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QUÃO “DIGITAIS” SÃO OS “NATIVOS DIGITAIS”? LIMITES DO ENTUSIASMO EXCESSIVO COM A TECNOLOGIA NA EDUCAÇÃO

HOW “DIGITAL” ARE “DIGITAL NATIVES”? LIMITS OF EXCESSIVE ENTHUSIASM WITH TECHNOLOGY IN EDUCATION

¿CUÁN “DIGITALES” SON LOS “NATIVOS DIGITALES”? LÍMITES DEL ENTUSIASMO EXCESIVO CON LA TECNOLOGÍA EN LA EDUCACIÓN

DESMURGET, Michel. . A fábrica de cretinos digitais: os perigos das telas para nossas crianças. São Paulo: Vestígio, 2021. Tradução de Mauro Pinheiro.

É cada vez mais comum que professores em sala de aula tenham de disputar, com os telefones celulares, a atenção dos seus alunos. Todavia, apesar da facilidade dos jovens em utilizar redes sociais, muitos apresentam dificuldades ao lidar com a enxurrada de informações - muitas vezes equivocadas - disponíveis na internet (BBC NEWS BRASIL, 2021BBC News Brasil. 'Nativos digitais' não sabem buscar conhecimento na internet, diz OCDE. BBC News Brasil. Brasil, 31 maio 2021. Geral. Disponível em: Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-57286155 . Acesso em: 01 ago. 2022.
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). Da mesma forma, é possível constatar o aumento do número de estudantes diagnosticados com problemas de atenção e hiperatividade (MOREIRA; BARRETO, 2009MOREIRA, Sandro Cezar; BARRETO, Maria Auxiliadora Motta. Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade: conhecendo para intervir. Revista Práxis, Volta Redonda, ano I, n. 2, p. 65-70, ago. 2009. Disponível em:Disponível em:https://revistas.unifoa.edu.br/praxis/article/view/1123/1013 . Acesso em: 01 ago. 2022.
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). Haveria uma conexão entre esses diferentes fenômenos?

Esses aspectos e outros, também corriqueiros no cotidiano escolar, são abordados de forma brilhante no livro A fábrica de cretinos digitais: o perigo das telas para nossas crianças, escrito pelo neurocientista francês Michel Desmurget. Lançado em 2019, na França, a tradução para o português foi publicada no Brasil em 2021, pela editora Vestígio. Trata-se de trabalho escrito em linguagem clara e compreensível, mas sem prescindir do rigor científico e do sólido embasamento em dados de pesquisas - o que é atestado pelas mais de 100 páginas de referências arroladas no fim do livro. Com caráter interdisciplinar, a obra é fundamentada no aporte de áreas como Neurociências, Sociologia, Psicologia, Educação, Medicina.

Conforme apresentação disponível no próprio livro, Desmurget foi diretor de pesquisa do Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica da França, além de ter atuado em renomadas universidades norte-americanas, como o MIT (Massachusetts Institute of Technology). Seu interesse em estudar as influências dos meios de comunicação sobre o ser humano não é novo: em 2011, o neurocientista publicou o livro TV lobotomie: la vérité scientifique sur les effets de la télévision (sem tradução para o português), no qual aborda os efeitos prejudiciais da televisão sobre a saúde e a cognição. Segundo informação encontrada na base de dados Scopus1 1 Informação disponível em https://www.scopus.com/authid/detail.uri?authorId=6701457007. Acesso em 01 ago. 2022. , Desmurget atua como pesquisador vinculado ao Institut des Sciences Cognitives Marc Jeannerod, na França.

O ponto de partida do autor em A fábrica de cretinos digitais é a constatação de que, pela primeira vez na história, houve a diminuição do QI (quociente de inteligência) dos filhos em relação aos pais, contrariando a tendência de aumento desse quociente a cada geração. Mesmo reconhecendo os limites dos testes de QI para a análise da inteligência humana, Desmurget (2021) considera esse dado preocupante, relacionando-o a outro achado que igualmente chama a atenção: conforme pesquisas analisadas pelo autor, para jovens ocidentais com idade entre 13 e 18 anos, o tempo dedicado ao uso recreativo de telas digitais (incluindo celulares, televisão, consoles para jogos, dentre outros recursos) supera sete horas diárias. Curiosamente, executivos de grandes empresas de tecnologia do Vale do Silício buscam manter suas crianças longe da parafernália digital que eles mesmos criam, inclusive matriculando-as em escolas em que não se usa esse tipo de tecnologia até o ensino secundário.

Nesse sentido, o neurocientista se questiona: “[...] a atual ‘revolução digital’ é, para nossos filhos, uma oportunidade ou um triste mecanismo de fabricar imbecis?” (DESMURGET, 2021, p. 12). É basicamente a essa pergunta que o autor procura responder em sua obra, e, para ele, a segunda opção de resposta é a correta. Desmurget (2021) alerta, no prefácio, que redigiu o livro motivado por sua “raiva autêntica”, tendo em vista a maneira parcial e superficial com que a mídia normalmente aborda o tema, além dos interesses econômicos da indústria digital recreativa - que financia inúmeras pesquisas que “comprovam” os efeitos supostamente benéficos das mídias digitais. Essa “raiva autêntica” fica evidente nas críticas e nos comentários irônicos do neurocientista ao longo da obra.

O livro é dividido em três capítulos, subdivididos em seções. No primeiro deles, intitulado Nativos digitais: a construção de um mito, Desmurget (2021) coloca em xeque a existência de uma “geração digital” homogênea, na qual todos os jovens teriam o mesmo acesso às tecnologias digitais e as usariam da mesma forma. O pesquisador apresenta evidências da desigualdade existente nesse acesso e da variação dos usos dessas tecnologias, conforme aspectos como classe social, nacionalidade, sexo, origem étnico-racial. O argumento do autor é de fundamental importância para pesquisadores que muitas vezes sucumbem à armadilha - reforçada pela mídia - de rotular gerações com letras ou adjetivos e de tomá-las como se fossem homogêneas, esquecendo a imensa diversidade existente no interior de uma faixa etária. Em outras palavras, o neurocientista mostra que nascer no mesmo período histórico não garante, de forma alguma, experiências de vida similares.

Também nesse capítulo, o autor apresenta dados de inúmeras pesquisas, de diferentes áreas, para colocar em xeque o mito dos “nativos digitais” - a crença de que os jovens, familiarizados desde cedo com tecnologias de informação e comunicação, teriam um cérebro supostamente mais rápido, mais inteligente, mais apto a lidar com grandes volumes de informação e capaz de realizar diversas tarefas simultaneamente. À ideia de que esses jovens “digitais” seriam “novos seres humanos”, Desmurget (2021) DESMURGET, Michel . A fábrica de cretinos digitais: os perigos das telas para nossas crianças. São Paulo: Vestígio, 2021. Tradução de Mauro Pinheiro. contrapõe o fato de que o cérebro humano é basicamente o mesmo de nossos ancestrais pré-históricos, de modo que o excesso de estímulos audiovisuais, a realização de várias atividades ao mesmo tempo e o fluxo intensivo de informações trazem muito mais malefícios (problemas de concentração, dificuldades de aprendizagem, dentre outros) do que benefícios. Além disso, o neurocientista esmiúça estudos que evidenciam que as habilidades dos “nativos digitais” em relação às novas tecnologias são, de modo geral, bastante limitadas e majoritariamente restritas a atividades recreativas. É minoritária a parcela de jovens que dominam habilidades mais complexas, como o uso de linguagens de programação, utilização de processadores de textos e planilhas, instalação de programas, dentre outras. O uso das tecnologias digitais para atividades escolares se verifica apenas entre uma minoria de usuários jovens, sendo maior entre os oriundos de classes mais altas.

No segundo capítulo, intitulado Utilizações - um incrível frenesi de telas recreativas, o neurocientista aprofunda a discussão sobre a forma como as tecnologias digitais têm sido utilizadas, abordando três aspectos complementares: (a) quais são as telas usadas pelas crianças, como são utilizadas e com quais objetivos; (b) o tempo que é destinado ao consumo recreativo e escolar e (c) a diversidade de usos conforme idade, sexo e classe social. Conforme Desmurget (2021), os primeiros anos de vida são fundamentais para a aprendizagem e o desenvolvimento cerebral; assim, o tempo que as telas digitais “roubam” de outras atividades muito mais relevantes (como as interações sociais, as brincadeiras, a prática de esportes, a contação de histórias por adultos) acaba gerando lacunas difíceis de recuperar posteriormente. Isso não significa que o humano adulto não pode aprender, mas que ele precisará empreender um esforço muito maior, com resultados menos contundentes.

Desse modo, surge uma questão: como definir o que é o uso “excessivo” de tecnologias digitais? Para Desmurget (2021) DESMURGET, Michel . A fábrica de cretinos digitais: os perigos das telas para nossas crianças. São Paulo: Vestígio, 2021. Tradução de Mauro Pinheiro., a resposta depende da faixa etária, e ele é taxativo ao afirmar que, antes dos seis anos, a criança não deve ter nenhum contato com telas recreativas. Além de roubar um tempo que pode (e deve) ser dedicado a tarefas mais relevantes para o desenvolvimento, elas danificam a construção cerebral, devido ao excesso de estímulos sensoriais que impõem. A saturação sensorial induz à desatenção e à impulsividade, em um período em que a plasticidade cerebral é muito grande. Um uso eventual (como ir ao cinema ou assistir a um desenho animado) não é um problema; o problema é a exposição crônica. A partir dos seis anos, o autor sugere um contato com as telas que não supere uma hora por dia; um tempo maior pode trazer impactos negativos sobre o sono e o sucesso escolar, além de problemas de concentração e aprendizagem.

Em relação a isso, poder-se-ia questionar: caso não aprenda a usar as tecnologias digitais na infância, a criança poderá superar essa lacuna posteriormente? Desmurget (2021) DESMURGET, Michel . A fábrica de cretinos digitais: os perigos das telas para nossas crianças. São Paulo: Vestígio, 2021. Tradução de Mauro Pinheiro. argumenta que sim, mencionando estudos que demonstram que os adultos que cresceram em uma era “pré-digital” conseguem fazer um bom uso dessas tecnologias - até porque elas são feitas para serem usadas de forma intuitiva, prescindindo de grande esforço intelectual. Em contrapartida, caso a criança não desenvolva adequadamente determinadas habilidades linguísticas, cognitivas, sociais e sinestésico-corporais, dificilmente ela conseguirá superar as lacunas que ficarem. Segundo o autor, não há evidências de que a falta de um telefone celular na infância possa acarretar a exclusão social ou algum tipo de trauma, mas há pesquisas suficientes demonstrando os danos que as telas digitais podem trazer.

O terceiro capítulo - e também o mais longo - tem como título Impactos: crônicas de um desastre anunciado. Além de retomar aspectos já abordados anteriormente, o autor se foca nos efeitos negativos das mídias digitais em relação ao desempenho escolar, ao desenvolvimento e à saúde, sempre apresentando dados de pesquisas científicas para embasar seus argumentos. No que diz respeito ao primeiro aspecto, Desmurget (2021) DESMURGET, Michel . A fábrica de cretinos digitais: os perigos das telas para nossas crianças. São Paulo: Vestígio, 2021. Tradução de Mauro Pinheiro. menciona que, quanto maior o tempo dedicado ao uso recreativo de telas, menor o desempenho escolar de crianças e adolescentes. Isso ocorre porque o excesso de estímulos e informações que as tecnologias digitais proporcionam implica problemas de concentração e memória, o que repercute negativamente no aprendizado. Sobre o uso de aparelhos digitais simultaneamente aos estudos, o autor é incisivo ao dizer que o cérebro humano - velho ou jovem - é incapaz de se focar em duas coisas ao mesmo tempo sem perda de rigor, produtividade e precisão. O envolvimento cognitivo é somente parcial ou mutilado quando se tenta fazer mais de uma atividade simultaneamente, o que afeta a atenção, a memorização e, consequentemente, a aprendizagem. Logo, um aluno que usa o celular enquanto o professor explica um conteúdo acaba perdendo informações relevantes e compreendendo menos o assunto explicado, pois sua atenção foi dividida em duas tarefas.

Ainda no que tange à educação, o autor analisa pesquisas que demonstram que, em países que investiram na distribuição de computadores ou tablets para crianças menos favorecidas, os impactos foram negativos ou nulos; em alguns países, inclusive, as notas em avaliações de larga escala diminuíram. Conforme estudo da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) sobre o PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), há poucas evidências de que o uso da informática tenha proporcionado melhores resultados em matemática e leitura. Os países que tiveram maior crescimento em suas notas foram os que menos investiram em computadores. Em contrapartida, houve declínio no desempenho em leitura de alunos de países em que se usa a internet para a realização de atividades escolares. Nesse sentido, o autor argumenta que o aprendizado depende do estabelecimento de interações sólidas entre professor e alunos, e a tecnologia pode atrapalhar essas interações.

Para Desmurget (2021) DESMURGET, Michel . A fábrica de cretinos digitais: os perigos das telas para nossas crianças. São Paulo: Vestígio, 2021. Tradução de Mauro Pinheiro., há uma faixa etária correta para o uso de certas tecnologias: calculadoras e processadores de texto podem ser benéficos para jovens ou adultos, mas uma criança não aprenderá a calcular usando calculadoras nem aprenderá a escrever digitando no computador. Segundo estudos comparativos mencionados pelo neurocientista, crianças que aprendem a escrever no computador apresentam maiores dificuldades para ler, decorar e reconhecer as letras do que quem aprende a escrever à mão, além de ter um déficit de compreensão e memorização das aulas. “Quanto mais entregamos à máquina uma parte importante de nossas atividades cognitivas, menos nossos neurônios encontram matéria com a qual se estruturar, organizar e conectar”, escreve o pesquisador (DESMURGET, 2021 DESMURGET, Michel . A fábrica de cretinos digitais: os perigos das telas para nossas crianças. São Paulo: Vestígio, 2021. Tradução de Mauro Pinheiro., p. 114). Da mesma forma, já está bem documentado que os iniciantes aprendem melhor quando os conteúdos são apresentados de forma linear e dispostos hierarquicamente; o contrário ocorre quando a informação é excessiva e fragmentada.

Desmurget (2021) DESMURGET, Michel . A fábrica de cretinos digitais: os perigos das telas para nossas crianças. São Paulo: Vestígio, 2021. Tradução de Mauro Pinheiro. também cita que o grau de desistência nos chamados cursos MOOC (Massive Open On-line Course) é superior a 90%. Em relação às interações mediadas por vídeo, o autor afirma: “a fim de que a magia relacional se produza, um elemento se revela fundamental: é preciso que ‘o outro’ esteja fisicamente presente. Para nosso cérebro, um humano de verdade não é de modo algum a mesma coisa que um humano ‘em vídeo’” (DESMURGET, 2021 DESMURGET, Michel . A fábrica de cretinos digitais: os perigos das telas para nossas crianças. São Paulo: Vestígio, 2021. Tradução de Mauro Pinheiro., p. 139). Para explicar esse fenômeno, o neurocientista menciona o papel dos “neurônios-espelho”, que sintonizam nossos sentimentos aos comportamentos de outra pessoa (por exemplo, quando sentimos vontade de chorar ao vermos alguém chorando). Esses neurônios, que estão no cerne de nossos comportamentos sociais, têm uma resposta muito fraca ou nula quando a interação humana é mediada por uma tecnologia; nosso cérebro reage muito melhor à presença real de uma pessoa, sendo bem menos sensível a uma representação em vídeo. É por isso que “a potência pedagógica de um ser em carne e osso ultrapassa de modo tão irrevogável a da máquina” (DESMURGET, 2021 DESMURGET, Michel . A fábrica de cretinos digitais: os perigos das telas para nossas crianças. São Paulo: Vestígio, 2021. Tradução de Mauro Pinheiro., p. 140).

Pesquisas que supostamente comprovam os benefícios dos jogos digitais para o desenvolvimento e a aprendizagem recebem atenção especial do autor. Para ele, além de conterem problemas metodológicos, esses estudos apresentam resultados que são superestimados pela mídia, o que induz a compreensões errôneas sobre o tema. Desmurget (2021) reitera inúmeras vezes que as habilidades desenvolvidas em jogos digitais não são transpostas para a vida real; elas só podem ser usadas em jogos que sejam similares. Assim, por exemplo, um jogo de corrida não tornará o jogador um melhor motorista, mais bem preparado para enfrentar as condições reais de trânsito; quando muito, ele somente terá um bom desempenho em outro jogo de corrida. Desse modo, o neurocientista alerta para o cuidado necessário com o que ele chama de “propagandas demago-geeks” (DESMURGET, 2021 DESMURGET, Michel . A fábrica de cretinos digitais: os perigos das telas para nossas crianças. São Paulo: Vestígio, 2021. Tradução de Mauro Pinheiro., p. 178) [grifos do autor].

Ainda em relação aos assuntos tratados no terceiro capítulo, cabe destacar os danos que as telas digitais trazem ao sono - o que, por sua vez, pode acarretar problemas de concentração e aprendizagem. Conforme Desmurget (2021) DESMURGET, Michel . A fábrica de cretinos digitais: os perigos das telas para nossas crianças. São Paulo: Vestígio, 2021. Tradução de Mauro Pinheiro., diversas obras abordam a relação entre problemas no sono e uso de telas, mas de forma pouco aprofundada e sistemática; no entanto, há estudos consistentes que mostram a importância de uma noite bem dormida para a aprendizagem e a saúde. Para o neurocientista, há quatro problemas básicos envolvendo a relação entre o sono e as telas, as quais (a) atrasam a hora de se deitar e diminuem o tempo durante o qual a pessoa dorme; (b) fazem a pessoa demorar mais tempo para dormir, pois seu excesso de luminosidade dificulta a produção de melatonina, hormônio indutor do sono; (c) impedem que se tenha um sono contínuo (caso de indivíduos que acordam de madrugada para verificar notificações, responder a mensagens, etc.); (d) facilitam o acesso a conteúdos estimulantes, o que protela o adormecimento e pode fazer a pessoa dormir mal.

O neurocientista encerra sua discussão com um epílogo, intitulado Um cérebro muito antigo para um admirável mundo novo. Nessa parte, Desmurget (2021) DESMURGET, Michel . A fábrica de cretinos digitais: os perigos das telas para nossas crianças. São Paulo: Vestígio, 2021. Tradução de Mauro Pinheiro. reitera os argumentos apresentados ao longo da obra, alertando para o fato de que nosso cérebro não está preparado para lidar com os “excessos digitais” da vida contemporânea - nem estará preparado pelos próximos séculos. “Para se construir, ele precisa de moderação sensorial, de presença humana, de atividade física, de sono e de uma nutrição cognitiva favorável” (DESMURGET, 2021 DESMURGET, Michel . A fábrica de cretinos digitais: os perigos das telas para nossas crianças. São Paulo: Vestígio, 2021. Tradução de Mauro Pinheiro., p. 275). Portanto, a despeito de todos os avanços tecnológicos experimentados pela humanidade, os humanos continuam sendo humanos, com necessidades que a tecnologia não supre.

Desmurget (2021) DESMURGET, Michel . A fábrica de cretinos digitais: os perigos das telas para nossas crianças. São Paulo: Vestígio, 2021. Tradução de Mauro Pinheiro. ressalta, diversas vezes, que não é contrário à tecnologia e a todos os benefícios que ela nos traz. Da mesma forma, deixa claro que a influência das tecnologias digitais não é unanimemente negativa, pois tudo depende da forma como elas são utilizadas. O autor defende um uso moderado, que seja adequado a cada etapa do desenvolvimento e não prescinda de atividades que alguns podem considerar “ultrapassadas”, como a interação face a face, a leitura, a escrita à mão. Quanto a isso, a propósito, o neurocientista lembra que manuscrever se mostrou muito mais eficaz para o aprendizado do que digitar: como leva mais tempo e é mais trabalhoso do que escrever no computador, o ser humano precisa pensar mais sobre o que escreve e sintetizar informações, o que é extremamente benéfico para o aprendizado. Igualmente, de acordo com testes comparativos, um texto é mais bem compreendido quando lido em seu formato em papel, e não em sua versão digital - independentemente da idade dos leitores.

Embora seja voltado a um público amplo, A fábrica de cretinos digitais é de fundamental interesse para professores e pesquisadores em Educação. Além de abordar temáticas presentes nas salas de aula, Desmurget (2021) DESMURGET, Michel . A fábrica de cretinos digitais: os perigos das telas para nossas crianças. São Paulo: Vestígio, 2021. Tradução de Mauro Pinheiro. aponta para as contribuições que as Neurociências têm a fazer ao campo educacional, bem como para a necessidade de atentar para as interações entre fatores biológicos e sociais para se obter uma compreensão adequada dos fenômenos humanos. Sua abordagem interdisciplinar mostra a potencialidade do diálogo entre Ciências Humanas e Ciências Biológicas, colocando em xeque o temor - alimentado por certos pesquisadores em Educação - de que a aproximação deste último campo às Neurociências implicaria a disseminação de uma visão reducionista do sujeito que aprende, calcada unicamente em aspectos biológicos. Desmurget (2021) DESMURGET, Michel . A fábrica de cretinos digitais: os perigos das telas para nossas crianças. São Paulo: Vestígio, 2021. Tradução de Mauro Pinheiro. mostra que esse temor não se sustenta.

No que diz respeito ao conteúdo da obra, toda a argumentação do autor é solidamente embasada em evidências científicas, oriundas de diferentes áreas do conhecimento. Assim, o livro fornece excelentes contribuições para o debate acerca da relação entre tecnologias e ensino, apresentando orientações práticas sobre quando é prudente, nos diferentes momentos de estudo (inclusive em sala de aula), deixar as tecnologias digitais de lado e usar estratégias que alguns poderiam julgar “antiquadas”, como escrever à mão e ler no papel. A partir da leitura da obra, depreende-se que é necessário ter cautela com o entusiasmo excessivo com a tecnologia na educação: se é verdade que não se podem negar os inúmeros benefícios que o avanço tecnológico nos traz, também é verdade que as tecnologias podem nos trazer problemas, e é justamente sobre esses problemas que Desmurget lança luz.

Por vezes, o livro soa repetitivo, o que talvez seja fruto da intenção do autor de alertar para os prejuízos trazidos pelo uso excessivo das mídias digitais. De qualquer forma, alguns argumentos poderiam ser sintetizados e veiculados em somente um capítulo, de maneira a evitar a sua repetição desnecessária. No que diz respeito à edição brasileira, é possível verificar, ao longo de toda a obra, a persistência de problemas de tradução e revisão. Para o leitor mais atento ou detalhista, não passam despercebidos alguns equívocos de digitação e erros gramaticais crassos. Como um aspecto a ser melhorado em uma eventual nova edição, sugere-se uma revisão mais criteriosa, condizente com a qualidade da discussão levada a cabo pelo autor.

Ressalvados esses poucos aspectos negativos, A fábrica de cretinos digitais é leitura indispensável para pais, profissionais de saúde e educação, sociólogos, jornalistas e demais interessados pelo tema. Em uma época em que o tempo para se dedicar a leituras longas é cada vez mais escasso, vale a pena abdicar da visualização de stories, selfies, postagens “lacradoras” e “dancinhas” de tiktokers para imergir na leitura desta obra - preferencialmente, na boa e velha versão em papel, com um lápis à mão para fazer anotações e rabiscos no livro.

REFERÊNCIAS

  • DESMURGET, Michel . A fábrica de cretinos digitais: os perigos das telas para nossas crianças. São Paulo: Vestígio, 2021. Tradução de Mauro Pinheiro.
  • MOREIRA, Sandro Cezar; BARRETO, Maria Auxiliadora Motta. Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade: conhecendo para intervir. Revista Práxis, Volta Redonda, ano I, n. 2, p. 65-70, ago. 2009. Disponível em:Disponível em:https://revistas.unifoa.edu.br/praxis/article/view/1123/1013 Acesso em: 01 ago. 2022.
    » https://revistas.unifoa.edu.br/praxis/article/view/1123/1013
  • BBC News Brasil. 'Nativos digitais' não sabem buscar conhecimento na internet, diz OCDE. BBC News Brasil. Brasil, 31 maio 2021. Geral. Disponível em: Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-57286155 Acesso em: 01 ago. 2022.
    » https://www.bbc.com/portuguese/geral-57286155
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    Informação disponível em https://www.scopus.com/authid/detail.uri?authorId=6701457007. Acesso em 01 ago. 2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2022
  • Aceito
    07 Jul 2022
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