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A SOCIALIZAÇÃO DO INDIVÍDUO E SUAS DIVERSAS FACETAS

THE SOCIALIZATION OF THE INDIVIDUAL AND ITS MULTIPLE ASPECTS

SETTON, Maria da Graça Jacintho. . Juventude na Amazônia: experiências e instituições formadoras . Curitiba: Editora CRV, 197 p, 2015.

Em meio aos atuais conflitos de interesses e os desgastes das representações sociais no Brasil o olhar sociológico se dirige para observação das transformações que delas resultam. No que tange especificamente ao colapso do sistema público educacional brasileiro, cabe entender a relação dos atores sociais envolvidos nesse processo. Para isso, as reflexões devem ir além das estruturas de ensino para apreender o processo de socialização embebido num complexo espectro que envolve a relação indivíduo e sociedade.

Maria da Graça Jacintho Setton (2015) desenvolve aportes teóricos e metodológicos da sociologia da educação contemporânea, que abrem novas possibilidades de observação das transformações sociais, numa dinâmica negociação entre atores e formas de representações. Os resultados da referida pesquisa desvelam um desconcertante distanciamento dos atores sociais dos seus espaços públicos, em duas cidades do Estado do Pará, na região Amazônica.

No entanto, antes de apresentar a pesquisa propriamente dita é importante alocar a obra no seu contexto teórico e metodológico, tentando em poucas linhas resumir a complexidade do objeto de análise, socialização do indivíduo, desenvolvido pela autora.

Setton (2011)SETTON, M. da G. J.Teoria da Socialização: um estudo sobre as relações entre indivíduo e sociedade. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 4, p.711-724, dez. 2011. ancora o desenvolvimento de seu aporte teórico e metodológico na sociologia processual a partir de Nobert Elias (1939)ELIAS, N. O Processo Civilizador. Volume 1: Uma História dos Costumes. Editora Zahar, 2011.. Com essa referência as transformações da sociedade são observadas enquanto um processo de mudança de identidade do indivíduo, onde se insere uma consciência social. Contudo, tal referencial, para a autora, deve partir do indivíduo no processo de socialização. O argumento é que a socialização é um processo que envolve uma separação entre a subjetividade do indivíduo e a objetividade do seu papel social (SETTON, 2011SETTON, M. da G. J.Teoria da Socialização: um estudo sobre as relações entre indivíduo e sociedade. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 4, p.711-724, dez. 2011., p. 718). Ainda, acrescenta que a socialização não se finaliza porque o indivíduo escape do social, mas por que sua experiência inscreve-se em registros múltiplos e não congruentes (idem).

No que consiste o processo de socialização, Setton (2015) inspira-se no conceito de fato social total, assim o processo formador de uma identidade social ganha uma perspectiva relacional entre os fenômenos sociais em diversos prismas como: econômico (origem social), político (posição ideológica), moral (crenças), estético (gosto).

Segundo a autora, o referido conceito permite observar o processo de socialização como uma negociação contínua, numa via de mão dupla, em que a participação do jovem e as instituições sociais mantêm tensas e intensas relações simbólicas de reciprocidade (SETTON, 2015, p. 32).

A pesquisadora ainda salienta a importância de entender o objeto de análise em constante movimento, quando enfatiza que o mesmo deve ser colocado em prova numa realidade empírica (idem, p. 40). A realidade estudada está centrada em duas localidades do estado do Pará. Um estado marcado por graves conflitos pelas reservas produtivas naturais e baixos níveis de escolaridade (idem, p. 25). A pesquisa visa entender o lado benéfico e obscuro da sociabilidade dos jovens nessa região (idem).

Dividida em seis capítulos a obra alinhava um detalhado percurso de pesquisa no qual Setton (2015) apresenta um estudo sobre a relação entre os espaços de socialização, escola, família, religião e mídia. Contudo, as diversas facetas da socialização do indivíduo já vêm sendo estudadas pela autora há mais de duas décadas e algumas delas inspiradas na obra de Pierre Bourdieu e sua teoria do Habitus (SETTON; 2000; 2002; 2004; 2005SETTON, M. da G. J. A particularidade do processo de socialização contemporâneo. Tempo Social, 17(2), p. 335-350, 2005.; 2006; 2009, dentre outros). Com essa estratégia, ela mantém o olhar crítico nas estruturas socializantes, quando tenta entender, a diversidade de Habitus que se condensa nas mesmas.

Um dos eixos orientador é a articulação entre a mídia e a religião, enquanto duas estruturas socializantes distintas. Partindo dessa reflexão metodológica a abordagem adentra além da conjugação entre a escola e família (LAHIRE, 2002).

Os sujeitos pesquisados são jovens em duas cidades na Região Amazônica, no Estado do Pará, onde se desdobra toda a pesquisa. O município de Santarém, no Pará e seu distrito, Alter do Chão espelham graves problemas sociais da região amazônica, envoltos numa singularidade de dinâmicas sociais, onde existe uma incessante produção de pobreza em meio a um manancial de riquezas naturais. As peculiaridades locais são acentuadas, quando o eixo de toda a pesquisa parte da descontinuidade histórica numa relação local e global (GIDDENS, 1991). Assim, o foco da reflexão se orienta na singularidade daquele território e suas próprias dinâmicas sociais. Nelas estão implícitas: o problema do desmatamento, exploração das riquezas naturais por corporações transnacionais, os conflitos étnicos, o sincretismo religioso.

No centro da pesquisa estão os jovens. Meninos e meninas que não têm em comum nem mesmo a faixa etária como definição de sua juventude. Alguns apresentam características de juventude, outros circunscrevem realidades de adultos (cf. SETTON, 2015, p. 46). Alguns com família constituída e/ou são responsáveis pela subsistência de pessoas de seu convívio doméstico. Dentro desse contexto social, objetivamente, a autora apresenta a realidade estudada a partir de um sistema simbólico, organizado segundo a lógica de diferentes estilos de vida. No entanto, vale ressaltar que a diferença entre os dois grupos está fundamentalmente na trajetória de vida e experiência acumulada, que resulta numa inserção social oposta em termos de volume de recursos e estrutura de capitais (idem, p. 49). Enquanto 92% dos alunos de escola privada em Santarém não trabalham, têm entre 15 e 18 anos, não têm filhos e são solteiros, para os jovens da escola pública em Alter do Chão esses índices se invertem. Inclusive a idade média nas escolas públicas é acima de 19 anos, na sua maioria (53%) meninos, dos quais 12% já são pais.Por outro lado as famílias dos jovens de Santarém, da escola privada, têm um volume de recursos maior, marcado, sobretudo, por uma ascensão feminina de instrução. Apesar de apenas 18% das mães desses jovens terem um diploma universitário, 33% chegaram ao nível superior, 36% têm o ensino médio. Enquanto entre os pais, 15% têm diploma universitário e 32% chegaram ao ensino médio.

No entanto, apesar da distinção de gênero em termos de acúmulo de capital social, cultural e simbólico pelas mulheres nas famílias de jovens de escola privada, a autoridade do homem no espaço doméstico de ambas é muito forte. É nas famílias de Santarém, dos jovens de escola privada, onde esse homem está presente, já que entre os jovens de Alter do Chão das escolas públicas, a paternidade nem sempre é assumida. Ainda referente ao ambiente doméstico e a família, os jovens de Alter do Chão precisam dividir o espaço físico e afetivo com mais pessoas, tornando a casa um espaço conflituoso.

As mulheres em Alter do Chão estão associadas com a figura de coragem e alegria, pois além de trabalharem e sustentarem suas famílias, mantêm uma intensa vida social. O acasalamento nesse distrito é feito de forma simples, sem cerimônias religiosas ou civis e as uniões nem sempre são duradouras. Além disso, é comum a formação de novas famílias entre os próprios membros, como tio e sobrinha, primos.

Não obstante, as mulheres em Alter do Chão, acumulam a responsabilidade doméstica com a casa e as crianças nas condições sociais da vida moderna, o que resulta num grupo familiar maior, com escassos recursos materiais, culturais e simbólicos. Cabe ressaltar que 59% das mães dos jovens da escola de Alter do Chão frequentaram a escola somente até a oitava série (idem, p.48). Ademais, a presença dos pais no convívio familiar não é frequente, pois eles costumam abandonar um lar para formar outro.

A pesquisa ainda desvela uma subjetividade importante referente aos jovens da escola privada, no que concerne à felicidade. Somente 7% deles se sentem sozinhos e 14% consideram ter bons amigos. Esses jovens revelam se sentirem confortáveis no espaço doméstico. Diferente dos jovens de Alter do Chão, apenas 10% considera ter bons amigos e a mesma percentagem se sente sozinho. 27% consideram-se felizes.

Outros dados objetivos relevantes envolvem a dicotomia político-econômica entre as duas localidades, ambas com precária infraestrutura em todos os níveis, inclusive na estrutura de ensino. Santarém tem um maior volume de circulação de capital o que resulta numa cidade com uma infraestrutura longe de preencher as demandas da população, mas ainda melhor do que o distrito de Alter do Chão. Esse último, um balneário de pescador, região turística, onde circula um menor volume de capital monetário, a infraestrutura é ainda mais precária.

Na cidade de Santarém, a pesquisa se realizou com jovens de uma escola privada bastante conceituada na região. No distrito Alter do Chão, a escola pesquisada era pública. Cabe destacar que no distrito de Alter do Chão foi instaurado o ensino médio através de uma articulação entre a escola pública de ensino médio de Santarém, com a escola pública de ensino fundamental da localidade.

Segundo depoimentos e observação da pesquisadora, a qualidade do ensino é insatisfatória, pois há falta de professores, constantes greves, o que desmotiva os alunos. Não é por acaso que alguns jovens optam por deslocarem-se para Santarém, diariamente, embora, outros fiquem e concluam seus estudos no próprio local. Contudo, não se pode afirmar que os jovens e suas famílias que estudam em Santarém dão maior importância à instrução e à qualidade de ensino. As dificuldades financeiras marcam as decisões familiares.

De acordo com os dados colhidos em entrevista, a maioria dos estudantes de ensino médio na escola no anexo em Alter do Chão não faz crítica em relação às instalações e ao conteúdo abordado na escola. Apesar de criticarem a seriedade e engajamento da maioria dos docentes, não deixam de elogiar outros professores.

Para os alunos de escola privada a relação com as estruturas socializantes da escola e da família são vistas como uma continuidade. Ademais, esses mesmos jovens encaram a estadia na escola como um processo contínuo, pois pensam no futuro tornarem-se estudantes de uma universidade (SETTON, 2015, p.100).

Por outro lado, os jovens de escola pública em Alter do Chão, já encaram o período de aprendizagem na escola como limitado e curto, e com isso, o período dessa estadia deve ser devidamente valorizado (idem). Para eles a relação com as estruturas socializantes da escola e da família é configurada como uma ruptura, mesmo tendo como referencial a escola no anexo, que não funciona plenamente (idem).

Com base em estudos sobre sociedades agrárias e tradicionais no Brasil, como os de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1978) e José de Souza Martins (2000), a autora parte do pressuposto, que em uma sociedade pouco letrada e de tradição agrária, as relações humanas são mais próximas e as instituições de família e religião têm maior importância (SETTON, 2015, p. 45). A pesquisa desvela que jovens de escola privada em Santarém procuram fora do seio familiar as relações mais próximas de amizade (idem, p. 48). Enquanto o oposto ocorre com aqueles jovens de escola pública.

Os jovens da escola privada apresentam a tendência de se submeterem mais a herança familiar, tanto nas escolhas dos ritos religiosos, quanto à autoridade existente nas hierarquias institucionais. Enquanto os jovens da escola pública, apesar de terem uma convivência mais próxima com seus familiares e responsabilidades de adultos, apresentam mais autonomia sobre questionamentos a respeito das hierarquias sociais e crenças religiosas.

As percepções sobre a escola também são diferentes entre os jovens da instituição privada e os jovens adultos da instituição pública, com isso difere também a importância que esses jovens concebem o aprendizado que as escolas transmitem (SETTON, 2015, p. 73). Para os jovens da escola privada, esse espaço social de formação é visto como um lugar importante na sua formação pessoal e profissional. Neste sentido, a maioria deles também complementa sua formação com outros cursos particulares, como curso de inglês e informática. Os jovens de Alter do Chão, de escola pública, passam a maior parte do dia no trabalho ou à procura dele (idem, p.75). 15% procura superar as desvantagens do ensino público com cursos de informática e inglês, o que demonstra uma esperança num futuro promissor (idem). Ressalta-se, porém, que esses jovens têm pouca noção de suas realidades, pois apontam seus desejos profissionais, fora do contexto de suas possibilidades. Diferente daqueles estudantes de escola privada, que expressam em entrevista, mais coerência com as suas perspectivas de futuro.

A passividade diante das precariedades do sistema público de educação é acentuada quando os jovens dessas escolas apresentam um entendimento sobre educação como um privilégio e não um direito social (idem, p.101).

Quanto ao processo de socialização e os espaços de cultura da mídia, de um modo geral, os resultados apontam que os jovens têm acesso às informações culturais diversas, numa abrangência global. No entanto, apesar de estarem integrados num espectro cultural mundial, esse aparato cultural não contribui para a integração entre si. Assim, a mídia tem mais um papel de individualizar, singularizar esses jovens e não contribui para transformá-los em uma coletividade.

Na relação dialética entre indivíduo e sociedade, o processo de socialização é estudado, como visto até aqui, numa combinação entre as estruturas socializantes. A autora traz ainda um novo aspecto sobre a observação de socialização, quando parte do olhar do indivíduo. Aquele que compõe todo o processo de socialização, dos espaços sociais, como escola, família e mídia. Um tipo social, que num cruzamento com a sociologia do indivíduo (MATTUCELLI, 2002) e a reflexão da teoria de reconhecimento de Axel Honneth (2006) abre mais uma brecha de observação.

Nesta obra, Setton apresenta um tipo social que é denominado Antônio, um ser com disposições híbridas de habitus, enquanto indivíduo que imprime novas práticas socializadoras, diferente, de outras construídas historicamente. O processo de individuação desvela, para Martuccelli (2002), formas de distinguir-se, numa dinâmica constante de adaptação, ou não,à sociedade, a qual se integra ou se exclui. Com isso a perspectiva da socialização ganha à dinâmica dialética com o seu aparente oposto que é a individuação.

Na análise Setton (2015) acentua a ótica de Antônio, ator social que menciona na sua narrativa, constantemente, o reconhecimento pela sociedade, assim como suas escolhas. Escolhas diferenciadas que esse ator social fez em busca de reconhecimento social. Antônio expressa a ambiguidade de entender sua vida como estando no meio de uma travessia. Sua posição social é ambivalente, pois está no meio do caminho, em uma encruzilhada, está atravessando por sentimentos contraditórios de modelar-se à semelhança dos grupos hierarquicamente superiores e ao mesmo tempo percebendo não ter chegado lá (SETTON, 2015, p. 152).

Com base nessas diversas facetas sobre a socialização do indivíduo a autora inaugura uma linha de pesquisa, onde é possível observar muitas formas de se socializar. Contudo, tendo a Região Amazônica como palco de toda a trama empírica estudada, cabe salientar o problema do desmatamento. Tal questão apontada no início do livro é um tema delicado para os entrevistados, que não se sentiam muito à vontade para expressar suas opiniões. Além disso, o apoio popular pela instalação da empresa multinacional e o comércio ilegal de madeira (SETTON, 2015, p. 28-29) leva o leitor a sentir a racionalidade econômica e o distanciamento da natureza que invade as relações humanas locais. Assim, na atualização da sociologia processual proposta pela autora destaca-se a dinâmica formação múltipla de identidade social e com isso as transformações sociais tendem a ser difusas. Vale destacar, a relação do papel social dos jovens, referente ao problema da degradação dos bens públicos, como por exemplo, o sistema de ensino e a natureza. Importante salientar que dentre inúmeras outras pesquisas, esta investigação desvela o papel da mulher na reprodução social da pobreza. Sob a ótica multifacetária de socialização do indivíduo proposta por Setton, é possível destacar como o processo de subordinação feminina se reproduz e se renova nessas cidades no Pará, incrustado na identidade social dessa mulher e seu papel na sociedade.

REFERÊNCIAS:

  • ELIAS, N. O Processo Civilizador Volume 1: Uma História dos Costumes. Editora Zahar, 2011.
  • SETTON, M. da G. J. A particularidade do processo de socialização contemporâneo. Tempo Social, 17(2), p. 335-350, 2005.
  • SETTON, M. da G. J.Teoria da Socialização: um estudo sobre as relações entre indivíduo e sociedade. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 4, p.711-724, dez. 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    09 Ago 2016
  • Aceito
    09 Dez 2016
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