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Ordem, Limpeza e Germinação: regulação da vida nas escolas cívico-militares

Resumo:

Esse texto objetiva fabular as insurreições escolares onde a militarização é mais latente. No atual governo, as escolas cívico-militares tornaram-se modelo de ensino. Aliando o discurso de ordem e progresso à militarização escolar, faz-se prosperar uma imagem suja da escola pública atacando todos os corpos. Políticas conservadoras mais recentes investiram na higienização da vida realizada por elementos tensoativos. Eis as fabulações como resistência à militarização, cenas de pequenas insurreições no funcionamento da escola. Sobre o esfacelamento da vida, a pesquisa propõe pensar nas insurreições que ocorrem dentro das escolas como modo de valorizar as relações e os afetos tecidos entre corpos, ressaltando o caráter educativo de diferenciação infinito da vida.

Palavras-chave:
Vida; Fabulação; Escola militar; Insurreição; Tensoativos

Abstract:

This essay aims to fabulate school insurrections where the militarization is more powerful. In this govern, the military-civic school became the teaching model. Allying the discourse of order and progress to the school militarization, the president prospers a dirty image of the public school attacking all the bodies. Recent conservative policies have invested in the sanitation of the life accomplished by surfactant elements. Thus, fabulation as a resistance to the militarization, scenes of small insurrections of the school functioning. About crumbling of the life, the research proposes to think the school insurrections as a way to evaluate the relation and the affects sewed between bodies, highlighting the educative character of the infinite differentiation of life.

Keywords:
Life; Fabling; Military school; Insurrection; Surfactant

Limpeza de ordem

Tensoativos. Um termo químico comum ao ensino médio que nada mais é que uma substância capaz de interagir com o meio, indiferentemente de sua “filiação”, para limpar o alvo de todas as suas sujeiras, gorduras e impurezas. Tradução: tensoativos limpam. E, em escolas, a limpeza deve ser feita sempre com os materiais mais pesados, mais fortes. A vida na escola é tão invasiva, tão cheia de germes e vírus, que os tensoativos funcionam sem trégua, sendo substituídos um após o outro, sem horário para descanso.

Esse é o cenário político atual nas escolas: um grupo de ‘limpeza’ instala-se em cada corredor, em cada sala. São professoras e diretoras, mas também alunos, familiares, serventes, cozinheiras, porteiros. A “limpeza” não é da ordem de manter o chão limpo, mas a de manter a escola limpa dos germes da vida. A limpeza é da ordem das ideias.

Quando sensatas, as ideias são zombeteiras por excelência (Corazza; Aquino, 2011CORAZZA, Sandra; AQUINO, Julio Groppa. (Org.). Dicionário das Ideias Feitas em Educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.), não cortejam com as formalidades, com os rituais seculares e com os cenários demasiado apaziguantes.

Daí o perigo da escola e, por consequência, a necessidade de corpos tensoativos no cenário político atual: temendo uma corja de corpos desajustados em movimento, as políticas educacionais passam a multiplicar as figuras das limpezas sociais. Há um perigo inerente em todos os cantos e, para evitar as ondas de assaltos dos germes da vida, instaura-se uma rede de limpeza e securidade. No plano da escola, institui-se a escola militar como modelo a ser seguido para as escolas civis (Decreto 9.465, de 2 de janeiro de 2019) e, como se isso não bastasse, apontam um retorno de uma nacionalidade nostálgica que deveria ser celebrada com a entoação do hino nacional (Estadão, 2019). Associado a essa formação peculiar normatizada, os pressupostos religiosos, militares e econômicos servem de amparo para conduzir as limpezas ideológicas, afetando os modos de vida, os modos de fazer e até mesmo os métodos de ensino nas escolas.

Encontramo-nos, no início de 2019, diante dessa cena quase cômica em que o professor é ameaçado constantemente pelas figuras políticas e culpabilizado pelos problemas sociais. Somos atacados com contingenciamentos econômicos e com discurso de ódio; fomos chamados de doutrinadores e nossos alunos foram convocados a usar seus celulares para filmar nossas aulas com o maior dos tons acusatórios.

E não tememos nada disso.

Esse texto não é um artigo científico em seu sentido padrão, não se trata de um resultado de pesquisa, mas, antes, trata-se de uma fabulação sobre a escola. Propomos, no lugar, criar cenas de escolas com base em notícias e legislações educacionais criadas nesse contexto da multiplicação e aplicação de tensoativos. Partimos do princípio de que somos, sim, de alta periculosidade, ou, do contrário, não seríamos tão enfaticamente atacados à luz da governamentalidade em vigor. O atual ministro da Educação, Abraham Weintraub, declarou que o país já atingiu sua quota de doutorados em humanidades e, portanto, deveríamos começar a aceitar o fim das bolsas de pesquisa nessa área, visto que, para ele, não há pesquisa de impacto nas ciências humanas (Carta Campinas, 2019MINISTRO da Educação Quer o Fim das Bolsas de Doutorado: ‘Brasil tem doutor demais’. Carta Campinas, Campinas, 15 maio 2019. Disponível em: <Disponível em: https://cartacampinas.com.br/2019/05/xzx-o-brasil-nao-precisa-formar-mais-doutores-diz-ministro-de-bolsonaro/?fbclid=IwAR3VSW4JOUo5L1y_ZdnTh-uja_e8Y7gJlsTxgjhyjHhe3tiuSjWLI6h-3H8 >. Acesso em: 19 maio 2019.
https://cartacampinas.com.br/2019/05/xzx...
). Em entrevista pública realizada nos Estados Unidos da América, na manhã de 15 de maio, a figura presidencial brasileira chamou todos os manifestantes que se punham nas ruas em prol da educação de “uns idiotas úteis, uns imbecis que estão sendo usados como massa de manobra de uma minoria espertalhona que compõe o núcleo de muitas universidades federais do Brasil” (G1, 2019), alegando que desconhecemos cálculos matemáticos simples ou composições químicas ordinárias. Isto é, tal qual sua gestão afirmou a todo o momento, negam-nos toda possibilidade de criação e de compreensão do mundo em termos de conhecimento científico. Daí sua ênfase em colocar a escola militar como primórdio da educação. E, se a escola foi chamada à militarização, também nos sentimos convocados a esse espaço de excelência e organização/padronização. A escola militar, na perspectiva do governo em vigência, é o espaço máximo dos saberes e da ordem, quiçá da obediência. Fazem tudo sem questionar, ou, quando questionam, é apenas para atingir maiores notas ou demonstrar maior competência.

Todavia, advindos de uma perspectiva teórica que não toma o controle como instância máxima da vida, não acreditamos que a militarização conseguiria dar conta de todas as insurgências e insurreições. Na verdade, nem sequer desejamos isso.

Encontramos, em Michael Hardt e Antonio Negri (2016HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Bem-Estar Comum. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2016.) e em Gilles Deleuze (2013DELEUZE, Gilles. Conversações (1972-1990). Trad. Peter Pál Pelbart. 3. ed. São Paulo: Ed. 34, 2013.), o amparo teórico de dizer que a vida antecede qualquer tentativa de controle, que, antes de o poder se exercer regulando a vida, a vida se espalha. Poder-se-ia dizer que ela é, de algum modo, caótica, ainda que se agrupe e forme modos de vida coletivos. E isso é justamente o que o controle teme.

Quando há um investimento em larga escala à militarização das escolas, vemos, certamente, o medo que os poderes têm da vida. Não somos nós que tememos o poder, mas eles que nos temem. Daí a necessidade de utilizar tensoativos cada vez mais potentes, sejam esses aparelhos tecnológicos de comunicação ou vigilantes de corpo-presente. Na política de militarização da vida, os sujeitos são encharcados de ideologias normalizadoras. Os que persistem - alunos e professores que passam pela higienização e sobrevivem - são ditos desajustados.

Nosso interesse é justamente este: fabular as insurreições escolares onde a militarização é mais latente. Interessamo-nos pelos desajustados, pelos corpos insurgentes, pelos corpos resistentes aos tensoativos. Se as políticas atuais querem a obediência insana - Ordem e Progresso! -, exercitamos histórias em que as fugas são reais, em que os corpos são cobertos da lama que compõe o viver.

Convite feito, cantemos o hino.

Tensoativo: princípio químico de regulação da vida

- Chamou, senhor?

Assim começa a cena entre um menino de 13 anos e o diretor.

- O senhor foi acusado de ter arquitetado a execução do hino nacional da data de hoje no horário de entrada - apresenta o diretor - Confirma seu dever?

- Sim, senhor - é tudo que o menino responde.

Os dois ficam encarando-se.

A cena, a olhares estrangeiros, não passa de uma conversa entrecortada entre duas pessoas. O olhar do diretor, porém, é um misto de desgosto e estranhamento. As respostas do aluno são exatamente aquelas que ele aprendeu naquele espaço: curtas e precisas.

- Você está ciente de que a execução do hino nacional deve obedecer a um padrão regulamentado por nossa legislação? Está ciente de que o desrespeito à execução do hino é cabível de punição?

- Sim, senhor.

O diretor senta-se, mas não faz sinal para que o aluno faça o mesmo.

Os dois ficam um tempo se encarando.

- Sua punição já foi definida - ressalta o diretor - A muito contragosto, concordei com seus pais em mantê-lo em nossa escola. Saiba, todavia, que até o final do ano, você terá um tempo de dedicação extra em nossa instituição.

- Sim, senhor - respondeu o aluno novamente, sustentando o olhar na face do diretor.

- Você se responsabilizará por completo da execução do hino semanalmente, devendo chegar às 6 horas no colégio e apresentar-se devidamente às 7 horas com os demais colegas de sua turma.

- Sim, senhor.

- Deverá escolher quem vai hastear a bandeira e fazer a vigília durante a execução.

- Sim, senhor.

- E acompanhar o treino da banda para execução especial nas primeiras quintas-feiras de cada mês, quando a banda passará a tocar o hino.

- Sim, senhor.

- Em cada treino da banda - sibilou o diretor.

- Sim, senhor.

A irritação já começava a se fazer presente na face do diretor.

- Mais alguma coisa que eu possa fazer, senhor? - perguntou o aluno após um longo silêncio. Em sua voz, apenas o monótono tom militar escapulia.

Silêncio.

- Duas vezes por semana, você deverá ficar disponível para ajudar todos os professores com o que eles precisarem e só poderá sair depois que todos eles deixarem o prédio.

- Sim, senhor.

Os olhos do aluno nem sequer titubeavam, sustentando a raiva do diretor placidamente.

O silêncio arrastou-se ainda mais.

- Dispensado.

O diálogo acima é o limite da rigidez militar. No menino, não há quase nada além da possibilidade de resposta imediata no curto e seco Sim, senhor! O menino põe-se completamente a serviço do que lhe pede a hierarquia. Tudo o mais ele descarta.

E talvez justamente isso irrite o diretor.

Diante de uma cena que deveria ser ameaçadora, o aluno não hesita um único segundo. Apesar de saber estar em situação desfavorável, ele claramente não teme nenhuma alternativa que possa cair sobre ele. Contrariando a lógica agambeniana da vida nua, há, sim, vida passível de ser vivida quando o elemento humano é retirado do corpo (Agamben, 2010AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua 1. Trad. Henrique Burigo. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.). O diretor, juiz da cena, é quem coloca o corpo no lugar da vida nua, daquele que não pode responder às ações que são tomadas contra ele. E o corpo age exatamente de acordo com os conformes: nada responde, vale-se da linguagem apenas com o que lhe é permitido. Entretanto, o corpo não padece quando lhe roubam toda a afirmação política; antes, ele aprende que há políticas mesmo onde a linguagem é inexistente. O diretor endossa as punições, aumenta, cria casos e cenas, mas o menino continua onipotente em sua obediência: ouve a tudo e com tudo concorda, ainda que, fazendo isso, ele faça justamente o contrário do que dele se espera. Obediente, a criança se opõe ao esperado, ao medo previsto diante da punição.

Certamente, é diante dessa força quase vulcânica que o medo controlador cria campo, para que os tensoativos se espalhem e exerçam seu trabalho.

Os tensoativos, nesse modelo de escola, são aplicados despudorada e explicitamente. A proposta desse modelo de colégio é o controle de todas as formas de insurreição. Deleuze (2013DELEUZE, Gilles. Conversações (1972-1990). Trad. Peter Pál Pelbart. 3. ed. São Paulo: Ed. 34, 2013.) dizia que cedo as propostas identitárias de disciplinarização não mais funcionariam. Em seu texto, Gilles Deleuze anunciava que o controle passaria a exercer de modo mais tático, não mais barrando o que extrapola as regras, mas agindo antes da quebra dos limites. Isto é, se, em Foucault (2014FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 42. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.), a sociedade disciplinar era a sociedade que alinhava a arquitetura com os limites da vida e afirmava o “não” como modo de produção, na sociedade de controle, a vida é produzida menos por sua negação e mais por sua constante ameaça.

Na lógica do controle, criam-se ameaças passivas para que o corpo tema qualquer fuga, evite qualquer escapulida. Esse é o trabalho dos tensoativos: garantir a higienização constante, ainda que nada se suje.

Os tensoativos tentam, a todo o modo, prever as fugas.

Mas sua ação é limitada a sua especificidade e à tensão superficial, às interferências e aos vírus que se infiltram nos agenciamentos.

- E aí, como foi?

- Hahaha, foi exatamente como a gente imaginava - respondeu o menino - Ele falou, falou, falou... e tudo o que eu respondia era...

- “Sim, senhor” - responderam os dois em uníssono.

Ele estava agora no refeitório com um grupo de amigos que esperavam ansiosos aquela história.

- Hahahaha, vocês tinham que ver a cara dele - o menino continuou - Consegui manter o tom correto da saudação em todas as respostas. Cara, já nem sei mais quantas punições acumulei. O doido falou umas 20, pelo menos!

O grupo todo riu.

- Tu sabes que só escapou dessa por causa de bufunfa, né?

- E da posição do teu pai.

- Ué, e para que eu tenho uma família podre de rica e um pai coronel se não for para torrar a paciência de uns?

- Qualquer hora tu vais se lascar, mano, cuidado!

O menino abriu ainda mais o sorriso ao ouvir isso.

- Tô ligado, cara, mas são quatro gerações de Fonsecas aqui. Já nem sei mais quantos Deodoros minha família criou, cara. Não posso sair dessa joça não, tenho que ir até o final para fazer um inferno aqui. Nesse momento, eu sou só mais um...

- Só mais um desajustado, só se for. HAHAHAHA.

Aqui, talvez, deparemos com o campo de batalha.

Se, na lógica do controle e da disciplina, a regulação é efetuada pelos tensoativos e a punição é cargo da hierarquia, topamos, continuamente, com corpos desajustados. Na química, as moléculas tendem a buscar equilíbrio para garantir sua estabilidade, reagindo umas com as outras para se auto-organizarem. Os tensoativos, por sua vez, atuam também produzindo estabilidade, mas quebrando a tensão superficial e reorganizando as estruturas em uma nova ordem higienizada.

Elimina-se a tensão, corta-se qualquer princípio de atividade díspar. E, com isso mesmo, a vida, que nada tem de univocidade (Comitê Invisível, 2016COMITÊ INVISÍVEL. Aos Nossos Amigos: crise e insurreição. Trad. Edições Baratas. São Paulo: n-1 edições , 2016.).

Quimicamente falando, as substâncias tensoativas funcionam efetuando uma quebra na estabilidade vigente e criando uma nova estabilidade a qualquer custo. Socialmente falando, estamos diante de uma necessidade ensandecida das políticas de governo de acabar com as instituições públicas para criar uma nova ordem militar-econômica que se afirma estável e de maior qualidade.

Se os tensoativos têm um papel de limpeza, somos todos sujos nessa lógica militar-economicista.

Em 2018, a campanha presidencial de Jair Messias Bolsonaro foi toda voltada para atacar as figuras denominadas ‘esquerdistas’. Fomos atacados de vários modos, tendo aulas filmadas e tendo professores mandados embora, passando a ter maior vigília de familiares por causa dos conteúdos de nossas aulas. Fomos chamados de doutrinadores, o que, no português popular, passou a significar algo sujo e perigoso.

Daí, então, nossa estreita ligação com a sujeira e com os tensoativos, isto é, com a horda de vigilantes e de políticas de fuzilamento da educação. Por sermos imundos, somos enfrentados continuamente e ameaçados de limpeza sob diversas óticas. O projeto de lei Escola Sem Partido1 1 O Projeto de Lei “Escola sem Partido” foi apresentado pelo então senador capixaba Magno Malta. No projeto, a proposta baseia-se na retirada de todos os vieses ideológicos do trabalho pedagógico. Todavia, em uma leitura atenta, percebe-se que essa retirada cabe somente ao trabalho pedagógico associado mais à esquerda, ao processo de multiplicação de culturas e religiões minoritárias e a toda forma de pauta humanista. - que frequentemente é adaptado e colocado à apreciação em diferentes projetos de lei e em diferentes municípios e estados - é, antes de mais nada, uma limpeza de modos de fazer educação. Ao nos acusarem de professores doutrinadores, nada mais fazem senão nos chamar de sujeira germinal.

E o que espalhamos na condição de corpos-sujos é simplesmente o anúncio de experiências corporal-afetivas de ordens diferentes. Na conversa com os amigos, um dos colegas do menino Deodoro da Fonseca o chama de desajustado, e, se a função química do tensoativo é criar e manter a nova ordem, o termo talvez faça sentido. Ali, desajustado não é por ele não se ajustar, mas, antes, por ele não aceitar que a vida se reduza às novas regras, ao novo regime.

O desajustado é da lógica da sujeira que gruda, de quem trava batalhas para sobreviver.

Isso se parece com uma lei física. Quanto mais a ordem social perde seu crédito, mais ela arma sua polícia. Quanto mais as instituições se retraem, mais vigilantes colocam. Quanto menos as autoridades inspiram respeito, mais elas procuram nos manter em respeito pela força. [...] A manutenção da ordem é a atividade principal de uma ordem já falida (Comitê Invisível, 2017COMITÊ INVISÍVEL. Motim e Destruição Agora. Trad. Vinicius Honesko. São Paulo: n-1 edições , 2017., p. 135).

Germes da vida

Um dos professores da escola entra na sala - Geografia -, um dos professores mais linha dura da instituição. Entra, olha direto para Deodoro e diz que o aluno deve ficar um tempo a mais ao final da aula. Todos os alunos sabem o que esperar.

- Sim, senhor - é tudo que ele responde.

Quando a aula acaba e os alunos se dirigem ao refeitório para o almoço, Deodoro se aproxima da mesa do professor enquanto seus colegas se afastam. Ao mesmo tempo, uma série de aparelhos de celular toca o hino nacional em uma versão pouco usual. Batidas de funk invadem a sala enquanto todos os alunos se afastam dali. A postura de Deodoro é a mesma. Não pisca, não sorri.

O professor irrita-se, mas nada faz. Apenas lhe passa um trabalho extra como forma de punição. Um, dois ou três.

- Dispensado.

Pouco importa quais são nossas formas de luta, nossos possíveis de resistência, um corpo sempre cria modos de viver, mesmo estando no olho do furacão.

Eis o conceito de resistência.

Gilles Deleuze e Claire Parnet (1998DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Trad. Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Editora Escuta, 1998.) fazem exatamente essa constatação, ao falarem da política de vida. Não há, segundo eles, uma só força que não reaja ao conjunto de forças que atuam sobre ela e, com isso, não crie uma condição de vida que lhe seja própria. Viver é, minimamente, criar condição de multiplicação de sua existência.

Vemos assolarem em 2019 ataques locais e mundiais sobre as possibilidades de existência. É bem verdade que boa parte da Amazônia, do Pantanal e do Cerrado jamais poderá ser recuperada e muitas espécies de animais e vegetais terão sérios problemas em recuperar seus habitats, todavia a vida é criativa o suficiente para criar estratégias viscerais de sobrevivência.

Também isso é o que fazemos nas escolas e é o que faremos nas cívico-militares.

Se a proposta dos tensoativos é reduzir o nível de tensão superficial num caldeirão de heterogeneidades, a função da vida é fazer proliferar fungos, bactérias e germes entre aquelas substâncias. Diante de uma política de aumento neurótico no número de agrotóxicos usados em plantações, deparar com uma lagarta em uma folha de alface parece ser o ápice da resistência vital.

É preciso que tenhamos a força de uma lagarta, de uma barata, de um fungo para passarmos despercebidos por entre os olhos policialescos que vigiam e regulam as atuais políticas educacionais.

Em miúdos, recusamos, de imediato, toda a ideia de paz, tranquilidade e segurança veiculada pelos discursos oficiais, pelas lógicas globais de desenvolvimento. Não há paz possível quando toda a vida difere infinitamente.

A ilusão de paz - por vezes anunciada por políticas de securidade, outras vezes por lógicas quase eugênicas - faz o serviço de criar um inimigo comum com o qual deveríamos nos digladiar até o fim da própria existência. Ou seja, a paz só seria possível por meio de uma morte infinita, manchando a existência de corpos com a não vida. Por isso, enfrentamos, tão avidamente, as lógicas de limpeza, a promoção de tensoativos nos processos de aperfeiçoamento do trabalho pedagógico, da vida escolar. “Abandonar a ideia de paz é a única paz verdadeira” (Comitê Invisível, 2016, p. 45). A paz, garantem os autores, não é sinal de bondade, mas antes “ou uma profunda burrice ou uma completa má-fé”, visto que a “recusa tática do confronto é ela mesma uma astúcia de guerra” (Comitê Invisível, 2016, p. 168).

Paradoxalmente, essa afirmação é demasiadamente ética.

Em 2013, muitos manifestantes que participaram das jornadas de junho tornaram-se presos políticos por se rebelarem contra as formas do governo em gestão na época (Mendes, 2017MENDES, Igor. A Pequena Prisão. São Paulo: n-1 edições , 2017.). Conforme consta o relato de um desses prisioneiros políticos, a estética dos açougues da carne humana é demasiadamente limpa e calma. “Daquele lugar, fixei as paredes brancas, o ambiente gelado, hostil. Tudo muito limpo, contrastando com o conteúdo do que ali é praticado” (Mendes, 2017, p. 54).

Ora, se damos ainda a esse corpo a preocupação elencada por Antonio Negri e Michael Hardt (2016NEGRI, Antônio; HARDT, Michael. Declaração: isto não é um manifesto. Trad. Carlos Szlak. 2. ed. São Paulo: n-1 edições , 2016.) de que vivemos hoje pela busca infinita da securidade, damo-nos conta de que a paz é uma produção forjada que mais nos trancafia que efetivamente nos permite viver bem. Sob a lógica de temer a tudo e a todos, fazemos do homem hobbesiano um corpo lunático que multiplica os lobos ao infinito, onde medo se tornaria “um significante vazio, no qual todos os tipos de fantasmas amedrontadores podem aparecer” (Negri; Hardt, 2016, p. 39).

Se o medo indica um desafio para alcançar a paz, jamais poderíamos desenhar um cenário pacífico quando o medo habita tudo e a todos, quando o medo se torna uma ameaça para que os corpos ajam de tal ou qual maneira.

Às ameaças que nos jogam, somos obrigados a dizer o vazio Sim, senhor.

Mas com quais forças e efeitos dizemos esse Sim, senhor?

Aula de matemática. Bháskara sempre fora um dos professores favoritos da turma. Naquele dia, estranhamente, seu rigor estava metódico.

- Quem eu chamar, venha aqui pegar sua prova.

O professor começa a chamá-los.

- Deodoro.

O menino se levanta.

- Precisa estudar mais, Deodoro. Sabe disso, né?

O garoto olha para sua prova com um grande 10 ilustrado na prova.

- Não vê isso daqui? Quão grotesco é isso? - o professor pergunta batendo o dedo em um canto da prova.

Ali, no escondido, estava uma cifra com um arranjo que ele conhecia bem.

- Acho bom que você se dedique mais a isso. Não quero ter que conversar com você de novo.

- Sim, senhor - responde o menino, dessa vez quase sem forças.

O menino ficou todo encabulado e sentou-se. Achava que tinha alguns aliados entre os docentes da escola também. Pelo visto, enganara-se. Assim que se sentou, uma de suas amigas pegou a prova dele para olhar. O queixo dela caiu na mesma hora.

- Fonseca! Viu isso daqui? - ela sussurrou para ele.

- Claro que vi, não ouviu o esporro que levei por iss...

Embaixo da cifra, um recado: “Belo batuque semana passada”.

Vou me dedicar, pensou ele.

Diz-se, hoje, de uma cultura de paz com tanta ênfase que chega a evocar brilho nos olhos ou lágrimas peroladas. Contudo, diante da paz, nada mais fazemos que aquiescer. O corpo pacífico é o corpo de resposta impossível, de concordância eterna. A nosso ver, isso nada mais é que a produção do vazio de vida. Porque isso é o produto de uma paz pretendidamente verdadeira: a não vida ou, no mínimo, uma vida pacificada, uma vida controlada.

No fundo, a rejeição da guerra só exprime uma recusa infantil ou senil em admitir a existência da alteridade. A guerra não é a matança, mas sim a lógica que regula o contato de potências heterogêneas. Ela é travada por todos os lados, sob inúmeras formas, e na maioria das vezes por meios pacíficos. Se há uma multiplicidade de mundos [e de estéticas], se há uma irredutível pluralidade de formas de vida, então a guerra é a lei de coexistência nesta terra (Comitê Invisível, 2016, p. 167).

Pacificada, faltaria à vida a coragem da discordância, de rir mais alto, de incomodar o outro. Ou melhor, não faltaria a coragem, e sim a possibilidade qualquer de dissonância.

E, caso ainda reste alguma dúvida, lembremos apenas ser em nome da paz que nos morros se ouvem disparos de fogos de artifício sem nenhuma luz brilhante no céu. Nos termos de Rolnik (2018ROLNIK, Suely. Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: n-1 edições , 2018., p. 71), deparamos com esses autodeclarados pacificadores que não são senão “traficantes de receitas de uma paz redentora”.

De certo modo, espera-se que se lance sobre os corpos um mugentsukuyomi2 2 O mugentsukuyomi é um tipo de ilusão criada por um sábio milenar que usou a luz da Lua como fonte de sua arte ilusória. Desse modo, uma vez completada a ilusão, não haveria modos de as pessoas ao redor do mundo escaparem de sua habilidade. tal qual um certo vilão de mangá queria lançar sobre a humanidade. Presos na ilusão, viveríamos sonhos eternamente felizes e imutáveis. A vida dentro do tsukuyomi infinito não permitiria deriva, jamais deixaria de ser a mesma que já conhecemos. A bem da verdade, veríamos apenas coisas boas, entretanto a vida não mais conheceria mutações - tradução - a resistência deixaria de existir. Estaríamos todos capturados por organelas isoladas e incomunicáveis, vivendo o sonho da paz irrestrita: “Os laços desse mundo com o destino foram cortados”, anuncia o vilão, “Todos... a sua dor... o seu sofrimento... o seu vazio... eles foram desligados de tudo isso”. Eis que a defesa de uma paz tirana é a mesma aclamada no ocidente por todas as organizações mundiais que declaram sua preocupação com o humano: o fim da guerra, o fim da dor, o fim da morte. Qualquer corpo a questionar isso é respondido tal qual aquele vilão falava: “Quem é você para interferir na felicidade dos outros?” (Kishimoto, 2014KISHIMOTO, Masashi. A Minha Vontade. Naruto. v. 70, cap. 678. Brasil: Panini Comics, 2014., p. 13).

Viver em um sonho é o que se diz dos corpos capturados pelo tsukuyomi, dos corpos esvaziados de vida em uma paz célebre eternizada.

Ora, desse modo é que nos perguntamos, então, quais seriam as funções da escola diante desse cenário de militarização das instituições de ensino. Sabemos que, secularmente, a escola esteve associada à ação de ensinar. Decerto, ninguém recusa que o papel prioritário de uma escola seja esse. Como professores, ensinamos por condição de sobrevivência.

Todavia, o que querem as escolas militares? Estaríamos diante de um retorno à meritocracia tecnicista?

Em uma tentativa de chacota pública da categoria de estudantes, o presidente eleito Jair Messias Bolsonaro diz que estudantes não sabem sequer a fórmula da água ou realizar o cálculo de 7x8. Poder-se-ia dizer, com efeito, que talvez uma criança na educação infantil não conhecesse, efetivamente, a fórmula da água ou pudesse fazer tal cálculo. Isso seria ainda viável em alguns outros estágios da vida escolar. Todavia, ao fazer a crítica, o presidente escolhe aludir a crítica aos alunos universitários. O que chega a ser tragicômico.

Obviamente, não apenas a crítica foi muito mal recebida, como também respostas ácidas foram dadas ao presidente.

Em resposta à pergunta, os dois ministros da Educação - Ricardo Velez e Abraham Weintraub - parecem investir, sem enrolações, que o que eles querem é mais dinheiro para as instituições privadas de ensino. Não se trata de um desejo de escola, de uma visão de educação, mas de um destino de verbas. E isso fica bem evidente quando, por exemplo, a PEC do Pacto Federativo, proposta por Jair Bolsonaro e seu ministro da Economia, Paulo Guedes, prevê a desobrigação do poder público em criar escolas em regiões de carência para cobrir certos níveis de desigualdade social (Folha de São Paulo, 2019).

Nas narrativas do presidente eleito e das suas políticas de governo, o país encontra-se em crise por percalços econômicos deixados pelos governos anteriores e, para tanto, seria preciso ter um crescimento educacional condizente para que a economia se desenvolvesse.

Para tanto, sua resposta é a militarização dos corpos e o desenvolvimento tecnocrático do conhecimento.

Em relação à militarização do corpo, é preciso que enxerguemos o corpo não apenas como isso que me é imediato ao toque. Somos corpos, mas, ao mesmo tempo, compomos outros corpos na relação com as pessoas, coisas, ideias e afins. Um corpo é expresso, na filosofia deleuziana (Deleuze, 2002DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. Trad. Daniel Lins e Fabian Pascal Lins. São Paulo: Escuta, 2002.), como algo capaz de afetar e ser afetado. Ideias, músicas, livros, jogos, pessoas, animais - tudo capaz de afetar se torna um corpo. Assim, corpos são capazes de guardar memórias, efeitos dos afetos que lhe passam. Se nos encontramos com um livro, podemos ser afetados por ele: podemos chorar, ficar felizes, revoltar-nos, criar amizades, cair em risada. O mesmo, evidentemente, acontece no encontro entre corpos humanos e corpos não humanos. Uma forma de vida pode afetar-se pelo trabalho humano ao seu redor, mas também por condições temporais inexplicáveis. Um corpo é aquilo que, de algum modo, permite passar os afetos de seu entorno e reage a eles.

Desse modo, ao colocarem como meta a militarização dos corpos, dizem exatamente da limitação das possibilidades de afetos de um corpo. Militar, quando deixa de ser verbo, é associado à diminuição do grau de afecção da vida. Militar, no sentido vitalista, deriva da lógica de uma ação regida pelo controle, pelo comando imediato.

Quando o medo é tão genérico e espreita em cada esquina, em todos os corpos, militarizar as escolas seria, de certo modo, multiplicar os medos e os modos radicais de reagir.

A militarização age, assim, sobre os corpos demasiado abertos às afecções da vida, sobre as vidas capazes de se afetarem pelos mínimos movimentos. Por isso, é-nos pertinente entender a militarização das escolas como um processo de limpeza, uma proximidade com a função-tensoativa. Afinal, para “preservar a inocência das crianças da influência espúria dos professores”, faz-se necessário “bem purificar o ambiente escolar, ou bem afastar o jovem da escola” (Centelha, 2019CENTELHA. Ruptura. São Paulo: n-1 edições, 2019., p. 69).

Vivemos, justamente, esse duplo movimento.

Se, conforme sugeria o Comitê Invisível (2016, p. 89) à guisa de uma leitura foucaultiana, “governar é conduzir os pensamentos de uma população [...] para maximizar e orientar a liberdade”, militarizar torna-se uma modalidade do governamento levado ao extremo da lógica de ordenamento e de sua apatia afetiva.

O lema de nossa bandeira - ordem e progresso - mostra toda a sua perversidade no discurso militarizante das políticas bolsonaristas.

Sob a alegação de que precisamos fortalecer o ensino nacional para ressaltar o tão esperado progresso, vemos crescerem investimentos tecnocráticos privatistas. No limite, é plausível até aumentar a nota de instituições privadas de ensino superior que oferecerem seus laboratórios para uso esporádico de escolas públicas (Uol, 2019). Pouco importa o que se faz nesses laboratórios e, decididamente, melhor não investir na criação de laboratórios nas redes públicas. O gasto seria muito dispendioso. Não, no lugar, façamos com que faculdades privadas ganhem reconhecimento por oferecerem seus laboratórios, afinal, calcula-se a qualidade do ensino superior não com seu conhecimento, mas com a parceria público/privado.

Esse cálculo, curiosamente, não leva em consideração toda a rede de Institutos Federais com seus vastos e bem desenvolvidos laboratórios que, certamente, poderiam ser usados como recurso para escolas estaduais e municipais de todo o país. Esse cálculo avaliativo dos sistemas de ensino, inclusive, desconsidera que esses mesmos Institutos Federais (IFs) são bem menos custosos e apresentam melhor rendimento ante as avaliações de larga escala aplicados em nosso país (Assufrgs, 2019ESCOLAS Federais Custam Menos e Têm Desempenho Superior que Colégios Militares. Jornalismo Assufrgs, Porto Alegre, 19 fev. 2019. Disponível em: <Disponível em: https://www.assufrgs.org.br/2019/02/19/escolas-federais-custam-menos-e-tem-desempenho-superior-que-colegios-militares/ >. Acesso em: 14 nov. 2019.
https://www.assufrgs.org.br/2019/02/19/e...
). Entre os IFs e as escolas militares, a coroa recai sobre os IFs. Mas o intuito de investimento governamental é sobre a aproximação entre civis e militares.

Isso porque, no cenário político atual, o papel da escola parece ter uma multiplicidade de sentidos demasiado diferentes, e, embora o ensinar ainda se apresente como proposta inicial, vivemos uma perturbação engomada desse sentido. Ensinar, aqui, parece retomar o sentido atribuído por Gilles Deleuze e Félix Guattari, quando eles brincavam com a palavra ensignar, isto é, impor signos de ordem e de comando (Deleuze; Guattari, 2011DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. 2. ed. São Paulo: Ed. 34 , 2011.).

Afinal, no cenário atual, as escolas e as universidades públicas têm praticado balbúrdias.

Método: fabulação

O texto aqui apresentado é uma fabulação. Escrevemos criando personagens, criando vida onde as formas de controle se fazem demasiado altas. Por isso, resistem. Fabulamos na medida em que a vida escolar parece diminuir o grau de atividade dos corpos e o contato afetivo entre os modos de vida. Fabulamos e, entretanto, não fazemos fantasia, fábulas ao modo de Esopo. Fabulamos por criarmos uma relação íntima com a realidade, por a conhecermos bem. Somos professoras e professores em escolas, temos amigas e amigos em escolas militares e, há muito, trocamos ideias e experiências com esses espaços de ensino. Entretanto, essa não nos parece a única opção. No início de 2019, quando o ministro da Educação anterior pediu às escolas que gravassem um vídeo cantando o hino nacional, viralizou na internet um vídeo de alunos de escolas militares gravando, dançando e cantando o hino em batida de funk. Esse foi um ponto de ruptura com os possíveis em uma escola militar. A partir daí, as realidades compossíveis desse espaço se multiplicaram. Por isso, a fabulação fez-se imediata e necessária a nossa escrita. Por isso, exige-se de nós um rigor sem igual. Jamais poderíamos apenas contar uma história, mas, ao mesmo tempo, não podemos cair em um cientificismo de linguagem apática. Enfrentamos as militarizações da vida, sejam burocráticas, econômicas, sejam teóricas. Seguimos com rigor metodológico para produzir uma escrita mais próxima da literatura. Contrariamos as formas de poder, por isso brincamos com Deodoro da Fonseca e o professor Bháskara - o professor que elogiou o “batuque” - em suas histórias de corpo afetivo, em suas deambulações de escola. Vivemos esses personagens e, entretanto, nada temos a ver com eles. Damos-lhes vida sem jamais fazermos deles nossas biografias - nada temos com esse espaço escolar militarizado senão a vontade de lutar (Roseiro, 2019ROSEIRO, Steferson Zanoni. Feiuras: insurreições do corpo na escola. 2019. 138 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Centro de Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2019.). E lutaremos.

Lutas germinais

O objetivo é evidente: expandir os limites da militarização, fazer a servidão alcançar mais um ápice até então inesperado. O Decreto 9.465, de 2 de janeiro de 2019, propõe, com todas as letras, que o ápice da educação coincidiria com sua máxima militarização. Efeito do mais forte dos tensoativos, seríamos bons professores e bons alunos apenas na medida em que, claramente, dizemos Sim, senhor. Pode ser, efetivamente, que esse projeto de educação vingue; pode ser, para deleite deles, que as escolas civis realmente entrem em colapso diante das políticas educacionais nefastas, diante dos cortes de orçamento estranhamente pertinentes que caíram sobre as instituições de ensino; pode ser, para nosso infortúnio, que tenhamos todos de migrar para a lógica do Sim, senhor.

E, se for o caso, migraremos. Não temos sequer vergonha de dizer isso: vamos migrar conforme o esperado.

Mas apenas isso.

Uma vez dentro desse espaço, nossas estratégias serão outras. Aos modos do menino Deodoro, do professor Bháskara e de todos os outros desajustados e insurgentes, faremos de nosso Sim, senhor um modo de rir, zombar e cuidar do outro.

Nesse curto período de governo, a cena anunciada é a de uma recuperação pós-apocalíptica, como se tivéssemos sobrevivido ao fim dos tempos e, agora, um messias nos guiaria para a vida ordenada. O que não enxergam são as fugas nada messiânicas, os corpos que, diante do rebanho, imitam ovelhas apenas para ensinar outros modos de balir.

Esse é, talvez, o prelúdio de nossa luta.

Se o objetivo de uma legislação tão enfática sobre a militarização da educação é o de multiplicação da vida servil - da vida tomada por um pastor de ovelhas -, nossas estratégias não podem afastar-se muito da própria ordem do rebanho. Se as tais escolas forem criadas e os tensoativos aplicados tão fortemente, é preciso que ocupemos esses espaços. Não é nosso intuito, mas talvez seja nosso dever.

É preciso lembrar que não há vida sem luta. E, como professoras e professores de todo o Brasil lembraram ao longo desse ano, militar pra mim é verbo. Por isso, lutamos.

Se, até maio de 2019, 38,3% dos assassinatos registrados no Rio de Janeiro, naquele ano, foram executados por policiais (Centelha, 2019), seria muita ingenuidade nossa supor que não há uma guerra declarada. A declaração de guerra foi tamanha, que, no limite, o ministro da Justiça e Segurança Pública teve a audácia de propor uma alteração no código penal conhecida como pacote anticrime, na qual agentes de segurança poderiam ser isentados de punição em caso de reagirem por “medo, surpresa ou violenta emoção” (STF, 2019STF. Supremo Tribunal Federal. Projeto de Lei Anticrime. Brasil: 2019. Disponível em: <Disponível em: https://www.justica.gov.br/news/collective-nitf-content-1549284631.06/projeto-de-lei-anticrime.pdf >. Acesso em: 14 nov. 2019.
https://www.justica.gov.br/news/collecti...
).

Há e sempre houve no ar um ideal de paz que se contrapõe à própria lógica da vida. O “estabelecimento de uma era de paz e de abundância estéril em que não seria preciso temer mais nada, em que as contradições seriam finalmente resolvidas e o negativo, reabsorvido” (Comitê Invisível, 2016, p. 44) não passam outra ideia senão a de vida anestesiada. Um corpo só concorda em grau supremo com o outro se nenhum dos dois tiver vida. Há e sempre haverá tensão entre corpos.

E as tensões só podem ser resolvidas em embates, em conversas, em disputas, discussões, isto é, entre trocas de afetos e de modos de produzir vida. Não podemos esperar a paz porque a paz não nos apraz. Esperamos, no lugar, ter condição entrar numa disputa sem o risco de perecer.

Por isso, é bom nos prepararmos. Quando a hora chegar, adentraremos as escolas cívico-militares e ocuparemos seus corredores, salas de aula, pátios e suas pedagogias. Talvez, estando lá, trabalhemos no sentido de transformar as insurreições em potência, transformemos a paz em ruídos, em rupturas.

No fim, queremos apenas que os soldados continuem a marchar, clamando sempre seu Sim, senhor! a quem for preciso ouvir, dando os mais variados tons a seu modo responder ao mundo. Isso porque sabemos que, no lugar de tensoativos, têm-sons-ativos nas escolas devido às mil-atriz-ações desajustadas, porque vale investir na força do erro. Dizemos na condição de praticantes da escola na qual as coisas nunca são e estão onde achamos que elas deveriam estar. Na escola, o som que ecoa pelas salas, corredores, pátios, quadras, cozinhas e bibliotecas é um som sem proprietário, por isso produzem batidas que inspiram os corpos mais abertos à musicalidade da vida, corpos-Fonseca, corpos-Bháskara, corpos-desajustados.

Marcha soldado, cabeça de papel quem não marchar direito vai preso no quartel o quartel pegou fogo a polícia deu sinal acode, acode, acode a bandeira nacional

Uma cantiga de um tempo-perto, feito de escolas pensadas como quartel que, até pouco atrás, pensávamos terem sido queimadas pelas forças da democracia. Pensávamos, até agora, ter dado um sonoro não! a um projeto de sociedade meritocrática mascarada pelo slogan de “Ordem e Progresso”.

Memórias de escola, vidas desmilitarizadas.

O fogo que queimou o quartel e salvou a bandeira nacional não destruiu a obsessão dos que não suportam a força insurrecional dos que nascem aqui e agora. As escolas, os estudantes, os professores desajustados dizem Sim, senhor!, desdizendo tudo o que dizem. Viventes desses espaços cheios de vida manipulam letras e fazem ecoar palavras, silêncios e murmúrios incapturáveis por aqueles acreditam deter o poder de decidir, prescrever, ameaçar, amedrontar e castigar. Sabemos enganar... engasgar e emitir ruídos coletivos que não se pode compreender. Ruídos de vida.

Referências

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  • 1
    O Projeto de Lei “Escola sem Partido” foi apresentado pelo então senador capixaba Magno Malta. No projeto, a proposta baseia-se na retirada de todos os vieses ideológicos do trabalho pedagógico. Todavia, em uma leitura atenta, percebe-se que essa retirada cabe somente ao trabalho pedagógico associado mais à esquerda, ao processo de multiplicação de culturas e religiões minoritárias e a toda forma de pauta humanista.
  • 2
    O mugentsukuyomi é um tipo de ilusão criada por um sábio milenar que usou a luz da Lua como fonte de sua arte ilusória. Desse modo, uma vez completada a ilusão, não haveria modos de as pessoas ao redor do mundo escaparem de sua habilidade.
  • Editora-responsável: Beatriz Vargas Dorneles

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Out 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    23 Nov 2019
  • Aceito
    08 Jul 2020
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