Open-access Entre o Trabalho e a Escola: cursos de vida de jovens pobres

RESUMO

O artigo apresenta dados de pesquisa de campo realizada com jovens estudantes do ensino médio na modalidade EJA de 14 escolas da rede estadual na cidade do Rio de Janeiro. Os dados analisados são resultantes de três metodologias de investigação: survey, entrevistas narrativas e dispositivos fotográficos para a narração de si. Os jovens adultos da pesquisa revelam que o retorno à escola ocorre como redescoberta do sentido da escolarização em seus projetos de melhoria das condições de vida. Trabalho e escola estabelecem entre si influências recíprocas e, para esses jovens, não são tempos sociais que se excluem, mas que se sobrepõem para constituir a experiência própria de uma juventude popular trabalhadora.

Palavras-chave Jovens; Trabalho; Escola; Cursos de Vida; EJA

ABSTRACT

The article describes and presents data from field research carried out with young high school students in the Youth and Adult Education modality from 14 state schools in the city of Rio de Janeiro. The analyzed data are the result of three research methodologies: survey, narrative interviews and photographic devices for self-narrating. The youngsters in the research reveal that returning to school occurs as they rediscover the meaning of schooling in their projects to improve living conditions. Work and school establish mutual influences and, for these young people, they are not self-excluding situations, they overlap to constitute the experience of a working popular young person.

Keywords Youth; Work; School; Life Courses; Youth and Adult Education

Introdução

Investigar cursos de vida de jovens significa enfrentar o desafio de compreender as idades não apenas como fases biológicas, mas também como representações e campos de disputas simbólicas atravessadas pelas especificidades de vida em diferentes lugares sociais. Passa por compreender processos de individualização social, mas também os vetores de unificação dos padrões socializadores de um mundo que se tornou simultaneamente globalizado e excludente; que ampliou campos de possibilidades de escolhas frente às determinações da tradição, mas que não oferece suportes e condições para a realização dessas mesmas escolhas para todos.

A base empírica de nossas reflexões está em dados quantitativos e qualitativos da pesquisa Jovens Fora de Série realizada com jovens estudantes de escolas de ensino médio na cidade do Rio de Janeiro.

Reflexões teóricas sobre juventude, processos de individuação no contexto das mudanças societárias atuais e curso de vida introduzem este capítulo. Na sequência, apresentamos e analisamos os dados da pesquisa à luz dessas referências. A partir da coleta, tabulação e análise de survey foi possível obter um quadro síntese de trajetórias de escolarização, das posições sociais ocupadas, das experiências laborais e familiares, entre outras, que dão objetividade aos cursos de vida. Narrativas de três jovens são apresentadas e interpretadas numa busca por evidenciar dimensões subjetivas dos cursos de vida.

Desafio Biográfico1

A subjetivação de jovens pobres ocorre em situações de escassez de suportes materiais e simbólicos. Sobre corpos jovens e suas coletividades recaem os riscos de crises sociais sistêmicas. Não é incomum que esses mesmos jovens sejam responsabilizados por suas escolhas realizadas em quadros que combinam desigualdades estruturais, crises econômicas e restrições sociais e culturais herdadas pelo ciclo de pobreza familiar. Tal cenário faz com que as promessas de bem estar social sejam diluídas frente às condições objetivas de suas vidas.

As singularidades observadas nos cursos de vida se inscrevem em regularidades sociais que não se apresentam por antecipação, mas precisam ser inventariadas em seus contextos específicos de realização. Em que pese os diferentes arranjos possíveis e não mais lineares de transição para a vida adulta, são muitas também as estratégias pessoais de autonomização no contexto de sociedades com altos graus de individualização da vida social, maior margem de autonomia de produção de si – individuação – e contextos graves de insegurança e incerteza frente ao futuro. Os jovens, diante desse modelo biográfico (Beck, 2010) de uma sociedade de risco, necessitam ser sujeitos ativos na construção de biografias socialmente inscritas em condições objetivas e produtoras de constrangimentos pessoais para a realização de suas escolhas.

Torna-se difícil mensurar os pesos relativos das escolhas biográficas frente às reais, e na maioria das vezes escassas, “estruturas de oportunidades” (Filgueira, 2001) providas pelo Estado, o mercado ou a sociedade. Da mesma forma não há um padrão para que se possa reconhecer de antemão a institucionalização dos cursos de vida e suas regularidades nos processos de individuação social. Esse é um esforço contínuo que deve ser empreendido pelos diferentes campos de investigação.

Singularização dos Cursos de Vida

Jovens prolongam a juventude por não encontrar os caminhos de trânsito social e econômico para a vida adulta. Permanecem na casa de seus pais por opção, prolongam o período de formação escolar ou não se emancipam e experimentam a dependência econômica familiar provocada pela retração dos níveis de emprego no quadro do desemprego estrutural que se globalizou por todos os países.

Os suportes para que os jovens possam realizar suas transições tornaram-se mais tênues, com fortes disjunções entre as redes institucionais. Há concordância entre os autores dos estudos sobre juventude (Pais, 2001; Sposito, 2005; Reguillo, 2013; Leccardi, 2005; du Bois-Reymond, 2008; Bayón; Saraví, 2019) de que o curso de vida se tornou instável e as trajetórias pessoais menos previsíveis. O desafio maior de investigação estaria em determinar as implicações das mudanças que ocorrem no curso dessa “modernidade tardia”.

Du Bois-Reymond (2008), em estudo comparativo sobre parentalidade, agência e mudança social entre jovens europeus, ressalta a convergência de análises sociológicas que reconhecem a transformação do ciclo de vida padrão dos jovens para o que denominou como “biografias individualizadas”. A atual geração jovem é confrontada com as mudanças sociais e sofre com a falta de modelos para lidar com essas mudanças. A pesquisadora enfatiza que jovens pertencentes a minorias étnicas sentem mais fortemente os mecanismos de seleção social em sistemas educacionais e mercados de trabalho segmentados. Esses jovens passam a depender de suas famílias e parentes, são levados a exercer trabalhos mal remunerados, inseguros e irregulares na esperança de um futuro melhor. O capital social expresso em redes de relacionamentos que oferecem suportes é crucial para isso: os jovens que têm acesso a esse recurso são os que encontram melhores oportunidades e se sentem mais responsáveis por suas vidas.

Por sua vez, Bayón e Saraví (2019), analisando o contexto mexicano, destacam a experiência escolar como experiência de classe marcada pelo contexto de institucionalização da pobreza e da vulnerabilidade que se expandiu como condição de vida de amplos setores da população. Os autores destacam que no discurso neoliberal hegemônico a condição de classe se reduz a uma condição de caráter e de esforço, sem relação com desigualdades estruturais ou com a distribuição de recursos na sociedade. Ou seja, a desigualdade emergiria como resultado de escolhas e atributos pessoais e a iniquidade na distribuição de recursos materiais e culturais se explicaria como resultado inevitável, quase natural, das “deficiências” próprias de certos setores, notadamente os pobres e desfavorecidos. Esse debate se articula com aquilo que Martuccelli (2010) chamou de processo estrutural de individuação nos marcos de uma sociedade singularista em que os desafios de fabricar-se como indivíduo são históricos, socialmente produzidos, culturalmente representados e desigualmente distribuídos.

Os jovens experimentam situações que os fazem não se sentir atores na tomada e gestão de suas vidas, notadamente naquilo que diz respeito ao acesso do mercado de trabalho e à livre escolha de ocupação e horário de trabalho. Muitos jovens não podem levar uma vida independente com renda suficiente para pagar por moradia.

Juventude, Escolarização e Trabalho

Desde a crise mundial dos anos 1970 que marcou a desestruturação do mundo do trabalho, ou aquilo que Ulrich Beck (2010) denominou como despadronização do trabalho assalariado, os mercados deram respostas interessadas frente às suas necessidades de manutenção da lógica de maximização dos lucros em benefícios privados na relação entre capital e trabalho (Brenner; Carrano, 2019). O estado e as múltiplas instituições sociais, contudo, não geraram os suportes suficientes para apoiar os trânsitos dos jovens dos setores empobrecidos da sociedade rumo à vida adulta. Em sociedades em que o trabalho se tornou flexível, mas também precário e desprotegido, em contextos de vida e trabalho em que a noção de progresso e carreira desaparecem e garantias sociais não mais se impõem como um imperativo de conquistas de classes e organizações de trabalhadores, o campo da inserção laboral torna-se cada vez mais incerto e individualizado. Os intensos processos de terceirização da força de trabalho, da diminuição da relevância dos sindicatos e da predominância nos mercados das empresas de intermediação da força de trabalho dão o tom da fragmentação do campo laboral.

É inegável o lugar do trabalho na constituição da vida social e das individualidades. Contudo, é evidente que o mesmo trabalho já não possui o papel integrador que assumiu em outros momentos da história das sociedades, notadamente as urbanas. A identidade do trabalho se articula com outras dimensões societárias, sejam elas de gênero, raça, geração ou território e cultura. Algumas características que emergem dos estudos sobre a relação entre os jovens e o trabalho assinalam que essas outras referências se manifestam no quadro da fragilização do lugar do trabalho e dos diplomas profissionais na constituição do ser trabalhador. E nesse quadro é possível apontar como elementos dessa indeterminação identitária o peso da informalidade, da desproteção no campo dos direitos, da indeterminação das trajetórias não mais previsíveis tal como denota o sentido de “carreira”, a pluriatividade e a heterogeneidade de atividades, quer seja por alternância ou concomitância em jornadas diárias, semanais ou mensais. Soma-se a isso a forte atração dos espaços-tempo do consumo e dos sentidos culturais do agir individual e coletivo nos tempos livres na produção das subjetividades juvenis.

Os jovens das classes populares empreendem uma dura e desprotegida luta que combina trabalho e permanência na escola. Contudo, é preciso dizer que nesse quadro de crescentes incertezas e de diminuição das margens de previsibilidade de futuro, jovens, ainda que não renunciem à escola, desconfiam da força dos diplomas e da validade dos saberes escolares formais na busca pelo trabalho. E, em especial, almejam trabalhos protegidos não apenas pela existência da carteira assinada, mas também que sejam um trabalho fixo que lhes permita remuneração e tempo livre suficientes para viver a vida.

Diante dos imperativos da superação de necessidades objetivas e de construção do próprio campo de autonomia, a fabricação de si ocorre em campo de fortes interdições econômicas e simbólicas que tendem a ser agravadas quando há ausência de suportes na forma de políticas públicas estruturantes e efetivas para a realização da travessia entre os mundos da família, da escola e do trabalho.

Os Jovens no Recente Ciclo Econômico Brasileiro

Entre os anos de 2006 e 2017, a economia brasileira sofreu significativas oscilações. Entre o segundo mandato do Governo Lula e o impeachment de Dilma Rousseff, o Brasil passou por alguns dos anos de maior prosperidade de sua história, mas também viveu uma crise sem precedentes (Carvalho, 2018). Houve aumento da renda de setores mais pobres e, ao mesmo tempo, decréscimo dos índices de desemprego com a manutenção de padrões elevados de desigualdade ao lado de índices crescentes de violência (IBGE, 2014).

Sob o ponto de vista dos segmentos juvenis, no caso brasileiro, não são desprezíveis as alterações sofridas nos sistemas educativos. Destaca-se, nesse quadro, o acesso ao ensino superior no Brasil, que passa a absorver por meio da expansão da rede pública e por ações afirmativas – cotas sociais e raciais – um contingente maior de jovens oriundos dos setores populares. O aumento da renda familiar permitiu que muitos jovens se afastassem do mercado de trabalho, sobretudo os adolescentes, dedicando-se somente aos estudos (Menezes, 2015). As possibilidades de consumo implicaram na aquisição de bens, dentre eles, produtos que garantem o acesso às Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) – principalmente aparelhos celulares –, que impactam diretamente nas expectativas, na disseminação de informações e formas de ação coletiva.

Após o ano de 2012, esse breve ciclo de prosperidade no Brasil entra em esgotamento. E isso se expressa nos baixos índices de crescimento e, a partir da segunda metade da década de 2010, no aumento do desemprego, que sempre atinge de modo mais agudo os segmentos juvenis. A diminuição da renda familiar se apresenta como fator de maior pressão no mercado de trabalho por parte desse grupo (Menezes, 2015)2.

Especificamente sobre o nível de ocupação de jovens3 – medido pela relação entre os que estavam trabalhando na semana de referência e o total de jovens –, observa-se que, entre 2005 e 2014, houve certa estabilidade entre aqueles de 25 a 29 anos e entre os de 18 a 24 anos, mas observa-se também uma queda acentuada no nível de ocupação dos jovens de 15 a 17 anos (de 31,0% para 23,1%), o que se coaduna com o movimento de aumento no percentual desses últimos, que se ocupavam somente dos estudos. “Entre 2014 e 2015, o percentual de jovens ocupados caiu em todos os grupos etários, tendo reduzido de 57,5% para 52,5% do total de jovens, uma queda mais intensa do que a do nível de ocupação da população em geral” (IBGE, 2016c)4.

Jovens Fora de Série: uma pesquisa sobre escolarização e cursos de vida

No ano de 2013, realizamos um survey em 14 escolas de ensino médio da rede pública estadual, localizadas em quatro zonas da capital do Rio de Janeiro5. Foram aplicados 593 questionários a jovens, numa amostra não probabilística, selecionada a partir de critérios pessoais a respeito dos elementos que são mais representativos na população (Costa Neto, 1977). Dessa forma, tem-se um estudo de caso cujos dados produzidos não permitem generalizações, mas proporcionam informações significativas para a identificação da dinâmica do perfil dos estudantes jovens denominados fora de série e que permitiriam ser cotejadas com outros contextos assim como com a fase qualitativa da pesquisa (entrevistas narrativas e dispositivos reflexivos fotográficos)6.

Dos 593 jovens respondentes, sete tinham entre 15 e 17 anos, 503 entre 18 e 24 anos e 83 entre 25 e 29 anos de idade, sendo que 61,6% destes estudavam na modalidade Educação de Jovens e Adultos7 e 36,9% no Programa Autonomia8, considerados pelo sistema escolar estadual como sujeitos em defasagem idade-série.

O instrumento do survey consistiu em um questionário estruturado, autoaplicável, com questões fechadas e algumas poucas abertas, totalizando 85 questões. Os critérios de ética, consagrados para a pesquisa científica, foram respeitados assim como foi assegurada a confidencialidade dos dados.

A partir das tabulações e análises do survey, foram elencados alguns perfis recorrentes de estudantes e, a partir deles, foram selecionados – entre os jovens que ao final do questionário responderam positivamente ao convite para participar de uma nova etapa da pesquisa com entrevistas – 20 jovens para a segunda etapa, qualitativa, da pesquisa. As entrevistas foram realizadas nas escolas em que os jovens estudavam, todas filmadas para a produção de um filme de pesquisa (Fora…, 2018).

Ainda uma terceira etapa da pesquisa foi desenvolvida, que consistiu em acompanhar três dos jovens entrevistados em seus cotidianos de vida: trabalho, vida familiar, lazer e tempo livre9. Cada um dos três jovens recebeu uma câmera fotográfica para que produzissem registros – em foto e vídeo – representativos de seus cursos de vida. A dinâmica estabelecida na pesquisa foi a de que os jovens retornassem para um novo encontro com os pesquisadores para conversação sobre as imagens produzidas no dispositivo reflexivo.

Apresentamos abaixo os dados mais gerais do perfil dos jovens entrevistados no survey e, em seguida, especificidades do curso de vida dos três jovens acompanhados nesse processo de pesquisa com produção do filme.

No perfil dos jovens que responderam ao questionário, foi observado equilíbrio entre os sexos, 51% são homens e 49% mulheres. As faixas etárias estão distribuídas entre 15 e 17 anos (1,2%); 18 a 24 anos (84,8%) e 25 a 29 anos (14%). A maioria se autodeclara parda (41%) e preta (20%), somando 61% de negros. Os que se autodeclaram brancos são 26%, os indígenas 3% e os amarelos 5%. A média nacional da população é de 53% de negros e 45,4% de brancos.

Nessa pesquisa, 16,8% dos jovens tinham renda familiar de até um salário mínimo. E 29% tinham renda familiar que variava entre 1 e 2 salários mínimos mensais.

Em análise por pertencimento racial, verificou-se diferenças de renda média entre brancos e negros, 25% dos jovens negros vivem com até um salário mínimo em comparação a 19,4% dos brancos que recebem a mesma quantia. Dos jovens negros, 68% viviam com até dois salários, enquanto 56% dos brancos viviam com a mesma renda. Os dados apontam que apesar dos jovens serem, em média, de baixa renda, os negros se encontram em situação econômica ainda pior quando comparados com os brancos.

Esse cenário de debilidade econômica, que se reproduz dentro da própria família e atinge mais fortemente os jovens negros, tende a incidir negativamente sobre a disponibilidade de dedicação à vida escolar.

A pesquisa obteve dados críticos em relação às diferenças de sexo, idade, trabalho e renda. Dentre os que nunca trabalharam, 13% são homens e 20% mulheres. As mulheres da pesquisa começaram a trabalhar mais tarde e são pior remuneradas em comparação com os mesmos trabalhos realizados por homens. Mais da metade das jovens que trabalham (61,5%) recebem até um salário mínimo, já os homens que recebem a mesma remuneração são 39%.

Se, por um lado, não é o trabalho a maior influência para a relação inadequada entre idade e série de escolarização, por outro, a pobreza pode ter forte impacto no desempenho escolar. Andrews e Vries (2012) estudaram 5.500 municípios brasileiros, onde a pobreza foi a variável explicativa da defasagem e a evasão com uma amplitude que esclarece 60% da variação. A tese de que a pobreza só pode ser superada por meio da educação escolar (Easterlin, 1981; Hanushek, 1995) é relativizada pelas evidências de que não é possível melhorar a educação sem a superação da pobreza (Andrews; Vries, 2012). É nesse contexto que se afirma que as desigualdades econômicas delimitam horizontes possíveis de ação dos jovens em suas relações com a escola e o mundo do trabalho (Sposito, 2005).

Dos entrevistados que declararam trabalhar e estudar em algum momento de suas trajetórias escolares, 30% abandonaram a escola no ensino fundamental.

No ensino médio, o impacto de ter trabalhado e estudado sobre a categoria abandono foi emblemático. Dos que já trabalharam e estudaram, 58,1% nunca abandonaram os estudos; para aqueles que nunca trabalharam, 74,6% nunca abandonaram. O percentual de quem trabalha e estuda é relativamente proporcional na repetência e em relação aos que não trabalham.

Entretanto, para o abandono há diferenças. Aqueles que trabalham e estudam enfrentam mais dificuldade de permanecer na escola. Indagados a respeito dos motivos do abandono, 34,7% apontou o trabalho como o principal responsável.

Responderam somente estudar 11,4% dos jovens. Entre os demais, 17,8% informaram estar procurando emprego; 43,1% que possuem emprego fixo; 10,4% que fazem biscate e 1,7% que se ocupavam de afazeres domésticos. Daqueles que trabalhavam, 47% eram remunerados e 11,1% declararam não receber pelo trabalho. Considerando a carga horária diária de trabalho, número majoritário (22,5%) trabalhou entre seis e 8 horas (40-44 horas semanais); seguidos de 15,8% que trabalhavam mais de 8 horas, 9,4% (de 4 a 6 horas), 4,4% (de 2 a 4 horas) e 2,2% (até duas horas).

As condições de trabalho das pessoas de 15 a 29 anos de idade, entre 2005 e 2015 no Brasil, caminharam na direção do que a Organização Internacional do Trabalho (OIT) considera trabalho decente, pelo menos em duas de suas dimensões. Com respeito ao rendimento mensal de todos os trabalhos, caíram os percentuais de jovens que não auferiam rendimento de 11,6% para 6,1%; de jovens que auferiam até ½ salário mínimo de 11,7% para 8,2% e dos que recebiam entre ½ a 1 salário mínimo de 24,8% para 22,7%. E subiu o percentual de jovens com mais de 1 a 2 salários mínimos, de 32,6% para 43,8%. Além disso, um contingente de 13,7% dos jovens deixou de trabalhar mais de 44 horas semanais – isto é, acima da jornada de trabalho normal prevista no inciso XIII do Art. 7º da Constituição Federal do Brasil de 1988 – e passou a trabalhar de 40 a 44 horas, totalizando 50,9% dos jovens ocupados que trabalhavam essa faixa de horas por semana em 2015 (IBGE, 2016b).

Trabalhavam sem carteira assinada 27,2% dos entrevistados e faziam biscates 10,5% deles. Essa frequência evidencia os problemas relacionados com o trabalho informal, o subemprego e as ocupações precárias aos quais os jovens com pouca qualificação estão submetidos.

O retorno à escolarização parece representar para os jovens da EJA um momento singular de retomada dos sentidos da escola que alimenta sonhos e projeções futuras. As experiências vividas em outros espaços e momentos possibilitam a esses jovens compreender a importância da escola, de seus códigos e linguagens, para melhor se situar na sociedade. Quando muitos desses jovens passam a vivenciar os entraves provocados pela ausência de credenciais escolares, seja no mercado de trabalho ou na vida social, a interrupção dos estudos é revista e o reingresso passa a ser alternativa. Assim, redescobre-se a escola como caminho indispensável para melhor colocação nos contextos sociais em que vivem.

Ao se correlacionar trabalho e estudo com expectativas de futuro, notam-se, curiosamente, influências favoráveis dessa simultaneidade naquilo que os jovens projetam. Percebeu-se que os que já conciliaram o tempo de escola com o mundo do trabalho tinham maiores expectativas de ampliar sua formação, seja obtendo em médio prazo um diploma universitário ou mesmo fazendo um curso profissionalizante. As expectativas desse grupo de conquistar empregos públicos e a estabilidade que esses asseguram também são maiores. Na parcela dos que nunca conciliaram trabalho e estudo, percebe-se um percentual maior daqueles que desejam tão somente buscar um emprego e dos que almejam ganhar dinheiro com o próprio negócio. Esse também é o grupo que reúne a maior parcela daqueles que nada planejaram para o futuro na ocasião da pesquisa.

Os Cursos de Vida de Adriano, Marina e Joel10

Apresentamos, aqui, três experiências narradas por jovens em entrevistas biográficas realizadas em 2014 e também nos acompanhamentos cotidianos realizados pela equipe de pesquisa, além das narrativas produzidas a partir dos dispositivos reflexivos fotográficos utilizados em uma etapa de pesquisa realizada em 2015. As respostas ao questionário aplicado contribuíram para a formulação de roteiros de entrevista personalizados. Adotamos a perspectiva da sociologia reflexiva (Melucci, 2005) como pressuposto teórico e metodológico e, com as entrevistas, buscávamos aprofundar tal perspectiva. A personalização dos roteiros de entrevistas permitiu aprofundar conhecimentos sobre temas já superficialmente dados a saber através das respostas aos questionários; também permitiram chegar mais rapidamente a questões de interesse em função do prévio conhecimento de trajetórias de vida (trabalho, escolarização, lazer, estrutura familiar, sociabilidade).

O suporte dos questionários não foi o único a ser acionado. Também o uso de dispositivos fotográficos (fotografar aquilo que poderia representar o vivido) permitiu aprofundar a perspectiva reflexiva; o diálogo entre jovens e pesquisador diante de suas produções colocou-os, no encontro com a equipe de pesquisa, diante de suas próprias trajetórias e da narração de suas histórias em contexto de escuta dialógica sobre acontecimentos relevantes em suas vidas.

Salvatore La Mendola (2009), sociólogo italiano, propõe formas de entrevistar que deem vida ao processo, parte da perspectiva de que não se deve tratar a entrevista como coleta de dados ou recolhimento de discursos. Compartilhamos desse princípio dialógico da entrevista e buscamos construir uma relação de qualidade entre entrevistador e entrevistado através das estratégias mencionadas acima. Essa perspectiva empreende um modo particular de relação de escuta e apreensão de representações e relações sociais que não abrem mão de conhecer os quadros societários de referência dos entrevistados. A entrevista dialógica não é prescrita para todos e da mesma forma. Ela se apresenta de maneira diferente de pessoa a pessoa porque promove a busca da consciência de si e a reflexão sobre a própria existência. Há, então, o que se poderia chamar de um jogo de centramento – preocupações de pesquisa – e abertura – espaço para a narratividade na aventura de escutar o outro (Brenner; Carrano, 2019).

A busca é por articular os cursos de vida com contextos sociais que estão, em boa medida, descritos nas seções anteriores. Nossa orientação metodológica se preocupou em favorecer interações entre os elementos subjetivos e objetivos do que foi narrado, inspirados em Alexander et al. (1987), Pais (2005) e Dubar (1998).

Para as análises acima enunciadas, nos apoiamos nas dimensões de provas e suportes existenciais. As provas se caracterizam como desafios societários vividos pelos indivíduos em seus processos de produção de si; são socialmente produzidas, culturalmente representadas e desigualmente distribuídas. Por sua vez, os suportes podem ser definidos como a expressão dos arranjos que os indivíduos engendram entre os recursos materiais e simbólicos que logram aceder para a sustentação de si mesmos em seu contexto social. A dimensão analítica é que as provas narradas supõem uma visão de ator que se encontra, por razões estruturais, obrigado a enfrentar esses desafios. Pode-se dizer, então, que é uma vivência pessoal daquilo que é estrutural (Martuccelli, 2007; 2010).

Adriano, negro, tinha 24 anos e morava com a mãe no momento da entrevista. Entre a infância e a adolescência, foi de Santa Teresa a Santa Cruz; morou no bairro central da cidade do Rio de Janeiro até se mudar com parte da família para Santa Cruz, localizado no extremo da zona oeste. Era naquele bairro distante que cursava, no momento da entrevista, o quarto e último módulo de ensino médio na modalidade EJA. Trabalhava por empreitada como pedreiro e gostava da possibilidade de construir coisas, “[…] é muito recompensador ter a sensação de que você está construindo alguma coisa”. Santa Teresa era vista como lugar de alegria e muitas possibilidades, Santa Cruz significava, para o jovem, isolamento e limitação das possibilidades culturais, de deslocamento e acesso à cidade e suas oportunidades. Desconhecia a identidade do pai e foi criado pela mãe que trabalhou como empregada doméstica a maior parte de sua vida. Ele era o quarto de uma família de sete irmãos. Por necessidade de ajudar no sustento da casa começou a trabalhar ainda aos 7 anos de idade junto com os irmãos mais velhos. Por desgostar da situação vivida, fugiu de casa, pela primeira vez, aos 9 anos, passando a morar na rua. Teve diversos retornos e novas fugas de casa. Disse que não aguentava o peso de conciliar estudo e trabalho em tão precárias condições de vida em casa; disse, também, encontrar liberdade na rua. Ainda na educação infantil, encontrou nos trabalhos manuais e de artes formas de expressão de sua sensibilidade que, segundo ele, se revelaram como antídoto ao mundo do trabalho infantil e do sentimento de abandono expresso por ser o 4º de 7 filhos: “[…] é muito difícil uma mãe dar atenção a todo mundo tendo 7 filhos”. Quando jovem, encontrou no desenho sua expressão artística mais consistente. Todos os seus grafismos carregam suas iniciais que, segundo ele, seriam uma forma de evidenciar sua identidade. Trabalhou em diversas funções e tipos de trabalho, sempre ligado à prestação de serviços (vendedor, porteiro, ensacador de compras) e ao trabalho informal e na rua (vendedor de doces). Foi na construção civil que se viu realizado. Concluiu o ensino fundamental quando já tinha 19 anos, uma trajetória escolar vivida entre repetências e abandonos. Fez curso técnico de pedreiro enquanto também fazia o ensino médio e foi quando aprendeu a projetar edificações. Por volta dos 11 anos, era um menino tomado pela timidez, o que lhe dificultava o trabalho de vendedor na rua. Foi quando teve sua primeira experiência na construção civil. Viveu reiteradamente a experiência de ser colocado em um lugar de menor valia e demorou a compreender que eram expressões de racismo, esse traço perverso e marcante da sociedade brasileira. Afirmou que passou a ter posicionamentos diferentes, que lhe deram melhor condição de se defender da violência simbólica do racismo, depois de compreender os atravessamentos do racismo em sua vida.

Marina, branca, tinha 21 anos no momento da entrevista e morava com o então companheiro e o filho de 5 anos em uma casa alugada numa comunidade de favela no centro da cidade do Rio de Janeiro. Trabalhava em emprego com carteira assinada durante o dia e cursava o penúltimo módulo do ensino médio na modalidade EJA à noite. O filho ficava sob os cuidados do novo companheiro. Foi expulsa da casa em que morava com pai, mãe e duas irmãs, aos 14 anos, porque o pai rejeitava seu namoro. Foi morar com uma tia em Jacarepaguá, bairro distante do centro da cidade, em condições precárias, numa casa de madeira que permitia livre circulação de insetos e roedores e alagava sob chuvas fortes. Começou a trabalhar à noite num trailer que vendia cachorro-quente para colaborar financeiramente com as despesas na casa da tia. Sobre o dia em que decidiu parar de estudar conta que: “[…] o aluguel estava atrasado e eu estava muito cansada por fazer hora extra. Decidi aumentar minha carga horária de trabalho e deixar de estudar. A escola ia me ajudar, mas no futuro, naquele momento eu precisava do trabalho”. Foi agredida fisicamente pelo pai em múltiplas ocasiões, entre retornos e saídas da casa da família nuclear. A falta de reação da mãe às violências do pai deixava Marina muito chateada. Em dado momento, por volta dos 15 anos de idade, entendeu que apenas uma gravidez poderia tirá-la definitivamente do convívio com o pai violento. Engravidou do namorado com quem foi morar em um quartinho alugado em Jacarepaguá. Contudo, sofreu violência também doméstica, por parte do companheiro. O filho nasceu quando ela tinha 16 anos e já morava sozinha, trabalhava para sustentá-lo, e a mãe a ajudava clandestinamente, sem que o pai soubesse. Não poder contar com políticas públicas de suporte à maternidade e de geração de renda e sem a rede familiar de apoio fez com que ela não conseguisse retomar os estudos. Trabalhou como faxineira e garçonete até receber oferta de emprego em uma empresa de comunicação naval, momento de inflexão em sua vida. O trabalho a estimulava a estudar, a falar corretamente, a aprender e buscar conhecer coisas que nunca havia imaginado existir. A partir desse posto de trabalho, formulou novos planos: concluir a educação básica (ainda cursava o ensino fundamental) e chegar à universidade, cujos estudos eram estimulados por seus empregadores. Fez o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) mas não foi aprovada. Em um dos dias de prova viveu o nervosismo de quase atrasar-se em função de esperar a chegada da irmã que ficaria com seu filho. Além de pouco apoio familiar, afirmou que a escola não havia dado condições suficientes para enfrentar a prova com sucesso e que ela, por meios próprios, também não havia podido se preparar suficientemente. Ao longo do tempo de sua participação na pesquisa, Marina demonstrou ter sempre planos alternativos para si. Comprou, com financiamento público, apartamento em um prédio ainda em construção fora de área de favela, pretendia fazer curso de comissária de bordo e buscava crescer profissionalmente na empresa aproveitando as oportunidades oferecidas. Com a máquina fotográfica disponibilizada pela equipe de pesquisa, fotografou várias portas de casas em que morou e lugares onde trabalhou. Falou da emoção de quando esteve pela primeira vez diante da porta de seu atual trabalho que muito representava no sentido de superação das tantas provas já enfrentadas em sua vida.

Joel, negro, tinha 27 anos no momento da entrevista. Separado, pai de uma menina de 2 anos que morava com a mãe. Quando criança, apanhava muito da mãe alcoólatra e desde os 9 anos conciliou trabalho e estudo. Migrou sozinho do nordeste do país para o Rio de Janeiro aos 16 anos de idade para morar com uma tia. Trabalhou descarregando mercadorias, fazendo carreto, como ajudante de pedreiro, entre outras atividades informais. Foi como ajudante de pedreiro que conheceu o casal com o qual trabalhou nos últimos 10 anos como vendedor em uma loja de potes de vidro. O casal o acolheu em casa quando, terminada a obra, perceberam que o jovem não tinha para onde ir nem onde trabalhar. O jovem ajudou a cuidar do filho do casal e do comércio mantido no centro da cidade. Considera que o trabalho na rua valia zero e o trabalho como vendedor em loja valia 10, tendo, portanto, melhorado muito de vida, ainda que vivesse com um salário mínimo de renda. Suas fotografias registraram a filha – que considera sua maior vitória até tal momento da vida –, a professora – que considera a que mais o estimulou a seguir nos estudos e concluir o ensino médio, apesar da dificuldade de conciliar estudo e trabalho – e os seus objetos de lazer que chama de “infância de agora” – gosta de futebol e de paintball. Conquistou, na justiça, o direito de visitação à filha, pois fora impedido pela mãe. Seu pai foi assassinado quando ele ainda estava sendo gestado, e, por isso, afirmou que a falta do próprio pai produz a dimensão da importância de ser um bom pai para sua filha. Afirmou, também, que “[…] a melhor escola não é essa aqui, onde estou estudando EJA, mas é a lá do mundo. A lá da rua, que te ensina de um tudo”.

A Prova Comum de Trabalhar e Estudar

A necessidade de trabalhar ainda na infância ou adolescência é um desafio persistente para os jovens pobres brasileiros. O Brasil tinha, segundo a PNAD Contínua de 2016, 1,8 milhão de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos trabalhando, dentre uma população de 40,1 milhões de pessoas nessa faixa etária (IBGE, 2016b). A condição de aprendiz assegura a possibilidade de iniciar-se no mundo do trabalho a partir dos 14 anos de idade. O emprego, nessa idade, segundo a legislação brasileira, deve se dar em empregos formais não perigosos, mas a maioria não se encontra nessas condições.

Adriano enfrentou tal desafio ainda aos 7 anos de idade na companhia dos irmãos mais velhos. Joel aos 9 anos, sozinho. Marina enfrentou sozinha o desafio no trabalho noturno aos 14 anos. Para o primeiro, o trabalho tinha por objetivo ajudar nas despesas domésticas, e para o segundo também significava ajuda nas despesas domésticas, mas, adicionalmente, suspensão das violências físicas que sofria de sua mãe; para Marina, o objetivo era sustentar-se com autonomia mesmo coabitando a casa da tia e depois morando sozinha e com um filho.

Para Adriano, o trabalho como pedreiro, mesmo precário – sem estabilidade, temporário, sem carteira assinada e sem os direitos trabalhistas decorrentes – lhe assegurava uma identidade “criativa”; a possibilidade de construir algo é muito valorizada por ele: poder, pelas próprias mãos, construir a sua casa. Mas as relações e condições de trabalho não lhe são favoráveis. Assim também com Joel, condições de trabalho muito precárias na construção civil e, para ele, sem a dimensão criativa que tinha para Adriano. Para Adriano, ganhar pouco pelo trabalho que ele muito valoriza é decepcionante, e enfrentar empregadores que atrasam pagamentos ou não pagam os valores combinados é indignante.

Marina conquistou um trabalho que lhe assegurou estabilidade, mobilidade social, ganho de capitais culturais, sociais e econômicos. Ela ficou surpresa com a oportunidade de trabalho recebida pois acreditava que gente sem ensino médio e que falava cometendo erros de português jamais seria indicada para o trabalho para o qual foi indicada por seu empregador. Ela enfrentou o desafio de aprender no trabalho, através dele e em nome dele.

Os três abandonaram os estudos formais ainda no ensino fundamental e tais trajetórias expressam condição destacada nos dados quantitativos da pesquisa: 35% de todos os respondentes haviam abandonado os estudos no ensino fundamental ao experimentarem a concomitância de estudo e trabalho. Os dados nacionais de escolarização da população brasileira indicam que, em 2019, 46,6% da população de 25 anos ou mais de idade estava concentrada nos níveis de instrução até o ensino fundamental completo ou equivalente (IBGE, 2019). Sabe-se que o abandono da escola é fator mais determinante da não conclusão da escolarização básica do que as repetências. O retorno à escola empreendido por esses jovens que destacamos denota o esforço de busca por superação dos condicionantes estruturais que levam ao abandono e a importância da política pública de EJA na oferta escolar que permite o reingresso dos fora de série.

Investigando os sentidos do retorno à escola na vida de jovens da EJA, Costa (2011) salienta que o reingresso se identifica com a aposta de reconfigurar projetos de vida e sonhos adiados por circunstâncias adversas. A retomada da escolarização ganha um novo sentido para aqueles que a estão experimentando pela segunda, terceira ou mais vezes. Assim, pode-se dizer que o retorno se relaciona com os sentidos que os jovens atribuem ao seu processo de escolarização e que estão relacionados a projeções futuras e reformulações de projetos de vida.

As respostas obtidas no survey reforçam o quanto a articulação entre os estudos e o trabalho continua a ser uma tarefa difícil de ser realizada, notadamente aos jovens pobres para quem o trabalho significa sobrevivência e não apenas formação para a vida como ocorre entre jovens de classe média e das elites econômicas. Entretanto, os significados de tal relação, na experiência dos jovens, precisam ser problematizados. Parte significativa dos sujeitos investigados vê essa conciliação não necessariamente como algo negativo. Entre os respondentes, 17,3% disseram que essa conciliação possibilitou crescimento pessoal e 2,3% responderam que só conseguiram retornar aos estudos porque estavam trabalhando.

Corseuil e Franca (2020) analisando a inserção de jovens no mercado de trabalho em dois momentos de crise – a retração econômica dos anos 2015/2016 e a produzida no contexto da covid-19 em 2020 – percebem diferença significativa nos modos como os jovens foram absorvidos pelo mercado de trabalho. Na primeira situação, o desemprego absorveu mais jovens, na segunda, foi a inatividade a marca da dinâmica de presença deles no mercado de trabalho. Os agravos produzidos pela pandemia relacionados ao isolamento social e à redução drástica da atividade econômica, levando ao fechamento de postos de trabalho, resultou em queda significativa da proporção de jovens ocupados de 48,6% no primeiro trimestre de 2020, para 41,4% no trimestre seguinte. Ou seja, em apenas um trimestre, a taxa de ocupação de jovens no Brasil teve queda de 7,2 p.p. Os autores destacam que essa queda foi mais acentuada do que a redução de 5,8 p.p. registrados entre os primeiros trimestres de 2015 a 2017. A saída de jovens da dinâmica emprego-desemprego em direção à inatividade foi sem precedentes no período coberto pela PNAD Contínua11, marcada por um aumento de 8 p.p. de jovens inativos em relação ao período anterior à pandemia de covid-19. As mulheres jovens foram mais afetadas, constatando-se aumento de 9,2 p.p. de inatividade no segundo trimestre de 2020 em relação ao segundo trimestre de 2019 (IBGE, 2019).

Esses dados indicam maior afastamento dos jovens do mercado de trabalho no período pandêmico quando comparado com o período anterior de recessão (2015-2017). “Isso motiva preocupações com a possibilidade de um período mais longo de afastamento do jovem do mercado de trabalho, que, por sua vez, pode vir a comprometer sua trajetória profissional futura” (Corseuil; Franca, 2020, p. 100).

Na mesma perspectiva de compreender os efeitos da pandemia de covid-19 sobre os jovens, Silva e Vaz (2020) realizam um estudo sobre jovens que não trabalham e não estudam também a partir de dados da PNAD Contínua. Os pesquisadores assinalam que o legado da crise sanitária pode durar décadas e, corroborando resultados de outros estudos, enfatizam que as desigualdades de gênero, raça e renda marcam as trajetórias dos jovens na escola e no mundo do trabalho aumentando os percentuais dos que nem estudam nem trabalham, os chamados nem-nem.

Ser mulher, especialmente com filhos; ser pobre; ser negro; ter baixa escolaridade; e morar em domicílios com maior número de crianças, ou outra pessoa que exige cuidados aumentam expressivamente as chances de um jovem se tornar nem-nem por um curto ou longo período de sua vida

(Silva; Vaz, 2020, p. 106).

A partir de dados da Pesquisa Juventudes no Brasil, Peregrino e Prata (2021) evidenciam o peso da divisão sexual do trabalho no fenômeno do abandono escolar. Em linhas gerais, jovens homens saem da escola por necessidade de trabalhar e mulheres para assumir responsabilidades precoces no âmbito doméstico e de cuidados.

Conclusão

O material narrativo dos jovens participantes da pesquisa permitiu conhecer elementos objetivos e dimensões subjetivas de suas experiências. A noção de curso de vida com a qual trabalhamos permitiu o estabelecimento de interfaces entre posições sociais expressas em pontos objetivos e demarcadores de trajetórias biográficas e material narrativo de indivíduos que revelam dimensões subjetivas de suas experiências. Os quadros demográficos de escolarização, trabalho e renda aliados aos dados primários do survey de nossa investigação demarcam tanto as posições sociais ocupadas pelos jovens brasileiros quanto as provas em comum enfrentadas no espaço-tempo da juventude. As experiências narradas por Adriano, Joel e Marina singularizam as referidas posições objetivas, são biografias que explicam contextos. Tais narrativas não pretendem representar conjuntos populacionais. São, antes de tudo, pontos de referência para compreender o lugar da agência em relação aos condicionantes sociais.

Se, por um lado, combinar estudo e trabalho é um dos traços geracionais que evidenciam a experiência de viver o tempo de juventude em situação de pobreza no Brasil, por outro, vivenciar relações de trabalho pode contribuir para que jovens percebam os significados da escolarização para a mobilidade econômica e social.

Para esses jovens populares, os mundos do trabalho e da escola não são excludentes. Eles podem mesmo se apresentar como projetos que se sobrepõem (Sposito, 2008). Trabalho e escola são espaços e tempos sociais que se articulam para produzir expectativas e viabilizar projetos de vida.

A participação de jovens em atividades de trabalho remunerado não deve ser compreendida tão somente como resultado de situações socioeconômicas adversas que produzem a busca por meios de subsistência. A necessidade que os leva a trabalhar em concomitância com o tempo de escola combina-se com mediações relacionadas com a busca de independência e autonomia. Independência econômica e material e autonomia simbólica diante de seus pais e familiares. Isso sem desconsiderar o valor que famílias populares enxergam no trabalho como meio educativo e também atividade que disciplina o caráter e estabelece limites para o excedente de tempo livre juvenil12.

Notas

  • 1
    Este artigo tem como ponto de partida um trabalho apresentado e debatido no GT 03 – Movimentos Sociais, Sujeitos e Processos Educativos durante a 39ª Reunião Anual da Anped. Ver Brenner e Carrano (2019).
  • 2
    A crise econômica se agrava no início do governo Dilma, em 2015, e se aprofunda com o que se denominou de golpe jurídico parlamentar que resultou no impeachment da presidente sem a comprovação de crime de responsabilidade. A posse do vice-presidente, Michel Temer, abre as portas para a retomada da agenda neoliberal no Brasil. Esta é marcada por privatizações de empresas públicas, cortes nos gastos públicos por 20 anos e aprovação de lei de reforma trabalhista que cortou direitos, promoveu demissões e estímulo para contratações precárias e mal remuneradas.
  • 3
    O Estatuto da Juventude (Lei 12.852/2013) considera jovens as pessoas de 15 a 29 anos de idade. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2015, a população brasileira é de 204,9 milhões de pessoas, sendo 23,6% dessa população compreendida por jovens (IBGE, 2015).
  • 4
    São apresentados aqui dados de 2014 e 2015 em função de serem esses os anos de referência de análise dos questionários aplicados na pesquisa.
  • 5
    A divisão da cidade por zonas se deu como forma de manter o critério proporcional da amostra entre as unidades de análise de bairro.
  • 6
    Carrano, Marinho e Oliveira (2015) apresentam uma síntese metodológica com mais detalhes.
  • 7
    A modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA) é uma modalidade que busca assegurar o direito à educação àqueles que não tiveram acesso à escola ou nela não puderam permanecer na chamada idade certa. Para cursar o ensino médio na modalidade EJA é preciso ter, no mínimo, 18 anos de idade.
  • 8
    Programa de aceleração da escolarização voltado para jovens em idade regular de frequência ao ensino médio (15 a 18 anos) mas fora da idade-série esperada.
  • 9
    Nessa etapa da pesquisa, todos já haviam concluído o ensino médio na modalidade EJA.
  • 10
    Os nomes foram alterados a fim de assegurar a confidencialidade das informações.
  • 11
    A PNAD Contínua foi adotada experimentalmente no ano de 2011 e de forma permanente no ano de 2012.
  • 12
    A pesquisa que deu origem a este artigo contou com financiamentos de pesquisa da FAPERJ e apoio do CNPq.

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Editado por

  • Editora responsável: Lodenir Karnopp

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    29 Nov 2021
  • Aceito
    19 Out 2022
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