ex ante e ex post, caps. 3 e 5), curva de oferta por bens (cap.20); oferta e demanda por bens de investimento (cap. 11); funções demanda e oferta (“dada”) de moeda (caps. 13 a 15). Tais funções de oferta e demanda podem ainda ser supostos para todos demais ativos, pois é possível imputar a todos eles (no cap. 17) o mesmo procedimento adotado no cap. 11, no qual a determinação do investimento pode ser obtida pela comparação entre a eficiência marginal e a taxa de juros, ou, alternativamente, pela contraposição entre preços de oferta e de demanda. A presença e a interação desses vários mercados, porém, não transforma o modelo da TG em um modelo de equilíbrio geral walrasiano, pois, entre outros fatores, a interveniência do tempo quebra a simultaneidade dos processos econômicos. Porém, a interação desses mercados, como mostrado em Davidson e Smolensky, torna difícil atribuir a determinação da produção a um deles isoladamente. .

Ademais, a ânsia dos pós-keynesianos em criticar a interpretação convencional de Keynes tendia a deslocar a discussão da rigidez salarial para outros aspectos da teoria keynesiana que, em tese, a diferenciariam da (neo)clássica. Isso operava no sentido de fazê-los procurar as diferenças fundamentais alhures.

Talvez, porém, a contínua ênfase da teoria convencional nos aspectos da oferta e os debates dos anos 80 e 90 em torno dos microfundamentos da rigidez salarial tenham finalmente surtido efeito. A partir da ideia keynesiana de que os salários relativos são fundamentais para explicar o comportamento dos trabalhadores no concernente à oferta de trabalho, Hoover (1995HOOVER, K. D. Relative wages, rationality, and involuntary unemployment in Keynes’ labor market. History of Political Economy, v. 27, n. 4, 1995.) desenvolveu uma variante do modelo de salário eficiência que visa capturar formalmente a essência da visão de Keynes acerca da função oferta de trabalho. A nosso ver, é até hoje o modelo que mais se aproximou de um tratamento adequado e estritamente keynesiano do assunto. Infelizmente, parece não ter até agora atraído as atenções dos autores mais comprometidos com o pensamento original de Keynes. Talvez isso decorra de uma tendência de considerar qualquer aporte teórico associado aos modelos de salário eficiência como estritamente anti-keynesiano. Convém a este respeito, porém, observar as seguintes intenções teóricas alegadas pelo autor:

It is important to recognize that the model developed in this rational reconstruction is not an attempt to lay hold of the mantle of Keynes for the efficiency-wage model, a central element in the so-called New Keynesian Macroeconomics. New Keynesian efficiency-wage models are either real-wage models in which demand-side policies are ineffective or models that explicitly rely on money illusion to yield efficacious aggregate-demand policies. Thus, although the efficiency-wage model provides some ready-made structure on which to hang Keynes’s arguments, far from stretching to find antecedents that validate the “Keynesian” roots of efficiency-wage model, it is closer to the truth to see Keynes’s analysis as suggesting ways to improve and develop an otherwise non-Keynesian model (…)The model I propose is justified step by step by Keynes’s insights and it generates unemployment exactly in the circumstance in which aggregate demand is inadequate. It reproduces the relationships between nominal wages, prices, and real wages found in the early chapters of The General Theory. While the model is an attempt to explicate the relativity argument of chapter 2, it is not inconsistent in any fundamental way with Keynes’s more complete analysis of wage and price behavior in chapter 19. The fact that I try to understand chapter 2 and its role in the whole story does not in any way imply a devaluation or failure to appreciate the rest of the book, especially Keynes’s analysis of aggregate demand and chapter 19 (Hoover, 1995HOOVER, K. D. Relative wages, rationality, and involuntary unemployment in Keynes’ labor market. History of Political Economy, v. 27, n. 4, 1995., p. 655-656).

Dada a dimensão do modelo deste autor, não convém fazer sua reexposição integral aqui30 30 O Apêndice do texto original não apenas expõe completamente o modelo, como ainda faz exercícios simulados de estática comparativa. , mas apenas elencar seus aspectos mais salientes. Trata-se de uma variante do conhecido modelo de salário de eficiência (Akerlof e Yellen, 1986AKERLOF, G. A.; YELLEN, J. L. Efficiency wage models of the labor market. Cambridge: Cambridge University Press, 1986.), no qual este aparece em termos nominais, ao invés de reais31 31 Hoover segue aqui a inspiração proporcionada por Stiglitz (1987), que parece ter sido o primeiro a perceber que os modelos desse tipo não precisam envolver necessariamente rigidez real de salários. . Representa uma economia com três setores (um produtor de bens de consumo e dois de bens de capital), no qual a oferta de trabalho de cada setor depende, além do salário real, também do salário relativo. Como em Keynes, (1936KEYNES, J. M. The General Theory of Employment, Interest and Money. London: Macmilan, 1936., p. 16), aceita a existência de mobilidade imperfeita intersetorial da mão de obra decorrente das diversas especializações necessárias ao desempenho de cada tarefa (o trabalho não qualificado é contratado apenas pelo setor produtor de bens de consumo, enquanto nos setores de bens de capital o trabalho é totalmente especializado). Aplica-se a hipótese de concorrência perfeita entre as empresas nos três setores, e na oferta de trabalho de cada setor.

Nos dois setores de bens de capital são utilizadas as seguintes hipóteses comportamentais e desenvolvimentos:

  • A eficiência do trabalho no setor é função direta da razão salário nominal do setor/salário nominal percebido no outro setor de bens de capital. Trata-se da hipótese típica dos modelos de salário de eficiência, aplicada neste caso específico ao salário relativo. Este funciona como um mecanismo indireto de controle da eficiência dos processos de trabalho desenvolvidos na firma, pois quanto maior tal salário, maior o esforço despendido pelo trabalhador por hora de trabalho32 32 Segundo Hoover, essa especificação objetiva captar a visão de Keynes de que os salários nominais de uma empresa são rígidos porque os trabalhadores perceberiam um corte unilateral como prejudiciais à sua posição relativa .

  • Consequentemente, o algoritmo de maximização de lucros da empresa envolve duas variáveis de escolha, a quantidade ótima de trabalho a demandar e o salário nominal setorial a fixar, dados os preços do setor e os salários percebidos no outro setor. Um aumento de salários aumenta os custos marginais de produção, mas também aumenta a eficiência do trabalho e, por esta via, reduz tais custos. O salário ótimo setorial, portanto, será aquele exatamente capaz de compensar marginalmente as forças em atuação33 33 Para a solução formal do algoritmo, vide Hoover (1995, p. 670-671). .

  • A função de oferta de trabalho setorial, por sua vez, é obtida a partir da solução de um algoritmo de maximização de utilidade tradicional, resultando em uma relação direta entre a quantidade de trabalho e o salário real setorial, medido pela razão entre o salário nominal setorial vigente no setor de bens de capital e o preço do bem de consumo34 34 Formalização similar em Hoover (1995, p. 666). .

  • Não há nenhuma razão pela qual as quantidades ótimas de trabalho demandada e ofertada, ao salário nominal ótimo estabelecido pelas empresas, se igualem: o mercado de trabalho setorial opera então sob racionamento, valendo a “regra do lado mais curto” para determinar a solução. Se a quantidade de trabalho demandada setorialmente for inferior à ofertada, haverá desemprego estritamente involuntário (o salário real excederá a desutilidade marginal do trabalho). O salário nominal setorial, porém, não reagirá a esta situação, pois, já estando em seu nível ótimo, qualquer eventual ganho resultante de uma redução será por definição mais do que compensada pela perda de eficiência do trabalho35 35 Para o autor, pode-se pensar nas empresas como participantes de um jogo no qual escolhem seus salários nominais simultaneamente às outras, ignorando as escolhas das demais. Sua percepção dos salários das outras empresas são portanto baseadas em seu último movimento. Enquanto a demanda por trabalho for inferior à oferta, nenhuma delas encontrará vantagem em ser a primeira a mudar seu salário nominal, pois aquela que tentar obterá uma perda de eficiência como resultado da reação dos seus empregados à redução do salário relativo. .

  • Há contudo uma assimetria no modelo, pois a “regra do lado mais curto” não se aplica à situação oposta, de excesso de demanda por trabalho. Ou seja, a partir do ponto em que há pleno emprego setorial, caso pressões adicionais de demanda pelo produto se manifestem, os salários nominais sobem para equilibrar o mercado (como em Keynes).

Já no setor de bens de consumo valem as seguintes hipóteses comportamentais e desenvolvimentos:

  • Os trabalhadores do setor de bens de consumo não precisam ser qualificados, e recebem remuneração menor do que os dos setores de bens de capital; trabalhadores que não encontram emprego no setor de bens de capital oferecem trabalho neste setor36 36 Neste aspecto, este setor funciona de forma similar ao setor de subsistência no modelo de Lewis (1954). ;

  • Não há salários de eficiência. Isto é justificado por Hoover como uma simplificação (radicalizada) da ideia de Keynes de que os trabalhadores nos diversos setores dispõem de variados graus de poder de barganha. A ausência de salários de eficiência reflete o baixo poder de barganha dos empregados no setor37 37 É evidente que essa simplificação visa facilitar a formalização do modelo, em detrimento de seu realismo. .

  • O procedimento de maximização dos lucros das empresas do setor gera uma função demanda por trabalho tradicional, ou seja, função direta do salário real (salário nominal do setor / nível de preços do próprio setor);

  • A função oferta de trabalho do setor de consumo depende diretamente do salário real neste setor, mas, como o setor absorve o excedente de trabalhadores dos demais setores, ela também depende do excesso de oferta de trabalho neles existente;

  • O salário nominal setorial, sem a presença do mecanismo do salário de eficiência, atua como variável de equilíbrio do seu mercado setorial de trabalho.

No que concerne à demanda agregada, o modelo propõe uma estratégia de modelagem bastante simplificada: o consumo nominal é função direta da renda corrente total e inversa do nível de preço dos bens de consumo, e o investimento (nos dois setores de bens de capital) é exógeno em termos nominais. O modelo é fechado então com as condições de equilíbrio nos mercados de bens, de igualdade entre produção e vendas.

Um exercício de estática comparativa ilustra bem as propriedades do modelo. Imagine que haja um aumento exógeno nas despesas nominais de investimento. Os resultados são de cunho notavelmente keynesianos:

  • Para uma economia na qual haja excesso de oferta de trabalho no setor de bens de capital, um aumento autônomo do investimento eleva o produto, reduz o desemprego e aumenta os preços neste setor;

  • Aumentos da demanda agregada continuam a reduzir o desemprego até que se esgote a disponibilidade de mão de obra em algum dos setores; atingido o pleno emprego, elevações adicionais da demanda agregada resultam apenas em variações nominais proporcionais dos preços e dos salários em todos os setores, sem efeitos sobre variáveis reais;

  • O desemprego existente é estritamente involuntário enquanto houver alguma elasticidade de oferta global, conforme a definição de Keynes do mesmo, e pode ser claramente identificado como oriundo da insuficiência de demanda, e não da rigidez salarial.

A essência do argumento é que o corte de salários reais via redução de salários nominais implica redução de eficiência dos trabalhadores, o que não ocorre quando (dentro de certos limites) a redução dos salários reais ocorre, como no exercício descrito, mediante expansão da demanda agregada e dos preços, com salários nominais constantes nos setores de bens de capital. Fica explicada assim a assimetria percebida por Keynes entre os dois processos de reduzir salários reais.

4 O modelo de Hoover: pontos fortes e fracos

O modelo de Hoover foi construído de forma tal que se gerasse um equilíbrio no mercado de trabalho agregado e, ao mesmo tempo, houvesse desemprego involuntário. A hipótese chave é a de que as empresas nos setores produtores de bens de capital fixam salários nominais em níveis superiores aos compatíveis com o equilíbrio no mercado de trabalho, devido às considerações acerca do efeito dos salários na eficiência. Por consequência, estabelece-se uma situação de excesso de oferta de trabalho nesse setor, com os níveis de produção e emprego determinados pela demanda por trabalho (dependente da demanda por bens de investimento) a esse salário. Como são as empresas que estabelecem os salários a nível ótimo, a pressão do excesso de oferta de trabalho não ocasionaria queda dos salários nesse setor. E, se houvesse uma maior demanda por bens de investimento, o emprego nesse setor seria mais alto, até o limite do pleno emprego, o que permite ao autor defender a ideia de que o desemprego neste setor resulta estritamente da insuficiência de demanda.

Esta mão de obra excedente nos setores de bens de capital se direcionará ao setor de bens de consumo, no qual, por hipótese, conseguirá eventualmente se empregar, porém a um salário mais baixo. Esse resultado decorre da hipótese de que o mecanismo de salário eficiência opera apenas no setor de bens de investimento, enquanto no setor de bens de consumo operaria o mecanismo de equilíbrio tradicional via salários. O setor de consumo absorve portanto toda e qualquer mão de obra excedente dos demais setores38 38 Fica claro então que a denominação dos setores como de bens de investimento e de consumo é apenas instrumental. A rigor, o modelo precisa de um setor (qualquer que seja seu nome) no qual o equilíbrio de mercado de trabalho seja impedido por considerações de salário eficiência, e outro no qual tal equilíbrio efetivamente se manifeste. . Mas isso não corresponderia afinal a uma situação de pleno emprego?

Não, e esse evidentemente é o ponto essencial. Visando demonstrá-lo, Hoover recorre à complicada definição de Keynes para a existência de desemprego involuntário:

Men are involuntarily unemployed if, in the event of a small rise in the price of wage-goods relatively to the money-wage, both the aggregate supply of labour willing to work for the current money-wage and the aggregate demand for it at that wage would be greater than the existing volume of employment (Keynes, 1936KEYNES, J. M. The General Theory of Employment, Interest and Money. London: Macmilan, 1936., p. 19).

De fato, um (pequeno) aumento no preço dos bens de consumo, devido por exemplo a um aumento autônomo da demanda por tais bens, no modelo descrito: a) produziria elevação da demanda por trabalho no setor de bens de consumo; b) não afetaria significativamente a oferta de trabalho, que com o excesso de oferta de trabalho ao salário nominal corrente no setor de bens de investimento, continuaria inferior ao volume de emprego anteriormente existente.

Nas condições normais em que o sistema econômico opera na descrição keynesiana, ou seja, quando há significativo excesso de oferta de trabalho no setor de bens de investimento, apenas aumentos conceitualmente grandes (não marginais) nos preços dos bens de consumo seriam capazes de reduzir o salário real a ponto de produzir uma retração na oferta de trabalho de ordem a eliminar tal excesso.

Portanto, o modelo de Hoover será capaz de “passar no teste” proposto por Keynes e, portanto, ser capaz de combinar equilíbrio no mercado de trabalho com desemprego involuntário39 39 Como observado anteriormente no caso do exercício de estática comparativa de aumento da demanda autônoma por bens de investimento, ele também é capaz de “passar no teste” da segunda definição de desemprego involuntário (apresentada por Keynes no cap. 3 da TG): quando o emprego agregado é elástico diante de aumento na demanda efetiva. . Sem dúvida, esse é o ponto forte do modelo, mas que exige a abertura da interpretação do desemprego involuntário para englobar o tipo de subemprego nele descrito (o que parece consistente com a definição de Keynes, outro achado de Hoover).

Outro aspecto interessante do modelo é o desse resultado não depender de uma descrição sofisticada do lado da demanda agregada, mas de permanecer robusto mesmo com modelagem mais sofisticada. Isto se coaduna à observação anterior acerca da centralidade das hipóteses acerca da função oferta de trabalho para os resultados obtidos por Keynes na TG.

Por outro lado, é evidente a existência de aspectos ainda inacabados no desenvolvimento de uma visão completa da oferta de trabalho. Convém citar dois de fácil identificação. Primeiro, a completa desconsideração dos salários de eficiência no setor de bens de consumo, e a consequente imposição (desnecessária e contraproducente) da hipótese de equilíbrio de mercado setorial via salários. Em segundo, como o próprio autor concede, o fato de que os salários nominais são absolutamente insensíveis ao desemprego nos setores de bens de capital, o que não se coaduna nem com a evidência empírica, nem com a descrição keynesiana do comportamento dos salários40 40 Hoover (1995, p. 676) propõe resolver esse último problema mediante recurso à ideia de Keynes (1936, pág. 9) de que os trabalhadores se mostram mais eficientes quando há baixo nível de atividade econômica. Isto significa que a eficiência setorial passa a ser função inversa do produto e, por consequência, os salários nominais setoriais se tornam pró-cíclicos. .

Outro ponto - esse de mais difícil identificação - advém do questionamento da própria generalidade do resultado obtido. Em nenhum momento Hoover apresenta uma solução algébrica do modelo, contentando-se com uma solução aritmética de uma versão log-linearizável. É visível, na simulação provida pelo próprio autor no apêndice do artigo, que no exercício de estática comparativa a elevação da demanda autônoma de bens de investimento reduz a produção de bens de consumo real, na medida em que retira deste último, parte de sua mão de obra. Esta queda é menor (7%) do que a expansão da produção de bens de investimento (8%), mas não parece difícil gerar contra exemplos nos quais o resultado inverso ocorra, para outros valores parametrais. Neste contexto a generalidade da solução ficaria comprometida, mesmo que os parâmetros setoriais empregados no exercício pareçam plausíveis.

Pesquisas futuras nesta linha poderiam incrementar o modelo, visando lidar com esses e outros aspectos subdesenvolvidos.

5 O modelo de Hoover vis-à-vis soluções alternativas para a oferta de trabalho

Lavoie (2014LAVOIE, M. Post-Keynesian economics: new foundations. Cheltenham: Edward Elgar, 2014.) apresenta o que é provavelmente o survey mais representativo do estado da arte da discussão da função oferta de trabalho sob o prisma alternativo. Quatro tratamentos são apresentados, todos baseados em configurações específicas da função oferta de trabalho no plano salário real x nível de emprego. Um propõe que a função tenha inclinação negativa monotônica, e três que possua formatos não lineares, sendo uma em forma de “C” e duas em forma de “J”.

A primeira (Nell, 1988NELL, E. J. Prosperity and public spending: transformational growth and the role of government. Boston, MA: Unwin Hyman, 1988.) supõe que o objetivo crucial das famílias consiste em manter sua posição relativa na hierarquia dos consumidores, de forma a reter seu padrão de consumo costumeiro. Este comportamento faz com que diante de uma queda dos salários reais haja aumento da oferta de trabalho, implicando reversão da inclinação da função convencional.

A segunda (Sharif, 2003SHARIF, M. A behavioural analysis of the subsistence standard of living. Cambridge Journal of Economics, v. 27, n. 2, p. 191-207, Mar. 2003.) propõe que quando o salário é muito baixo, a necessidade de defesa do padrão mínimo de consumo obriga a família trabalhadora a reagir da mesma forma defensiva descrita no caso anterior, com também o mesmo efeito sobre a inclinação da curva. Contudo, propõe que no segmento que descreve o comportamento de famílias com salários mais elevados, um aumento de salário real promova o efeito substituição, resultando na reversão da inclinação da curva, na direção tradicional.

A terceira (Altman, 2001ALTMAN, M. A behavioral model of labor supply: casting some light into the black box of income-leisure choice. Journal of Socio-Economics, v. 33, n. 3, p. 199-219, May 2001.) propõe que a existência de uma meta crescente de renda real leve os trabalhadores a trabalhar mais em resposta a salários reais mais elevados, resultando em uma função oferta de trabalho com inclinação inicialmente equivalente à tradicional. Contudo, uma vez atingida essa meta, a resposta ao aumento do salário real muda na direção de mais lazer, resultando na reversão de inclinação da curva.

A última (Shapiro; Stiglitz, 1984SHAPIRO, C.; STIGLITZ, J. E. Equilibrium unemployment as a worker discipline device. American Economic Review, v. 74, n. 3, p. 433-444, Jun. 1984.) parte do pressuposto de que o salário real funciona como um mecanismo de incentivo à produtividade alternativo ao desemprego. Assim, mesmo que a função oferta de trabalho seja vertical, as empresas estarão dispostas a pagar salários reais maiores do que os de mercado. O resultado é que quando o desemprego for elevado, a própria pressão do desemprego funciona como mecanismo incentivador da eficiência, e as empresas não serão incentivadas a pagar salários muito superiores aos de mercado. O oposto se daria, porém, em situações de desemprego baixo. Assim, conforme o nível de emprego aumenta (e o desemprego diminui), a restrição do salário de eficiência se aproxima assintoticamente da vertical, perfazendo o formato em J41 41 Lavoie ainda cita Prasch (2000), cuja função oferta de trabalho é quase vertical, mas que apresenta reentrâncias e saliências que podem ser interpretadas como resultantes da interação dos múltiplos fatores citados nos demais quatro casos. .

Embora cada uma dessas contribuições apresente aspectos interessantes por si, e que podem eventualmente vir a ser incorporadas em possíveis tratamentos futuros do tema, elas parecem padecer de dois problemas que dificultam seu uso em modelos que tenham a intenção de oferecer suporte à combinação “equilíbrio com desemprego involuntário” para a teoria keynesiana. Em primeiro lugar, todas elas apresentam funções em termos de salários reais, e essas, como vimos, descrevem situações nas quais não há espaço para uma descrição à la Keynes, na qual mudanças de salários reais decorrentes de mudanças nos salários nominais e nos níveis de preços gerem efeitos assimétricos. Em segundo lugar, os múltiplos equilíbrios resultantes, além de serem todos de pleno emprego, podem implicar dinâmicas estáveis ou instáveis, dependendo criticamente da inclinação da função demanda por mão de obra. Esta, porém, como vimos, é de difícil generalização. Resultam então equilíbrios instáveis (cuja dinâmica, como vimos, é pouco plausível), ou estáveis, cuja dinâmica é plausível, mas as conclusões derivadas em nada diferem das tradicionais.

Talvez por isso o próprio Lavoie conceda que seu survey não é “completamente conclusivo”. E talvez por isso o caminho apontado por Hoover pareça mais promissor.

Curiosamente, a alternativa mais atraente ao “caminho de Hoover” ainda parece ser o velho modelo dicotômico de mercado de trabalho de Lewis (1954LEWIS, W. A. Economic development with unlimited supplies of labour. The Manchester School, v. 22, p. 139-191, 1954.), surpreendentemente ainda de uso. Sua característica mais saliente é uma função oferta de trabalho “quebrada”, na qual um grande trecho horizontal, ao longo do qual o salário real é mantido constante pela concorrência dos trabalhadores do setor de subsistência, é seguido por um trecho vertical, uma vez atingido o pleno emprego e esgotada a disponibilidade de mão de obra do setor de subsistência.

Sua característica mais apreciada consiste indubitavelmente no fato de que o equilíbrio atingido ao longo do segmento horizontal implica inapelavelmente desemprego (ou subemprego) involuntário: os trabalhadores que não encontram trabalho no setor moderno e se alojam no de subsistência o fazem de forma claramente involuntária, dada a falta de opções. Ao se aproximar desse aspecto do modelo de Lewis que o de Hoover certamente ganha pontos.

Porém, se Hoover e Lewis compartilham esse aspecto, por outro lado as diferenças são bastante significativas. Duas conhecidas falhas do modelo de Lewis dificultam sua utilização como provedor da função de oferta de trabalho padrão para modelos keynesianos: 1) o modelo prevê a rigidez de salários reais, e não nominais à la Keynes, e têm portanto dificuldades em explicar grandes quedas que sucedem por vezes nessa variável, mesmo no contexto de países subdesenvolvidos; 2) a transição do modelo no seu “ponto de inflexão” provavelmente é brusco demais.

Por todos esses motivos, parece razoável, a despeito dos pontos negativos elencados no item anterior, dedicar maiores esforços de pesquisa no estudo e potencial desenvolvimento do modelo de Hoover.

Considerações finais

Ao longo deste artigo procuramos argumentar:

  1. Que a validade do princípio da demanda efetiva no curto prazo é logicamente indisputável, e que todas as tentativas de questioná-la acabam inexoravelmente conduzindo à utilização de algum subterfúgio teórico capaz de interromper a passagem do tempo econômico entre o período de produção e o de mercado, de modo a impor algum mecanismo de coordenação ex ante dos mercados, inexistente na realidade capitalista;

  2. Que a validade do princípio da demanda efetiva no longo prazo, porém, é disputável, sendo que o foco da disputa com a lei de Say reside na natureza e características das funções oferta e demanda por trabalho42 42 Não se nega que a natureza da moeda, capturada através de suas três propriedades (cap. 17 da TG), afete fundamentalmente a dinâmica econômica através de uma multiplicidade de canais. Mudanças na preferência pela liquidez (bem como em outras variáveis monetário-financeiras) continuam a afetar a disponibilidade de crédito, a criação de moeda, as taxas de juros, a demanda agregada e, portanto, o produto, a demanda por trabalho e o nível de emprego. Pelo contrário, com a introdução de uma função de oferta de trabalho à la Hoover, a arguição acerca do caráter permanente (de longo prazo) desses efeitos - e portanto da natureza monetária da economia capitalista - resulta significativamente reforçada. .

  3. Dadas as dificuldades de generalização da função demanda por trabalho, a natureza e as características da função oferta de trabalho se tornam cruciais para a discussão acerca do longo prazo;

  4. Keynes fez críticas à função oferta de trabalho convencional que foram suficientes para a “validação prática” (até os anos de 1970) da política macro keynesiana, mas insuficientes para a completa validação teórica do princípio da demanda efetiva no longo prazo; essa demanda o pleno desenvolvimento de uma função oferta de trabalho alternativa;

  5. Os seguidores de Keynes, pelo menos até recentemente, deram muito pouca importância ao desenvolvimento dessa função alternativa43 43 Alguns simplesmente recorrem ao modelo de Lewis (1954) de inspiração clássica. Embora não represente uma construção que siga as indicações deixadas por Keynes no capítulo 2 da TG, não deixa de produzir resultados mais fiéis a Keynes do que os resultantes da utilização da função oferta de trabalho convencional. ;

  6. Contudo, Kevin Hoover desenvolveu há alguns anos um modelo que pode se constituir em um importante primeiro movimento na tentativa de construção de uma função oferta de trabalho com a intenção explícita de substituir a convencional. Se a iniciativa obtiver sucesso e gerar desdobramentos futuros significativos, passa a ser possível finalmente questionar a aceitação restrita de Keynes ao curto prazo que a teoria econômica padrão lhe conferiu. Tal modelo, porém, parece ter sido objeto de pouquíssima atenção entre os próprios economistas keynesianos, de modo que o presente artigo busca mostrar porque ele deveria ser objeto de maior atenção.

Em suma, cremos que o modelo de Hoover ilustra a importância fundamental do processo de determinação dos salários em Keynes para os seus resultados, ao mesmo tempo em que preserva hipóteses comportamentais e resultados tipicamente keynesianos. Longe ainda de um modelo perfeitamente acabado, aponta contudo importantes direções de pesquisa, ilustrando que a existência de “equilíbrio com desemprego involuntário” de Keynes pode não ser o “absurdo lógico” ao qual foi reduzido pela interpretação convencional. Mas também questiona a importância de novos avanços sem alicerces estabelecidos em uma descrição mais adequada do que seria uma função de oferta de trabalho estritamente keynesiana.

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  • 44
    JEL E24, E00, B22.
  • 1
    Parece haver aqui uma função de demanda por trabalho keynesiana do tipo desenvolvido por Davidson e Smolensky (1964DAVIDSON, P.; SMOLENSKY, E. Aggregate supply and demand analysis. New York: Harper & Row, 1964.), que possui como argumento a demanda esperada pelas empresas por seus produtos.
  • 2
    Para um debate acerca da possibilidade de agregação dessas decisões individuais para a construção de uma função de oferta agregada, vide Hartwig (2011HARTWIG, J. Keynes’s aggregate supply function: everything you always wanted to know about Z. Zürich: KOF, 2011. (KOF Working Papers, n. 282).) e Hayes (2007HAYES, M. Keynes’s Z function, heterogeneous output and marginal productivity. Cambridge Journal of Economics, v. 31, n. 5, p. 741-753, 2007.).
  • 3
    Bem como à revisão da oferta de trabalho por parte dos trabalhadores.
  • 4
    Para uma derivação formal das funções keynesianas mais importantes, vide Heller (2009HELLER, C. Keynes’s slip of the pen: aggregate supply curve vs employment function. Munich, Germany: MPRA, 2009. (MPRA Paper, n. 12837).).
  • 5
    Ademais, a relação acima apresentada não é uma função de oferta de trabalho, pois se como tal fosse considerada seria necessário admitir que a economia operasse permanente a pleno emprego (ou à NAIRU), em flagrante contradição à intenção de Keynes. A função oferta de trabalho convencional é usada na Teoria Geral apenas como determinante do limite superior absoluto ao nível de emprego, e não do nível de emprego em si. Contudo, nesta obra o nível de emprego é determinado endogenamente, assim como o nível de salário nominal, o que supõe a existência de algum tipo de função oferta de trabalho. Keynes, porém, não discute em profundidade a fundamentação econômica dessa função, nem a expõe explicitamente, o que parece dificultar a compreensão da possibilidade de equilíbrio permanente abaixo do pleno emprego.
  • 6
    Perceba que o apelo às expectativas racionais não resolve o problema, pois, ainda quando desconsideradas as críticas ao conceito em si, a hipótese em questão não é a mesma coisa que conhecimento perfeito. Mesmo no caso simplificado de expectativas homogêneas, subsiste um termo de erro aleatório, o qual é suficiente para impedir um equilíbrio de mercado na ausência de um leiloeiro. Também as versões mais sofisticadas do modelo walrasiano, como o Arrow-Debreu, DSGE e similares padecem do mesmo mal: em algum momento é imposta uma condição extremamente restritiva para que os desequilíbrios no período de mercado possam ser eliminados, envolvendo algum mecanismo de reversão temporal capaz de emular o leiloeiro.
  • 7
    Perceba que esta é a versão coeteris paribus do argumento. Em uma versão geral, trata-se de obter o sinal da derivada do nível de emprego em relação ao nível de salários nominais. A resposta da teoria convencional é de que o sinal dessa derivada é inevitavelmente negativo, implicando que uma queda dos salários nominais eleva o nível de emprego. A de Keynes, que ele é ambíguo, podendo até mesmo ser zero ou positivo.
  • 8
    Para um debate sobre esse ponto, vide Heller (2009HELLER, C. Keynes’s slip of the pen: aggregate supply curve vs employment function. Munich, Germany: MPRA, 2009. (MPRA Paper, n. 12837).); Arthmar e Brady (2010ARTHMAR, R.; BRADY, M. E. Patinkin, Keynes and the Z curve. History of Economic Ideas, p. 127-146, 2009.); Hartwig (2011HARTWIG, J. Keynes’s aggregate supply function: everything you always wanted to know about Z. Zürich: KOF, 2011. (KOF Working Papers, n. 282).) e Ambrosi (2011AMBROSI, G.M. Keynes’ abominable Z-footnote. Cambridge Journal of Economics, v. 35, n. 3, p. 619-633, 2001.).
  • 9
    Entre os poucos economistas da corrente principal que insistiam nos resultados de Keynes a este respeito, Tobin (1975TOBIN, J. Keynesian models of recession and depression. The American Economic Review, v. 65, n. 2, 1975.) parece ser o mais conhecido.
  • 10
    Curiosamente, poucos estudos abordaram a questão dos efeitos da flexibilidade salarial diretamente, do ponto de vista aplicado. De Long e Summers (1986DELONG, J. B.; SUMMERS, L. Is increased price flexibility stabilizing? American Economic Review, v. 76, n. 5, 1986.), por exemplo, chegaram à surpreendente conclusão de que a flexibilidade salarial opera, como temia Keynes, de forma desestabilizadora: um pouco a mais de flexibilidade tende a aumentar a variabilidade do produto, exceto, naturalmente, nas cercanias da “flexibilidade infinita” do leiloeiro walrasiano.
  • 11
    O efeito dos saldos reais no consumo foi “confirmado” estatisticamente para alguns países e períodos - por exemplo, Mayer (1959MAYER, T. The empirical significance of the real balance effect. The Quarterly Journal of Economics, v. 73, n. 2, 1959.); Schotta (1964SCHOTTA, C. The real balance effect in the United States, 1947-1963. The Journal of Finance, v. 19, n. 4, 1964.) - mas a despeito de sua relativa fraqueza empírica, foi considerado fundamental, uma vez que apontava que a economia tenderia a reagir ao desequilíbrio no mercado de trabalho na direção correta. Essa fraqueza foi interpretada como uma confirmação da ideia de que a flexibilidade salarial operava apenas lentamente, e que portanto as políticas de gestão da demanda keynesianas eram de grande relevância prática. Chama a atenção, contudo, do ponto de vista da econometria contemporânea, a falta de controle adequado de outras variáveis (como salário real, taxa de câmbio real, investimento real, riqueza real, crédito) que podem interferir significativamente na estimativa, ao afetar a relação entre demanda agregada, consumo e preço.
  • 12
    Keynes, contudo, havia afirmado explicitamente que pretendia apenas elencar os fatores mais importantes do ponto de vista prático (Keynes, 1936KEYNES, J. M. The General Theory of Employment, Interest and Money. London: Macmilan, 1936., p. 164).
  • 13
    Repare que o argumento em si é questionável, na medida em que se pretende justamente discutir o status das posições de longo prazo. Só parece fazer sentido eliminar as discrepâncias entre expectativas e resultados efetivamente observados em uma análise ao se supor que a economia se dirija para um equilíbrio cuja posição e trajetória de convergência em sua direção sejam independentes dessas discrepâncias. Mas admitir isso nos termos dessa discussão parece implicar uma imposição apriorística do resultado.
  • 14
    Mesmo esse último efeito, segundo Tobin (1980TOBIN, J. Asset accumulation and economic activity. Chicago: University of Chicago Press, 1980.), deveria ser restrito a um prazo limitado, enquanto os contratos de dívidas feito sobre expectativas inflacionárias excessivamente altos, vencessem e/ou fossem substituídos por novos contratos de dívidas com expectativas reajustadas. Isso pode implicar um lapso de tempo cronológico bastante elevado, tendo em vista os longos prazos que os títulos de dívida típicos dos mercados financeiros dos países desenvolvidos tendem a alcançar. Contudo, ele também parece supor que as discrepâncias entre expectativas e resultados devem ser desconsideradas, nos mesmos moldes da arguição da nota de rodapé anterior.
  • 15
    Ou, mais precisamente, dotada de característica de ter a soma dos coeficientes dos termos da inflação retrospectiva e da inflação prospectiva igual a um.
  • 16
    A explicação de Krugman das recessões como tendo causas estritamente monetárias, a partir da famosa parábola da cooperativa de pais-babás, é uma na qual o argumento parece particularmente discernível. Vide Hens, Reiner e Vogt (2007).
  • 17
    Note-se a distinção para a qual Heller (2009HELLER, C. Keynes’s slip of the pen: aggregate supply curve vs employment function. Munich, Germany: MPRA, 2009. (MPRA Paper, n. 12837).) e Brady (2004BRADY, M. E. Essays on J.M. Keynes and... Bloomington, Indiana: Xlibris Corp., 2004.) chamaram a atenção entre a função de oferta agregada (ex ante) e a curva de oferta agregada (ex post). Esta última é a função inversa da função do emprego do cap. 20 da TG.
  • 18
    “The condition ew = 1 means that the wage-unit in terms of money rises in the same proportion as the effective demand (...)”(Keynes, 1936, pág. 152). E: “(...In the) point of full employment (...) money-wages have to rise, in response to an increasing effective demand in terms of money, fully in proportion to the rise in the prices of wage-goods (...)” (Keynes, 1936KEYNES, J. M. The General Theory of Employment, Interest and Money. London: Macmilan, 1936., p. 150).
  • 19
    “(... In) the case of a 'flight from the currency' in which ed and ew become large (...)” (Keynes, 1936KEYNES, J. M. The General Theory of Employment, Interest and Money. London: Macmilan, 1936., p. 153).
  • 20
    “(...) the wage-unit does not change continuously in terms of money in response to every small change in effective demand; (...)” (Keynes, 1936KEYNES, J. M. The General Theory of Employment, Interest and Money. London: Macmilan, 1936., p. 150).
  • 21
    If, on the contrary, money-wages were to fall without limit whenever there was a tendency for lessthan full employment, the asymmetry would, indeed, disappear. But in that case there would be no resting -place below full employment until either the rate of interest was incapable of falling further or wages were zero. In fact we must have some factor, the value of which in terms of money is, if not fixed, at least sticky, to give us any stability of values in a monetary system” (Keynes, 1936KEYNES, J. M. The General Theory of Employment, Interest and Money. London: Macmilan, 1936., p. 152).
  • 22
    A “correção de Brady e Heller” implicaria considerar a curva de oferta agregada, e não a função de oferta agregada.
  • 23
    Será negativamente inclinada se os efeitos estabilizadores forem mais fortes, e vice-versa, e vertical se os efeitos forem exatamente equivalentes.
  • 24
    Mas repare que também que não há incompatibilidade da visão keynesiana com uma função demanda por trabalho não linear e mesmo não monotônica, conforme os elementos conflitantes que operam sobre tal função se tornem predominantes para diversas combinações salário/emprego.
  • 25
    Vide nota de rodapé 21.
  • 26
    Trata-se rigorosamente da mesma função, com a peculiaridade de que, ao ser plotada em termos de salários nominais, e não reais, passa a exibir a propriedade de ser deslocada em decorrência de mudanças no nível geral de preços.
  • 27
    Vide Figura 11.5 na mesma página. Curiosamente, uma vez que a posição da função demanda por trabalho depende dos determinantes da função demanda agregada, a solução adotada torna o próprio nível de emprego de pleno emprego dependente desses determinantes, o que não parece ser o que Keynes tinha em mente.
  • 28
    Neste caso, por exemplo, os sinais das derivadas parciais das variáveis de demanda agregada se invertem, provocando resultados opostos aos postulados por Keynes. Alguns autores, como Oreiro (1997OREIRO, J.L. Flexibilidade salarial, equilíbrio com desemprego e desemprego de desequilíbrio. Revista Brasileira de Economia, v. 51, n. 3, p. 347-378, 1997.), parecem ter apostado nesta interpretação.
  • 29
    Aparecem na TG: funções de oferta e demanda por bens (ex ante e ex post, caps. 3 e 5), curva de oferta por bens (cap.20); oferta e demanda por bens de investimento (cap. 11); funções demanda e oferta (“dada”) de moeda (caps. 13 a 15). Tais funções de oferta e demanda podem ainda ser supostos para todos demais ativos, pois é possível imputar a todos eles (no cap. 17) o mesmo procedimento adotado no cap. 11, no qual a determinação do investimento pode ser obtida pela comparação entre a eficiência marginal e a taxa de juros, ou, alternativamente, pela contraposição entre preços de oferta e de demanda. A presença e a interação desses vários mercados, porém, não transforma o modelo da TG em um modelo de equilíbrio geral walrasiano, pois, entre outros fatores, a interveniência do tempo quebra a simultaneidade dos processos econômicos. Porém, a interação desses mercados, como mostrado em Davidson e Smolensky, torna difícil atribuir a determinação da produção a um deles isoladamente.
  • 30
    O Apêndice do texto original não apenas expõe completamente o modelo, como ainda faz exercícios simulados de estática comparativa.
  • 31
    Hoover segue aqui a inspiração proporcionada por Stiglitz (1987STIGLITZ, J. E. The causes and consequences of the dependence of quality on price. Journal of Economic Literature, v. 25, n. 1, p. 1-48, 1987.), que parece ter sido o primeiro a perceber que os modelos desse tipo não precisam envolver necessariamente rigidez real de salários.
  • 32
    Segundo Hoover, essa especificação objetiva captar a visão de Keynes de que os salários nominais de uma empresa são rígidos porque os trabalhadores perceberiam um corte unilateral como prejudiciais à sua posição relativa
  • 33
    Para a solução formal do algoritmo, vide Hoover (1995HOOVER, K. D. Relative wages, rationality, and involuntary unemployment in Keynes’ labor market. History of Political Economy, v. 27, n. 4, 1995., p. 670-671).
  • 34
    Formalização similar em Hoover (1995HOOVER, K. D. Relative wages, rationality, and involuntary unemployment in Keynes’ labor market. History of Political Economy, v. 27, n. 4, 1995., p. 666).
  • 35
    Para o autor, pode-se pensar nas empresas como participantes de um jogo no qual escolhem seus salários nominais simultaneamente às outras, ignorando as escolhas das demais. Sua percepção dos salários das outras empresas são portanto baseadas em seu último movimento. Enquanto a demanda por trabalho for inferior à oferta, nenhuma delas encontrará vantagem em ser a primeira a mudar seu salário nominal, pois aquela que tentar obterá uma perda de eficiência como resultado da reação dos seus empregados à redução do salário relativo.
  • 36
    Neste aspecto, este setor funciona de forma similar ao setor de subsistência no modelo de Lewis (1954LEWIS, W. A. Economic development with unlimited supplies of labour. The Manchester School, v. 22, p. 139-191, 1954.).
  • 37
    É evidente que essa simplificação visa facilitar a formalização do modelo, em detrimento de seu realismo.
  • 38
    Fica claro então que a denominação dos setores como de bens de investimento e de consumo é apenas instrumental. A rigor, o modelo precisa de um setor (qualquer que seja seu nome) no qual o equilíbrio de mercado de trabalho seja impedido por considerações de salário eficiência, e outro no qual tal equilíbrio efetivamente se manifeste.
  • 39
    Como observado anteriormente no caso do exercício de estática comparativa de aumento da demanda autônoma por bens de investimento, ele também é capaz de “passar no teste” da segunda definição de desemprego involuntário (apresentada por Keynes no cap. 3 da TG): quando o emprego agregado é elástico diante de aumento na demanda efetiva.
  • 40
    Hoover (1995LEWIS, W. A. Economic development with unlimited supplies of labour. The Manchester School, v. 22, p. 139-191, 1954., p. 676) propõe resolver esse último problema mediante recurso à ideia de Keynes (1936KEYNES, J. M. The General Theory of Employment, Interest and Money. London: Macmilan, 1936., pág. 9) de que os trabalhadores se mostram mais eficientes quando há baixo nível de atividade econômica. Isto significa que a eficiência setorial passa a ser função inversa do produto e, por consequência, os salários nominais setoriais se tornam pró-cíclicos.
  • 41
    Lavoie ainda cita Prasch (2000PRASCH, R. Reassessing the labor supply curve. Journal of Economic Issues, v. 34, n. 3, p. 679-692, Sept. 2000.), cuja função oferta de trabalho é quase vertical, mas que apresenta reentrâncias e saliências que podem ser interpretadas como resultantes da interação dos múltiplos fatores citados nos demais quatro casos.
  • 42
    Não se nega que a natureza da moeda, capturada através de suas três propriedades (cap. 17 da TG), afete fundamentalmente a dinâmica econômica através de uma multiplicidade de canais. Mudanças na preferência pela liquidez (bem como em outras variáveis monetário-financeiras) continuam a afetar a disponibilidade de crédito, a criação de moeda, as taxas de juros, a demanda agregada e, portanto, o produto, a demanda por trabalho e o nível de emprego. Pelo contrário, com a introdução de uma função de oferta de trabalho à la Hoover, a arguição acerca do caráter permanente (de longo prazo) desses efeitos - e portanto da natureza monetária da economia capitalista - resulta significativamente reforçada.
  • 43
    Alguns simplesmente recorrem ao modelo de Lewis (1954LEWIS, W. A. Economic development with unlimited supplies of labour. The Manchester School, v. 22, p. 139-191, 1954.) de inspiração clássica. Embora não represente uma construção que siga as indicações deixadas por Keynes no capítulo 2 da TG, não deixa de produzir resultados mais fiéis a Keynes do que os resultantes da utilização da função oferta de trabalho convencional.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2017

Histórico

  • Recebido
    26 Nov 2016
  • Aceito
    03 Jan 2017
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