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Tributo a Wilson Cano, professor, pesquisador, intelectual e cidadão engajado

A partir de meados de 1974 tive o imenso privilégio de conviver com o grupo de fundadores do Instituto de Economia da Unicamp, originário do então Departamento de Economia e Planejamento Econômico-DEPE, que pertencia ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Recém-chegado do exterior, com o Doutorado obtido na Universidade de Cornell-EUA e recomendado pela Profa. Maria da Conceição Tavares, fui contratado pela Unicamp e logo incumbido de criar e coordenar os cursos de pós-graduação em economia - não por mérito - mas pelo fato de ser, naquele momento, o único professor do DEPE com título de doutor. E, por conta da urgência dessa missão, tive que interagir amiúde com todos os colegas, discutindo a grade curricular, a ementa e a bibliografia básica dos cursos.

Dentre os interlocutores mais próximos, junto com Luiz Gonzaga Belluzzo e João Manuel Cardoso de Melo, estava Wilson Cano. Naquele momento os três trabalhavam intensamente, correndo contra o relógio, para concluir suas respectivas Teses de Doutorado, condição necessária à criação da pós-graduação. As três teses, diga-se, excepcionais, foram efetivamente concluídas e defendidas em 1975 permitindo a instalação do curso de Mestrado1 1 Além das três teses citadas também foi concluída em 1975 a do professor Ferdinando Figueiredo e, no ano seguinte (1976) foram finalizadas mais seis, dos professores Carlos Lessa, Antônio Castro, Osmar Marchese, Éolo Pagnani, Rui Granziera, Carlos Eduardo Gonçalves e Tamáz Szmrecsányi. Com esse quadro ampliado de doutores foi possível desenvolver a pós-graduação, criar o curso de doutoramento e obter as aprovações do Conselho Federal de Educação e das agências de apoio (Capes/MEC, CNPq e Fapesp). .

Afável, amigo, direto e construtivo, Wilson dispôs-se imediatamente a cooperar, emprestando sua sólida bagagem cepalina à discussão dos cursos de história, economia brasileira e economia internacional.

Em retribuição ofereci-me a ler e comentar alguns dos capítulos de sua tese, em elaboração. Fiquei muito impressionado com o domínio do autor em relação às informações censitárias e estatísticas (de fontes federais e estaduais, especialmente de São Paulo, cobrindo indústria, agricultura, comércio interno e exterior, movimento de produtos e imigrantes pelo Porto de Santos) e, ainda, com sua admirável criatividade em organizar tabelas extremamente elucidativas reunindo informações antes dispersas.

Vi, desde logo, que se tratava de um pesquisador mãos-cheias e que suas análises sobre o desenvolvimento da economia cafeeira de São Paulo estavam, todas, firmemente ancoradas em fatos e dados. Por isso, e por sua aguda capacidade analítica, capaz de entender o movimento articulado do todo e das partes, inspirado pela visão cepalina, Wilson foi capaz de redigir em poucos meses uma Tese Doutoral marcante, seminal, a respeito da gênese do capitalismo e da indústria no Brasil - tese que ele intitulou “Raízes da Concentração Industrial em São Paulo” (Cano, 1975CANO, Wilson. Raízes da concentração industrial em São Paulo. Tese (Doutorado)-Unicamp. Instituto de Economia, Campinas, 1975.).

Nela, o professor Wilson documentou a pujança e empreendedorismo da burguesia cafeeira capitalista em São Paulo, nos decênios finais do século XIX e iniciais do século XX. O dinamismo do “complexo cafeeiro” introduziu e expandiu o assalariamento do trabalho, a imigração em massa, o crescimento de atividades conexas, tais como, intermediários comerciais exportadores e importadores, casas bancárias e serviços urbanos.

Esta nova burguesia logo viria ocupar as abundantes terras férteis do interior, diversificar a agricultura comercial e atrair capitais estrangeiros para empreender uma extensa malha de ferrovias e ampliar o Porto de Santos. E, quando a oferta de energia elétrica se tornou escassa, em meados dos anos 20, pressionou para que a concessionária (São Paulo Tramway, Light and Power Ltd) desenvolvesse o “projeto da Serra” que originou a Usina Henry Borden em Cubatão - empreendimento fundamental para sustentar a industrialização concentrada em São Paulo até os anos 60.

Em suma, ao estabelecer as bases do sistema capitalista de produção no país o complexo cafeeiro paulista transformou radicalmente a economia brasileira, impulsionou a mecanização da produção, propiciou formação do mercado interno e das classes médias burguesas baseadas em pequenos empreendimentos comerciais, de serviços e de manufaturas. O desenvolvimento induzido da indústria manufatureira seria, porém, limitado pela natureza do sistema centro-periferia e pela dificuldade de fazer avançar as bases do sistema de forças produtivas, carente dos setores de insumos básicos e de bens de capital, salvo de alguns segmentos2 2 A respeito do desenvolvimento induzido de setores da indústria de bens de capital o professor Wilson Cano mostrou na sua Tese como a fabricação de máquinas e implementos agrícolas para o beneficiamento do café foi fundamental para o aumento da produtividade e da qualidade. Pequenas fundições a carvão supriam a matéria prima para esses segmentos emergentes da indústria metal-mecânica. A ampliação das operações portuárias e ferroviárias demandava atividades de reparo e manutenção, bem como a produção de partes e componentes mais simples para as máquinas e equipamentos importados. Essas empresas, muitas delas de imigrantes europeus, desenvolveram paralelamente a oferta de máquinas para beneficiamento de arroz, moedas para cana, moinhos de milho e mandioca e, posteriormente, nos anos 20, de tornos mecânicos simples de pequeno porte. Tratava-se, porém, de um desenvolvimento restrito e focado, sendo as máquinas complexas ou de grande porte todas importadas. .

A natureza seminal do “Raízes da Concentração Industrial em São Paulo” revelou-se, ao longo de décadas, nos desdobramentos de vários programas de pesquisa inspirados pelo professor Wilson Cano, dentre os quais destaco: a) A análise da integração do mercado nacional e de suas implicações sobre a divisão industrial do trabalho entre regiões, ajudando a desvendar a chamada “desconcentração concentrada3 3 Expressão lançada pelo Prof. Clélio Campolina da UFMG, orientando de tese do Prof. Wilson Cano, no artigo “Desenvolvimento poligonal no Brasil: nem desconcentração, nem contínua polarização” (Campolina, 1993). ” da indústria; b) A reflexão sobre os impactos regionais e sub-regionais da rígida concentração fundiária (especialmente no Norte e Nordeste) e da expansão da grande agricultura comercial e das respectivas agroindústrias (especialmente no Sul, Sudeste e Centro-Oeste) voltadas primeiro ao mercado interno e depois, crescentemente, à exportação; c) A problemática urbana e metropolitana brasileira e sua diferenciação regional, considerando os sistemas regionais de cidades, a fragilidade do planejamento urbano e territorial e as implicações nocivas das desigualdades sociais sobre as populações marginalizadas; d) O debate sobre a desconstituição do projeto nacional de desenvolvimento e sobre as causas e consequências da desindustrialização brasileira pós-1990; e) Contribuições a outras temáticas importantes, que lhes eram particularmente caras, tais como: o desenvolvimento histórico do sistema bancário brasileiro; o papel dos estados da Federação, enfatizando as finanças públicas; a defesa do papel do Estado, do planejamento e da soberania nacional

Graças à sua generosidade, liderança, capacidade de agregar e inspirar uma legião de discípulos4 4 Fiquei tentado a citar uma lista de discípulos orientados pelo Prof. Wilson que se tornaram pesquisadores e professores em muitas universidades de todo o País mas logo desisti pois são tantos que correria o sério risco de injustamente omitir muitos nomes, especialmente formados nos anos mais recentes. , as temáticas supracitadas geraram muitos frutos acadêmicos e espraiaram sua influência Brasil afora. Manteve-se sempre ativo, participante e criativo. Por estas qualidades deixou um vivo legado intelectual, sendo exemplo notável de coerência, rigor e método como pesquisador.

De temperamento altivo, forjado desde jovem no trabalho duro, tendo que fazer a faculdade de economia no curso noturno, Wilson não se abatia ante dificuldades nem transigia em matéria de princípios. Emanava indubitável honradez e elevada estatura moral.

Sua firmeza ética, mesclada com indignação diante das desigualdades sociais e da espoliação dos mais fracos, lhe robustecia o pendor crítico e instigava o intelectual politicamente engajado na defesa da Democracia, do interesse público, da justiça social e da soberania nacional. Este era o Professor e Cidadão Wilson Cano. Que guardemos seu exemplo e honremos sua memória.

Referências bibliográficas

  • CAMPOLINA, Clélio. Desenvolvimento poligonal no Brasil: nem desconcentração, nem contínua polarização. Nova Economia, v. 3 n. 1, 1993.
  • CANO, Wilson. Raízes da concentração industrial em São Paulo. Tese (Doutorado)-Unicamp. Instituto de Economia, Campinas, 1975.
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    Além das três teses citadas também foi concluída em 1975 a do professor Ferdinando Figueiredo e, no ano seguinte (1976) foram finalizadas mais seis, dos professores Carlos Lessa, Antônio Castro, Osmar Marchese, Éolo Pagnani, Rui Granziera, Carlos Eduardo Gonçalves e Tamáz Szmrecsányi. Com esse quadro ampliado de doutores foi possível desenvolver a pós-graduação, criar o curso de doutoramento e obter as aprovações do Conselho Federal de Educação e das agências de apoio (Capes/MEC, CNPq e Fapesp).
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    A respeito do desenvolvimento induzido de setores da indústria de bens de capital o professor Wilson Cano mostrou na sua Tese como a fabricação de máquinas e implementos agrícolas para o beneficiamento do café foi fundamental para o aumento da produtividade e da qualidade. Pequenas fundições a carvão supriam a matéria prima para esses segmentos emergentes da indústria metal-mecânica. A ampliação das operações portuárias e ferroviárias demandava atividades de reparo e manutenção, bem como a produção de partes e componentes mais simples para as máquinas e equipamentos importados. Essas empresas, muitas delas de imigrantes europeus, desenvolveram paralelamente a oferta de máquinas para beneficiamento de arroz, moedas para cana, moinhos de milho e mandioca e, posteriormente, nos anos 20, de tornos mecânicos simples de pequeno porte. Tratava-se, porém, de um desenvolvimento restrito e focado, sendo as máquinas complexas ou de grande porte todas importadas.
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    Expressão lançada pelo Prof. Clélio Campolina da UFMG, orientando de tese do Prof. Wilson Cano, no artigo “Desenvolvimento poligonal no Brasil: nem desconcentração, nem contínua polarização” (Campolina, 1993CAMPOLINA, Clélio. Desenvolvimento poligonal no Brasil: nem desconcentração, nem contínua polarização. Nova Economia, v. 3 n. 1, 1993.).
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    Fiquei tentado a citar uma lista de discípulos orientados pelo Prof. Wilson que se tornaram pesquisadores e professores em muitas universidades de todo o País mas logo desisti pois são tantos que correria o sério risco de injustamente omitir muitos nomes, especialmente formados nos anos mais recentes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Out 2021

Histórico

  • Recebido
    09 Ago 2021
  • Aceito
    16 Ago 2021
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