Acessibilidade / Reportar erro

Trajetórias Formativas de Musicistas Negros no Pós-Abolição (1890-1930)

RESUMO

Este artigo tem por objetivo visibilizar as memórias de musicistas negros acerca de suas trajetórias formativas no pós-abolição carioca (1890-1930). A partir da análise de entrevistas orais do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MIS), procura-se mostrar os valores e saberes que tais musicistas consideravam importantes para a sua formação e a maneira como entenderam e viveram a educação. Focalizamos as estratégias empreendidas para acessar a escola e os conhecimentos formais, situando suas experiências nos debates historiográficos sobre educação escolar e sublinhando a agência da população negra. Nossa análise constata que tais sujeitos foram relativamente exitosos em suas tentativas de aquisição de saberes escolares, mesmo quando a escola não esteve ao seu alcance, e jamais ignoraram a importância de tais saberes. Também evidenciamos a operação de poderosas barreiras socioraciais ao acesso e permanência desses musicistas na escola.

Palavras-clave
Pós-abolição; Educação da População Negra; Musicistas Negros

ABSTRACT

This paper seeks to construct visibility to black musicians’ memories about their own formative trajectories in post abolition Rio de Janeiro (1890-1930). Analyzing oral interviews from Museum of Image and Sound of Rio de Janeiro, we show some values and knowledges which those musicians considered important for their formation, as well as their comprehension and experiences of education. We focus on the strategies they used to access school and formal knowledge, their intellectual protagonism in this process, and situate their thoughts and experiences in the historiographic debates on school education in post-abolition Rio. The analysis shows: that these subjects were relatively successful in their attempts to acquire school knowledges even without having broad access to schools and that they never ignored the importance of such knowledge. It also presents evidence of enormous inequalities and racial barriers to their access to formal education.

Keywords
Post-Abolition; Black People Education; Black Musicians

Introdução

Ao analisar o papel da escravidão na conformação das desigualdades raciais da sociedade brasileira, uma corrente dominante na historiografia nacional até os anos 1990 confinou a população negra em tipos sociológicos incapazes de elaborar estratégias para negociar com as estruturas de poder, reivindicar direitos e competir na sociedade capitalista (Rios; Mattos, 2005RIOS, Ana Lugão; MATTOS, Hebe. Memórias do cativeiro. Família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005., p. 33-34). A ausência de abordagens sobre a agência e a presença negra na história da educação no Brasil é tributária dessa corrente.

Novos estudos no campo do pós-abolição, desenvolvidos nos últimos 20 anos, e centrados no contexto da Primeira República, têm buscado modificar esse quadro. Trabalhos como o de Dávila (2003)DÁVILA, Jerry. Diploma of Whiteness: Race and Social Policy in Brazil, 1917-1945. Durham, N. C; London: Duke University Press, 2003. vêm mostrando que as desigualdades raciais na educação não são o cumprimento de um destino selado ainda na escravidão, mas, sim, fruto de uma continuada renovação e sofisticação de práticas e ideologias discriminatórias e repressivas, atuantes no cotidiano, em dispositivos jurídicos, na rotina da polícia e nas próprias políticas e instituições educacionais. Outros estudos procuram captar o protagonismo histórico1 1 A noção de protagonismo negro coloca no centro da investigação e narrativa históricas as ações e pensamentos de sujeitos negros (sua agência), como forma de combater os silenciamento a que eles têm sido submetidos na escrita da história em sociedades estruturalmente racistas, como a brasileira (Domingues, 2019). da população negra no terreno da educação: suas tentativas de inserção nas escolas públicas, sua mobilização em prol da ampliação do alcance das políticas educacionais e suas estratégias para suprir a inacessibilidade das escolas em metrópoles como o Rio de Janeiro e São Paulo (Lucindo, 2016LUCINDO, Willian Robson Soares. A vontade também consola: a formação da esfera pública letrada de Afrodescendente e o debate sobre a educação. In: FONSECA, Marcus Vinícius; BARROS, Surya Aaronovich Pombo de (Org.). A história da educação dos negros no Brasil. Niterói: EdUFF, 2016. P. 305-328.; Silva; Araújo, 2005SILVA, Geraldo da; ARAÚJO, Márcia. Da interdição escolar às ações educacionais de sucesso: escolas dos movimentos negros e escolas profissionais, técnicas e tecnológicas. In: ROMÃO, Jeruse (Org.). História da educação do negro e outras histórias. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. 2005. p. 65-75.).

Este artigo procura aproximar esses debates das vivências de musicistas, grupo pouco lembrado por historiadores da educação e retratado, no campo da música, ao largo do contexto de conflitos e desigualdades da sociedade brasileira. Apresentamos e analisamos memórias de musicistas negros que viveram os desafios do pós-abolição no Rio de Janeiro (alguns também em outras cidades) acerca de suas trajetórias formativas2 2 Por trajetória formativa entendemos o percurso social/educativo através do qual os/as entrevistados adquiriram os valores, saberes e experiências que constituem: sua autoimagem; seus ideais de pessoa (de cidadã/o, filha/o, pai/mãe, amigo/a etc.) e de artista; seus projetos e realizações pessoais e coletivas (entre os quais, suas Escolas de Samba). . Por terem deixado visíveis suas marcas na história musical da cidade e do país, suas memórias nos permitem estabelecer conexões entre história cultural e história da educação, mostrando que suas carreiras e obras não são frutos de experiências3 3 A noção de experiência – tão fundamental ao conhecimento histórico quanto aberta ao escrutínio teórico, como pondera Scott (1999) – tem neste texto o significado amplo de passado vivido, nas suas dimensões práticas, emocionais, simbólicas e reflexivas. Nesse sentido, são experiências tanto as lições de música, como a dor provocada pela exclusão racial e a reflexão sobre a sociedade geradas por essa dor. As narrativas orais que utilizamos, enquanto atos reflexivos, são também parte da experiência narrada, mas a substância e origem das experiências são constitutivamente maiores que um linguagem: passam sempre pela interação real do sujeito com o mundo em que vive(u). “estritamente musicais” ou de pacíficas misturas culturais. São conquistas surgidas de lutas e dores da população negra diante das estruturas raciais de poder, nas diversas dimensões de suas vidas4 4 O presente artigo consolida parte da pesquisa de doutoramento de um dos autores, Lurian Lima, na área de História, pela Universidade Federal Fluminense (2018-2022). Pesquisa que vem sendo realizada com auxílio do CNPq e da Comissão Fulbright Brasil, que já resultou em um artigo recentemente publicado (Lima, 2001) e que se destina a descrever e analisar o cruzamento de trajetórias sociais, memórias, ideias e produções de dezenas de musicistas negros no pós-abolição carioca como um seguimento da comunidade da Diáspora africana. .

As entrevistas orais que informam o artigo integram a série de Depoimentos Para a Posteridade do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MIS). A maioria foi gravada entre as décadas de 1960 e 1970, originalmente em fitas de áudio e depois regravadas em CDs para arquivamento. Foram analisados 25 depoimentos da seção de “Música Popular Brasileira” e quatro da seção “Carnaval”, sendo 26 de caráter biográfico e três prestados coletivamente por integrantes das Escolas de Samba Mangueira, Portela e Império Serrano. Esses depoimentos foram idealizados por uma equipe de profissionais da música, jornalistas e produtores em sua maioria, majoritariamente homens brancos, e tinham o fim de celebrar um ideal de país alegre, musical e livre dos preconceitos de raça (Lima, 2021LIMA, Lurian José Reis da Silva. O mistério d’O mistério do samba: o paradigma da mediação e a produção racializada de silêncios na memória hegemônica da “Música Popular Brasileira” (1960-2017). Opus, v. 27 n. 3, p. 1-40, set/dez. 2021.). Ao revés de tal enquadramento, e da posição inferior que ocupavam na relação de poder estabelecida com essa equipe socialmente privilegiada no momento da gravação dos depoimentos, os musicistas ouvidos neste artigo foram sempre ativos na condução de suas entrevistas, narrando histórias imprevistas sobre lutas, dores e conquistas, profundamente marcadas pela experiência do racismo da sociedade brasileira.

Como nota Portelli (2016)PORTELLI, Alessandro. História oral como arte da escuta. São Paulo: Letra e Voz, 2016., este tipo de insubordinação se vê com frequência nos trabalhos de história oral entre grupos subalternizados e é um ato político, que desafia o historiador a rever seus pressupostos sobre o passado. Neste caso, são atos políticos especialmente relevantes, na medida em que se contrapõem à tentativa dos grupos no poder de forjar narrativas históricas mistificadoras5 5 Em que pesem as discussões teórico-metodológicos sobre esses termos, “narrativa” e “testemunho” são utilizados neste artigo com objetivos práticos, como termos descritivos do ato e da forma de contar uma história, um fato ou uma experiência vivida (ou entendida como vivida) por si ou por outrem. . Por este potencial contra-hegemônico a memória tem sido recorrentemente utilizada pela historiografia do pós-abolição, da educação da população negra, e será também utilizada aqui: ela mostra ângulos e fatos que as estruturas de poder não querem, ou não permitem, que sejam registrados nas fontes oficiais (Rios; Mattos, 2005RIOS, Ana Lugão; MATTOS, Hebe. Memórias do cativeiro. Família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.; Schueler, 2009SCHUELER, Alessandra Frota Martinez de; MAGALDI, Ana Maria Bandeira de Mello. Educação escolar na Primeira República: memória, história e perspectivas de pesquisa. Tempo, v. 13, n. 26, p. 32-55, 2009.; Lima, 2021LIMA, Lurian José Reis da Silva. O mistério d’O mistério do samba: o paradigma da mediação e a produção racializada de silêncios na memória hegemônica da “Música Popular Brasileira” (1960-2017). Opus, v. 27 n. 3, p. 1-40, set/dez. 2021.).

Seguindo a prática da história oral (Portelli, 2016PORTELLI, Alessandro. História oral como arte da escuta. São Paulo: Letra e Voz, 2016.), não utilizamos nossas fontes para estabelecer definitivamente o passado, mas exploramos a possibilidade de que a memória se refira a fatos e experiências reais, possibilidade tanto maior quanto mais numerosos forem os testemunhos que apontam numa mesma direção e quanto mais os objetos da memória encontrem respaldo em outras fontes e na historiografia. Porém, nos interessa sobretudo a compreensão que os entrevistados têm de suas experiências (individuais/coletivas) do passado, a maneira como a comunicam e afirmam-se como sujeitos por meio dela diante de seus entrevistadores. Sobre isto, nenhuma fonte é mais precisa do que suas próprias vozes.

No processo de pesquisa no museu, que durou mais de 1000 horas6 6 Por causa das normas internas do MIS, a cópia integral destas fontes é economicamente inviável, forçando sua consulta in loco. , os depoimentos foram transcritos e organizados em um arquivo de texto, respeitando as divisões de faixas presentes nas mídias. A referência a eles ao longo do texto trará sempre a indicação do nome do depoente ou da agremiação (no caso de depoimentos de Escolas de Samba), ano da entrevista, CD e Faixa onde se encontra a narrativa citada7 7 Em um caso apenas, o depoimento de Dona Zica (1993), a gravação foi feita em DVD, motivo pelo qual a forma da citação será ligeiramente diferente: (NOME, ano: DVD x, minutagem). Fonte dos Depoimentos: MUSEU da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MIS). . Retiramos pausas e intervenções dos entrevistadores por não interferirem no discurso dos entrevistados.

O artigo está organizado em quatro seções. Na primeira, situamos as musicistas no quadro geral da escolarização brasileira, tomando como base os anos 1950 e 1970. Em seguida, seção 2, comentamos seus testemunhos sobre as dificuldades de acesso à escola e as estratégias mobilizadas para garantir o acesso à educação. Na terceira seção, analisamos a relação entre os estudos, o trabalho e a música como esferas de aprendizado de distintos saberes e valores sociais. Na última, focalizamos os atravessamentos e tensões entre a escola oficial e seus saberes, sobretudo a cultura letrada, e os aprendizados forjados na experiência musical familiar e comunitária.

Os Musicistas no Quadro Geral da Educação Brasileira

Nos 26 depoimentos de caráter biográfico analisados, a educação formal, ou os estudos, como diziam os entrevistadores, são mencionados em apenas 12. Em 8 (oito) destes 12, o tema é trazido à tona por iniciativa da(o) depoente. Apesar de não fazer parte dos roteiros programados para os depoimentos de Escolas de Samba, aí também foram identificadas menções significativas à educação formal em 2 (dois) dos 3 (três) consultados. Assim, embora não fosse relevante para a equipe do MIS, interessada sobretudo em temas estritamente musicais, os discursos sobre educação acabaram adquirindo um destaque imprevisto. Mesmo nas ocasiões em que o tema aparecia lateralmente, a mensagem que se transmitia, por vezes através de silêncios e hesitações, era plena de conteúdo histórico e emocional, reveladora da importância da educação para as avaliações que as(os) musicistas faziam dos sucessos e frustações que tiveram em suas carreiras.

Para bem dimensionarmos tal importância e situarmos historicamente as narrativas que a comunicam, precisamos considerar a origem de classe e os indicadores da escolarização dos depoentes. Combinando os depoimentos e outras fontes, foi possível apurar que, em um conjunto de 24 musicistas (ver Quadro 1), apenas 3 (Walfrido Silva, Booker Pittman, Pixinguinha) vinham de famílias com renda relativamente estável e confortável, enquanto a origem dos demais se situava entre os extratos mais pobres da população e uma baixa classe média. Também conseguimos mapear informações mais ou menos precisas a respeito da trajetória escolar de 18 musicistas. O Quadro 1, a seguir, mostra que, desses 18 musicistas, quatro (22%) possuíam o Ensino Primário (equivalente, em termos gerais, ao atual Ensino Fundamental); 3 (16%) cursaram o Secundário (equivalente ao atual Ensino Médio); 1 (5%) possuía primário e técnico-profissionalizante; 1 (5%) possuía diploma do Ensino Superior, além do ensino técnico em Enfermagem.

Embora reflitam a dificuldade geral do acesso aos níveis mais elevados da educação formal, especialmente ao Ensino Superior, os índices de escolarização desse grupo são bem superiores à média nacional. O percentual de brasileiros com o Ensino Primário completo em 1950, quando todos os(as) depoentes já haviam excedido a idade escolar, era de aproximadamente 16%, no nosso grupo 45%; a taxa de analfabetismo, nula no nosso levantamento, chegava a 42% na população geral; e o percentual de indivíduos com Ensino Secundário completo superava a média nacional, que não alcançava os 3% (Komatsu et al., 2019KOMATSU, Bruno et al. Novas Medidas de Educação e de Desigualdade Educacional para a Primeira Metade do Século XX no Brasil. Estud. Econ., São Paulo, v. 49, n. 4, p. 687-722, out.-dez. 2019. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0101-41614943bnpl.
https://doi.org/10.1590/0101-41614943bnp...
, p. 711).

Quadro 1
Dados da Escolaridade de 24 entrevistados

Esses números são ainda mais expressivos quando consideramos o efeito diferencial das dificuldades de acesso à educação sobre a população negra. Os dados a esse respeito são imprecisos e escassos durante a primeira metade do século XX, mas podemos ter uma ideia da desigualdade racial na educação desse período tomando como base a década de 1970. Comentando os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE/PNAD), do ano de 1976, González e Hasenbalg (1982, p. 92)GONZÁLEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero, 1982. (Coleção 2 Pontos; v. 3.). observam:

Considerando-se as pessoas de cinco anos ou mais na data de referência, a proporção de analfabetos entre não brancos (40%) é quase o dobro da dos brancos. O grau de desigualdade educacional experimentado por pretos e pardos aumenta rapidamente quando são considerados os níveis mais altos de instrução. O grupo branco tem uma oportunidade 1, 55 vezes maior que os não brancos de completar entre 5 e 8 anos de estudo e uma oportunidade 3,5 vezes maior de cursar 9 ou mais anos de estudo.

Por outro lado, verificamos a efetividade desses obstáculos nos dados da outra metade dos sujeitos incluídos no levantamento: 55% não terminou o Primário, 3 (três) (16,6%) tiveram passagens curtas pela instituição escolar – entre um e dois anos no máximo –, suficientes apenas para aquisição das habilidades básicas em leitura e escrita. Dona Zica, caso extremo (5%), nunca frequentou a escola.

No entanto, entre os sujeitos que compõem o grupo de menor escolaridade, estão alguns dos mais bem-sucedidos musicistas, tanto profissional quanto economicamente, como Donga, Elizeth Cardoso e Raul de Barros. O que isso pode significar? Nossa hipótese é a de que, apesar de limitadora, a ausência de educação formal não era um empecilho intransponível para o exercício da profissão de instrumentista e compositor. Mais precisamente, que as dificuldades de acesso à escola não eram suficientes para impedir que esses musicistas adquirissem determinadas habilidades e saberes relevantes para a ascensão social, inclusive aqueles veiculados pelas instituições educacionais. O exemplo do Oficial de Justiça do Supremo Tribunal Federal (STF), Donga, que aprendeu a falar francês por conta própria apesar de não ter passado do segundo ano Primário, é uma evidência eloquente disso.

Assim, mesmo os que tiveram experiências escolares decisivamente marcadas pela exclusão, dificuldade de acesso e permanência revelam, por meio de suas trajetórias, o papel estratégico que a educação – em sentido mais amplo – cumpriu em seus processos de mobilidade social. A iniciativa de educar-se, com ou sem o aval da instituição escolar, mostra-se um traço unificador de suas histórias.

Além de se contrapor às teses sociológicas que desacreditavam a capacidade de mobilização autônoma da população negra na sociedade escravista ou pós-escravista (Lucindo, 2016LUCINDO, Willian Robson Soares. A vontade também consola: a formação da esfera pública letrada de Afrodescendente e o debate sobre a educação. In: FONSECA, Marcus Vinícius; BARROS, Surya Aaronovich Pombo de (Org.). A história da educação dos negros no Brasil. Niterói: EdUFF, 2016. P. 305-328., p. 305-308), esses traços preliminares das trajetórias educativas de nossos interlocutores desafiam preconceitos difundidos na história e historiografia do campo musical. De um lado, o estereótipo racista do “malandro” – sujeito avesso às convenções e instituições basilares da vida na sociedade capitalista (família, escola, trabalho) e inclinado a transgressões (roubo, contravenção, violência) –, que desde os anos 1920 costuma ser apontado como síntese da vida dos sambistas no Rio de Janeiro. De outro, os sensos comuns essencialistas segundo os quais a cultura negra é produto de uma “natureza” racial, ou de uma herança africana “primitiva”, alheia às esferas oficiais do saber e que age sozinha, prescindindo de processos educativos e formativos conscientemente engendrados (McCann, 2004McCANN, Bryan. Hello, Hello Brazil: popular music in the making of modern Brazil. Durham & London: Duke University Press, 2004. (versão Kindle)., p. 52-54; Ramos, 1995RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução crítica à sociologia brasileira. (1955). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995., p.182).

‘O resto foi por minha conta’

Um dos obstáculos para o acesso à educação formal entre as classes populares no pós-abolição em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo era a insuficiência de estrutura e de investimento público; ou seja, a carência de escolas e de professores, a despeito da reconhecida importância dada à educação pelas elites brasileiras nos debates sobre a modernização do país entre o fim do século XIX e início do XX. Para a população negra, essa insuficiência era potencializada, entre outros fatores, pela discriminação de raça-classe na instituição escolar (Lucindo, 2016LUCINDO, Willian Robson Soares. A vontade também consola: a formação da esfera pública letrada de Afrodescendente e o debate sobre a educação. In: FONSECA, Marcus Vinícius; BARROS, Surya Aaronovich Pombo de (Org.). A história da educação dos negros no Brasil. Niterói: EdUFF, 2016. P. 305-328., p. 318-319).

Dialoga com essa realidade as reminiscências do compositor e instrumentista João da Baiana sobre seus primeiros estudos no Rio de Janeiro dos anos 1890:

Eu, diretamente não aprendi a ler, que naquela época não tinha colégio público quase, né? Tinha casa de família e minha mãe me botou pra aprender desde o segundo livro de leitura de Felisberto de Carvalho. O resto foi por minha conta. Era numa casa de uma família, e ela tinha cinco ou seis filhos. Ela então dava a carta do ABC pra gente estudar o bê-á-bá. E ela ia fazer lá o almoço e ia tratar da casa. Minha mãe pagava, naquela época, 2$500 [dois mil e quinhentos réis] por mês, a essa família pra ensinar nós a ler). A gente ficava brincando, ficava tocando samba, cantando, batendo, quando ela voltava, coitada, era tanta criança!

(João da Baiana, 1966, CD 94, f. 6, grifo nosso).

Além da impossibilidade de acesso à escola pública, que para a memória de João se manifestava como quase inexistência, chama a atenção nesse testemunho a presença aparentemente usual de educadores comunitários/familiares – as “casas de família”. Pixinguinha (1966, CD 123.1, f. 5) também relata algo semelhante. Embora tenha frequentado escolas stricto sensu, afirma que se alfabetizou em um “um colégio pago”, junto com outros irmãos; as aulas eram ministradas por um tal professor Bernardes. Zé Kéti (1967, CD 176.1, f. 2) também menciona um “colégio particular” como lugar de suas “primeiras letras”, nos anos 1920.

Esse tipo de investimento privado na educação básica dos filhos era comum em fins do século XIX e início do XX no Rio de Janeiro, tanto para famílias de melhor situação econômica – como a de Pixinguinha – quanto das classes menos favorecidas (caso de João e Zé Kéti). No caso destas, o investimento privado buscava suprir a inacessibilidade da educação pública e/ou evitar constrangimentos de raça e classe (Lucindo, 2016LUCINDO, Willian Robson Soares. A vontade também consola: a formação da esfera pública letrada de Afrodescendente e o debate sobre a educação. In: FONSECA, Marcus Vinícius; BARROS, Surya Aaronovich Pombo de (Org.). A história da educação dos negros no Brasil. Niterói: EdUFF, 2016. P. 305-328., p. 319; Schueler; Magaldi, 2009SCHUELER, Alessandra Frota Martinez de; MAGALDI, Ana Maria Bandeira de Mello. Educação escolar na Primeira República: memória, história e perspectivas de pesquisa. Tempo, v. 13, n. 26, p. 32-55, 2009., p. 46). O relato de João sugere que, além de sua mãe, muitos outros pais e mães recorriam às escolas familiares (“era tanta criança!”), pagando um valor que poderia ser significativo para famílias de renda modesta, de acordo com as estimativas disponíveis (Hertzman, 2013HERTZMAN, Marc A. Making samba: a new history of race and music in Brazil. Durham and London: Duke University Press, 2013., p. 76).

Heitor dos Prazeres, cuja família pertencia ao mesmo núcleo comunitário que a de João, nos fala da banalidade da exclusão de meninos negros quando os pais insistiam no direito a usufruir das escolas públicas:

Meus primeiros estudos foram em 261escolas, porque cada dia era numa escola que eu era expulso. De formas que, quando parei um bocadinho mais foi no Externato Souza Aguiar, no Colégio São Sebastião, na Benjamin Constant, que era na Praça XI. Tive no colégio da rua de Santana, o Colégio dos Padres, onde eu fui expulso por causa de uma bolazinha de meia, porque futebol naquele tempo era vagabundagem. E o lugar que eu parei mais foi o Externato Souza Aguiar, que lá eu gostava mais porque ali aprendi a profissão, eu era doido pra fazer qualquer coisa, aprendi a profissão de torneiro lá na Rua do Lavradio

(Heitor dos Prazeres, 1966, CD 184, f. 1-2).

Sendo a consciência racial elemento caro à obra pictórica e musical de Heitor dos Prazeres, e em face de seu contato com movimentos negros do Brasil e da África, parece improvável que ele não entendesse – ainda que não diga explicitamente – que o motivo de suas expulsões fosse menos as bolinhas de meia do que o corpo da criança que brincava com ela. O que aconteceria se ele, ou João, ou outro colega de sua cor, resolvesse puxar um verso, um ponto ou batucar no intervalo das aulas?

Problemas similares atravessam a trajetória escolar de Aniceto Menezes, 11 anos mais jovem que Heitor, marcada por “recomendações de transferência”. Sua primeira professora teria chamado seu pai para dizer:

‘Eu tenho outros alunos; se eu der a eles o que o seu filho precisa, vou prejudicá-los; e seu eu der ao seu filho o que estou dando a eles, vou prejudicar ao seu filho. Porque seu filho é muito lúcido, seu filho é muito inteligente. O senhor faça um favor, arrume uma outra escola do garoto, que eu gosto muito dele e não quero prejudicá-lo’. Papai então me colocou em outra escola, particular, na mesma rua

(Aniceto Menezes, 1991, 811.1, f. 4).

A mesma situação se repete anos depois, segundo Aniceto, em outra escola. Ele atribui essas recomendações à incapacidade das instituições de atender às suas necessidades, algo que converge com sua reconhecida inteligência, admirada nos circuitos vernáculos8 8 Usamos a categoria “vernáculo” para nos referirmos a saberes comunitários ou tradicionais, evitando as ambiguidades do termo “popular”, que é geralmente estendido aos produtos do mercado cultural. de samba do Rio. Contudo, talvez esta seja uma maneira de evitar uma memória dolorosa, já que sua suposta inadequação às escolas talvez encobrisse motivos relacionados à sua cor.

Outro ponto que merece destaque no discurso de João da Baiana é a afirmação de que o “resto [do aprendizado escolar] foi por conta”, o que demarca o fim da educação formal e sinaliza a importância do autodidatismo – que aqui tem evidente sentido comunitário – e de esferas de aprendizado extraescolares para os musicistas de seu grupo social e de seu círculo mais próximo de convivência.

Carmen Costa, 23 anos mais jovem que João, nos fala mais diretamente dos problemas enfrentados pela infância negra, em especial pelas meninas negras, em sua luta precoce pelo direito à educação, fora e dentro das escolas. Também nos provoca a refletir sobre a relevância histórica e existencial das experiências de violência racial:

MIS: na fazenda [da Agulha, Trajano de Moraes-RJ, onde nasceu], você chegou a estudar?

Carmen Costa: Não, quando eu vim pra Niterói, os filhos da minha patroa estudavam, então foi aí que eu aprendi um pouquinho. Quando eu segurava um, olhava os outros na mesa então eu aprendi. Eu escrevi uma carta pra minha mãe, me lembro bem, quando a minha patroa começou zangar comigo eu escrevi uma carta pra minha mãe. Eu não sei se ela entendeu, mas que mandou me buscar me mandou. Porque, os selos, eu botei aqueles de garrafa de cerveja, em 1930 tinha muitos selos. E escondi a carta entre o garoto e eu, que eu estava segurando, e o correio parece que mandou aquela carta pra minha mãe porque, de repente, a minha patroa me deixou ir embora. Foi assim que eu aprendi. Quando eu entrei numa escola, já estava com os meus 11 anos, fiquei poucos dias porque... Foi coisa de um mês ou dois meses. Que eu senti, que era fim de ano e minha diretora, minha professora e minha diretora, tinham organizado uma festa. Todos os alunos iam cantar. Eu fui uma das alunas da minha sala que a minha professora disse ‘você vai cantar também!’. Como eu gostava de música, fiquei toda feliz. Até hoje me lembro a música que ia cantar: ‘Chega seu Zé, chega Mané, chega Pedro e Bastião/Seu Juca vai contar o que viu na capitar/ uma coisa de fazer espantação’. Fiquei toda feliz que ia me apresentar assim vestida de moleque. Mas a minha diretora depois resolveu tirar o meu papel e dar para outra aluna. Eu fiquei ofendida com aquilo, quer dizer, em menos de três meses de escola fiquei com tanto desgosto, que eu vi que a aluna era mais bonita do que eu, nunca mais eu quis ir à escola. Então nunca eu fiz, não terminei nem o primário

(Carmen Costa 1972 CD 83.1, f. 2, grifos nossos).

A narrativa de Carmem Costa reúne vários elementos constitutivos das infâncias negras no pós-abolição: a necessidade do trabalho doméstico precoce e o afastamento do seio familiar; a violência da patroa; a carência e a dificuldade de acesso à educação formal; e a exclusão e a violência psicológica operada pelos profissionais das instituições escolares. Além disso, sinaliza continuidades em relação ao passado escravista: a imagem da escravizada doméstica que observa, silenciosa, as lições da “sinhá-moça” para aprender clandestinamente a ler é evocada por Silva e Araújo (2005, p. 69) como representativa das brechas ao letramento9 9 Acionamos neste artigo a perspectiva freiriana de letramento, cujo significado abrangente vai além do domínio dos códigos e da técnica da escrita. Para Freire (2006), a leitura do mundo vem antes da leitura da palavra, ao tempo que a palavra só se investe de sentido quando expressa o mundo realmente vivido. As pessoas tanto mais se constituem como sujeitos epistêmicos e políticos, capazes de ler criticamente suas realidades para transformá-las, quando a elas é garantida a possibilidade de associar a leitura do mundo e a leitura da palavra. escravo. E continuidades com o tempo presente: a negação do direito pleno à educação pública e de qualidade e a persistência do trabalho doméstico análogo à escravidão na experiência de muitas mulheres (crianças, jovens e adultas) negras e periféricas.

Por outro lado, vemos aí também um retrato de resiliência e autonomia possíveis: Carmen mobiliza suas próprias capacidades intelectuais e morais para aprender a leitura e a escrita sozinha. Com astúcia, ela consegue, pelo exercício da escrita, contatar a mãe para escapar à patroa violenta. Mais tarde essa agudeza de espírito também foi fundamental para a realização do sonho de ser cantora e para desafiar, ainda que tardiamente, a diretora da única escola que frequentou, que quis convencê-la de que seu corpo não era adequado para ocupar lugar de destaque.

Mas Carmen permaneceu fortemente marcada por essa experiência de discriminação. Ela volta a mencioná-la minutos depois em seu depoimento. Mesmo que tenha superado boa parte de seus efeitos práticos, com ajuda de familiares e amigos, os custos emocionais do episódio não seriam esquecidos:

MIS: Carmen, você se lembra, nesse início, quais as pessoas que mais ajudaram você e as pessoas que mais criaram obstáculos?

Carmen Costa: Bom, o [Grande] Otelo quis me ajudar muito. Agora, os obstáculos... é bom a gente não lembrar. Por exemplo aquele da escola, que eu quis cantar e a moça tirou meu número e eu fiquei muito chocada

(Carmen Costa 1972 CD 83.1, f. 3, grifo nosso).

Dona Zica viveu e narrou um drama muito similar ao de Carmen, cujo palco é a cidade do Rio de Janeiro, nos anos 1920:

Olha, não tenho vergonha de dizer: nunca, não sei como é que se entra numa escola. O que eu aprendi... Quando eu tinha 7 anos, a minha mãe lavava pra essa família e ela me pediu pra eu ir com ela. Eu tinha 7 anos. Então ela pediu à moça que me ensinasse a ler e escrever. A moça me ensinou (que naquele tempo tinha a cartilha do ABC) então a moça me ensinou ‘a’, ‘b’, ‘c’, ‘d’, mas não me ensinou a juntar. Quer dizer, que aqui [apontando uma palavra na bancada da entrevista] eu não sabia que era ‘fundação’, sabia que aqui era um ‘f’, a letra era um f, era um u, era um n, mas não sabia formar ‘fundação’. (Naquele tempo não tinha menino nem menina de rua, todo mundo trabalhava). Com 7 anos, eu trabalhava nessa casa dessa moça, eu lavava louça, ariava panela, lavava banheiro, e a cartilha nada, ela só me ensinou aquilo e pronto.

Então, naquele tempo botava o jornal nas portas. Botava o Jornal do Brasil e o Jornal do Comércio, aí dizia assim [a patroa]: ‘Oh, Zica, apanha lá o Jornal do Brasil!’. Eu não sabia que aquilo era Brasil. Aí eu vinha com o Jornal do Comércio. Ela me dava aquele jornal, me batia, eu saía chorando: ‘Meu Deus, como é que eu vou fazer, eu não conheço!’. Quando foi um dia eu fiquei pensando: o que que eu vou fazer pra eu não apanhar mais? Eu já tinha meus nove anos, eu disse: o que que eu vou fazer pra eu não apanhar mais? Eu digo, quando ela me pedir o jornal, eu vou ver qual é a letra que diz Brasil e que diz Comércio. Eu fiquei, aquilo, de noite, matutando. Quando chegou de manhã ela me pediu o jornal. ‘Panha lá o jornal Do Brasil’. Aí eu falei, ‘a... o Jornal do Brasil, eu vou ver qual é que tem a letra. Ah... b, b, Brasil’. Fui lá levei o jornal. ‘Ah, té que enfim!’. Aí eu fui, com a minha força de vontade, eu fui aprendendo

(Dona Zica 1993, VI-00257.1-, 20’-30’, grifo nosso).

A associação entre o trabalho de doméstica, a violência da patroa e a educação por conta própria como caminho de libertação liga as narrativas de Zica e Carmen. Esta foi enviada para trabalhar sozinha na casa de uma família, enquanto Zica começa acompanhando a mãe, mas logo se torna, ao que parece, a única empregada da casa. As mães de ambas – isto está claro – tinham esperança de que, além do serviço, as filhas tivessem acesso a alguma instrução. Também nos dois relatos a importância da educação é sentida na pele e sua aquisição é fruto da “força de vontade” das protagonistas e de suas mães. Essa força é central nestas narrativas, tanto quanto as dores e privações; nela se fundamenta, em medida decisiva, o processo formativo que essas duas mulheres empreenderam de si mesmas ao longo da vida.

Essa díade entre violência e força de vontade também é relevante nas trajetórias de sucesso escolar que encontramos na pesquisa, ainda que neste caso as dores tenham menos espaço nas narrativas que os êxitos. Pois sabemos, através da historiografia, que essas trajetórias foram concretizadas em contextos hostis. Analisando a documentação produzida pelos educadores brancos responsáveis pelas políticas educacionais entre 1917 e 1945, Dávila (2003)DÁVILA, Jerry. Diploma of Whiteness: Race and Social Policy in Brazil, 1917-1945. Durham, N. C; London: Duke University Press, 2003. mostrou que as crianças negras constituíam para eles um problema biopolítico. Se não eram impedidas legalmente de frequentar a escola pública nesse período, e se havia mesmo um esforço por parte desses intelectuais no sentido de ampliar suas presenças nas escolas, era porque as viam como indivíduos “degenerados” pela raça, pela escravidão e pela pobreza. O melhoramento da raça brasileira passava, assim, pela inculcação nessas crianças, por meio da educação, de hábitos, comportamentos (a higiene, alimentação, religião, etc.), valores e culturas modelados desde referenciais europeus. Segundo esse ideário eugenista, a brancura – marcador cultural de um projeto de civilidade – podia ser “aprendida” por meio da internalização de gestos, atitudes e disposições morais que atenuariam a degeneração moral de não brancos.

E, apesar de toda a violência que a instituição escolar engendrava, ela constituía um lugar cuja ocupação era determinante para os anseios de ascensão social e realização existencial da população negra. Imaginemos como é lutar contra a desumanização tentando usufruir dos capitais oriundos de uma estrutura de ensino e saber que a todo momento nos constrange e violenta: eis a ordem do conflito travado pelas comunidades negras em busca de instrução. Este conflito dilacerante se manifesta diferencialmente nas experiências aqui narradas. É determinante para o abandono dos estudos e dá a medida do esforço daqueles que, como Dona Yvonne, conseguiram concluí-los.

‘Um trabalhador extraordinário e um cantador’

Entre as adversidades enfrentadas pelos musicistas no acesso à instrução formal estava também a relação complexa entre a necessidade e o valor atribuído ao trabalho, presente na maioria dos testemunhos citados até aqui. Em mais de um terço das 17 narrativas que tocam diretamente em experiências pessoais com a educação formal, estão presentes referências ou reflexões acerca das sobreposições e (des)encontros entre a educação e o mundo do trabalho. A de Elizeth Cardoso é uma delas:

MIS: antes de ser musicista, você teve outras profissões não?

Elizeth Cardoso: Aos 10 anos de idade, devido à situação, não é?, de família assim, não é?, eu tive que deixar os meus estudos para trabalhar, para ajudar um pouco a minha casa, a minha mãe. E fui trabalhar num varejo de cigarros, que era na rua São José esquina com Vieira Fazenda. Eu quero também pedir muitas desculpas a todos que estão aqui. Eu não tive tempo de estudar, eu estudei pouco. Por isso talvez eu tenha um pouco de dificuldades para me expressar

(Elizeth Cardoso, 1970, CD 61.2, f. 2,10).

Elizeth atribui, com evidente tom de lamento, o abandono da escola à necessidade do trabalho para ajudar no sustento familiar, lamento que é também um pedido de desculpas pela sua pouca escolarização. Esses sentimentos se mostram também nas narrativas de Carmen Costa e Dona Zica. Carmen descreve o “pouquinho” de instrução formal que foi capaz de absorver em sua vida de trabalhadora e constata, como que indignada e resignada: “não terminei nem o primário”. Dona Zica destaca sobretudo a importância do trabalho nas infâncias de sua geração ao dizer que “naquele tempo todo mundo trabalhava” e que não havia “meninos de rua”; mas também fala, entre a altivez e o constrangimento, da ausência da escola em sua vida: “não tenho vergonha de dizer, nunca, não sei como é que se entra numa escola”. Elas, assim como outras crianças negras de sua geração, tiveram de lidar com uma ideologia difusa, oriunda dos grupos dominantes, que culpava os excluídos da escola por sua própria exclusão e relacionava a falta de instrução ao “atraso” ou à “inutilidade” (Lucindo, 2016LUCINDO, Willian Robson Soares. A vontade também consola: a formação da esfera pública letrada de Afrodescendente e o debate sobre a educação. In: FONSECA, Marcus Vinícius; BARROS, Surya Aaronovich Pombo de (Org.). A história da educação dos negros no Brasil. Niterói: EdUFF, 2016. P. 305-328., p. 320). As leituras de mundo dessas musicistas parecem, ambiguamente, reproduzir e denunciar esse ideário.

Jamelão apenas menciona os estudos ao falar de sua rotina precoce de trabalho, em termos muito similares aos de Elizeth, porém com um tom mais próximo à altivez de Dona Zica:

Aos 9 anos [1922] eu já estava já... defendendo [vendendo jornais]. Eu tava, no colégio Visconde de Cairu, no Meyer e à tardinha eu pegava o jornal pra ir faturar um dinheirinho pra ajudar, não é? Meus pais não tinham grandes condições e ainda houve um problema de separação. O meu pai abandonou a família e eu tive que dar aquela ajuda. Por incrível que pareça eu ganhava bem. Eu saía por aquelas ruas apregoando o jornal, a minha voz... Eu acho que a minha voz aprendeu a ficar aberta assim através... [desse trabalho]

(Jamelão, 1972, CD 53.1, f. 2).

Esse turno duplo de jornaleiro e estudante não implicou de imediato no abandono da escola, mas a necessidade de entrar no mundo do trabalho para garantir o sustento da família, seguramente sim. Jamelão conta que interrompeu os estudos aos 14 anos de idade, quando procurava se profissionalizar como jogador de futebol. É provável que a urgência da sobrevivência tornasse o trabalho mais valioso e apreciado pelas crianças e suas famílias que as incertas promessas do sistema educacional (Lucindo, 2016LUCINDO, Willian Robson Soares. A vontade também consola: a formação da esfera pública letrada de Afrodescendente e o debate sobre a educação. In: FONSECA, Marcus Vinícius; BARROS, Surya Aaronovich Pombo de (Org.). A história da educação dos negros no Brasil. Niterói: EdUFF, 2016. P. 305-328., p. 313). O mesmo se observa nos pronunciamentos de Heitor dos Prazeres sobre o tema, pois já o vimos dizer que “era doido” para “aprender uma profissão”. Além do desgosto advindo das suas reiteradas expulsões da escola, outras razões mobilizavam seu interesse pelo mundo do trabalho:

[Meu pai] Era músico militar e era marceneiro. E são[saberes] que também eu herdei dele. Trabalhei muitos anos, sustentei família na marcenaria. Ainda... me julgo ainda operário. Ainda se tiver necessidade ainda trabalho em marcenaria, que eu tenho muito prazer, não é desonra nenhuma.

Era o tempo do aprendizado e eu fui aprendiz de tudo: fiz um estágio em tipografia, marcenaria, de sapateiro, alfaiate. Mas fiquei mesmo na marcenaria, e trabalhei muitos anos em várias dessas casas de marcenaria aí da cidade. Meu pai e minha mãe não ganhavam suficiente e eu queria ajudar

(Heitor dos Prazeres, 1966, CD 184, f.1-2, grifos nossos).

Heitor lembra que os pais não gostavam que ele trabalhasse na rua porque consideravam coisa de “vagabundo”. Essa contraditória associação entre trabalho e vagabundagem pode ser compreendida quando constatamos que, quando criança, ele chegou a ser preso por “crime de vadiagem”. Para meninos negros, bastava andar desacompanhado para estar sujeito a tal dispositivo autoritário (Fischer; Grinberg; Mattos, 2018FISCHER, Brodwyn; GRINBERG, Keila; MATTOS, Hebe. Direito silêncio e racialização das desigualdades na história Afro-brasileira. In: FUENTE, Alejandro de la; ANDREWS, George Reid (Org.). Estudos afro-latino americanos: uma introdução. Buenos Aires: Clasco, 2018. P. 163-215., p. 181-182). O receio de que isso se repetisse – acreditamos – é o que levava pais como os de Heitor a repreender suas crianças por sair para trabalhar e, provavelmente, também para se divertir, fazer música, enfim, ser criança. De todo modo, a música e o valor do trabalho (para além de sua necessidade) eram heranças imateriais familiares, atribuídas sobretudo ao pai, a forjar a personalidade e a história de Heitor dos Prazeres.

O trabalho tinha significados similares para o compositor Alcebíades Barcelos, o Bide:

MIS: Como foi sua infância, Bide?

Bide: A minha infância, eu... comecei a trabalhar com 9 anos [1911], a minha profissão era sapateiro, trabalhava em fábrica de calçado. Trabalhei no Bordallo (Rua do Nunes), no Gaula, aqui na Rua do Lavradio. Como aprendiz. Trabalhei na DNB também como aprendiz até conseguir ser oficial sapateiro.

MIS: Frequentou a escola primária?

Bide: Frequentei lá em Niterói. Estudei até o quarto ano, depois desisti. Meu irmão [Mano Rubem] também foi sapateiro. Eu sabia fazer um sapado do princípio ao fim! Já com 15 anos eu já fazia sapato, sabe? Com 15 anos eu já sabia fazer um sapato. Bota o entorno, botava a sola, fazia o sapato todinho!

(Alcebíades Barcelos, 1968, CD 12.1, f.1, 3).

A infância de Bide se confundia com o chão da fábrica, que ele aprendeu a admirar como lugar de aprendizado do ofício de sapateiro, do qual se orgulhava, e que era compartilhado pelo irmão e pelo pai. A ausência da escola tem como contrapartida a maestria nesta arte e o apreço por ela, cultivados no seio familiar.

A conexão-disjunção entre trabalho e educação formal está presente mesmo quando não verbalizada, pois, como mostra o Quadro 2, quase todos os musicistas ouvidos (21 em 24) começaram a trabalhar por volta dos 10 anos de idade.

Quadro 2
Trabalhos não artísticos exercidos por 24 entrevistados

Mas o trabalho tinha funções e significados outros e mais positivos na vida desses sujeitos do que o de rivalizar com as trajetórias escolares. Booker Pittman e Pixinguinha, indivíduos de origem socioeconômica privilegiada em relação aso demais, também exerceram cedo trabalhos não artísticos. Pittman (1969, CD. 128.1, f. 2-6) conta que isso não se devia à necessidade material, mas à intenção dos pais de fazer os filhos incorporarem o valor do trabalho no período de suas férias escolares em Dallas (Texas). Algo similar viveu Pixinguinha no Rio de Janeiro, a julgar pela posição de funcionário público de médio/alto escalão10 10 Alfredo Vianna, pai de Pixinguinha, aparentemente era fiel recebedor da prefeitura do Rio de Janeiro no início dos anos 1900. Pixinguinha afirma que, em sua infância, o pai era funcionário dos Telégrafos (Lima, 2021, p. 21). . Há evidências desse valor nas memórias de Jamelão, Bide, Zica, Heitor dos Prazeres e em muitas outras, frequentemente associado também às heranças musicais familiares e comunitárias. Durante alguns minutos dedicados à memória de Elói Antero Dias (Mano Elói) no depoimento da Escola de Samba Império Serrano, um dos integrantes da agremiação pediu a palavra:

Eu queria falar algo sobre o Elói. Eu considero Elói um dos maiores homens que eu conheci na minha vida. Eu estudei um pouco, mas ao conhecer Elói, eu vi que não tinha me educado. O Elói me ensinou uma das coisas mais sublimes na vida do homem, que eu não sabia: é ouvir. Eu tinha um defeito de minha vida que, um termo assim que eu não lembro no momento, um verbo que diz o seguinte: o sujeito antecipa o que a pessoa vai dizer. Esse homem me corrigiu esse defeito: hoje eu já ouço, os bons e os maus. Ensinou-me algo de muito sublime. É que tanto mais for atacado, deve ser carvão ou lenha dentro de uma carreira; os ataques não devem servir para me cansar; quanto maior for o ataque maior deve ser a luta. Ainda não conseguiu esse, Elói, fazer eu calar [para melhor ouvir], um dos maiores desejos dele, mas ensinou-me a trabalhar. Ele dissera a mim, palavras o vento leva, trabalho fica e dignifica o homem. E eu tenho nesse homem o expoente máximo em samba; não eu, os imperianos. Um pai e um homem que dificilmente, por incrível que pareça, fala, mas quando fala, fala certo

(Império Serrano, 1968, CD 195, f. 5, grifos nossos).

A sabedoria e a importância de Elói, segundo esse testemunho, residiam em uma serena economia da palavra e capacidade de escuta, uma filosofia vinculada à sua vida de trabalhador que luta com inteligência e de liderança do samba – duas atividades nas quais saber ouvir e saber como e quando dizer são fundamentais. Elói foi um grande organizador político do circuito das Escolas de Samba, dos estivadores e outros trabalhadores, e mediador das negociações desses grupos com a elite política da capital

Para a memória coletiva dos seus contemporâneos e aprendizes não parecia correto apartar essas dimensões de sua existência: Elói foi macumbeiro, versador, sambista, cantor, compositor, trabalhador, sindicalista, pensador, liderança histórica das comunidades de samba. Essa memória também mostra que, embora Elói tenha provavelmente debatido ideias comunistas, marxistas e anarquistas em sua longa trajetória sindical, e ainda que ele tenha frequentado as escolas da capital, seu pensamento não era meramente teórico e nem nascera da instituição escolar. Pois, como indica nosso narrador, os ensinamentos de Mano Elói transcendiam os saberes formais, isto é, eram tanto práticos quanto sublimes.

Vai no mesmo sentido o depoimento de seu Armando Passos, presidente da Portela em 1968, sobre o grande líder desta Escola, Paulo Benjamin, contemporâneo e amigo de Mano Elói:

Agora, falando sobre a vida do grande Paulo da Portela [Paulo Benjamin], eu que convivi com ele nos primórdios posso dizer que era um tímido. Era um homem de uma capacidade extraordinária, repentista, de domínio da massa. Não era valente. Isso é importante: dominava a massa com um simples olhar, um simples gesto. E tudo por quê? Porque não tinha mulher, não tinha criança, não tinha homem, para ele era tudo igual no samba.

Falava, tinha o dom da palavra. Não tinha o primário, mas tinha o dom da palavra. De maneiras que supria [essa falta]

(Portela, 1967, CD 187.1, f. 4, grifos nossos).

Também é conhecida a atuação de Paulo da Portela como líder político a intermediar as negociações das Escolas de Samba com os grupos no poder. Esse “dom da palavra” e a habilidade da escuta de todos (“para ele era tudo igual no samba”), que faziam o seu respeito como regente dos desfiles, o aproximam muito de Elói. É de se notar, a esse respeito, a importância da prática musical do verso de improviso, do “repente”, no desenvolvimento de tais habilidades; um expoente das rodas vernáculas negras de samba dos anos 1920 e 1930 dificilmente se afirmaria como tal sem essa expertise.

Elói e Paulo ilustram um fato histórico da maior relevância para a cultura e política cariocas: a íntima relação destas duas dimensões como processos formativos, desenvolvidos na vida e na luta africanos e seus descendentes nos cafezais do Sudeste, onde prosperaram (e ainda prosperam) jongos, calangos e outras artes de versejar. Não sabemos a origem da família de Paulo, mas Elói é oriundo do Vale do Rio Paraíba (RJ), onde também se formaram ou iniciaram os aprendizados de muitos de seus professores e companheiros do mundo do trabalho e das Escolas de Samba.

A sabedoria “sublime” e o “dom da palavra”, que constituem Paulo e Elói como pessoas distintas, e que estão presentes no trato social e nas suas qualidades como oradores e musicistas, evocam a noção de oralitura, tal como acionado por Martins (2003)MARTINS, Leda. Performances da oralitura: corpo, lugar da memória. Letras, n. 26, p. 63-81, jun. 2003. para analisar ritos e performances afro-brasileiros. Oralitura diz respeito a um saber que emana da experiência e que se inscreve no corpo: “[...] o que no corpo se repete não se repete apenas como hábito, mas como técnica e procedimento de inscrição, recriação, transmissão e revisão da memória do conhecimento, seja ele estético, filosófico, metafísico, científico, tecnológico, etc.” (Martins, 2003MARTINS, Leda. Performances da oralitura: corpo, lugar da memória. Letras, n. 26, p. 63-81, jun. 2003., p. 66).

O compositor Ataulfo Alves foi um dos companheiros de jornada de Elói. Como este, iniciou seus aprendizados do mundo do trabalho e do verso na oralitura do Vale do Rio Paraíba/MG. Ele nos fala mais diretamente dos saberes que se ensinava/aprendia nos vales do café, entre as décadas de 1910 e 1920:

Foi em Miraí (MG) [que comecei com a música], pela influência de meu pai, Capitão Severino. [Ele] nunca foi militar, mas tinha o dom da palavra: ele sabia falar para as massas, para os operários, para os colonos, e acredito que por isso deram a ele o nome de capitão, que era o homem que comandava. Foi um trabalhador extraordinário, um homem conhecedor da lavoura e, de sorte, um cantador de improviso, violeiro, sanfoneiro, um homem inspirado, repentista, não é? Eu também, com meus oito anos de idade, já dialogava com ele, já versejava com ele no improviso. Todos os colonos sempre cantam a sua toada, minha mãe cantava também

(Ataulfo Alves, 1966, CD 47, f. 2, grifos nossos).

Não seria seu Severino também “capitão” da congada ou moçambique da região, posto crucial destas instituições da cultura e política negras de Minas e de todo o Brasil (Martins, 2003MARTINS, Leda. Performances da oralitura: corpo, lugar da memória. Letras, n. 26, p. 63-81, jun. 2003.)? Certo é que Ataulfo já era iniciado nessas habilidades do verbo, do som e do trabalho, tão valorizadas pelas comunidades negras do Rio, quando aí chegou, em meados dos anos 1920; não nos surpreende que tenha logo se enturmado nas Escolas musicais dessas comunidades e reconvertido suas habilidades para o métier de compositor profissional de música popular.

Em João da Baiana, é a mãe que assume o protagonismo de incentivadora e professora familiar para o exercício da palavra cantada e do dizer no corpo:

Desde garotinho [comecei a compor] porque eu já fazia samba de pé quebrado, de garoto né? Tinha aquela intuição, minha mãe gostava, né? Porque, todos eram baianos o carioca o único fui eu, e eu dei pro samba, minhas irmãs eram baianas e não sabiam sambar, e eu fazia caçoada delas. E minha mãe gostava porque eu dei pro candomblé, dei pra batucada, dei pra macumba, dei pra compor e minha mãe tinha orgulho comigo. Eu aí fazia uma letra, um passo, elas [as irmãs] ficavam uma onça!

(João da Baiana, 1966, CD 94, f. 7, grifos nossos).

Não está claro se a “letra” a que João se refere é um passo de dança ou um verso de samba, mas a ambiguidade vale mais neste caso: ambas as letras são possíveis porque ele as exercitava igualmente no samba e na macumba.

Embora permeie todo o conjunto de depoimentos, a valorização de saberes vernáculos relacionados à música, ao trabalho e à política comunitária, é sem dúvida mais perceptível entre aqueles que participaram por tempo duradouro de práticas afrodiaspóricas dotadas de referenciais técnicos, simbólicos e códigos de sociabilidade particulares: Escolas, festas, rodas ou cerimônias de Samba, de “batucada”, de “repente”, de jongo, de macumba e de candomblé.

Este também é o grupo de origem social mais humilde e que esteve mais exposto, em razão dessa condição econômica e de seu vínculo com tal universo cultural, à exclusão das instâncias oficiais de aprendizado, ao racismo religioso, à vigilância policial e a outras formas de violência racial. Entendemos que os vínculos sociais engendrados nestas práticas, conjugados à experiência dessa vulnerabilidade coletiva, potencializava o caráter político de suas epistêmes e valores comunitários.

Resistindo aos epistemicídios dos saberes não escolares

Mas a valorização dessas outras esferas de aprendizado e experiências formativas não implicava na desvalorização da educação formal legitimada pelo Estado. Aniceto Menezes mostra isso de forma contundente ao falar da reação de seu pai quando soube do primeiro emprego do filho:

Ganhava 30 mil réis por mês. Naquela época [meados dos anos 1920], era dinheiro! Quando cheguei em casa com meu primeiro salário, meu pai, ao invés de me abraçar, me elogiar, queria me meter o cacete. ‘Quando eu quiser que o senhor trabalhe, eu arranjo um emprego pro senhor! O senhor vai estudar!

(Aniceto Menezes, 1991, CD 811.2, f. 3, grifo nosso).

Para o pai de Aniceto, o estudo vinha antes do trabalho e ponto final. O filho podia discordar de seus métodos e da rigidez da separação dessas facetas da vida em etapas sucessivas, mas incorporou plenamente o valor do saber escolar em seu uso cotidiano da linguagem. Ele conta – e este é fato bem conhecido – que seu jeito rebuscado de falar e versar, combinado com um gênio forte, despertava admirações e inimizades entre seus colegas de partido-alto e samba na Serrinha (Zona Norte do Rio), na Escola Império Serrano e na região do porto, onde foi estivador. A história de uma greve que liderou no tempo do Governo Dutra (1946-1951) ilustra essas tensões e seu profundo apreço pela cultura letrada. Ele começa contando como se filiou, em 1941, ao sindicado Resistência:

Eu morava na casa do [Sebastião] Molequinho. Cesário Nascimento, portelense que morava na Serrinha, um dia chegou com uma porção de propostas do Sindicato dos Arrumadores do Rio de Janeiro, [...] antiga Resistência. E distribuiu com o Fuleiro [primo de Dona Yvonne], Molequinho, Coronel e outros tantos. Eu pedi um a ele, ele disse que não tinha mais, porque ele não gostava de mim. Porque lá na Serrinha havia uma parte que me chamava de pernóstico. Que eu não dizia ‘nós todo come tudo’, ‘vancê, vosmecê’. Eles queriam que eu falasse enrolado como eles. [...] Depois disso eu fui falar com seu Joaquim. Ele gostava muito de mim, sabe? Era um líder estivador. Aí, o seu Joaquim chegou em casa, eu pedi uma proposta a ele, ele deu. Foi assim que eu me fiz associado da Resistência, em 41. De onde eu me aposentei com 72 anos.

[A greve foi] no governo de Leonardo Cruz. Nós ganhávamos $200 pra carregar um saco de 60 quilos na cabeça. Eu fui trabalhar à noite no Armazém 12. E comecei a explicar ao pessoal que não estava direito aquilo. Era muito pouco dinheiro para tanto trabalho. 60 quilos na cuca não é mole! Eu fui pro Armazém 11 fazer essa política [...]. Cheguei no 11, eu digo: ‘sabe o que eu vim fazer aqui? Eu vim avisar vocês que amanhã o 12 vai parar! E eles estão com medo de vocês não aderirem’. ‘Não, se eles pararem nós pararemos aqui também!’. Quando o dia amanheceu, o serviço parou’

(Aniceto Menezes, CD 811.2, f. 11, grifos nossos).

Segundo Aniceto, o Ministério do Trabalho convocou uma assembleia no mesmo dia. Zé Mariano, “um grande líder”, foi chamado a discursar primeiro; depois foi a vez de Aniceto. Ele comenta a reação de um de seus colegas, o Mineirinho da Matriz, à sua fala: “‘Ah, o Aniceto é letrado!’. Ah, meu deus do céu, quem me dera!Aniceto é letrado, eu conheço ele, ele canta samba com a gente no morro da Matriz!’” (Aniceto Menezes, CD 811.2, f. 11, grifo nosso).

Pernóstico ou letrado, Aniceto era uma referência de seus companheiros de luta e de música; e estes, como vemos nestas memórias, eram motivo de inspiração para que ele seguisse em busca de seu sonhado letramento, com as ferramentas de que dispunha. Aniceto incorporou a escrita na prática eminentemente oral do partido-alto; ele conta com orgulho que tinha um caderno com mais de 700 partidos escritos. No campo da instrução escolar, só não foi para além do ensino básico porque a necessidade de sobrevivência e outros obstáculos, dos quais temos falado, não permitiram.

Donna Yvonne Lara, dez anos mais jovem, também cumpria um papel comunitário semelhante. Durante seu depoimento, um integrante da Império Serrado lhe fez uma reverência preciosa:

Dona Yvonne, quando aquele pessoal [do Império Serrano] tinha dificuldade de escrever, corria na casa dela, então era ela que escrevia no papel a letra [da música] pro cara. E muitas vezes o samba tava meio duro, então ela fazia de novo ali, dava pro cara, e num pediu ao cara a parceria. [...] Hoje todo mundo tem um gravador, hoje todo mundo escreve à máquina, hoje todo mundo sabe escrever: e naquele tempo o sujeito sabia falar, cantar, mas muitas vezes não sabia escrever, e ela que fazia esse trabalho para o pessoal

(Dona Yvonne Lara, 1978, CD 523.3, f. 7, grifo nosso).

A fantástica narrativa de Cartola (Angenor Oliveira) sobre a “ala dos compositores” de Mangueira vai no mesmo sentido. Ela evidencia o caráter educativo, em sentido amplo, das Escolas de Samba nos anos 1920 e 1930:

Eu sou fundador da ala dos compositores, eu fiz uma escolinha para compositores. Bom, ‘escola’ veio do Estácio, porque – conta o Ismael – eles fundaram o Estácio perto da escola, no Estácio. Mas eu fiz uma escola para compositores, criei ala dos compositores, porque, em Mangueira, só quem fazia samba naquela época era eu e o Carlos Cachaça. Aquela meninada queria fazer samba, mas não sabia como fazia. Eu digo: vamos fazer o seguinte, vamos fazer uma ala dos compositores. Toda essa meninada que quer fazer samba, vem com o samba escangalhado, a gente conserta e diz: ‘é seu!’. Se faz assim é assim, assim, assim, ele vai acabar aprendendo, né? Então começamo. Chegava com um samba:

– Ah, eu tenho um samba pra cantar.

– Olha só isso aqui: olha, isso aqui tá errado, isso aqui tá errado, isso não é aqui, isso é assim, assim. Então pronto, conserta isso. É seu o samba, pode cantar!

Ele chegava todo empolgado na frente, cantava:

– O samba é meu!

E tomava gosto. Quando fazia o outro, tava errado, ele ia perguntar:

– Tá errado?

– Tá errado, aqui tá errado.

Aprendendo, aprendendo e assim surgiu diversos. Começando pelo Babaú [(1914-1993), compositor negro], esse Babaú do ‘Ai, ai, meu deus’. O primeiro samba que fez não podia nem cantar porque ninguém entendia nada. E eu botei ele lá:

– Vem cá, vai aprender a fazer samba.

Ensinamo muita gente: inclusive o Zé Com Fome [José Ramos, 1908-1954, compositor negro] inclusive Geraldo Pereira [1918-1955, compositor negro]

(Mangueira, 1968, CD 209.3, f.1; Cartola, 1967, CD 139, 2 f.1, grifos nossos)11 11 Nesta narrativa, combinei passagens de Cartola presentes em: Mangueira, 1968, CD 209.3, f.1; Cartola, 1967 CD 139, 2 f.1. .

Embora Cartola não detalhe, deviam ser muitas as disciplinas – ainda que não formalizadas – dessa “escolinha de compositores”: a correção da palavra escrita (evidentemente valorizada na passagem acima), a relação entre prosódia e a estrutura rítmica do samba, os caminhos melódico-harmônicos adequados, as estratégias para profissionalizar-se compositor e muito mais. Pois desses saberes estão repletos os depoimentos e as obras musicais de Angenor e seus companheiros. Se tal escola de compor foi ou não institucionalizada em alguma medida importa menos que o recurso narrativo a ela. Este evidencia que a experiência e ideia de Mangueira como um lugar onde se ensinava e se aprendia os diversos aspectos do fazer musical era muito importante para os membros dessa comunidade.

Testemunhos como esses mostram que na vida desses musicistas, os universos vernáculos e oficiais do saber não eram mutuamente excludentes, mas complementares e autônomos. Nas esferas do trabalho e da música comunitária, adquiriam-se conhecimentos que a escola não ensinava; valores indispensáveis como a importância do trabalho e da luta política por uma vida digna, habilidades artísticas, vínculos afetivos e de solidariedade. Música e trabalho eram também lugares de exercício e democratização dos saberes escolares, como a escrita, mediados por lideranças como Dona Yvonne, Aniceto, Cartola, entre outras. Esses processos acabavam por alargar o escopo desses saberes e abriam o caminho para reivindicações do que hoje temos chamado de “justiça epistêmica e cognitiva” (Santos, 2019SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.): políticas do saber voltadas para a valorização e incorporação das práticas e sistemas de conhecimento não ocidentais. Dona Yvonne, ao narrar seus anos de formação, nos fala sobre essa complexa relação:

Eu acho que tudo isso que eu faço é devido ao ambiente em que eu fui criada, viu? Que depois tem o seguinte: apesar de ir para um colégio interno, mas pra mim continuou [o aprendizado comunitário]. [...] nesse colégio eu conheci Dona Lucília Guimarães Villa-Lobos e conheci a mãe de Lígia dos Santos, era a esposa do falecido Donga, chamava-se Zaíra de Oliveira. [...] Me puseram no Orfeon Artístico e queriam até educar minha voz. Graças a deus não houve possibilidade, porque senão, como é que eu ia cantar samba?! [...]

Isso foi uma das coisas que minha mãe, antes de morrer, fez de bom pra mim. Que ela me botou num colégio interno, eu estudei, aprendia a ser gente, porque se eu fosse criada aqui do lado de fora provavelmente eu só ficaria só entregue ao samba e não teria feito o meu alicerce. Que a vida de artista é uma vida pesada, né? A gente tem que correr, como dizem por aí, atrás da bola. Eu agora, depois de velha, com 56 anos, eu me dediquei [à vida de artista]

(Dona Yvonne Lara, 1978, CD 523.1, f. 1, grifo nosso).

Na serenidade de Dona Yvonne, vemos o enorme valor da educação escolar e a necessidade de resistir às suas técnicas de controle e domesticação de corpos, vozes e conhecimentos vernáculos. Entre as técnicas e instrumentos de controle estavam o canto orfeônico e a música erudita, promovidas pelo governo Vargas (1930-1945) e seu maestro oficial (Villa-Lobos). Mas o samba tampouco basta neste mundo competitivo e cheio de preconceitos – diz Yvonne. Ele é fundamental, mas a vida não se acaba aí.

Essa realidade social e esses fluxos culturais são fundamentais para que se dimensione o significado e o papel social das Escolas de Samba, e das casas de tios e tias de santos festeiros, como espaço de circulação de saberes. A esse respeito, vejamos a narrativa de um dos mais famosos professores desse meio, Ismael Silva:

Na minha família ninguém sabia nada [de ler e escrever]. [...]

Já na época de colégio, eu aí ficava todos os dias pedindo para minha mãe me levar para o colégio, né? ‘A senhora não me leva pro colégio?’. Ela sempre dizia assim, dava uma desculpa né – ‘ah, amanhã eu levo’ – porque me tranquilizava, naquele dia. Mas como criança não esquece daquilo que lhe interessa, então no dia seguinte eu pedia a mesma coisa. Até que um dia eu entrei pelo colégio adentro. O colégio era aberto, esse colégio, era aberto o dia inteiro. Por sorte minha, ficava na rua em que morava. O nome do colégio não me lembro, eu sei que estava escrito assim na placa: escola primária. Quando cheguei na primeira sala, parei, aí a professora veio me atender, perguntar o que eu queria. Hoje eu imagino que ela poderia pensar tudo, não é?, eu magrinho, perninhas finas, calça curta e tal, com aspecto assim de necessitado, então poderia pensar inclusive que fosse pedir esmola ou coisa parecida. Quando ela perguntou então a resposta foi a seguinte: eu quero estudar, quero aprender a ler, tô com fome do saber. Falei com ela que a minha fome era de saber

(Ismael Silva, 1969, CD 5.1, f. 1; 5.2, f. 1, grifo nosso).

Oriundo de uma família de pouquíssimos recursos, provavelmente neto de escravizados, para Ismael Silva a “fome de saber” guarda uma densidade de dores, reflexões e sonhos pouco compreensíveis aos homens brancos de classe média alta que o entrevistaram no MIS. Dores, sonhos e reflexões que compõem também o dilema enfrentado por sua mãe. Seu aparente desinteresse por matricular o filho na escola, tal como retratado na narrativa, guarda sentidos mais profundos. Dada a consciência de Ismael a respeito do valor da educação, ela como sua primeira educadora devia também saber da importância dos estudos escolares, mas conhecia igualmente os riscos que isso envolvia. Sabia da violência policial que rondava sua vizinhança pobre e sempre vigiada – a região do Morro de São Carlos, no Estácio –, do autoritarismo policial e, provavelmente, dos constrangimentos vividos por outras crianças de cor na escola. Para essa mãe, não matricular o filho deveria ser antes de tudo uma maneira de protegê-lo.

Contudo, a fome de saber de Ismael era maior que os temores de sua mãe e que os obstáculos objetivos para frequentar a escola. Sua narrativa mostra que “Escola” não tinha um significado qualquer em sua história, e não é à toa que ele e seus companheiros escolheram essa palavra, nos anos 1920, para denominar as instituições que hoje são símbolos incontestes de uma cultura dita nacional: as Escolas de Samba. O circuito de cultura negra popular também é uma escola, como nos informam seus testemunhos, talvez mais importante no contexto em que viviam que as escolas oficiais. Nelas, ensinavam-se crianças, jovens e adultos sem discriminação de raça ou classe, e os saberes eurocêntricos não tinham precedência sobre o corpo, o gesto, o verso e as experiências vividas.

Considerações finais

Se hoje podemos vislumbrar, da perspectiva de uma educação antirracista e representativa da diversidade cultural constitutiva do Brasil, a valorização dos saberes sustentados na experiência e na oralidade pelas coletividades negras, devemos nos lembrar que isto é fruto de lutas centenárias. Lutas das quais participaram musicistas como Dona Yvonne Lara e Carmen Costa, professores de samba como Bide e Heitor dos Prazeres, maestros e chorões como Pixinguinha e jazz-men como Booker Pittman.

Esses musicistas ajudaram a legitimar criações culturais afrodiaspóricas que foram historicamente estigmatizadas em razão de um imaginário cultural racista e eurocêntrico, difundido pelas elites políticas e econômicas do país. Cada um à sua maneira e no interior de suas comunidades, lutou pelo direito à educação formal e pelo acesso aos lugares do saber autorizado pelo Estado; e ao mesmo tempo, sem esquecer suas heranças culturais diaspóricas, tentaram consumir e desafiar os saberes e as instituições escolares. Independentemente de suas posições e condições sociais não estiveram alheios a estas instituições, e suas movimentações para ocupar tais espaços são embriões das lutas e conquistas contemporâneas por educação (em todos os níveis) e por justiça epistêmica e cognitiva.

Quanto ao período em que nos concentramos neste artigo, é importante destacar alguns pontos. Embora singulares, em sua forma e conteúdo, as narrativas analisadas comunicam experiências coletivas. As recorrências e pensamentos similares que vimos não são coincidências, mas resultam do fato de serem construídas em meio aos vínculos diretos e indiretos dos narradores entre si. Eram todos descendentes de africanos que sofreram, diferencialmente, com a violência e as desigualdades de raça e classe; viveram no mesmo período e circularam pela mesma metrópole, o Rio de Janeiro; a maior parte deles se encontrou com frequência pelas veredas da música vernácula ou profissional da cidade na primeira metade do século XX; aqueles que participavam de terreiros de macumba, candomblé e de Escolas de Samba, ligavam-se também por laços comunitários, familiares, e pelo universo cultural dessas práticas. Assim, ao ouvi-los em conjunto sobre suas experiências formativas não estamos produzindo diálogos improváveis. Ao contrário, estamos reconstituindo debates que eles travaram entre si ou com outros parceiros nos intervalos das rodas, das gravações, nos botequins e ou em suas próprias casas, já que as visitas eram constantes.

Falamos, portanto, de experiências formativas efetivamente vividas e interpretadas pelas comunidades negras no Rio de Janeiro desse período, e aí reside o cerne da contribuição que este artigo procurou dar à historiografia. As narrativas são importantes documentos sobre a história da educação e sobre os bastidores da história cultural da cidade. Elas mostram, entre outras coisas, que a mobilização pela educação formal foi uma constante entre os musicistas negros das classes populares do Rio, sobretudo, mas não somente, entre os que se profissionalizaram na área artística. Isso reforça o peso das barreiras e preconceitos de raça e classe dentro das escolas na constituição das desigualdades educacionais entre brancos e negros no pós-abolição carioca, pois não foi fundamentalmente por falta de interesse ou esforço que estes últimos estiveram relativamente menos presentes nessas instituições. Eles foram expulsos, “convidados a se retirar”, ou decidiram se afastar como forma de autodefesa. A difícil condição socioeconômica, associada à entrada precoce no mundo do trabalho, em parte como compensação da dificuldade de acesso aos estudos, foram outros fatores a estimular sua evasão.

Vimos também que o esforço para suprir a ausência do ensino escolar no processo formativo e na construção de projetos de vida foi outra constante entre nossos interlocutores. Tal esforço passava fundamentalmente pela valorização de culturas e instâncias de aprendizado próprios, mais democráticos, no seio da família e das esferas mais próximas de sociabilidade, assim como pela aposta no trabalho como forma de fazer-se sujeito e de ajudar a família. Este é outro detalhe valioso: famílias e comunidades foram essenciais para o enfrentamento dessas dificuldades e para a construção desses caminhos alternativos.

Notas

  • 1
    A noção de protagonismo negro coloca no centro da investigação e narrativa históricas as ações e pensamentos de sujeitos negros (sua agência), como forma de combater os silenciamento a que eles têm sido submetidos na escrita da história em sociedades estruturalmente racistas, como a brasileira (Domingues, 2019DOMINGUES, Petrônio. Protagonismo negro em São Paulo: história e historiografia. São Paulo: Sesc São Paulo, 2019. (e-PUB).).
  • 2
    Por trajetória formativa entendemos o percurso social/educativo através do qual os/as entrevistados adquiriram os valores, saberes e experiências que constituem: sua autoimagem; seus ideais de pessoa (de cidadã/o, filha/o, pai/mãe, amigo/a etc.) e de artista; seus projetos e realizações pessoais e coletivas (entre os quais, suas Escolas de Samba).
  • 3
    A noção de experiência – tão fundamental ao conhecimento histórico quanto aberta ao escrutínio teórico, como pondera Scott (1999)SCOTT, Joan Experiência; SILVA, Alcione Leite da; SOUZA, Mara Coelho de Lago; e RAMOS, Tânia Regina Oliveira (Org.). Falas de gênero. Florianópolis: Mulheres, 1999. 343 p. Falas de Gênero Organização de Alcione Leite da Silva, Mara Coelho de Souza Lago e Tânia Regina Oliveira Ramos Editora Mulheres, Santa Catarina, 1999. P. 21-55. – tem neste texto o significado amplo de passado vivido, nas suas dimensões práticas, emocionais, simbólicas e reflexivas. Nesse sentido, são experiências tanto as lições de música, como a dor provocada pela exclusão racial e a reflexão sobre a sociedade geradas por essa dor. As narrativas orais que utilizamos, enquanto atos reflexivos, são também parte da experiência narrada, mas a substância e origem das experiências são constitutivamente maiores que um linguagem: passam sempre pela interação real do sujeito com o mundo em que vive(u).
  • 4
    O presente artigo consolida parte da pesquisa de doutoramento de um dos autores, Lurian Lima, na área de História, pela Universidade Federal Fluminense (2018-2022). Pesquisa que vem sendo realizada com auxílio do CNPq e da Comissão Fulbright Brasil, que já resultou em um artigo recentemente publicado (Lima, 2001LIMA, Lurian José Reis da Silva. O mistério d’O mistério do samba: o paradigma da mediação e a produção racializada de silêncios na memória hegemônica da “Música Popular Brasileira” (1960-2017). Opus, v. 27 n. 3, p. 1-40, set/dez. 2021.) e que se destina a descrever e analisar o cruzamento de trajetórias sociais, memórias, ideias e produções de dezenas de musicistas negros no pós-abolição carioca como um seguimento da comunidade da Diáspora africana.
  • 5
    Em que pesem as discussões teórico-metodológicos sobre esses termos, “narrativa” e “testemunho” são utilizados neste artigo com objetivos práticos, como termos descritivos do ato e da forma de contar uma história, um fato ou uma experiência vivida (ou entendida como vivida) por si ou por outrem.
  • 6
    Por causa das normas internas do MIS, a cópia integral destas fontes é economicamente inviável, forçando sua consulta in loco.
  • 7
    Em um caso apenas, o depoimento de Dona Zica (1993), a gravação foi feita em DVD, motivo pelo qual a forma da citação será ligeiramente diferente: (NOME, ano: DVD x, minutagem). Fonte dos Depoimentos: MUSEU da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MIS).
  • 8
    Usamos a categoria “vernáculo” para nos referirmos a saberes comunitários ou tradicionais, evitando as ambiguidades do termo “popular”, que é geralmente estendido aos produtos do mercado cultural.
  • 9
    Acionamos neste artigo a perspectiva freiriana de letramento, cujo significado abrangente vai além do domínio dos códigos e da técnica da escrita. Para Freire (2006), a leitura do mundo vem antes da leitura da palavra, ao tempo que a palavra só se investe de sentido quando expressa o mundo realmente vivido. As pessoas tanto mais se constituem como sujeitos epistêmicos e políticos, capazes de ler criticamente suas realidades para transformá-las, quando a elas é garantida a possibilidade de associar a leitura do mundo e a leitura da palavra.
  • 10
    Alfredo Vianna, pai de Pixinguinha, aparentemente era fiel recebedor da prefeitura do Rio de Janeiro no início dos anos 1900. Pixinguinha afirma que, em sua infância, o pai era funcionário dos Telégrafos (Lima, 2021LIMA, Lurian José Reis da Silva. O mistério d’O mistério do samba: o paradigma da mediação e a produção racializada de silêncios na memória hegemônica da “Música Popular Brasileira” (1960-2017). Opus, v. 27 n. 3, p. 1-40, set/dez. 2021., p. 21).
  • 11
    Nesta narrativa, combinei passagens de Cartola presentes em: Mangueira, 1968, CD 209.3, f.1; Cartola, 1967 CD 139, 2 f.1.

Referências

  • CASTRO, Felipe et al. Kelé, a Voz da Cor: biografia de Clementina de Jesus. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.
  • DÁVILA, Jerry. Diploma of Whiteness: Race and Social Policy in Brazil, 1917-1945. Durham, N. C; London: Duke University Press, 2003.
  • DOMINGUES, Petrônio. Protagonismo negro em São Paulo: história e historiografia. São Paulo: Sesc São Paulo, 2019. (e-PUB).
  • FISCHER, Brodwyn; GRINBERG, Keila; MATTOS, Hebe. Direito silêncio e racialização das desigualdades na história Afro-brasileira. In: FUENTE, Alejandro de la; ANDREWS, George Reid (Org.). Estudos afro-latino americanos: uma introdução. Buenos Aires: Clasco, 2018. P. 163-215.
  • GONZÁLEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro Rio de Janeiro: Editora Marco Zero, 1982. (Coleção 2 Pontos; v. 3.).
  • HERTZMAN, Marc A. Making samba: a new history of race and music in Brazil. Durham and London: Duke University Press, 2013.
  • KOMATSU, Bruno et al. Novas Medidas de Educação e de Desigualdade Educacional para a Primeira Metade do Século XX no Brasil. Estud. Econ, São Paulo, v. 49, n. 4, p. 687-722, out.-dez. 2019. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0101-41614943bnpl.
    » https://doi.org/10.1590/0101-41614943bnpl
  • LIMA, Lurian José Reis da Silva. O mistério d’O mistério do samba: o paradigma da mediação e a produção racializada de silêncios na memória hegemônica da “Música Popular Brasileira” (1960-2017). Opus, v. 27 n. 3, p. 1-40, set/dez. 2021.
  • LOPES, Nei. Zé Kéti: o samba sem senhor. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000.
  • LUCINDO, Willian Robson Soares. A vontade também consola: a formação da esfera pública letrada de Afrodescendente e o debate sobre a educação. In: FONSECA, Marcus Vinícius; BARROS, Surya Aaronovich Pombo de (Org.). A história da educação dos negros no Brasil Niterói: EdUFF, 2016. P. 305-328.
  • MARTINS, Leda. Performances da oralitura: corpo, lugar da memória. Letras, n. 26, p. 63-81, jun. 2003.
  • McCANN, Bryan. Hello, Hello Brazil: popular music in the making of modern Brazil. Durham & London: Duke University Press, 2004. (versão Kindle).
  • O PAIZ. Rio de Janeiro, p. 2, 30 ago. 1911.
  • PORTELLI, Alessandro. História oral como arte da escuta São Paulo: Letra e Voz, 2016.
  • RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução crítica à sociologia brasileira (1955). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995.
  • RIOS, Ana Lugão; MATTOS, Hebe. Memórias do cativeiro Família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
  • SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
  • SCHUELER, Alessandra Frota Martinez de; MAGALDI, Ana Maria Bandeira de Mello. Educação escolar na Primeira República: memória, história e perspectivas de pesquisa. Tempo, v. 13, n. 26, p. 32-55, 2009.
  • SCOTT, Joan Experiência; SILVA, Alcione Leite da; SOUZA, Mara Coelho de Lago; e RAMOS, Tânia Regina Oliveira (Org.). Falas de gênero Florianópolis: Mulheres, 1999. 343 p. Falas de Gênero Organização de Alcione Leite da Silva, Mara Coelho de Souza Lago e Tânia Regina Oliveira Ramos Editora Mulheres, Santa Catarina, 1999. P. 21-55.
  • SILVA, Geraldo da; ARAÚJO, Márcia. Da interdição escolar às ações educacionais de sucesso: escolas dos movimentos negros e escolas profissionais, técnicas e tecnológicas. In: ROMÃO, Jeruse (Org.). História da educação do negro e outras histórias Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. 2005. p. 65-75.
  • SILVA, Marília T Barbosa da; FILHO, Arthur L. de O. Cartola: tempos idos. Rio de Janeiro: FUNARTE/IMN/IMP, 1983.
  • ZAÍRA, Márcia (Filha de Lygia Santos e Donga, 62 anos). Entrevista por telefone aos autores no dia 08 de julho de 2020.

Editado por

Editora responsável: Lodenir Karnopp

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Jul 2021
  • Aceito
    30 Dez 2021
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Faculdade de Educação Avenida Paulo Gama, s/n, Faculdade de Educação - Prédio 12201 - Sala 914, 90046-900 Porto Alegre/RS – Brasil, Tel.: (55 51) 3308-3268, Fax: (55 51) 3308-3985 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: educreal@ufrgs.br