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Crise Educacional e Ambiental em Paulo Freire e Enrique Leff: por uma pedagogia ambiental crítica

Resumo:

O artigo dialoga as contribuições de Paulo Freire sobre a crise educacional com as de Enrique Leff sobre a crise ambiental. Para tal, analisamos que tanto o contexto da educação, quanto o contexto do meio ambiente refletem problemáticas sistêmicas, epistemológicas e civilizatórias que produzem práticas e pensamentos insustentáveis e hegemônicos. Partimos, assim, de revisões bibliográficas entre Paulo Freire e Enrique Leff, dialogando com metodologias e correntes do materialismo histórico dialético e do pensamento descolonial. Verificamos que a pedagogia ambiental, como resultado simbiótico da inter-relação das contribuições dos marcos teóricos estudados, se perfaz como caminho para enfrentamento da crise ambiental e dos recursos naturais e como novo modelo civilizatório por meio da criticidade, complexidade, transdisciplinaridade, sustentabilidade e justiça.

Palavras-chave:
Educação Ambiental; Paulo Freire; Enrique Leff; Pedagogia Crítica

Abstract:

The article dialogues the contributions of Paulo Freire on the educational crisis with those of Enrique Leff on the environmental crisis. To this end, we analyze that both the context of education and the context of the environment reflect systemic, epistemological and civilizing problems, which produce unsustainable and hegemonic practices and thoughts. Thus, we start from bibliographic reviews between Paulo Freire and Enrique Leff, dialoguing with methodologies and theorical currents of historical dialectical materialism and decolonial thought. We verified that the environmental pedagogy, as a symbiotic result of the interrelation of the contributions of the studied theoretical frameworks, it works as a way to face the environmental crisis and natural resources and as a new civilizing model through criticality, complexity, transdisciplinarity, sustainability and justice.

Keywords:
Environmental Education; Paulo Freire; Enrique Leff; Critical Pedagogy

A pedagogia da complexidade ambiental se constrói, dessa forma, na forja do pensamento do não pensado, do proceder, do que ainda não é, no horizonte de uma transcendência para a outridade e diferença, na transição para a sustentabilidade e justiça - daí se desprendem os princípios conceituais que orientam uma pedagogia ambiental (Leff, 2009LEFF, Enrique. Complexidade, Racionalidade Ambiental e Diálogo de Saberes. Tradução de Tiago Daniel de Mello Cargnin. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 34, n. 3, p. 17-24, set./dez. 2009. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/9515>. Acesso em: 08 dez. 2019.
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, p. 5).

Introdução

É indiscutível o fato de que o meio ambiente apresenta, cotidianamente, sinais intensos de desequilíbrio. A exploração constante e excessiva de recursos naturais está pautada numa lógica sistemática que desconsidera as demandas socioambientais e se respalda em interesses econômicos. Assim, quando pensamos em crise ambiental, uma série de ideias e discursos são acionados para tentar entender e resolver essa problemática, contudo, pode haver falhas constitutivas nesse exercício racional, por não se considerar a complexidade metodológica envolvida nas questões sobre meio ambiente e sociedade, expondo, dessa forma, a nossa crise civilizatória.

A partir disso, percebemos como há diversas ideologias que obedecem às lógicas culturais de produção, consumo e capital, as quais influenciam tanto nas desigualdades sociais quanto no esgotamento compulsivo do meio ambiente. Por isso, adotamos um olhar crítico em cima de determinadas racionalidades históricas que estruturam lógicas de exploração e opressão, como, por exemplo, as racionalidades técnicas, formais, instrumentais e econômicas. Através de revisões bibliográficas e de um referencial inter(trans)disciplinar sobre questões sociais, econômicas, históricas, jurídicas e ambientais, percebemos como o viés político-hegemônico sobre meio ambiente colabora intrinsecamente para a própria crise ambiental e degradação eminente da natureza.

Nesse sentido, acreditando no poder transformador e emancipador da educação, decidimos dialogar as contribuições do educador brasileiro Paulo Freire sobre métodos político-pedagógicos com as teorias ambientais do sociólogo mexicano Enrique Leff. Por meio dessa dialógica entre ambos, utilizamos do materialismo-histórico-dialético como vertente metodológica para auxiliar nos processos de construção e desconstrução de pensamentos e práxis ideológicas, ressaltando a função da educação ambiental sobre tais contextos.

Desta forma, a nossa proposta recorre a um apontamento sobre as problemáticas epistemológicas e políticas presentes no processo educacional e no pensamento ambiental, para que possamos empreender daí novas perspectivas, inclusive descolonizadoras, e ações que transformem a realidade presente. Neste sentido, partimos do pressuposto de que o pensamento ambiental complexo, baseado em posicionamentos críticos aos sistemas hegemônicos, coloniais, desiguais e exploratórios, assim como os princípios baseados no diálogo entre saberes e o seu caráter inter/transdisciplinar, são fundamentais para construir uma educação e uma práxis que religue o ser e o mundo numa condição harmônica e sustentável.

Pensando Criticamente o Ser em Paulo Freire e o Meio Ambiente em Enrique Leff

Antes de iniciarmos a proposição de um pensamento voltado para a educação ambiental, torna-se preciso evidenciar algumas pré-noções sobre a profundidade envolvida na construção do exercício educacional. Assim, como uma das referências principais dessa pesquisa sobre o tema da educação e da prática pedagógica, considera-se a relevância de Paulo Freire e de seus ensinamentos que podem ser considerados imprescindíveis para se falar no exercício de educar. Sendo atualmente Patrono da Educação Brasileira1 1 Sobre Paulo Freire, consultar Barreto (2004), a qual reflete sobre a trajetória de Paulo Freire e seu comprometimento com as causas sociais e com os grupos vulneráveis e oprimidos, além de trazer uma abordagem analítica sobre sua metodologia na construção de uma perspectiva democrática da gestão educacional e o simbolismo de resistência frente aos marcos ditatoriais na América Latina e no mundo. , por meio da Lei n° 12.612 promulgada no dia 13 de abril de 20122 2 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12612.htm>. Acesso em: 14 de maio de 2020. , ele ressaltou por vezes em suas obras que ensinar, num projeto político-pedagógico progressista, não é transferir conhecimento. Ensinar, como bem teorizado pelo autor, pode ser a transformação da curiosidade ingênua do(a) educando(a) em curiosidade epistemológica, assim como pode ser o desenrolar crítico pela dialética teórica-prática pautado no recíproco ensinar-aprender. Portanto, pensar numa Pedagogia Freiriana é buscar o confronto crítico e da práxis com os modelos de realidade fatalista, negando a ideologia desumanista que descaracteriza a mulher e o homem como seres históricos, sociais e, por natureza, inacabados.

A contradição sobre como o processo educacional, sendo essencialmente político-pedagógico, pode estar situado nos embates entre interesses conflitantes, está expressa na obra Educação Como Prática de Liberdade, na qual o autor afirma:

Uma educação que possibilitasse ao homem a discussão corajosa de sua problemática. De sua inserção nesta problemática. Que o advertisse dos perigos de seu tempo, para que, consciente deles, ganhasse a força e a coragem de lutar, ao invés de ser levado e arrastado à perdição de seu próprio ‘eu’, submetido às prescrições alheias. Educação que o colocasse em diálogo constante com o outro. Que o predispusesse a constantes revisões. À análise crítica de seus ‘achados’. A uma certa rebeldia, no sentido mais humano da expressão. Que o identificasse com métodos e processos científicos (Freire, 1967FREIRE, Paulo. Educação Como Prática de Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. Disponível em: <https://cpers.com.br/wp-content/uploads/2019/09/5.-Educa%C3%A7%C3%A3o-como-Pr%C3%A1tica-da-Liberdade.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2020.
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, p. 90).

Freire ainda ressalva:

Não podíamos compreender, numa sociedade dinamicamente em fase de transição, uma educação que levasse o homem a posições quietistas ao invés daquela que o levasse à procura da verdade em comum, ‘ouvindo, perguntando, investigando’. Só podíamos compreender uma educação que fizesse do homem um ser cada vez mais consciente de sua transitividade, que deve ser usada tanto quanto possível criticamente, ou com acento cada vez maior de racionalidade (Freire, 1967FREIRE, Paulo. Educação Como Prática de Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. Disponível em: <https://cpers.com.br/wp-content/uploads/2019/09/5.-Educa%C3%A7%C3%A3o-como-Pr%C3%A1tica-da-Liberdade.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2020.
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, p. 90).

Dessa forma, iniciamos a primeira complexidade essencial para a pesquisa: a complexidade pedagógica. E, se formos analisar uma das obras mais conceituadas do educador Freire, a Pedagogia do Oprimido (Freire, 2003FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 37. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003. Disponível em: <https://cpers.com.br/wp-content/uploads/2019/10/Pedagogia-do-Oprimido-Paulo-Freire.pdf>. Acesso em: 12 dez. 2019.
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), entendemos que o processo educacional deve ser tido pela impossibilidade de neutralidade expressa na politicidade da educação (Freire, 1996FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.), devendo funcionar de uma maneira crítica, transformadora e libertadora, em prol da emancipação dos grupos oprimidos e como instrumento basilar na superação das desigualdades e injustiças. Porém, caso seja realizado de forma acrítica, ou seja, mecanicista e bancária, o propósito seria este visado na defesa de uma ordem vigente dominada por um grupo específico e elitista de poder.

Partindo desse entendimento, buscamos nesse momento a proposta de uma análise a respeito de epistemologias ecológicas que levem em consideração as metodologias freirianas em diálogo ontológico e metodológico sobre a holística do pensamento ambiental adotado por Enrique Leff3 3 Sobre a relevância e trajetória de Enrique Leff, consultar Foladori (2000), o qual ressalta a contribuição relevante para o pensamento sócio-econômico-ambiental, por ser considerado um dos principais autores latino-americanos na área. Leff, sociólogo ambientalista, mexicano, detém uma extensa obra interdisciplinar sobre questões como: degradação ambiental, problemáticas de civilização, colonização e descolonização, racionalidade cultural, desigualdades sociais, epistemologias ambientais, desenvolvimentismo e subdesenvolvimentismo, educação e ecologia. . Pois, através de revisões bibliográficas em ambos os autores, partimos do entendimento de que as redes teóricas se conectam, por isso, a inter-relação se torna pertinente, em razão da proposta multi e/ou transdisciplinar adotada tanto pelo projeto progressista político-pedagógico freiriano, quanto pela plurilogia do pensamento ambiental expresso pela expansão intelectual leffiana.

E como veremos adiante, é ilegítimo pensar a educação ambiental de forma unilateral, monofásica, ontologicamente monista, mecânica e bancária, que consideram uma visão simplista face ao ambiente estrutural, institucional, epistêmico, político-social, econômico e até religioso. Este pressuposto já fora constatado por Dickmann (2015)DICKMANN, Ivo. A Formação de Educadores Ambientais: contribuições de Paulo Freire. 2015. 313 f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2015. Disponível em: <https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/40272>. Acesso em: 12 maio 2020.
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, Loureiro (2004)LOUREIRO, Carlos Frederico. Trajetórias e Fundamentos da Educação Ambiental. São Paulo: Cortez, 2004. e Araújo Freire (2002)ARAÚJO FREIRE, Ana Maria. A Compreensão de Educação de Paulo Freire: indignação e sonho. Revista de Educação Popular, Uberlândia, n. 1, p. 09-16, nov. 2002. Disponível em: <http://www.seer.ufu.br/index.php/reveducpop/article/view/20079>. Acesso em: 04 jan. 2020.
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, que entendem na proposição de uma educação ambiental a necessidade de perpassar pelas noções críticas propulsoras da mudança lógica-prática e que, se relacionando diretamente com a própria temática numa consideração dialógica e gnosiológica entre EU-TU e o mundo, possam estimular consciências críticas indignadas com as contradições interpostas entre insustentabilidade/degradação ambiental e sistemas de opressão.

Sendo assim, adotamos como base de pesquisa o pensamento de Leff como sociólogo e ambientalista mexicano, o qual detém um contributo relevante para a questão ambiental geral e latino-americana, entendendo através dele a possibilidade utópica pela emancipação revolucionária da proposta educacional crítica e complexa. Considerado um dos maiores pensadores da área, ele desconstrói o ideário mecanicista da forma como é exercida a racionalidade no contexto ambiental, ampliando essa para um contexto histórico-social e econômico. Dessa forma, na obra denominada Complexidade Ambiental, o autor atribui um caráter político ambiental na análise dos sistemas e dos padrões que englobam todo o contexto de sociedade ocidental, que acabam por acarretar os riscos aos quais o meio ambiente e a própria dita civilização em crise sofrem.

Assim, pensar na crise ambiental para o autor é primeiramente entender que não necessariamente está se falando de uma crise imediatista, consequencial, materialista, em que a solução se dá pelo desenvolvimentismo tecnológico no fito de reparar os danos causados de forma calculista e mecânica. Pelo contrário, pensar complexamente a crise ambiental é analisar criticamente de que forma é tratada e retratada a própria crise ambiental, ou seja, levando-se em conta que “[...] aprender a aprender a complexidade ambiental entranha uma reapropriação do mundo desde o ser e no ser” (Leff, 2010LEFF, Enrique. A Complexidade Ambiental. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2010. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/28295572_A_complexidade_ambiental>. Acesso em: 23 nov. 2019.
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, p. 19), no intuito de problematizar as visões tradicionais e tecnicistas sobre meio ambiente e expandi-las para diversos outros contextos que poderiam contribuir de forma mais eficiente na resolução de conflitos e problemas. Assim, de acordo com Leff:

A crise ambiental, entendida como crise de civilização, não poderia encontrar uma solução pela via da racionalidade teórica e instrumental que constrói e destrói o mundo. Apreender a complexidade ambiental implica um processo de desconstrução e reconstrução do pensamento; remete a suas origens, à compreensão de suas causas; a ver os ‘erros’ da história que se arrastaram em certezas sobre o mundo com falsos fundamentos; a descobrir e reavivar o ser da complexidade que ficou no ‘esquecimento’ com a cisão entre o ser e o ente (Platão), do sujeito e do objeto (Descartes), para apreender o mundo coisificando-o, objetivando-o, homogeneizando-o. Esta racionalidade dominante descobre a complexidade em seus limites, em sua negatividade, na alienação e na incerteza do mundo economizado, arrastado por um processo incontrolável e insustentável de produção (Leff, 2010LEFF, Enrique. A Complexidade Ambiental. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2010. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/28295572_A_complexidade_ambiental>. Acesso em: 23 nov. 2019.
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, p. 16).

Nisso, para o autor, pensar em meio ambiente através de uma concepção humana ou humanista é ter em si uma noção ambiental baseada na alteridade, ou, de acordo com Leff (2009LEFF, Enrique. Complexidade, Racionalidade Ambiental e Diálogo de Saberes. Tradução de Tiago Daniel de Mello Cargnin. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 34, n. 3, p. 17-24, set./dez. 2009. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/9515>. Acesso em: 08 dez. 2019.
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, p. 5) no olhar pela outridade. Dialoga, pois, com o pensamento Freiriano ao discorrer sobre a assunção do eu em face do outro como sendo um reconhecimento capaz de alavancar status de sujeitos, com direitos, especificidades e demandas, ao afirmar que: “A assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros. É a ‘outredade’ do ‘não eu’, ou do tu, que me faz assumir a radicalidade do eu” (Freire, 1996FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996., p. 19).

Assim, devemos entender tais questões numa abordagem complexa em que, a forma como as múltiplas partes de um sistema ou de um fato social necessitam ser enxergadas por suas particularidades como sujeitas e não como objetos ou ferramentas para uma finalidade apropriada4 4 As contribuições de Marx e Engels (2013), após reformularem as concepções hegelianas dos processos de contradição e de exploração, refletem sobre como em determinados contextos históricos há a apropriação de um determinado ser ou coisa para suprir a finalidade ambiciosa de outrem. Por isso, a racionalidade econômica e instrumental perpassa tanto por relações assimétricas de poder como o contexto de senhor/servo e patrão/empregado, quanto por processos exploratórios entre ser humano e natureza. Sobre a Instrumentalização da natureza pela ciência, consultar Almeida (2001). , é também um pressuposto crítico à lógica capitalista e neoliberal hegemônica, que coloca em xeque o embate entre racionalidade ambiental e racionalidade econômica. Pensar uma reapropriação social da natureza é complexificar os modelos de racionalidade econômica que estão imbuídos nos diversos setores das sociedades ocidentais, que partem em sua maioria de uma visão antropocêntrica e, principalmente, antropomorfizadora. Portanto, introduzir um pensamento complexo e uma interseccionalidade como formas metodológicas de constituir saberes, nos servirá como uma proposta basilar de uma educação popular ambiental, perpassando construções, desconstruções e complexidades.

A partir disso, o pensamento complexo como forma de compreender a temática ambiental se propõe como uma crítica metodológica ao antropocentrismo e, em parte, ao ecocentrismo, que simplificam e direcionam monofasicamente os cernes das questões socioambientais. Portanto, ao considerar a crise ambiental como também uma crise social, pois indistintamente as relações sociais têm ação direta na forma como o meio é apropriado e desapropriado numa lógica humanamente finalística, alavancamos no movimento ambientalista também uma luta anti-hegemônica.

E, de fato, a decadência de perspectiva sobre a natureza tida apenas como meio ou recurso natural, quase que considerando qualquer intervenção nela pela ideia equivocada de que os fins justificam os meios, afasta e hierarquiza, nessa lógica, o ser humano da natureza. Por isso, pensar a comunicação entre os sistemas que regem estruturalmente uma sociedade é entender que esses sistemas se tornam indissociáveis e que a focalização em um, em detrimento de outro, pode gerar uma ineficácia de atuação por não compreender a amplitude do problema, configurando diversas ideologias que prejudicam a epistemologia e a práxis do pensamento ambiental complexo.

O Fatalismo Enquanto Ideologia Educacional-Ambiental e a Complexidade Como Proposta Anti-Hegemônica

A educação ambiental, assim como diversas outras áreas do conhecimento, pode estar articulada sistematicamente num viés progressista, crítico e emancipador, ou, ao contrário, conservador, mecanicista e fatalista. Percebemos assim, por uma ótica crítica, a forma como o exercício do pensamento está pautado em ideologias interpostas de grupos dominantes, acabando por incidir na imutabilidade ou numa mudança rarefeita prática do fato social, sendo, portanto, ilusória. O conceito de ideologia é tomado por diversos autores, alguns referenciados pela tradição marxista de crítica societária, outros pelo seu sentido ontológico na educação (Rossi, 2016ROSSI, Rafael. Educação e Ideologia: uma análise ontológica. Filosofia e Educação, v. 8, n. 2, p. 168-193, 30 set. 2016. Disponível em: <https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/rfe/article/view/8645985>. Acesso em: 21 nov. 2019.
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) e no Direito (Almeida, 2014ALMEIDA, Ana Lia. O Papel das Ideologias na Formação do Campo Jurídico. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 34-59, dez. 2014. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/12876/0>. Acesso em: 13 nov. 2019.
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). Para isso, iremos adotar o conceito de ideologia da obra O Que É Ideologia, de autoria da filósofa brasileira Chauí:

A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (ideias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer (Chauí, 2008CHAUÍ, Marilena. O Que É Ideologia? 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2008. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/388158/mod_resource/content/1/Texto%2014%20-%20O%20que%20%C3%A9%20ideologia%20-%20M.%20Chau%C3%AD.pdf>. Acesso em: 30 mar. 2019.
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, p. 108).

A partir disso, essa ideologia no campo educacional constrói uma problemática que seria responsável pela perda da criticidade do exercício pedagógico, fixando ideais, mesmo que velados, de imutabilidade e de neutralidade das coisas. E, de fato, ao falarmos sobre meio ambiente, irrecorrivelmente, o tema da crise e dos desastres é tomado em sua maioria por um discurso fatalista, como se a problemática ambiental fosse algo essencialmente trágico e inevitável, quando na verdade foi significada pelas regras de uma lógica discursiva às quais lidam com interesses institucionais e disciplinas de poder (Foucault, 1996FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 3. ed. São Paulo: Loyola, 1996. Disponível em: <https://moodle.ufsc.br/pluginfile.php/1867820/mod_resource/content/1/FOUCAULT%2C%20Michel%20-%20A%20ordem%20do%20discurso.pdf>. Acesso em: 08 maio 2019.
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).

O fatalismo como um posicionamento de ensino é ideológico, no sentido de que, por conta dessa naturalização do fato ambiental como algo distante da ação humana, retira o caráter histórico e social que sempre foi intrínseco nesse contexto. Um exemplo disso seria ao analisarmos criticamente a linha tênue que rege os discursos entre desastre natural e crime ambiental, percebendo que a forma como as ocorrências em Mariana5 5 Caso disponível em: <http://www.mpf.mp.br/grandes-casos/caso-samarco/o-desastre>. Acesso em: 10 abr. 2020. e Brumadinho6 6 Caso disponível em: <https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2019/01/25/bombeiros-e-defesa-civil-sao-mobilizados-para-chamada-de-rompimento-de-barragem-em-brumadinho-na-grande-bh.ghtml>. Acesso em: 10 abr. 2020. , ambos em Minas Gerais, são afastados da ação humana e caracterizados como uma tragédia natural, relativizando questões como dano e risco. Dentre outras consequências disso, distancia-se da noção de uma responsabilidade civil ambiental na teoria prática do risco integral (Pedroni, 2019PEDRONI, Bruna Stefany da Silva. Responsabilidade Civil Ambiental na Teoria do Risco Integral: casos Mariana e Brumadinho. 2019. 121 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) - Faculdade Nacional de Direito, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: <https://pantheon.ufrj.br/handle/11422/10538>. Acesso em: 10 maio 2020.
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; Pedott e Pires, 2019PEDOTT, Laura; PIRES, Gabriel Lino de Paula. Responsabilidade Civil Ambiental nos Casos Mariana e Brumadinho. ETIC, v. 15, n. 15, 2019.) e, principalmente, ocorre um processo de banalização e insensibilidade ou despreocupação, como evidenciado por Milaré (2009)MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: a gestão em foco: doutrina, jurisprudência, glossário. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. ao atribuir que a problemática ambiental é diuturna e que nem sempre ela sensibiliza a sociedade e seus dirigentes, pois, como afirma Lorenzetti (2010LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria Geral do Direito Ambiental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010., p. 104), “[...] existe um direito ambiental que se dirige às consciências, mas não às condutas”.

Se, nessa perspectiva, a consciência na completude de um fato pode ser propulsora de transformação, então a educação ambiental traria consigo uma necessidade de conhecimento por intermédio de uma Pedagogia da Indignação (Freire, 2000FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora Unesp, 2000. Disponível em: <https://cpers.com.br/wp-content/uploads/2019/09/11.-Pedagogia-da-Indigna%C3%A7%C3%A3o.pdf>. Acesso em: 15 fev. 2020.
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), para priorizar o direito de contraposição, de ação e da vontade de mudar o mundo. Caso contrário, analisa Freire:

A ideologia fatalista, imobilizante, que anima o discurso neoliberal anda solta no mundo. Com ares de pós-modernidade, insiste em convencer-nos de que nada podemos contra a realidade social que, de histórica e cultural, passa a ser ou a virar ‘quase natural’ ... Do ponto de vista de tal ideologia, só há uma saída para a prática educativa: adaptar o educando a esta realidade que não pode ser mudada. O de que se precisa, por isso mesmo, é o treino técnico indispensável à adaptação do educando, à sua sobrevivência (Freire, 1996FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996., p. 11).

Então, pensar numa educação ambiental político-pedagógica de forma a fugir dessa ideologia fatalista é, antes de tudo, situar o ser-humano como um agente causador de transformações, sejam maléficas ou não, no espaço. A complexidade da educação se faz em conformidade com a complexidade das características humanas, sendo elas políticas, econômicas, ambientais, históricas e sociais, pois não há de se falar em educação transformadora sem se utilizar da criticidade e da problematização em face de um pensamento dogmatizante, conservador e fatalista.

E, se agora há pouco mencionamos que a ideologia pode retirar a ação humana das responsabilidades ambientais, algumas campanhas de conscientização ou de mobilização social podem, em parte, atribuir inversamente essa responsabilidade total a, por exemplo, consumidores. Nesse sentido, tomemos a situação dos recursos hídricos, principalmente a questão da água potável e de sua má gestão no contexto brasileiro. Percebemos que, conforme analisa Araujo (2015ARAUJO, Alana Ramos. Água e Desenvolvimento: análise da Lei n° 9.433/97 sob a perspectiva do direito de acesso à águapotável. Revista Jurídica da FA7, Fortaleza, v. 12, n. 1, 30 jun. 2015. Disponível em: <https://periodicos.uni7.edu.br/index.php/revistajuridica/article/view/29>. Acesso em: 07 out. 2019.
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, p. 1), há diversos conflitos jurídicos e legislativos sobre o ancoramento “[...] em mecanismos econômicos que priorizam o desenvolvimento econômico em prejuízo do desenvolvimento social e ambiental”. Isso justificaria, nesse caso, quando o movimento de combate ao desperdício da água estabelece à sociedade civil um ajuste de conduta individual e não responsabiliza criticamente o setor econômico relacionado ao agronegócio, que é um grande agente responsável pela crise hídrica no Brasil7 7 Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/03/150302_agua_agricultura_pai>. Acesso em: 22 abr. 2020. .

Dessa forma, transferir dogmaticamente conhecimento ambiental sem uma abordagem crítico-reflexiva para os(as) estudantes é ineficaz para uma verdadeira racionalidade ambiental Leffiana, o que se precisa é amplificar criticamente a forma como é apresentada a temática. É situar, a priori, os indivíduos em constante aprendizado nas suas territorialidades, pois depreendem-se daí as vulnerabilidades sociais que refletem todo o processo educacional como uma parte integrante da sociedade e da comunidade, e não como um fator apartado. Além disso, aproximar as realidades socioterritoriais num contexto de aprendizado influencia na integração de racionalidades produzidas por vivências contextuais, como contributo na luta anti-hegemônica que se constitui na superação das próprias desigualdades sociais, econômicas e, portanto, ambientais.

Nessa perspectiva, entender a mulher e o homem como seres inacabados, ou seja, passíveis a todo instante de apreender novos conhecimentos, de transformar suas ações e o meio em que vivem, além de, acima de tudo, serem conscientes de seu próprio inacabamento, é um pressuposto essencial na recusa ao fatalismo imobilizador no meio educacional. Pelo fato de o indivíduo ser inacabado, a educação não pode ser restrita à criança e nem ao jovem, mas, até como uma crítica em contraposição ao número de adultos analfabetos brasileiros8 8 Sobre dados atualizados de analfabetismo no Brasil em comparação também com anos anteriores, consultar: <https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/brasil-ainda-tem-113-milhoes-de-analfabetos-23745356>. , precisa ser ampliada para todas as faixas etárias e, especialmente, para todas as classes sociais.

Relacionar, por exemplo, a pauta da desigualdade social como um dos estimuladores da crise ambiental é uma forma de situar a massa trabalhadora para esses contextos, onde possam reavaliar seus âmbitos e vivências dentro do espaço de ensino, entendendo-os e transformando-os. Pois, há de se ressaltar, retomando as contribuições de Chauí (2008)CHAUÍ, Marilena. O Que É Ideologia? 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2008. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/388158/mod_resource/content/1/Texto%2014%20-%20O%20que%20%C3%A9%20ideologia%20-%20M.%20Chau%C3%AD.pdf>. Acesso em: 30 mar. 2019.
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no conceito de ideologia, que a ideia constrói o real assim como o real constrói a ideia reciprocamente, tendo, num espaço histórico-social, uma dialética, daí o Materialismo Histórico-Dialético por Marx e Engels (2013)MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O Capital: crítica da economia política. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2013. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2547757/mod_resource/content/1/MARX%2C%20Karl.%20O%20Capital.%20vol%20I.%20Boitempo.pdf>. Acesso em: 14 jun. 2019.
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. Então, a educação que cria através das ciências edifícios conceituais (Nietzsche, 2007NIETZSCHE, Friedrich. Sobre a Verdade e a Mentira no Sentido Extra-Moral. Tradução de Fernando de Moraes Barros. São Paulo: Hedra, 2007. Disponível em: <https://abdet.com.br/site/wp-content/uploads/2014/11/Sobre-Verdade-e-Mentira-no-Sentido-Extra-Moral.pdf>. Acesso em: 03 fev. 2019
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) sem nenhum contato com a realidade, distanciando a teoria da prática, é um exemplo de uma educação redundante, alienadora, mecanicista e bancária.

Dessa maneira, acionamos a relevância do Pensamento Complexo9 9 Pioneiramente introduzido por Edgar Morin, o qual atribui, nessa ótica de palavra-problema (Morin, 2006), uma objetivação indagativa, incerta, confusa, desordenada, no fito de problematizar os conhecimentos doutrinários e as certezas hegemonicamente limitantes, conduzindo dialeticamente uma percepção da complexidade da natureza à natureza da complexidade (Morin, 1977). na reformulação ambientalista de Leff, ao expandir as bases epistêmicas do conhecimento ambiental, encontrando-se numa imersão filosófica que acompanha inclusive suas influências sucessoras acadêmicas. Por isso, dialogar essa retórica numa contraposição ao pensamento simplista, unidimensional e semiótico, com a questão ambiental foi, de fato, posta como executável na Complexidade Ambiental leffiana, a qual aproxima o ser e o mundo através de uma pedagogia dialógica que situa estrategicamente outras formulações e elaborações discursivas em relação ao meio ambiente, a exemplo da holística ambiental.

Como seria possível se discutir meio ambiente sem discutir também propriedade privada e o porquê de algumas terem coisa e outras não? E, como justificar esse porquê sem falar sobre racismo estrutural abordado por Almeida (2018)ALMEIDA, Silvio. O Que É Racismo Estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018. Disponível em: <http://www.uel.br/neab/pages/arquivos/Livros/ALMEIDA,%20Silvio_%20O%20que%20%C3%A9%20Racismo%20Estrutural_.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2019.
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na formação sócio-histórica brasileira, que se coaduna com a necessidade de buscarmos uma justiça ambiental (Herculano, 2006HERCULANO, Selene. O Clamor da Justiça Ambiental e Contra o Racismo Ambiental. InterfacEHS - Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Ambiente, São Paulo, v. 3, n. 1, p. 1-20, 2006. Disponível em: <http://www3.sp.senac.br/hotsites/blogs/InterfacEHS/wp-content/uploads/2013/07/art-2-2008-6.pdf>. Acesso em: 19 jun. 2020.
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) em contraponto ao racismo ambiental, de forma a orientar uma educação crítica de meio ambiente que leve em consideração as relações étnico-raciais territoriais? E, mantendo a mesma linha de raciocínio indagativo sobre macroestruturas de opressão e de assimetrias de poder, devemos também situar nesse debate o patriarcado em sua forma de cultura ocidental dominante, discutido por Beauvoir (1970)BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo I: fatos e mitos. Ed. 04. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970. Disponível em: <https://materialfeminista.milharal.org/2012/08/02/livro-o-segundo-sexo-volumes-1-e-2/>. Acesso em: 20 out. 2019.
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, afinal como transformaríamos em pessoa ecológica o segundo sexo que sequer é elevado à dignidade de pessoa?

As intenções dessa pesquisa, ao evidenciar tais inquietudes, não estão na presunção científica de esgotar essas problemáticas ou de resolver tais contradições, mas sim de tornar relevante a própria conexão que se cria entre diversas teorias filosóficas materializadas em movimentos e articulações contra sistemas de opressões, com o contexto de meio ambiente e da luta ambiental. Portanto, há de se falar, assim, num exercício da pedagogia ambiental como um emaranhado de fatores e relações de poder que se cruzam, em que se torna ineficaz trabalhar e ensinar meio ambiente sem dialogar criticamente com essas interseccionalidades10 10 Em Akotirene (2019), identificamos nas subjetividades humanas pontos interseccionais, cruzamentos sociais e avenidas presentes nas relações de poder, que seriam, em grau análogo de uma ótica expansiva, uma expressão do pensamento complexo. , sobretudo quando as ideologias presentes nos ensinamentos e discursos são atravessadas por colonialidades e elitismos, necessitando de uma base referencial por parte da metodologia descolonial como necessária ao processo pedagógico ambiental.

Diálogo entre Saberes na Descolonização da Educação Ambiental: sobre a outredade/outridade

Para partirmos do pensamento complexo de meio ambiente e assim refleti-lo numa forma político-pedagógica, é necessário tomarmos como ponto de partida o questionamento sobre quais referenciais teóricos e territoriais estão sendo hegemonizados nos espaços de conhecimento, identificando os pensamentos abissais e problematizando-os criticamente, proporcionando uma reconstrução de epistemologias do sul, que intercruzam saberes em suas territorialidades identitárias para provocar uma descolonização do ser, do saber e do poder (Santos e Meneses, 2009SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. 1. ed. Coimbra: Almedina, 2009. Disponível em: <http://professor.ufop.br/sites/default/files/tatiana/files/epistemologias_do_sul_boaventura.pdf>. Acesso em: 04 jun. 2019.
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).

De fato, deve-se considerar que, ao se buscar processos de construção e solidificação do conhecimento científico moderno ocidental, tem-se o momento histórico da globalização como um marco nessa intensificação de choque, de subjugação e de assimilação entre culturas. Por sua vez, utilizando-nos da conceituação sobre capitalismo periférico de Wolkmer (2015)WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura do direito. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015., percebemos como o Brasil, assim como diversas outras nações latino-americanas, passou por uma difusão intensa de saberes e de práticas culturais, dados os processos de colonialismo, de escravização e de imperialismo, que acabaram por intensificar questões intrínsecas na formação desses Estados Nacionais. O conceito referido do autor, abrange uma ótica necessária para desunificar o pensamento sobre a construção de conhecimento e de ação para povos em seus territórios, tendo em vista a demanda de se ressaltar peculiaridades entre áreas que abarcam desenvolvimentos e subdesenvolvimentos, o que traria, inclusive, especificidades de lógica e de atuação das organizações/sistemas de direitos humanos, como a ONU e os Sistemas Interamericano e Europeu de Direitos Humanos.

Assim, a globalização acarretou algumas problemáticas tanto econômicas e culturais, quanto ambientais, pela decorrência do aprofundamento das relações de mercado, até o impulsionamento de uma lógica econômica caracterizada pelo consumismo e pela insustentabilidade. Desse modo, deve-se ter no cerne do pensamento de ensino crítico pedagógico sobre educação ambiental uma denominada Ecologia Política:

A ecologia política enraíza a desconstrução teórica na arena política: além de reconhecer a diversidade cultural, os saberes tradicionais e os direitos dos povos indígenas, o ambientalismo radical confronta o poder hegemônico unificador do mercado como destino inelutável da humanidade (Leff, 2015LEFF, Enrique. Political Ecology: a latinamerican perspective. Desenvolvimento e Meio Ambiente, Curitiba, v. 35, p. 29-64, dez. 2015. Disponível em: <https://www.academia.edu/21562149/Political_Ecology_a_Latin_American_Perspective>. Acesso em: 13 fev. 2020.
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, p. 2).

Ainda, para o autor:

A descolonização do saber e a legitimação de outros conhecimentos-saberes-sabedorias liberam modos alternativos de compreensão da realidade, da natureza, da vida humana e das relações sociais, abrindo novos caminhos para a reconstrução da vida humana no planeta (Leff, 2015LEFF, Enrique. Political Ecology: a latinamerican perspective. Desenvolvimento e Meio Ambiente, Curitiba, v. 35, p. 29-64, dez. 2015. Disponível em: <https://www.academia.edu/21562149/Political_Ecology_a_Latin_American_Perspective>. Acesso em: 13 fev. 2020.
https://www.academia.edu/21562149/Politi...
, p. 2).

Dessa maneira, tanto buscamos um diálogo entre saberes como proposta educativa na quebra do paradigma europeizado e colonizador, enriquecendo pela via inter e transdisciplinar, quanto evocamos os pluralismos jurídicos e culturais na busca pela efetivação do diálogo democrático na valorização dos povos que são tangenciados epistemologicamente e materialmente. Com isso, os saberes dos povos originários, quilombolas, tradicionais e populares, se tornam um aspecto essencial pelo exercício dialético entre ensinar e aprender, acrescendo no espaço de aprendizado as vivências e as experiências que não necessariamente são formalizadas pela academia ou pela ciência por puro elitismo doutrinário.

Pensando, dessa forma, um exemplo na descolonização do espaço pedagógico como forma de construir a autonomia dos(as) educandos(as), temos o exemplo da atuação de Célia Xekriabá, professora de cultura no estado de Minas Gerais, que estimula a criação de um modelo e de um pensamento educacional que inclua as demandas e contextos dos povos indígenas, afirmando:

Nosso grande desafio é pensar a indigenização das práticas educativas, porque os materiais didáticos chegam para nós contemplando o contexto ocidental. É como se a cultura do outro fosse mais forte. Há um desbotamento muito grande no meio acadêmico dos alunos indígenas. Alguns estudantes vão para a universidade e não são considerados interlocutores do conhecimento nesse meio. Mas é preciso haver um processo reverso, que é de indigenização, por que não indigenizar o outro? Por que não quilombolizar, camponizar o outro? Devemos sensibilizar o outro a causa indígena, não tendo ela como um conhecimento menor ou só como retórica, ou só como o povo da oralidade, mas como pessoas que produzem processos de conhecimento diferenciados. E o saber generalizado está em crise. Nós precisamos de um outro processo e acredito que os povos indígenas podem contribuir (Damázio, 2017DAMÁZIO, Malú. Representante de Indígenas na Educação Defende Modelo Diferenciado de Aprendizagem. Hoje em Dia, Belo Horizonte, 17 jul. 2017. Disponível em: <https://www.hojeemdia.com.br/mais/representante-de-ind%C3%ADgenas-na-educa%C3%A7%C3%A3o-defende-modelo-diferenciado-de-aprendizagem-1.543666>. Acesso em: 11 abr. 2020.
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).

Portanto, ter em prática o exercício da outridade/outredade é construir um exercício dialógico que complexifique o modelo de verdade universal, devendo-se problematizar o caráter pretensioso do conhecimento institucionalizado de ser hegemônico e globalizado. A intolerância que o conhecimento produz por si mesmo, autointitulado validamente único, o torna ontologicamente falho, o torna apenas uma expressão máxima da verdade do rebanho e jamais a verdade da coisa em si (Nietzsche, 2007NIETZSCHE, Friedrich. Sobre a Verdade e a Mentira no Sentido Extra-Moral. Tradução de Fernando de Moraes Barros. São Paulo: Hedra, 2007. Disponível em: <https://abdet.com.br/site/wp-content/uploads/2014/11/Sobre-Verdade-e-Mentira-no-Sentido-Extra-Moral.pdf>. Acesso em: 03 fev. 2019
https://abdet.com.br/site/wp-content/upl...
). A prática pedagógica que se constrói unilateralmente condiciona e limita a educação como transferidora de conhecimento, se constitui num movimento verticalizado e hierarquizado, em que confirma no(a) aluno(a) sua etimologia nomeada: alumnus.

Descolonizar a epistemologia dominante como uma prática doutrinária educacional, também é tornar relevante o aspecto identitário de uma luta ecológica na busca pela emancipação dos povos e das culturas latino-americanas. Em suma, a autonomia do conhecimento alheio aos padrões estabelecidos pela racionalidade instrumental, econômica e colonizadora, se dará pela revolução cultural e educacional, partindo do pressuposto da complexificação dos sistemas que são inerentes à sociabilidade desses povos. Nessa questão, ressaltamos a contribuição de William (2019)WILLIAM, Rodney. Apropriação Cultural. São Paulo: Pólen, 2019. como uma maneira de enxergar antropologicamente os processos sócio históricos na humanidade, em seus momentos de controle e de opressão, responsáveis por apropriações, desapropriações, espoliações, alienações e capitalizações de culturas, de saberes e de práticas, de forma a compreendermos a sociedade do consumo e a elitização cultural como problemáticas interpostas.

Uma efetivação do diálogo entre saberes como exemplificação da complexidade cultural imersa na prática educativa pode ser compreendida, por exemplo, no exercício do Art. 26-A da Lei de Diretrizes e Bases (LDB)11 11 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em: 11 de abril de 2020. , ao considerar a importância de se preservar e de difundir a africanidade do conhecimento brasileiro. A relação que os povos e culturas afro-brasileiras têm para com o meio ambiente, apesar de ser tangenciada e invisibilizada em comparação ao todo particular da cultura predominantemente branca, informa consideravelmente sobre a pluralidade de perspectivas e ações a serem consideradas nos âmbitos socioambientais, sendo complexas as relações e inter-relações que se dão nessa inesperada teia da vida (Capra, 1996CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. Tradução de Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 1996. Disponível em: <http://www.communita.com.br/assets/teiadavidafritjofcapra.pdf>. Acesso em: 14 fev. 2020.
http://www.communita.com.br/assets/teiad...
), entrelaçando perspectivas, experiências e lugares de fala (Ribeiro, 2017RIBEIRO, Djamila. O Que É Lugar de Fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/338931867_O_que_e_lugar_de_fala_de_Djamila_Ribeiro>. Acesso em: 07 jan. 2020.
https://www.researchgate.net/publication...
), os quais são inerentes à educação ambiental.

Assim sendo, se antes pensamos o cientificismo doutrinário como melhor forma de exercer a prática de ensino ambiental ou não, seguindo a lógica de pensamento europeizado, agora, para superar a crise ecológica e, principalmente, a crise de civilização e de racionalidade, faz-se urgente a desconstrução desse ineficaz modelo, através da criticidade do pensamento complexo. Pensar em meio ambiente é necessariamente diferenciar todos os viventes e os não viventes que constituem a matriz de funcionamento natural das coisas, que mesmo o ser humano tronado como possuidor único da racionalidade animal, há, entre os seres humanos, diferentes racionalidades que são vitais para a promoção da educação ambiental, como legado da diversidade e do respeito à diferença. E, como veremos neste próximo tópico, o diálogo entre saberes e a contraposição aos sistemas hegemônicos se projetam na busca utópica12 12 O conceito de utopia ou possibilidade utópica adotado nessa pesquisa está em conformidade com o que Teresinha Felipe (1979) analisa sobre esse termo na concepção freiriana. Assim, nos aproximamos do que a autora afirma como sendo: “A utopia, para Freire, se caracteriza como um modo de estar-sendo-no-mundo, que exige um conhecimento da realidade, pois conhecer é possibilidade de ‘pro-jetar’, lançar-se adiante, buscar. O homem busca porque não está completamente ‘acabado’, por ser ‘inconcluso’, por ‘esperar’. A esperança é o eixo que faz do homem um ser capaz de caminhar para a frente na realização da sua história” (p. 1). pela superação de racionalidades limitantes como a econômica, formal, técnica e instrumental.

Por isso, trazemos a importância dessa pluralização de debates e vivências na pedagogia ambiental, assim como a ressignificação das racionalidades doutrinárias e hegemônicas como única saída para a crise ambiental sendo expressa por Leff, ao afirmar:

A complexidade ambiental auxilia um processo de construção de saberes a partir da diferença do ser. O ser, diverso por sua cultura, ressignifica seu saber para dar-lhe seu selo pessoal, para inscrever seu estilo cultural e reconfigurar identidades coletivas. A pedagogia prepara o encontro de seres diversos dialogando desde suas identidades diferenciadas. A complexidade ambiental se abre para um reconhecimento do mundo desde a lei limite da natureza (entropia) e da lei limite da cultura (finitude da existência). A complexidade ambiental se constrói e se aprende através de um processo dialógico de saberes, na hibridação da ciência, da tecnologia e dos saberes populares. É o reconhecimento de significados culturais diferenciados, não apenas como uma ética da outredade, mas como uma ontologia do ser, plural e diverso (Leff, 2009LEFF, Enrique. Complexidade, Racionalidade Ambiental e Diálogo de Saberes. Tradução de Tiago Daniel de Mello Cargnin. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 34, n. 3, p. 17-24, set./dez. 2009. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/9515>. Acesso em: 08 dez. 2019.
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, p. 22 e 23).

Ante tais considerações sobre a descolonização do pensamento ambiental e o considerando como espaço privilegiado para a possibilidade utópica, insta detalhar esta utopia a partir da desconstrução da racionalidade econômica como modelo de vida e de desenvolvimento.

A Superação da Racionalidade Econômica Sob uma Perspectiva Transformadora e Utópica

Podemos definir que a crise ambiental é a crise do nosso tempo, mas também que é a crise do nosso futuro, contudo ela nem sempre foi referenciada da mesma forma, dados os processos históricos que diferenciam as relações que o ser humano tem para com o meio ambiente. A insustentabilidade provocada pela produção desenfreada, atrelada ao consumismo exacerbado, sem o devido balanço com o processo de renovação natural do meio, seria uma das defesas plausíveis para justificar o modelo atual de sociedade como categoricamente impróprio.

De fato, depreende-se, a partir de uma análise ampla da problemática ecológica13 13 “... a actual crise ecológica tem uma causalidade assente na complexa e intricada rede de mediações que compõem a estrutura económica do modo de produção capitalista” (Aguiar; Bastos, 2012, p. 92), por isso torna-se fundamental entender a complexidade das estruturas econômicas modernas para daí retirar os cernes de suas problemáticas e buscar uma viabilidade de solução ampla. , que a cultura desenvolvimentista na busca pelo avanço tecnológico e científico está arraigada no processo de constituição dos Estados Nacionais no geral, partindo de uma problemática global, dados os movimentos históricos de globalização e de guerras mundiais estimuladoras de crescimento econômico. Se, por um lado, entendemos que a intervenção humana moderna está condicionada num modelo de racionalidade econômica, desenvolvimentista e de produção, por outro, atrelamos as bases desse sistema insustentável com o pensamento de que ser e matéria invariavelmente são mutualísticos. Daí o pensamento de Antunes (2010)ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. Ed. 12. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. sobre Impacto Ambiental, afirmando:

A humanidade necessita intervir na natureza para sobreviver. Por mais ‘ambientalista’ que uma pessoa seja, ela não poderá viver sem consumir recursos ambientais. Qualquer ação humana produz repercussões na natureza. O homem está condenado a viver dos recursos naturais, ou sucumbir sem a utilização deles. Mesmo as comunidades mais primitivas utilizam-se de recursos ambientais e, diga-se de passagem, muitas delas de maneira bastante predatória. Bem se vê, portanto, que a grande questão é ‘acertar a mão’ para não exagerar na dose (Antunes, 2010ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. Ed. 12. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010., p. 271).

De fato, não há de se refutar que a humanidade necessita intervir no seu meio, em maior ou em menor grau, para que possa sobreviver, caracterizando-se, inclusive, como uma integrante do meio em que se origina e se constitui. Contudo, atrelar a intervenção humana no meio ambiente à lógica moderna de produção e de consumo é uma forma de banalizar a prática negativa do impacto ambiental, distanciando a possibilidade de se repensar positivamente esse impacto numa lógica diferente ou totalmente distinta. Isso poderia se explicar na ideia de que, por estarmos imersos na racionalidade econômica em quase todos os contextos de sociedade, acabamos por acreditar que o capitalismo e o liberalismo econômico são modelos universais e atemporais, descaracterizando sua historicidade e inclusive sua possibilidade de refutação. O mercantilismo, o capitalismo e o (neo)liberalismo são, levando em consideração o período de temporalidade humana, sistemas novos de pensamento e de logística, portanto devem ser considerados como nada mais do que sua definição basilar: construção humana. Sendo uma construção humana, emerge daí a possibilidade de desconstrução, inclusive de reconstrução, como uma forma de se exaltar a característica da mulher e do homem como seres autônomos e também inacabados, ou seja, passíveis de constantes transformações e de ações transformadoras.

Assim sendo, surgem diversas formas de se repensar a ação humana (o impacto ambiental) numa maneira que seja mais ecológica, menos insustentável, incidindo em tratados e acordos, em sua maioria de âmbito internacional. Contudo, a iniciativa de se firmarem atitudes e metas para buscar uma minimização dos danos negativos sob a natureza acabam sendo formas ideológicas e ilusórias de camuflar um dos principais agentes da moderna crise ambiental: o capitalismo. A partir disso, Löwy (2013LÖWY, Michael. Crise Ecológica, Crise Capitalista, Crise de Civilização: a alternativa ecossocialista. Caderno CRH, Salvador, v. 26, n. 67, p. 79-86, abr. 2013. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-49792013000100006&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso em: 30 mar. 2020.
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, p. 81) afirma que:

Se você não quer falar de capitalismo, não adianta falar do meio ambiente, porque a questão da destruição, da devastação, do envenenamento ambiental é produto do processo de acumulação do capital.

Além disso, Löwy prolonga essa ideia na impossibilidade de se pensar formas ecologicamente sustentáveis mantendo a racionalidade econômica vigente, inclusive nas tentativas de moderá-la ou reformá-la. O autor atribui, por exemplo, ao Tratado de Kyoto como uma solução muito aquém do que seria realmente necessário a ser feito, ressaltando o fato também do maior poluidor de Dióxido de Carbono (CO2), os EUA, não terem assinado o tratado e que a constituição do denominado mercado dos direitos de poluir já seria em si uma forma de invalidar a eficácia desses movimentos. Assim, pode-se trazer, a partir dessa análise, o conceito de Ecocapitalismo por Melo (2010)MELO, João Alfredo Telles. Direito Ambiental, Luta Social e Ecossocialismo. São Paulo: Editora Demócrito Rocha, 2010., o qual propõe, assim como Löwy (2013), que haja uma substituição não reformista do sistema, mas revolucionária dessa racionalidade econômica vigente, através da adoção do Ecossocialismo.

De fato, a dicotomia entre racionalidade ambiental e racionalidade econômica não é, por conta de sua complexidade, abarcada em sua totalidade por essa outra dicotomia de Ecocapitalismo e Ecossocialismo, contudo é válida a crítica com base nas leituras da Escola de Frankfurt advindas dos clássicos marxistas e engelianos. No capítulo do livro Direito Ambiental, Luta Social e Ecossocialismo, intitulado Ecologia e Socialismo: as bases de uma nova utopia, Melo (2010)MELO, João Alfredo Telles. Direito Ambiental, Luta Social e Ecossocialismo. São Paulo: Editora Demócrito Rocha, 2010. corrobora a necessidade de se repensar as bases do sistema capitalista que impulsiona a degradação ambiental, agregando a possibilidade de um genuíno ambientalismo pautado na sustentabilidade e no combate às crises.

Ainda, o autor acima citado reflete criticamente sobre a possibilidade de como essa proposta poderia se abster apenas na dialética filosófica de pensamento, quando, na verdade, sua aplicação prática seria o foco original da construção desse pensamento. Desse modo, a luta social ecológica como um ativismo ambientalista é realizada de diferentes formas em contextos variados, contudo, quando se trata de Ecossocialismo, é exaltada a ação popular na defesa da preservação do meio ambiente como símbolo da possibilidade utópica no pensamento sustentável. Nessa linha de pensamento, em referência às lutas de populações locais, de pequenos agricultores, de povos da floresta, de mulheres camponesas, de etnias indígenas, entre outras, Melo (2010MELO, João Alfredo Telles. Direito Ambiental, Luta Social e Ecossocialismo. São Paulo: Editora Demócrito Rocha, 2010., p. 60) afirma que:

Ali, há uma resistência que, partindo da luta concreta por direitos humanos básicos de moradia, cultura, de modo de vida e de produção, e, também, ao ambiente saudável, questiona os fundamentos não só do atual modelo econômico, mas, em última análise, investe contra as bases do próprio modo de apropriação privada do sistema capitalista, responsável pelo atual estágio de degradação do ambiente planetário. Nessas comunidades, contrapõem-se não só interesses materiais, mas formas de vida e produção antagônicas.

A partir do que foi exposto, tanto a proposta sustentável quanto o projeto educacional de teorizá-la quebram com o aspecto de impossibilidade que é taxado na execução e na eficácia de ambos. A Racionalidade Ambiental (Leff, 2006LEFF, Enrique. Racionalidade Ambiental: a reapropriação social da natureza. Rio de Janeiro: Cilização Brasileira, 2006. Disponível em: <https://www.academia.edu/37170084/Racionalidade_ambiental_a_reapropria%C3%A7ao_social_da_natureza>. Acesso em: 07 nov. 2019.
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), em contraponto a todas as outras racionalidades (econômica, instrumental, técnica e formal) que contribuem com a crise ambiental, é tomada como uma alternativa metodológica para a pedagogia ambiental, a qual necessita refletir sobre questões filosóficas e práticas acerca das esferas sociais dos indivíduos e considerá-los enquanto agentes ativos na transformação do meio.

A busca pelo ser mais (Freire, 1996FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.) na educação impulsiona os indivíduos a terem esperança acima do que é taxado como improvável, impossível e utópico, transformando a ação humana como uma mera variável, quando na verdade ela é elaboradora e reelaboradora de realidades históricas. Assim, buscamos uma educação que nega o fatalismo das desigualdades e da crise pelo atual modelo insustentável, exposto no seguinte trecho:

A pedagogia ambiental não é a de sobrevivência, do conformismo e da vida cotidiana, mas a da educação embasada na imaginação criativa e na visão prospectiva de uma utopia fundada na construção de um novo saber e de uma nova racionalidade (Leff, 2009LEFF, Enrique. Complexidade, Racionalidade Ambiental e Diálogo de Saberes. Tradução de Tiago Daniel de Mello Cargnin. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 34, n. 3, p. 17-24, set./dez. 2009. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/9515>. Acesso em: 08 dez. 2019.
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, p. 4).

Desta forma, a racionalidade econômica é lida de forma próxima, tanto para Leff quanto para Freire. Contudo, a forma como ambos desconstroem e reinventam uma nova racionalidade é o que os tornam inovadores quanto às suas proposições epistemológicas. O educador pensa, com a contribuição da metodologia crítica pelo materialismo histórico-dialético, uma exposição do modelo econômico exploratório capitalista, que é um grande fator responsável pelas desigualdades sociais e injustiças evidenciadas na sociedade, aplicando nesse contexto uma crítica humanista. Já o ambientalista, também acionado pelos clássicos marxistas e engelianos, analisa as formas como o modelo econômico baseado na busca incessante por riquezas acaba por exaltar o desenvolvimentismo e a degradação ambiental inconsequente em detrimento da harmonia dos recursos e da própria biosfera, incidindo na necessidade de se pensar numa lógica revolucionariamente diferente do atual pensamento, ou seja, pensar numa racionalidade ambiental.

Essas dialógicas, portanto, são imprescindíveis para pensarmos uma pedagogia ambiental, que leve em consideração o culturalismo societário, as contradições materialistas, a dialética crítica das ideias interpostas, a degradação ambiental e a complexidade do pensamento eco sustentável, para uma inovação no pensamento e na práxis educacional.

Conclusão

Diante dos debates e entendimentos presentes nessa pesquisa, a estrutura interdisciplinar com base na aproximação entre autores(as) de abordagens ambientais, sociológicas, econômicas, antropológicas e históricas, podemos estabelecer a complexidade inerente sobre os contextos relacionados à educação, meio ambiente, economia e sociedade.

Assim, entender a crise ambiental como também uma crise de civilização é buscar as estruturas das sociedades modernas que funcionam como mecanismo de exploração e de opressão, para que, dessa forma, o pensamento crítico possa atuar no cerne dessas problemáticas. Desse modo, comprovando que a insustentabilidade é uma realidade objetiva da nossa temporalidade e que pode comprometer diversas gerações, dialogamos essa escassez e mudança anômala dos recursos naturais com as racionalidades culturais que estão imbricadas no cotidiano político-institucional.

Se, por um lado, salientamos que o modelo de racionalidade e de proposta prática no combate à crise ambiental não está funcionando por não compreender a complexidade do assunto, então, cabe a nós estimular uma reorientação das formas de compreensão do meio ambiente para que atinja sua proposição política na ação sustentável.

Com isso, a educação se torna um espaço de reconstrução do conhecimento através dos diálogos críticos entre saberes, baseando-se no princípio da gestão democrática educacional como forma de difundir valores e experiências que levem os seres humanos a conseguirem autonomia, emancipação e consciência crítica. A partir disso, situamos a educação ambiental num modelo complexo que exalte a ligação entre ensinar e aprender, eu e tu, objetividade e subjetividade, ser e mundo, pensamento e prática, no intuito de afastar pensamentos hegemônicos limitantes, que negam uma racionalidade ambiental para priorizar interesses ideológicos instrumentais e econômicos.

A pedagogia ambiental, assim, inscreve os seres humanos como responsáveis tanto pelas degradações sociais e ambientais no mundo, quanto como agentes capazes de se construírem enquanto diferença positiva nas possibilidades futuras, proporcionando uma utopia baseada na indignação, na esperança, no comprometimento e na justiça.

  • 1
    Sobre Paulo Freire, consultar Barreto (2004)BARRETO, Vera. Paulo Freire para Educadores. 6. ed. São Paulo: Arte e Ciência, 2004. Disponível em: <https://books.google.com.br/books?id=8m6RXzWakwcC&printsec=frontcover&hl=pt-br#v=onepage&q&f=false>. Acesso em: 6 jan. 2020.
    https://books.google.com.br/books?id=8m6...
    , a qual reflete sobre a trajetória de Paulo Freire e seu comprometimento com as causas sociais e com os grupos vulneráveis e oprimidos, além de trazer uma abordagem analítica sobre sua metodologia na construção de uma perspectiva democrática da gestão educacional e o simbolismo de resistência frente aos marcos ditatoriais na América Latina e no mundo.
  • 2
    Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12612.htm>. Acesso em: 14 de maio de 2020.
  • 3
    Sobre a relevância e trajetória de Enrique Leff, consultar Foladori (2000)FOLADORI, Guillermo. Na Busca de uma Racionalidade Ambiental. Ambiente e Sociedade, ano III, n. 6/7, 2000. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-753X2000000100010>. Acesso em: 18 jan. 2020.
    https://www.scielo.br/scielo.php?script=...
    , o qual ressalta a contribuição relevante para o pensamento sócio-econômico-ambiental, por ser considerado um dos principais autores latino-americanos na área. Leff, sociólogo ambientalista, mexicano, detém uma extensa obra interdisciplinar sobre questões como: degradação ambiental, problemáticas de civilização, colonização e descolonização, racionalidade cultural, desigualdades sociais, epistemologias ambientais, desenvolvimentismo e subdesenvolvimentismo, educação e ecologia.
  • 4
    As contribuições de Marx e Engels (2013)MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O Capital: crítica da economia política. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2013. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2547757/mod_resource/content/1/MARX%2C%20Karl.%20O%20Capital.%20vol%20I.%20Boitempo.pdf>. Acesso em: 14 jun. 2019.
    https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.p...
    , após reformularem as concepções hegelianas dos processos de contradição e de exploração, refletem sobre como em determinados contextos históricos há a apropriação de um determinado ser ou coisa para suprir a finalidade ambiciosa de outrem. Por isso, a racionalidade econômica e instrumental perpassa tanto por relações assimétricas de poder como o contexto de senhor/servo e patrão/empregado, quanto por processos exploratórios entre ser humano e natureza. Sobre a Instrumentalização da natureza pela ciência, consultar Almeida (2001)ALMEIDA, Jozimar Paes de. A Instrumentalização da Natureza pela Ciência. Projeto História, São Paulo, v. 23, p. 169-191, 2001. Disponível em: <https://revistas.pucsp.br/revph/article/view/10716>. Acesso em: 12 jan. 2020.
    https://revistas.pucsp.br/revph/article/...
    .
  • 5
    Caso disponível em: <http://www.mpf.mp.br/grandes-casos/caso-samarco/o-desastre>. Acesso em: 10 abr. 2020.
  • 6
  • 7
  • 8
    Sobre dados atualizados de analfabetismo no Brasil em comparação também com anos anteriores, consultar: <https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/brasil-ainda-tem-113-milhoes-de-analfabetos-23745356>.
  • 9
    Pioneiramente introduzido por Edgar Morin, o qual atribui, nessa ótica de palavra-problema (Morin, 2006MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. Tradução de Eliane Lisboa. Porto Alegre: Sulina, 2006.), uma objetivação indagativa, incerta, confusa, desordenada, no fito de problematizar os conhecimentos doutrinários e as certezas hegemonicamente limitantes, conduzindo dialeticamente uma percepção da complexidade da natureza à natureza da complexidade (Morin, 1977MORIN, Edgar. O Método: a natureza da natureza. ed. 2. Lisboa: Editora Europa-América, 1977. Disponível em: <https://abdet.com.br/site/wp-content/uploads/2015/04/A-Natureza-da-Natureza.pdf>. Acesso em: 21 jan. 2020.
    https://abdet.com.br/site/wp-content/upl...
    ).
  • 10
    Em Akotirene (2019)AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019., identificamos nas subjetividades humanas pontos interseccionais, cruzamentos sociais e avenidas presentes nas relações de poder, que seriam, em grau análogo de uma ótica expansiva, uma expressão do pensamento complexo.
  • 11
    Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em: 11 de abril de 2020.
  • 12
    O conceito de utopia ou possibilidade utópica adotado nessa pesquisa está em conformidade com o que Teresinha Felipe (1979)FELIPE, Sônia Teresinha. O Conceito de Utopia na Proposta Freiriana. 1979. Parte da dissertação de Mestrado PUC/RS intitulada: O elemento utópico na pedagogia do oprimido, pela autora do presente. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1979. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/revistacfh/article/download/23744/21311>. Acesso em: 26 mar. 2020.
    https://periodicos.ufsc.br/index.php/rev...
    analisa sobre esse termo na concepção freiriana. Assim, nos aproximamos do que a autora afirma como sendo: “A utopia, para Freire, se caracteriza como um modo de estar-sendo-no-mundo, que exige um conhecimento da realidade, pois conhecer é possibilidade de ‘pro-jetar’, lançar-se adiante, buscar. O homem busca porque não está completamente ‘acabado’, por ser ‘inconcluso’, por ‘esperar’. A esperança é o eixo que faz do homem um ser capaz de caminhar para a frente na realização da sua história” (p. 1).
  • 13
    “... a actual crise ecológica tem uma causalidade assente na complexa e intricada rede de mediações que compõem a estrutura económica do modo de produção capitalista” (Aguiar; Bastos, 2012AGUIAR, João Valente; BASTOS, Nádia. Uma Reflexão Teórica Sobre as Relações Entre Natureza e Capitalismo. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 15, n. 1, p. 84-94, jun. 2012. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/rk/v15n1/a09v15n1.pdf>. Acesso em: 05 abr. 2020
    https://www.scielo.br/pdf/rk/v15n1/a09v1...
    , p. 92), por isso torna-se fundamental entender a complexidade das estruturas econômicas modernas para daí retirar os cernes de suas problemáticas e buscar uma viabilidade de solução ampla.

Referências

Editado por

Editora-responsável: Beatriz Vargas Dorneles

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    28 Jul 2020
  • Aceito
    13 Jan 2021
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