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Cultura Didática: olhar teórico para compreender a (não) inovação no ensino

RESUMO

Diferentes estudos têm sinalizado a dificuldade dos professores em inovar suas práticas. Para melhor compreender esta dificuldade, propõe-se a noção de cultura didática. Tendo em vista os conceitos de cultura, cultura escolar, cultura de área e cultura científica e transposição didática, o conceito de cultura didática é apresentado como uma forma de compreender os mecanismos sociais que atuam no microcosmo da sala de aula, funcionando como o meio fluido que tanto possibilita como refreia as inovações de caráter prático. Apresenta-se, ao final, um exemplo do uso do conceito para pesquisa em campo e perspectivas futuras de elaboração teórica.

alavras-chave
Inovação; Cultura; Cultura Didática; Cultura Escolar; Práticas Docentes

ABSTRACT

Different studies have signaled the difficulty teachers have in innovating their classroom practices. To better understand this difficulty, this article proposes the notion of didactic culture. In view of the concepts of culture, school culture, area culture and scientific culture and didactic transposition, the concept of didactic culture is presented as a way of understanding the social mechanisms that act in the microcosm of the classroom, working as the fluid medium that both enables and restrains practical innovations. At the end, it presents an example of the use of the concept research and future perspectives of theoretical elaboration.

Keywords
Innovation; Culture; Didactic Culture; School Culture; Teaching Practices

Introdução

Nos últimos anos, pesquisas educacionais têm direcionado um olhar diversificado na tentativa de melhor compreender os processos educativos, de ensino e aprendizagem. Entre os focos que têm sido investigados, destacam-se aqueles que procuram compreender as origens das práticas desenvolvidas em sala de aula, assim como a tendência de reprodução daquelas práticas cristalizadas ao longo de décadas. Nesses estudos, muitos dos quais se enquadram no campo dos saberes docentes, discute-se o arsenal que os professores colocam em ação e como, frequentemente, tal arsenal tem se mantido fortemente estático ao longo dos anos, com apenas alguns “arranhões superficiais”.

Nesse âmbito, autores como Gauthier et al. (1998)GAUTHIER, Clermont et al. Por uma Teoria da Pedagogia: pesquisas contemporâneas sobre o saber docente. 1. ed. Ijuí: Editora Unijuí, 1998., Shulman (1987)SHULMAN, Lee. Knowledge and Teaching: foundations of the new reform. Harvard Educational Review, Cambridge, v. 57, p. 1-22, 1987. e Tardif (2014)TARDIF, Maurice. Saberes Docentes e Formação Profissional. 17. ed. Petrópolis: Vozes, 2014. trouxeram grandes contribuições ao estudo sobre a docência, ao reconhecerem um conjunto de saberes que permeiam a ação dos professores. Tais ideias têm sido utilizadas, já há alguns anos, para se pensar questões como a formação docente, a prática em sala de aula, a identidade e a profissionalidade docente. Contudo, a nosso ver, as contribuições desses autores repousam em uma descrição da prática e da ação docente, sem que haja um detalhamento dos meandros dos seus mecanismos de mudança ou resistência.

Vemos que estudar a inovação sem entender tais mecanismos tem trazido uma sensação de frustração para algumas das mais nobres tentativas que enxergam no contexto escolar uma barreira às mudanças, não só institucional, como também social (Harres et al., 2018HARRES, João Batista Siqueira et al. Constituição e Prática de Professores Inovadores: um estudo de caso. Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências, Belo Horizonte, v. 20, p. 1-21, 2018.; Pereira, César, 2016PEREIRA, Daniervelin Renata Marques; CÉSAR, Danilo Rodrigues. Inovação e Abertura no Discurso das Práticas Pedagógicas. Avaliação: Revista da Avaliação da Educação Superior, Campinas, v. 21, n. 2, p. 619-636, 2016.; Pavan et al., 2014PAVAN, Jorge et al. Dinámicas Institucionales en Situaciones de Cambio: entre el cuestionamiento y las improntas de mitos fundacionales. Revista Iberoamericana de Educación Superior, Ciudad de México, v. 5, n. 14, p. 99-109, 2014.; Arceo, 2012ARCEO, Frida Díaz-Barriga. Reformas Curriculares y Cambio Sistémico: una articulación ausente pero necesaria para la innovación. Revista Iberoamericana de Educación Superior, Ciudad de México, v. 3, n. 7, p. 23-40, 2012.). O intuito deste artigo é, então, tentar aprofundar-se nesses mecanismos sociais e institucionais que se colocam como obstáculos à inovação do ensino e que, como veremos em um caráter mais amplo, negam as mudanças em um sentido simbólico e prático em sala de aula. Neste artigo, os mecanismos de mudança e reprodução, no âmbito da educação escolar, são tratados com base nos conceitos de cultura, cultura escolar, cultura de área e cultura científica, culminando com a proposta do conceito de cultura didática.

Esperamos, com base no conceito de cultura assumido, aqui, como um meio viscoso à manutenção e às mudanças, conceber um mecanismo que nos sirva de pano de fundo de entendimento para podermos investigar, com mais propriedade, processos que se propõem a serem inovadores.

O que queremos dizer por Cultura

O conceito de cultura, por meio do qual buscaremos entender os mecanismos envolvidos na manutenção e na mudança da prática docente, é polissêmico tanto no uso comum e cotidiano como na literatura acadêmica. Mesmo em áreas que trouxeram grandes contribuições para a formalização e/ou discussão desse conceito, como a antropologia ou a sociologia, não há um consenso; de modo que o definir e situar, em meio às diferentes formulações, torna-se necessário. Nessa tarefa, apropriamo-nos de algumas ideias do historiador social William H. Sewell Jr. (2017)SEWELL JR., William Hamilton. Lógicas da História: teoria e transformação social. 1. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2017. que, em sua obra intitulada Lógicas da história: Teoria social e transformação social, dedica um capítulo à discussão desse conceito.

Segundo Sewell Jr. (2017)SEWELL JR., William Hamilton. Lógicas da História: teoria e transformação social. 1. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2017., o uso do termo cultura se distribui em dois grupos de significados diferentes: (i) cultura como uma categoria abstrata da vida social e (ii) cultura como um mundo concreto e delimitado de crenças e práticas. Sobre o primeiro significado, o autor afirma que cultura seria uma categoria da vida social entre outras (por exemplo, como a economia, a política ou a biologia); consiste, portanto, em uma abstração teórica da realidade complexa da existência humana. Já o segundo significado, estaria relacionado com características de um povo, grupo social específico etc., que se remete a um conjunto composto por suas crenças e/ou práticas. No segundo sentido é que surgem termos como cultura brasileira, cultura da classe média, cultura americana etc.

Após apresentar uma diversidade de noções para o termo, explicitando suas limitações, Sewell Jr. (2017)SEWELL JR., William Hamilton. Lógicas da História: teoria e transformação social. 1. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2017. dedica-se a duas noções em que a cultura é associada com um mundo concreto e delimitado de crenças e práticas que são, para o autor, muito úteis na elaboração de sua própria noção de cultura. O autor considera como frutíferas as noções de (i) cultura como um sistema de símbolos e significados e a de (ii) cultura como prática.

Segundo Sewell Jr. (2017)SEWELL JR., William Hamilton. Lógicas da História: teoria e transformação social. 1. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2017., a noção de cultura como um sistema de símbolos e significados foi hegemônica nas décadas de 1960 e 1970, especialmente na antropologia estadunidense. A noção teve como alguns de seus principais representantes os antropólogos estadunidenses Clifford Geertz e David Schneider. Esses pesquisadores se inspiraram na noção de sistema cultural1 1 A ideia de sistema cultural parsoniana consistiria em um sistema de símbolos e significados que decorrem de uma abstração das relações sociais; abstração, esta, que não seria um sistema de normas e instituições (sistema social). Há, nesse sentido, dois sistemas distintos: o cultural e o social. do sociólogo estadunidense Talcott Parsons, do antropólogo britânico Victor Turner e do antropólogo e filósofo belga Claude Lévi-Strauss; os quais se apropriaram ou se inspiraram nos conceitos de significante e significado do reconhecido linguista Ferdinand de Saussure. Ao comentar a noção de cultura como um sistema de símbolos e significados, Sewell Jr. (2017, p. 167)SEWELL JR., William Hamilton. Lógicas da História: teoria e transformação social. 1. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2017. afirma:

A intenção de conceitualizar cultura como um sistema de símbolos e significados é desenredar, para o propósito da análise, as influências semióticas sobre a ação dos outros tipos de influências – demográficas, geográficas, biológicas, tecnológicas, econômicas, etc. – com que estão necessariamente misturadas em uma sequência concreta de comportamento.

Nessa noção de cultura, há um meio semiótico, isto é, um conjunto de símbolos e significados imbuídos na ação no mundo, que influenciam as crenças e os comportamentos humanos e são, de certa forma, estáveis. Sobre essa certa estabilidade, Sewell Jr. (2017, p. 167)SEWELL JR., William Hamilton. Lógicas da História: teoria e transformação social. 1. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2017. destaca ainda que os autores que empregavam essa noção abstraíam “[…] um domínio de pura significação da confusão complexa da vida social e buscavam especificar sua coerência interna e lógica profunda”.

Para Sewell Jr., contudo, essa definição de cultura como um sistema de símbolos e significados apresenta problemas quando interpretada como possuindo uma lógica, uma coerência, uma uniformidade e uma continuidade: tentar defini-la assim, ignorando a dinamicidade das relações sociais e das mudanças culturais, inevitavelmente, leva a uma concepção de cultura estanque que, dificilmente, representaria na integralidade os sujeitos que a reproduzem. Ademais, Sewell Jr. (2017)SEWELL JR., William Hamilton. Lógicas da História: teoria e transformação social. 1. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2017. sinaliza que, na antropologia, essa noção é fortemente questionada, uma vez que os significados seriam politicamente carregados: contraditórios, mutáveis e fragmentados. Contudo, as críticas a essa noção de cultura nos parecem remeter muito mais a uma necessidade de reformulação do entendimento do sistema de símbolos e significados do que a uma negação do conceito2 2 É válido notar que a contraposição à noção de cultura como um sistema de símbolos e significados envolve um debate mais intenso e complexo do que este texto pode dar a entender. Por exemplo, no debate na antropologia pós-estruturalista, há até mesmo a proposta de abandonar o termo cultura, tendo como base, entre outros aspectos, uma postura de autocrítica do campo que reconheceu sua atuação moralmente e politicamente carregada nos estudos dos povos, especialmente associados com o colonialismo europeu e estadunidense. .

Em contraposição a essa conceitualização mais estática e delimitável da cultura, surge, entre as décadas de 1970 e 1980, representado por vários termos como resistência, história, política ou cultura como conjunto de ferramentas, o entendimento da cultura como sendo composto por um conjunto de práticas. Com a apropriação do conceito de prática sugerido por Pierre Bourdieu (1977)BOURDIEU, Pierre. Outline of a Theory of Practice. 1. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1977., a cultura é levada para longe do seu retrato coerente, uniforme e imutável e começa a representar a maleabilidade, mutabilidade e inconsistência dos significados culturais, focando muito mais o seu olhar nos mecanismos – ou práticas – pelos quais aconteciam as ressignificações.

Assim, com o afastamento do estudo cultural antropológico, que é fortemente criticado sob a acusação de carregar um determinismo, alguns autores da sociologia e da história cultural se apropriam do termo cultura, redefinindo-o como prática para, desse modo, tentar explicar as transformações de ordem social. Nesse sentido, a cultura se torna um conceito fluido que coleciona uma série de ferramentas de mudança, como pode ser visto no fragmento que destaca a conceitualização do termo por sociólogos, que segue:

Isso levou muitos deles a conceitualizar cultura para que pudesse ser construída como uma coleção de variáveis cuja influência sobre o comportamento pode ser rigorosamente comparada à de variáveis sociológicas padrão como classe, gênero, nível de educação, interesse econômico, etc. A consequência foi um afastamento de concepções weberianas, durkheimianas ou parsonianas anteriores de cultura como ‘orientações de valor’, muito vagas e gerais, na direção do que Ann Swidler denominou ‘conjunto de ferramentas’ composto de um ‘repertório’ de ‘estratégia de ação’

(Sewell Jr., 2017SEWELL JR., William Hamilton. Lógicas da História: teoria e transformação social. 1. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2017., p. 168-169).

Desde essa nova definição, a cultura é compreendida não mais como um sistema de símbolos e significados, mas como um conjunto de ações, isto é, práticas; o que possibilita o entendimento dos processos e ferramentas sociais que permitem, por exemplo, a ressignificação de símbolos, explicitando que as mudanças culturais ocorrem no meio social.

Em nosso estudo, como tentamos entender a cultura como o mecanismo de mudança e manutenção, isto é, de inovação e resistência – mais especificamente, das ações didáticas – compreendemos ser necessário ir além do entendimento de que ambos os conceitos anteriores se excluem mutuamente. É assim que, com o mesmo incômodo, mas com um interesse de pesquisa no campo da história social, que Sewell Jr. (2017)SEWELL JR., William Hamilton. Lógicas da História: teoria e transformação social. 1. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2017. propõe uma noção de cultura como sistema e prática, ou seja, assume-se que a cultura consiste em um sistema de símbolos e significados e, ao mesmo tempo, possui uma dimensão prática. Conforme a sua argumentação, sistema e prática são complementares, pois “[…] envolver-se em práticas culturais significa utilizar símbolos culturais existentes para realizar algum fim” (Sewell Jr., 2017SEWELL JR., William Hamilton. Lógicas da História: teoria e transformação social. 1. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2017., p. 170), e o emprego de um símbolo só conseguiria atingir um objetivo específico perante a existência de significados mais ou menos determinados para esses símbolos. Desse modo, a prática se remete ao sistema de símbolos e significados, de modo que, sem ele, se tornaria ações vazias. Sewell Jr. ainda afirma que o sistema existe devido às práticas que o elencam, o reproduzem e o transformam, de modo que o sistema também se remete à prática em uma relação dialética.

Tal formalização dual para a cultura, como proposta por Sewell Jr. (2017)SEWELL JR., William Hamilton. Lógicas da História: teoria e transformação social. 1. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2017., traz com ela algumas características importantes e vitais para o entendimento dos processos de manutenção – vinda da noção da cultura como sistema – e dos processos de mudança – vinda da noção de cultura como prática:

  1. existem culturas, no plural, e não somente uma cultura. Assim, pode-se falar de cultura médica, composta pelo conjunto de símbolos e significados que configuram a prática médica, cultura científica, cultura escolar, cultura brasileira, cultura judaica, entre outras;

  2. as culturas têm fronteiras fracas, não podendo ser bem delimitadas, uma vez que culturas tidas como “distintas” podem compartilhar sistemas e práticas. Dessa forma, faz-se impossível tentar inferir quando termina uma cultura e outra começa, o que não torna impossível caracterizar alguns elementos que fazem parte de uma ou outra cultura;

  3. as culturas podem coexistir no indivíduo. Dessa forma, uma única pessoa pode fazer parte de mais de uma cultura, como no exemplo de uma imigrante latina jornalista homossexual, que traz dentro de si uma miríade de culturas, sem que uma necessariamente negue a outra;

  4. as diferentes culturas se interseccionam e se chocam. Assim, culturas distintas podem interagir, por exemplo, no encontro de dois povos previamente isolados, mas podem se encontrar também no âmago do indivíduo. Como exemplo, poderíamos tentar entender a cultura médica interagindo com a cultura científica em um médico pesquisador. Essa interação pode, inclusive, quando tomadas as proporções sociais, provocar mudanças profundas em ambas as culturas ou até mesmo parir uma nova cultura específica;

  5. as culturas são autônomas. Logo, uma cultura tem um caráter de independência de outras culturas e, assim, cria seus próprios símbolos e significados e resiste a pressões externas. Sendo assim, as culturas se colocam como um terreno fértil para entender os processos de manutenção e renovação de significados e práticas;

  6. as culturas são coerentes. Dessa forma, duas pessoas que pertençam a mesma cultura compartilham, até certo ponto, do mesmo sistema de significados e práticas, o que permite a configuração de ações sociais com expressão síncrona, como no caso de rituais religiosos em que pessoas de uma mesma cultura religiosa seguem os mesmos passos sincronicamente.

As características dessa definição cultural aliam prática e sistema de símbolos e significados; permitem-nos entender a cultura como relativamente estática e coerente, mas que, quando em prática, sofre o risco latente de ser modificada. Assim, a cultura ganha esse caráter viscoso às mudanças, que tanto viabiliza a sua fluidez como a refreia. A manutenção reside na capacidade dos símbolos e significados se reproduzirem – por meio das práticas – sem alterações e se reforçarem socialmente de forma a se solidificarem ainda mais como tradições. A mutabilidade latente – possibilidade de mudança cultural –, por sua vez, reside no caráter incerto das práticas que, quando realizadas, oferecem à cultura o risco de ser reforçada ou reformada.

Nesse sentido, as práticas são moldadas pelos símbolos e significados ao mesmo tempo em que permitem ressignificações. Como exemplo, ao assumirmos a prática docente como parte de uma dimensão cultural, podemos reconhecer que uma determinada ação corriqueira do professor, como desenvolver uma temática de uma determinada forma com determinados recursos, pode representar uma reprodução da cultura que antecede o próprio professor e da qual ele faz parte. Reconhecendo isso, parece-nos pertinente discutir o entrelaçamento entre cultura e estrutura, como inerente aos processos de mudança ou manutenção em que recursos humanos e materiais (não humanos) são empregados. Para isso, dedicamos a seção a seguir.

Estrutura, Esquemas Culturais e Recursos

Ainda no livro Lógicas da História: Teoria social e transformação social, além de conceitualizar a cultura, Sewell Jr. (2017)SEWELL JR., William Hamilton. Lógicas da História: teoria e transformação social. 1. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2017. elabora sua construção teórica abordando outra noção relevante: o conceito de estrutura, o qual é frequentemente associado aos estudos culturais realizados principalmente no domínio da antropologia. Ainda que não seja o objetivo deste texto aprofundar-se em toda a construção estruturalista e pós-estruturalista, alguns dos aspectos dessa definição do termo, popularizado por Levi-Strauss, tornam-se muito úteis para entender a relação entre inovação, cultura, saberes e a disponibilidade de instrumentos.

A partir da crítica, da elaboração e da reformulação das teorias de Anthony Giddens e Pierre Bourdieu sobre o conceito, que ocorrem como uma ruptura com a visão estruturalista, Sewell Jr. entende a estrutura como uma dualidade formada por esquemas culturais e recursos. Os esquemas culturais, a que ele se refere, seriam constituídos pelas culturas – aqui entendidas segundo a formulação da seção anterior –, como sistemas de símbolos, significados e práticas. Os recursos, por sua vez, operariam como a parcela também material da estrutura, retirando dela a sua qualidade exclusivamente virtual, como já defendia Giddens (2009)GIDDENS, Anthony. A Constituição da Sociedade. 3. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.. Esses recursos, além de constituírem uma dualidade com os esquemas, podem ainda ser divididos em humanos e não humanos, característica entendida no seguinte fragmento:

Recursos não humanos são objetos, animados ou inanimados, ocorrendo naturalmente ou manufaturados, que podem ser usados para aumentar ou manter o poder; recursos humanos são força física, destreza, conhecimento e compromissos emocionais que podem ser usados para aumentar ou manter o poder, incluindo o conhecimento dos meios de obter, reter, controlar e propagar recursos, sejam humanos ou não humanos

(Sewell Jr., 2017SEWELL JR., William Hamilton. Lógicas da História: teoria e transformação social. 1. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2017., p. 140).

Segundo essa definição, por exemplo, seriam recursos: o poder de consagração dos padres da Igreja Católica; estoques de armas mantidos por nações; posse de fábricas pelos capitalistas; o poder atribuído a um estadista; entre outros. Alguns outros exemplos de recursos, que são particularmente úteis para o escopo didático deste trabalho, seriam: o conhecimento científico propriamente dito; a sequência típica de assuntos em uma disciplina; o conhecimento a ser ensinado em sala de aula; as ferramentas disponíveis na sala (como lousa e carteiras); a autoridade de um professor perante os alunos, e sua autoridade quanto ao modo pelo qual desenvolve os conteúdos de sua disciplina; as destrezas e habilidades do professor e dos alunos etc.

Havendo essa dualidade entre recursos e esquemas, podemos reconhecer uma dinamicidade: a prática, que ocorre segundo esquemas culturais, cria recursos (humanos ou não humanos) e os reforça ou modifica, aumentando o seu caráter promotor de mudanças. Para serem realizadas, as práticas precisam, ainda, dos recursos, uma vez que sem eles não seria possível materializá-las.

Por mais que esse seja um desenvolvimento que transborde o estritamente necessário para entender a formulação cultural, acreditamos que essa breve explicação possa melhorar o entendimento quanto ao uso do termo recursos que faremos daqui para frente. Essa definição nos ajuda, ao colocar os recursos não humanos e humanos em uma categoria distinta dos esquemas culturais. Com essa fronteira definida, poderemos melhor entender o conceito de cultura escolar, que diz respeito à forma como a cultura perpassa os sistemas e espaços escolares, assim como as noções de cultura de área ou cultura científica, também apresentadas neste artigo.

O Conceito de Cultura Escolar

O olhar sobre a educação e as práticas escolares, tendo em vista os aspectos inerentemente culturais, é algo que já vem sendo explorado em algumas linhas de pesquisa. No campo de estudo da história da educação, não são novas as tentativas de tentar entender a dinâmica escolar e o seu papel com base na perspectiva cultural. Alguns pesquisadores, desde a virada do Século XX para XXI, como Forquin (1993)FORQUIN, Jean-Claude. Escola e Cultura: as bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar. 1. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993., Chervel (1998)CHERVEL, André. Le Culture Scolaire. Une approche historique. 1. ed. Paris: Belin, 1998., Julia (2001)JULIA, Dominique. A Cultura Escolar como Objeto Historiográfico. Revista Brasileira de História da Educação, São Paulo, n. 1, p. 9-44, 2001. e Gómez (2001)GÓMEZ, Ángel Ignacio Pérez. A Cultura Escolar na Sociedade Neoliberal. 1. ed. Porto Alegre: Artmed Editora, 2001. vêm incorporando, em suas discussões, a dimensão cultural dos espaços e estruturas escolares. Partindo de diferentes perspectivas culturais, essas incorporações trazem uma polissemia para termos como cultura escolar ou cultura da escola, além de explicitar diferentes intenções dos autores.

Um autor que merece destaque, pela proximidade de sua perspectiva cultural à perspectiva de Sewell Jr., é o pesquisador e educador espanhol Viñao Frago. Tal autor utiliza a noção de cultura escolar para tentar entender, principalmente, o mecanismo que leva à manutenção dos processos nos sistemas escolares, mesmo frente a propostas institucionais de mudança (Viñao Frago, 2007VIÑAO FRAGO, Antonio. Sistemas educativos, culturas escolares e reformas. 1. ed. Mangualde: Edições Pedago, 2007.). Em seu estudo histórico-educativo sobre as reformas educacionais e o motivo dos seus parcos efeitos práticos nas dinâmicas escolares e de sala de aula, o autor lança mão do conceito de cultura escolar e, a nosso ver, analogamente a Sewell Jr., busca a sua definição na dialética entre sistemas e práticas. Em seu livro Sistemas educativos, culturas escolares e reformas, ele traz uma definição do conceito:

A cultura escolar assim entendida, seria constituída por conjunto de teorias, ideias, princípios, normas, modelos, rituais, inércias, hábitos e práticas (formas de fazer e pensar, mentalidades e comportamentos) sedimentadas ao longo do tempo em forma de tradições, regularidades e regras do jogo não interditadas, e repartidas pelos seus actores, no seio das instituições educativas

(Viñao Frago, 2007VIÑAO FRAGO, Antonio. Sistemas educativos, culturas escolares e reformas. 1. ed. Mangualde: Edições Pedago, 2007., p. 87).

Conforme podemos notar, sua definição abarca diferentes aspectos inerentes aos sistemas escolares que, em sua essência, incorporam ora aspectos relacionados com os significados assumidos em relação à realidade prática, ora diretamente sobre a própria prática. Há, portanto, um caminho plausível para a aproximação aos estudos de Sewell Jr.

Vale destacar, ainda, que por mais que o foco de Viñao Frago repouse nos aspectos culturais escolares que se mantêm perenes à revelia, por exemplo, das reformas educacionais, ele não nega que tenha havido mudanças no contexto educacional cultural ao longo dos anos. Nesse sentido, ele privilegia o estudo da resistência às mudanças, ao mesmo tempo em que recusa a ideia de que a educação permanece estática ao longo do tempo, ou seja, alheia às mudanças da sociedade. A sua construção tem o objetivo, portanto, de entender a vagarosidade dessas mudanças, o que conforma com as caraterísticas culturais da definição por sistemas e significados, com autonomia e coerência.

As contribuições de Viñao Frago são especialmente relevantes para a compreensão das tentativas de inovação em macro escala, envolvendo a estrutura educacional, e meso escala, envolvendo a estrutura escolar. Com relação à microescala, que é o nosso interesse de estudo, Viñao Frago parece apenas tangenciá-la, sem que isso represente um demérito de sua obra. Pelo nosso foco mais restrito à microescala de sala de aula, ainda que assumamos a noção de cultura escolar de Viñao Frago nos termos da – e em uma aproximação à – noção de cultura como sistema e prática de Sewell Jr., percebemos a necessidade de um aprofundamento para compreender, por exemplo, a (não) inovação didática circunscrita a uma ou poucas disciplinas escolares.

Assim, questionamo-nos sobre os limites explicativos possíveis da noção de cultura escolar para pensar o microcosmo da sala de aula, ou seja, quando saímos de um olhar macro da história da educação ou das políticas públicas da educação. Como o nosso olhar recai mais especificamente em como as mudanças poderiam interferir ou poderiam surgir no modo em que um professor – ou uma classe de professores imersos em uma cultura – leciona uma sequência de atividades sobre um determinado assunto dentro de uma disciplina específica, percebemos a necessidade de reconhecer o caráter cultural que perpassa e diferencia cada disciplina escolar. Ao fazer isso, entendemos que a cultura escolar é um componente influente em uma cultura mais específica, que compreende os significados e práticas comuns em uma disciplina escolar e que a diferencia das demais disciplinas.

Em nosso entendimento, ir além da noção de cultura escolar se faz necessário, pois (i) mesmo em uma escola permeada por uma cultura escolar, existem diferenças nas estratégias de ensino das distintas disciplinas. Por exemplo, não existe uma correspondência integral nos símbolos, significados e práticas do ensino de física, com o ensino de biologia, com o ensino de matemática, ou com o ensino de história. Além disso, (ii) mesmo em escolas diferentes, permeadas por distintas culturas escolares, existem muitas semelhanças no ensino de/em torno de uma mesma disciplina. Assim, ainda que duas escolas estejam circunscritas em espaços culturais diferentes, por exemplo em uma escola particular localizada em uma capital do Sudeste brasileiro e uma escola pública localizada no interior da região Norte do país, o ensino de uma disciplina, como a física, costuma acontecer em torno dos mesmos símbolos, significados e práticas.

Para tentar entender essa cultura em torno de uma disciplina, para a qual observamos um caráter transversal à cultura escolar, em que, ao mesmo tempo, se diferencia dentro de uma mesma cultura escolar, e se assemelha através de culturas escolares diferentes, será necessário trazer uma nova definição. Assim, ainda que reconhecendo as influências da cultura escolar na escola e em seus mecanismos como um todo, vemos a necessidade de definir um tipo de cultura que foque nas interações em sala de aula e no modo cultural de ensinar uma temática específica. A cultura em torno de uma disciplina (ou um tópico de uma disciplina), que melhor definiremos mais à frente, parece receber influência, também, de elementos e tradições das áreas de conhecimento relacionadas com os temas e conteúdos ensinados no corpo de uma disciplina. Na perspectiva cultural que assumimos, reconhecemos como influente, além da cultura escolar, uma cultura de área que, por exemplo, no caso do ensino de ciências, podemos identificar como uma cultura científica.

Cultura de Área: o exemplo da cultura científica

Para tentar entender o caráter transversal à cultura escolar dos símbolos, significados e práticas em torno de uma disciplina, buscamos na noção de cultura de área, proposta também neste artigo, os indicativos de características que possam, quando associadas às características já citadas da cultura escolar, explicar o mecanismo pelo qual pode ocorrer a mudança e manutenção das práticas docentes. Podemos assumir como cultura de área aquele conjunto de símbolos e significados, além de práticas, que, na mediação com os recursos, compõem uma estrutura de um determinado campo de conhecimento. Para ilustrar esse conceito, que também será útil para a formalização da noção de cultura didática que propomos neste artigo, podemos trazer a noção de cultura científica, a qual vem sendo empregada com alguma frequência no campo da Educação em Ciências para discutir as relações entre aspectos educacionais e culturais.

Podemos dizer, baseados na noção de cultura que assumimos, que a cultura científica consiste em um conjunto de símbolos, significados e práticas que estabelecem coerência e autonomia com as práticas científicas e que são compartilhadas por um grupo – no caso de cultura científica – ou subgrupo – no caso de um recorte das práticas de uma comunidade científica como cultura da física ou cultura da física quântica. É importante dizer que, assim como já ressaltado, as fronteiras colocadas para uma cultura, além de não serem bem delimitadas, não são fixas e se dão dependendo do objeto de estudo, podendo ser restringidas ou abrandadas dependendo do escopo da observação. Ao fazer, por exemplo, um estudo em torno das práticas realizadas em torno do ensino de uma arte marcial, pode-se definir uma cultura do judô e ao mesmo tempo, ao fazer o estudo das práticas esportivas, pode-se definir uma cultura do esporte, não sendo contraditória as duas existências e podendo uma estar englobada, ou não, na outra.

Em conformidade com essa delimitação móvel das fronteiras de uma cultura, Glen Aikenhead (1996)AIKENHEAD, Glen. Science Education: border crossing into the subculture of science. Studies in Science Education, Thames, v. 27, n. 1, p. 1-52, 1996. define a cultura científica em uma perspectiva geertziana, ou seja, trazendo a dimensão semiótica dos símbolos e significados para o entendimento da cultura científica. Indo além, Aikenhead (1996)AIKENHEAD, Glen. Science Education: border crossing into the subculture of science. Studies in Science Education, Thames, v. 27, n. 1, p. 1-52, 1996. traz a perspectiva cultural de Phelan, Davidson e Cao (1991)PHELAN, Patricia; DAVIDSON, Ann Locke; CAO, Hanh Thanh. Students’ Multiple Worlds: negotiating the boundaries of family, peer, and school cultures. Anthropology & Education Quarterly, Arlington, v. 22, n. 3, p. 224-250, 1991., que complementa a perspectiva de Geertz ao trazerem uma definição como “[…] valores, crenças, expectativas e ações convencionais de um grupo”3 3 Tradução própria do original “[…] values, beliefs, expectations, and conventional actions of a group” (Aikenhead, 1996, p. 8). (Aikenhead, 1996AIKENHEAD, Glen. Science Education: border crossing into the subculture of science. Studies in Science Education, Thames, v. 27, n. 1, p. 1-52, 1996., p. 8), aproximando-se, a nosso ver, da proposta de Sewell Jr. de um sistema de símbolos, significados e de práticas.

Seguindo a definição de Aikenhead (1996)AIKENHEAD, Glen. Science Education: border crossing into the subculture of science. Studies in Science Education, Thames, v. 27, n. 1, p. 1-52, 1996. para cultura científica, podemos finalmente explorar o caráter transversal em relação à cultura escolar, que permite entender a origem de alguns símbolos, significados e práticas que se mantêm distribuídos por diferentes culturas escolares, e que se diferem entre as disciplinas, por exemplo, a história e a física, ou a química e a língua portuguesa. A cultura científica da física, por exemplo, poderia explicar a existência de práticas consolidadas no ensino de física, como o uso de experimentos ou o aprofundamento das relações matemáticas, uma vez que são práticas também consolidadas no estudo dessa área do saber.

Não se pode dizer, porém, que a cultura científica explica e engloba as práticas docentes em torno de toda uma disciplina, uma vez que o processo de escolarização do conhecimento transpõe não só os saberes científicos para as fronteiras didáticas (Chevallard, 1991CHEVALLARD, Yves. La Transposición Didáctica: del saber sabio al saber enseñado. 1. ed. Buenos Aires: Aique Grupo Editor, 1991.), mas também as formas de ensinar, processo que esperamos detalhar mais à frente neste texto. Dessa forma, existem práticas, símbolos e significados cujas utilizações no meio científico são desconhecidas pelo meio docente, e vice-versa. Pode-se dizer, com isso, que as duas culturas não são coerentes entre si e, portanto, são distintas, apesar das suas inegáveis intersecções.

O mecanismo dentro da sala de aula que explica as situações de mudança e manutenção, inovação e resistência, esse meio viscoso pelo qual tentamos entender a cultura que engloba as práticas didáticas em torno de uma disciplina, ou tema, mais especificamente, não parece residir exclusivamente nem na cultura escolar, nem na cultura científica, apesar de compartilhar com elas alguns dos seus símbolos, significados e práticas. A cultura didática, noção que propomos, parece surgir da intersecção dessas duas culturas, ainda que não permanecendo estática nessa intersecção, criando um sistema de práticas autônomo e coerente, que tanto se diferencia dentro de uma mesma escola como se alastra por escolas distintas.

A noção de cultura didática, como defenderemos, nos oferece uma lente que nos permite explorar essa dialética entre novas e antigas práticas docentes compartilhadas em torno de uma disciplina, abrindo espaço para um entendimento dessa dinâmica como duas faces de um mesmo mecanismo e não como duas entidades distintas em oposição. Assim, o entendimento cultural das práticas em sala de aula nos permitirá olhar para os processos de inovação, bem como os seus insucessos e sua manutenção, entendendo quais seriam alguns dos processos sociais envolvidos.

Cultura Didática

Como já expusemos no tópico anterior, a cultura didática emerge da intersecção da cultura escolar com a cultura de área (cultura científica). Dessa interseção, surge e se consolida a cultura didática, que compartilha símbolos, significados e práticas com ambas as culturas que a formam, mas também forma todo um novo sistema autônomo de modos de agir e pensar que, em muitos elementos, não têm correspondência direta nem com a cultura escolar, nem com a cultura de área que a originam.

A transposição didática, defendida e popularizada por Yves Chevallard (1991)CHEVALLARD, Yves. La Transposición Didáctica: del saber sabio al saber enseñado. 1. ed. Buenos Aires: Aique Grupo Editor, 1991., traz um bom ponto de partida para tentar entender o processo de formação da cultura didática e como as demais culturas citadas se combinam para tal. É por meio da transposição e agindo sobre ela que a cultura didática surge, trazendo não só elementos das suas culturas predecessoras, mas também elementos novos que a constituem de modo mais exclusivo.

Para Chevallard (1991)CHEVALLARD, Yves. La Transposición Didáctica: del saber sabio al saber enseñado. 1. ed. Buenos Aires: Aique Grupo Editor, 1991., no âmbito micro de sala de aula, há o que se define como sistema didático, composto pelas relações entre professor, alunos, o saber previsto que seja ensinado e aquele saber que é, de fato, ensinado. No âmbito da educação matemática, para o qual Chevallard destina o seu olhar, ele reconhece que o saber construído pelos matemáticos (saber sábio ou saber erudito) não coincide com o saber matemático tratado nos livros didáticos, nas escolas e nos currículos (o saber a ensinar), e, tampouco, com os saberes de fato apresentados/discutidos pelos professores (saber ensinado). Para o autor, há uma transposição didática que, não sendo uma simplificação de saberes, consiste em um processo pelo qual um saber se constitui a partir de uma transformação do saber de referência, transformação esta que faz com que o novo saber só faça sentido em função do sistema de ensino ou do sistema didático.

Como Chevallard (1991)CHEVALLARD, Yves. La Transposición Didáctica: del saber sabio al saber enseñado. 1. ed. Buenos Aires: Aique Grupo Editor, 1991. traz em seu livro La transposición didáctica: del saber sabio al saber enseñado:

O entorno imediato de um sistema didático está constituído inicialmente pelo sistema de ensino, que reúne o conjunto de sistemas didáticos e tem ao seu lado um conjunto diversificado de dispositivos estruturais que permitem o funcionamento didático e que intervém nele em diversos níveis. Inclui, por exemplo, meios multiformes (oficiais e oficiosos) de regulação do fluxo de alunos entre os sistemas didáticos, assegurando (entre outras funções) a formação do conjunto de sistemas didáticos de forma viável. Não nos deteremos aqui nestas questões, que correspondem essencialmente a outras áreas da análise didática, nas quais se apresentam problemas igualmente profundos (que se referem precisamente às condições da constituição viável dos sistemas didáticos tais como a heterogeneidade ou homogeneidade das classes)

(Chevallard, 1991CHEVALLARD, Yves. La Transposición Didáctica: del saber sabio al saber enseñado. 1. ed. Buenos Aires: Aique Grupo Editor, 1991., p. 27, tradução nossa).

Pelo exposto por Chevallard, é notório que ele reconhece aquilo que estamos identificando cultura escolar e cultura didática como dispositivos estruturais que consolidam um saber a ensinar. Indo além, ele afirma que essa questão não faz parte do seu foco de análise. Assim, apesar de Chevallard reconhecer a sua existência e importância, o foco da teoria não está na estrutura e nos processos que permitem a construção desses projetos didáticos. Podemos dizer que esse enfoque tampouco se debruça em como eles se modificam ou se mantêm ao longo do tempo. O seu olhar se vira mais em torno das etapas de construção e modificação dos saberes a ensinar e ensinados – que, baseando-se em Sewell Jr. (2017)SEWELL JR., William Hamilton. Lógicas da História: teoria e transformação social. 1. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2017., compreendemos como recursos sobre os quais o sistema de símbolos, significados e práticas didáticas recai. A nosso ver, ao focar na análise de saberes ensinados que não encontram correspondência nos saberes sábios, a teoria da transposição acaba por levantar também a possibilidade de um caminho teórico: da existência de alguns significados e práticas exclusivos das culturas didáticas, sem correspondência com os significados e práticas da cultura científica ou da cultura escolar.

Podemos dizer que, na transposição didática, o saber ganha e constrói sentido na medida em que se consolida em um vínculo com a cultura escolar, mantendo alguma referência com a área de conhecimento da qual provém. Em outras palavras, o saber se institui com significados e práticas característicos dos sistemas de ensino, que são permeados por uma cultura escolar. Contudo, possuindo alguma sutil compatibilidade com o saber sábio, há, nesse processo, a consolidação de uma cultura que incorpora e transforma significados e práticas da área de conhecimento que gera o saber (por exemplo, a ciência e a cultura científica), sendo essa cultura não propriamente a escolar, mas sim o que nomeamos como uma cultura didática. Esta seria, assim, aquele conjunto de símbolos, significados e práticas que comporta e ressignifica elementos de outras culturas e, com isso, não é bem delimitada e nem restrita a uma escola. Por sua relação com a dimensão prática e semiótica da área de conhecimento, por exemplo: a ciência, e pela ação da noosfera4 4 Segundo Chevallard (1991), noosfera seria a esfera na qual se pensaria o funcionamento didático, onde estariam presentes as partes interessadas na transposição dos saberes, podendo elas serem tanto institucionais como sociais. Ela englobaria então tanto o sistema de ensino quanto as partes externas a ele, mas que influem em seu funcionamento. na transposição didática, ela se constrói de forma transversal em um sistema de ensino, tendo como ponto de gênese construtiva o saber e sua transposição, e não propriamente o que se dá em escolas específicas.

Com isso, não estamos dizendo que a cultura didática está além da escola. Ela se constrói somente no contato com a escola. Mas, por sua gênese, seu “disparo primeiro”, acontecer no âmbito das discussões curriculares, é natural que, ao contrário da cultura escolar ‒ que diz respeito mais a uma escola ou a um conjunto de escolas em uma micro ou mesorregião ‒, a cultura didática costuma se dar em torno dos tópicos de ensino. Isso explica, por exemplo, porque os significados e as práticas em torno do ensino de um mesmo tópico de ciências tendem a se reproduzir em diferentes contextos: é a transversalidade da cultura didática.

Nesse sentido, é importante frisar que toda a formulação que viemos fazendo ao longo do texto traz um enfoque diferente ao processo de transposição do que o dado originalmente pelo autor francês. Enquanto o uso tradicional da teoria traz um olhar para o saber sábio, o saber a ensinar e o saber ensinado, ou seja, os conceitos, conhecimentos e conteúdos que passam pelo processo de transposição até que, enfim, sejam ensinados, nós, aqui, destacamos exatamente aqueles aspectos que Chevallard aponta como estando além de seu interesse de estudo, mas que ainda assim possuem uma relevância.

Isso posto, por mais que não seja o objetivo desse artigo se aprofundar ainda mais em uma descrição detalhada da gênese da cultura didática em torno de algum tema ou disciplina, a transposição didática nos traz um bom entendimento de quais seriam os passos de sua formação. A nosso ver, e conforme já expusemos, partindo de uma cultura científica, os esquemas culturais entrariam em choque com a esfera da cultura escolar e, à medida com que elas interagissem, se reformariam, se transformariam e se englobariam, formando um novo conjunto de símbolos, significados e práticas. Nesse conflito e emersão de significados e práticas é que se constitui uma cultura didática, em um processo de aproximação e, ao mesmo tempo, de diferenciação da cultura escolar e da cultura científica.

Tendo em vista o que apresentamos até aqui, podemos elencar algumas características da noção de cultura didática, que melhor explicitam sua formalização:

  1. existem culturas didáticas, no plural, e não somente uma cultura didática. Podemos falar de cultura didática da física, cultura didática da história, cultura didática da filosofia etc.;

  2. as fronteiras que definem a cultura didática não são fixas. A delimitação de uma cultura didática depende do objeto de estudo em torno do qual se quer identificar os elementos a que ela pertence. Assim, se quisermos identificar elementos em torno do ensino de um tópico específico, como a física moderna, podemos delimitar a cultura didática de física moderna, a qual contará com elementos exclusivos desse assunto;

  3. as culturas didáticas têm fronteiras fracas, não podendo ser bem delimitadas. Por isso não falamos em caracterizar uma cultura didática e sim de caracterizar alguns de seus elementos, uma vez que é uma tarefa impossível tentar identificar, por exemplo, quando acaba a cultura didática de geografia e começa a cultura científica de geografia;

  4. as culturas didáticas são coerentes. O que reforça a característica da cultura didática que transborda as fronteiras da cultura escolar, sendo possível observar símbolos, significados e práticas didáticas coerentes, mesmo em escolas distintas, com culturas escolares distintas;

  5. as culturas didáticas são autônomas. Dessa forma, é comum haver tentativas de mudanças a níveis escolares-institucionais não entrarem em sala de aula de uma disciplina específica, uma vez que a cultura didática é autônoma da cultura escolar. A autonomia desempenha um papel imprescindível para o caráter tanto de manutenção quanto de mudança da cultura didática, mesmo em meio a pressões externas;

  6. reside, no caráter prático das culturas didáticas, a sua oportunidade de mudança ou consolidação. O entendimento da cultura didática permite identificar o processo de mudança ou consolidação como inerente à prática docente e o sistema de símbolos e significados como responsável pela manutenção das formas de ensinar.

Tendo esclarecidas essas características, podemos finalmente identificar a cultura didática como o possível meio viscoso pelo qual se dão tanto as manutenções e resistências quanto as inovações e mudanças da prática docente. É usando-a como ferramenta teórica que buscamos entender os motivos pelos quais as práticas em torno do ensino de uma disciplina ou tema continuam relativamente estáticas, mesmo frente aos inegáveis esforços institucionais e acadêmicos de inserir novos recursos em sala de aula. Tais esforços, impulsionados pelo entendimento de que possibilitariam a implementação de novas práticas docentes, podem ser materializados, por exemplo, com a inserção dos meios tecnológicos em sala de aula; com as pressões externas vindas da academia, do núcleo científico e da sociedade; com as mudanças curriculares e estruturais da escola e das demandas sociais em geral. Contudo, como uma dimensão semiótica à parte, ainda que relacionada, a cultura didática tende a continuar sendo reproduzida mesmo com a inserção de novos recursos, ressignificando-os de forma a manter aquelas práticas já consolidadas.

Assim, essa formulação do conceito de cultura didática nos permite compreender o porquê de, mesmo quando tendo acesso a novos recursos – como um computador, uma lousa digital, o projetor etc. – que trazem uma miríade de novas possibilidades, um professor ainda reproduz, por exemplo, as práticas tradicionais expositivas, atribuindo ao novo recurso o mesmo significado e uso de um recurso antigo – como o sistema lousa e giz. Ao mesmo tempo, ela nos permite entender que, para que haja uma mudança na prática docente, não é necessária uma grande mudança dos recursos e sim um esforço em implementar novas práticas que podem levar em conta também a ressignificação de instrumentos já disponíveis.

Não se advoga, com a noção de cultura didática, no entanto, que não exista uma importância concomitante da renovação dos recursos, uma vez que eles podem servir como motores da inovação, trazendo novas possibilidades de significação e práticas, ainda que elas possam não ser implementadas. Entende-se apenas que o cerne da prática inovadora não está nessas renovações de recursos e sim em mudar a prática docente, tendo como base ela mesma.

A perspectiva cultural que trazemos, inserida na formulação estrutural, nos oferece uma ferramenta epistemológica e metodológica para melhor entender as práticas docentes de uma área de ensino: o emprego da noção de cultura didática permite um olhar centrado em uma disciplina escolar ou em um tema de ensino, e focado na interação entre os recursos didáticos empregados e os significados que permeiam as escolhas didáticas e as ações executadas em sala de aula. Desse modo, a noção nos permite reconhecer, por exemplo, como mesmo em meio a um esforço do professor em acessar e empregar em sua prática saberes diversificados, eles sempre estarão sob risco de serem desconsiderados no primeiro momento em que forem colocados à prova nos contextos reais de sala de aula.

Na próxima seção, mostraremos como a cultura didática pôde ser utilizada para melhor entender os processos que resultam de propostas de inovação didática. Trazemos um recorte de uma pesquisa de campo em que identificamos elementos culturais que envolvem o ensino de um tópico curricular, com destaque para a relação entre os recursos e as estratégias de ação e significados assumidos.

Uma Aplicação do Conceito de Cultura Didática

Como forma de exemplificar o uso do conceito que aqui definimos, trazemos alguns resultados de etapas iniciais de um estudo de caso envolvendo as primeiras experiências de um estagiário, licenciando em física, na regência de aulas. O estudo buscava investigar o comportamento do professor estagiário que, motivado por uma proposta de uma regência de aula inovadora, elaborou um plano de ensino e o desenvolveu com alunos, em uma aula no campo de estágio. É a partir desse plano que o estagiário propõe uma aula “inovadora”, tentando introduzir novas práticas ao ensino do tema “lançamento oblíquo” na disciplina de Física.

Como uma etapa preliminar do estudo, para melhor compreender de que modo as escolhas didáticas do professor estagiário representavam uma inovação, foi feito um mapeamento e verificação de elementos da cultura didática em torno do tema, lançamento oblíquo. Para isso, foi realizado um levantamento com um grupo de participantes, com o uso de um questionário de respostas abertas. O questionário produzido contava com 9 questões separadas em 3 eixos temáticos, sendo eles: aula que lhe foi lecionada no ensino médio (5 questões); aula típica sobre lançamento oblíquo (3 questões); e aula idealizada (1 questão). Nessa etapa, o estudo contou com 22 participantes de uma cidade do interior do estado de São Paulo, entre professores de Física em nível universitário e básico, além de graduandos de cursos de bacharelado e licenciatura em Física. Um levantamento dessa natureza, com professores e alunos que possuem uma proximidade com a Física e seu ensino, revela alguns dos elementos latentes na compreensão do ensino de física, quantos aos seus recursos e suas práticas. Nesse sentido, o grupo de participantes forneceria dados de análise especialmente úteis para a identificação de possíveis elementos de uma cultura didática de lançamento oblíquo.

Com as respostas obtidas com a aplicação do questionário, foi feita, então, uma categorização a posteriori por proximidade semântica de algumas de suas passagens. O intuito inicial dessa categorização foi construir os indicativos de elementos que constituem a cultura didática de lançamento oblíquo5 5 Só é possível construir indicativos, uma vez que, conforme já destacamos, as fronteiras entre culturas não são bem delimitadas, sendo impossível e infrutífero, então, tentar mapear uma Cultura em sua totalidade. , os quais utilizaríamos para entender as propostas de inovação presentes no plano de ensino do estagiário. A partir dos resultados, foi possível estabelecer 9 categorias representativas, divididas em 2 grupos, como pode ser visto na Figura 1:

Figura 1
Gráficos com as Categorias agrupadas em Estratégias e Recursos e o Número de Ocorrências categorizadas em cada

Na Figura 1, os números juntos a cada coluna representam o número de ocorrências de cada tipo de estratégias/esquemas ou recursos entre as respostas dos participantes. Conforme pode ser observado, as respostas fornecidas pelos participantes apresentaram ocorrências de 5 tipos de estratégias/esquemas diferentes e 4 tipos de recursos de ensino.

Formalizadas as categorias, que já representam um indicativo de elementos culturais associados ao ensino de lançamento oblíquo, com o uso da ferramenta Atlas.ti – software também utilizado para a própria marcação das citações categorizadas e quantificação de ocorrências – foi possível ainda contabilizar as coocorrências6 6 Para contar uma coocorrência entre duas categorias, o programa utiliza um algoritmo que analisa se há uma interseção entre duas citações de diferentes categorias. entre as categorias, duas a duas. Desse modo, foi possível contabilizar a quantidade de vezes em que as respostas traziam duas ideias associadas – recursos ou estratégias – e construir a Figura 2, que fornece o número de relações feitas ao longo das 22 respostas coletadas.

Figura 2
Tabela com o Número de Coocorrências entre as Categorias com Destaque: com texto em vermelho, para aquelas que fornecem 5 ou mais coocorrências

Com base nas coocorrências, foi possível mapear aqueles elementos que poderiam estar culturalmente relacionados: por exemplo, havia uma grande proximidade entre os indicativos de aula expositiva como estratégia e lousa como recurso, o que, de certa forma, são possíveis marcadores tanto de culturas escolares como da cultura didática da disciplina de Física. Foi possível traçar, ainda, uma possivelmente forte relação entre pares de estratégias/esquemas, como aula expositiva e memorização de fórmulas ou resolução de exercícios e exemplos, o que representam elementos da cultura didática da disciplina de Física, mas não necessariamente são elementos de culturas escolares, perpassando outras disciplinas.

O reconhecimento de possíveis elementos da cultura didática da disciplina de Física ou, de forma mais específica, de elementos da cultura didática de lançamento oblíquo, demonstra um potencial analítico da noção de cultura didática na compreensão da docência: em lugar de identificar a ação docente como relacionada a um reservatório de saberes, por exemplo os tradicionais ou os experienciais (Gauthier et al., 1998GAUTHIER, Clermont et al. Por uma Teoria da Pedagogia: pesquisas contemporâneas sobre o saber docente. 1. ed. Ijuí: Editora Unijuí, 1998.), a noção nos permite reconhecer uma íntima relação entre os significados que permeiam o ensino e aprendizagem, as estratégias de ação e os próprios recursos. Nesse sentido, por exemplo, uma inovação da prática docente passa a ser vista, em um nível micro e focado no âmbito de uma disciplina escolar, com base em significados cristalizados que podem ser evocados e reafirmados em iniciativas de mudança, dificultando a inovação docente. Ademais, nos permite entender o porquê de os recursos tradicionais evocarem práticas tradicionais, ressaltando o potencial da mudança de recursos, ainda que eles não sejam nem suficientes, nem necessários para uma inovação didática.

Conforme podemos notar, as estratégias de ação, que são aspectos inerentes à cultura e tratados aqui como parte dos esquemas culturais, assim como os recursos a elas relacionadas, trazem um retrato do que facilmente se caracteriza como um ensino tradicional de física. Para além de confirmar o que parece ser um senso comum sobre o ensino de física, o levantamento incluía questionamentos sobre as experiências que os participantes haviam tido ou estavam tendo com o ensino do tópico específico de física tratado. A nosso ver, essas experiências sinalizam um chão firme sobre o qual são pensadas as formas e meios de se ensinar. Nesse sentido, mais do que trazer indicadores de elementos de uma cultura didática, o levantamento explicita uma referência utilizada para estabelecer práticas e significados didáticos a serem criados ou, mais facilmente, reproduzidos.

As estratégias listadas pelos participantes, imbuídas por símbolos e significados que dão um sentido ao ensino, servem de apoio para pensar o próprio ensino. Indo além, a coocorrência com recursos representa o enlace que Sewell Jr. (2017) destaca em sua concepção de estrutura. Temos, nesse caso, uma estrutura do sistema didático em torno do ensino de lançamento oblíquo, composta por esquemas culturais e recursos não humanos (conteúdos de física e materiais) que, em certa medida, representam uma indissociabilidade na concepção da própria estrutura do sistema didático. Nas situações específicas de ensino, por exemplo, em uma sala de aula com um professor, destacaríamos, ainda como parte do fenômeno cultural estudado, os recursos humanos que integram também a estrutura do sistema didático.

Uma vez ilustrados alguns indicativos de elementos da cultura didática, podemos destacar o caso concreto de pensar a inovação em relação a essa cultura. O levantamento de indicativos de elementos da cultura didática fornece referências para uma diferenciação entre inovação e reprodução de práticas cristalizadas, de modo que a própria inovação didática passa a ser entendida em função da cultura didática (quem inova, o faz em relação a algo).

Na pesquisa realizada, um primeiro movimento nesse sentido ocorreu com a análise do plano de ensino elaborado pelo estagiário com intuito inovador. Foi possível observar que, ao longo do plano de ensino, foram indicados recursos e estratégias que tanto trazem um caráter inovador como acabam por reproduzir práticas estabelecidas, em alguns casos, mesmo com o emprego de novos recursos. Vale destacar que, conforme Sewell Jr. (2017)SEWELL JR., William Hamilton. Lógicas da História: teoria e transformação social. 1. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2017. afirma, as práticas se renovam dentro delas mesmas: não se pode esperar que uma proposta de mudança em relação à cultura não traga elementos da própria cultura em relação a qual ela tenta inovar. Isso não pode ocorrer, uma vez que culturas mudam e se reformam internamente, mesmo quando em choque com outras, devido a seu caráter autônomo. Assim, é esperado que inovações em relação à cultura didática tragam uma sorte de elementos tradicionais combinados com elementos inovadores.

O plano de ensino contemplava toda a discussão sobre o tópico de lançamento oblíquo que estava previsto para ser tratado ao longo de 8 aulas de 50 minutos cada, sendo duas aulas duplas por semana. Para o recorte que trazemos aqui, podemos destacar alguns trechos presentes na seção específica do plano de ensino que previam as duas primeiras aulas. Dois trechos que podem ser destacados, que são parte do plano de ensino do estagiário (Quadros 1 e 2):

Quadro 1
Excerto do Plano de Ensino Referente ao Início da primeira Aula
Quadro 2
Excerto do Plano de Ensino Referente ao Período Mediano da Primeira Aula

Nos trechos destacados, podemos identificar que houve uma tentativa do estagiário de diferenciar sua ação de uma estratégia expositiva, um elemento da cultura didática, ao mesmo tempo em que busca valorizar a externalização de compreensões dos alunos. O componente de inovação da prática se manifesta, nesse caso, na opção de buscar estabelecer uma interação dialógica a partir de questões chave e, após, resgatar as próprias falas e concepções dos alunos. Além disso, houve a tentativa de ressignificar um recurso presente em sala de aula: um cesto de lixo, o qual passaria a ter um papel didático e com significado prático intimamente relacionado com o tópico de ensino.

Por mais simplório que possa parecer a escolha didática do estagiário, já que representa certa obviedade em relação às diversas contribuições que a pesquisa em educação em ciência tem fornecido desde pelo menos a década de 1970, trata-se de uma situação chave propícia de instabilidade: toda inovação cria instabilidade por não empregar ou pouco empregar as referências culturais. Na perspectiva de pesquisa segundo o conceito de cultura didática, estudar a inovação envolveria olhar especificamente a ação e os significados que emergem nela, nesses períodos de possíveis instabilidades. Trata-se, portanto, de um olhar micro sobre as situações de inovação que podem revelar, efetivamente, o fenômeno de manutenção ou transformação de aspectos da cultura didática, assim como a (não) sobrevivência da própria inovação7 7 No desenvolvimento da pesquisa da qual retiramos um exemplo de aplicação da noção de Cultura Didática, em uma etapa posterior aquelas aqui apresentadas, voltamos o nosso olhar para o que de fato ocorria nas situações de aula e para as interpretações do estagiário sobre o que ocorria. Isso nos permitiu compreender as frustações do estagiário e o possível abandono da intenção inovadora em novas regências de aula sobre o tópico, em que haveria a possibilidade de uma reprodução mais direta da cultura didática. Essa análise não é apresentada neste artigo de natureza teórica, por entendermos que o que trazemos é suficiente para ilustrar o conceito proposto. .

Conclusões

Com este artigo, esperamos fomentar uma série de questionamentos sobre a existência de um meio construído socialmente que impede – mas também possibilita – a penetração e efetivação das propostas de mudança em sala de aula. Acreditamos que, com o entendimento da realidade do professor com o emprego da noção de cultura didática, podemos percebê-lo como imerso em um sistema de símbolos, significados e práticas que possibilitam a sua atuação no mundo, mas que também restringem a sua agência. Em nossos estudos, isso não só nos permite melhor entender como potencializar as ações inovadoras, mas também reconhecer que é por meio da compreensão do professor ‒ de que ele faz parte de um sistema que o guia, a priori, em as suas práticas ‒, que ele pode perceber os momentos em que toma uma decisão didática contrária à sua proposta de inovação e que pode agir ativamente para consolidá-la.

Vale ressaltar que, apesar de ter sido tratada aqui enquanto um parâmetro para a inovação, a cultura didática tem transbordado, em nossos estudos, os limites de uso metodológico, assumindo um caráter epistemológico que diz respeito sobre a construção de conhecimento didático sobre o ensino. Sob a óptica da cultura didática, temos buscado entender questões fundamentais sobre o funcionamento da dinâmica em sala de aula e enxergar os processos de inovação das práticas, atentando-nos tanto à etapa de criação da proposta de inovação quanto à etapa de aplicação em que ela pode ser subvertida.

Como um conceito teórico ainda incipiente, novos aprofundamentos e implementações da noção são possíveis. Vislumbramos a realização de pesquisas que tratem, por exemplo, da relação entre a transposição didática e o surgimento de uma cultura didática em torno de tópicos recentemente inaugurados na educação básica (por exemplo, tópicos de física moderna e contemporânea), um aprofundamento sobre a relação entre recursos não humanos e o desenvolvimento de recursos humanos em meio a transformações da cultura didática (por exemplo, o que pode estar ocorrendo no período em que este artigo é elaborado, com um Ensino Remoto Emergencial devido à pandemia de covid-19), ou mesmo uma maior formalização do conceito de estrutura do sistema didático, tendo como base a noção de estrutura de Sewell Jr.

Notas

  • 1
    A ideia de sistema cultural parsoniana consistiria em um sistema de símbolos e significados que decorrem de uma abstração das relações sociais; abstração, esta, que não seria um sistema de normas e instituições (sistema social). Há, nesse sentido, dois sistemas distintos: o cultural e o social.
  • 2
    É válido notar que a contraposição à noção de cultura como um sistema de símbolos e significados envolve um debate mais intenso e complexo do que este texto pode dar a entender. Por exemplo, no debate na antropologia pós-estruturalista, há até mesmo a proposta de abandonar o termo cultura, tendo como base, entre outros aspectos, uma postura de autocrítica do campo que reconheceu sua atuação moralmente e politicamente carregada nos estudos dos povos, especialmente associados com o colonialismo europeu e estadunidense.
  • 3
    Tradução própria do original “[…] values, beliefs, expectations, and conventional actions of a group” (Aikenhead, 1996AIKENHEAD, Glen. Science Education: border crossing into the subculture of science. Studies in Science Education, Thames, v. 27, n. 1, p. 1-52, 1996., p. 8).
  • 4
    Segundo Chevallard (1991)CHEVALLARD, Yves. La Transposición Didáctica: del saber sabio al saber enseñado. 1. ed. Buenos Aires: Aique Grupo Editor, 1991., noosfera seria a esfera na qual se pensaria o funcionamento didático, onde estariam presentes as partes interessadas na transposição dos saberes, podendo elas serem tanto institucionais como sociais. Ela englobaria então tanto o sistema de ensino quanto as partes externas a ele, mas que influem em seu funcionamento.
  • 5
    Só é possível construir indicativos, uma vez que, conforme já destacamos, as fronteiras entre culturas não são bem delimitadas, sendo impossível e infrutífero, então, tentar mapear uma Cultura em sua totalidade.
  • 6
    Para contar uma coocorrência entre duas categorias, o programa utiliza um algoritmo que analisa se há uma interseção entre duas citações de diferentes categorias.
  • 7
    No desenvolvimento da pesquisa da qual retiramos um exemplo de aplicação da noção de Cultura Didática, em uma etapa posterior aquelas aqui apresentadas, voltamos o nosso olhar para o que de fato ocorria nas situações de aula e para as interpretações do estagiário sobre o que ocorria. Isso nos permitiu compreender as frustações do estagiário e o possível abandono da intenção inovadora em novas regências de aula sobre o tópico, em que haveria a possibilidade de uma reprodução mais direta da cultura didática. Essa análise não é apresentada neste artigo de natureza teórica, por entendermos que o que trazemos é suficiente para ilustrar o conceito proposto.

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Editado por

Editor responsável: Luís Henrique Sacchi dos Santos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    04 Ago 2021
  • Aceito
    27 Jul 2022
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