Acessibilidade / Reportar erro

INSTITUIÇÕES, PRÁTICAS EDUCATIVAS E ILUSTRAÇÃO NO MUNDO IBERO-AMERICANO (SÉCULOS XVIII-XIX)

A historiografia educacional no Brasil sedimentou, durante muito tempo, uma interpretação segundo a qual a sociedade colonial daria pouca importância à educação e, exceto por alguma atuação da Igreja, as demais instituições se pautariam pela falta de interesse nesta área, incluindo o Estado. Essa interpretação, forjada na primeira metade do século XX, privilegiava a atuação das ordens religiosas no período entre o século XVI e a primeira metade do século XVIII e, depois disso, os projetos republicanos para a educação escolar desenvolvidos no país a partir de 1890. Devido a essa interpretação, as ações iniciais do Estado português na educação escolar foram praticamente desprezadas pelos pesquisadores, bem como outras modalidades de educação presentes na sociedade colonial entre o século XVI e as duas primeiras décadas do século XIX. A partir dos anos 2000, começaram a ser produzidas pesquisas fundadas na exploração mais atenta dos arquivos brasileiros e portugueses, revelando cenários mais complexos que evidenciavam a atuação da Coroa portuguesa na promoção e no controle de atividades educacionais, além da nada desprezível evidência de práticas educativas não escolares.

Novas perspectivas temáticas e analíticas para uma história da educação colonial - que inclui os antigos territórios portugueses e espanhóis na América - ampliam vigorosamente as possibilidades de se pensarem os fenômenos educativos numa época em que a presença da escola ainda não era dominante, em que a educação como um valor apresentava conotações diversas e em que todos esses aspectos inscreviam-se no contexto de sociedades regidas pelas monarquias de direito divino e pelas hierarquias sociais de tipo estamental. Assim sendo, a educação era ainda pouco associada à escola, e mesmo processos educativos relacionados às práticas de tipo escolar podiam ocorrer em outros espaços. Tendo em vista essas possibilidades é que organizamos este dossiê, reunindo artigos de pesquisadores do Brasil, de Portugal e do México, tendo como principal objetivo apresentar trabalhos que discutem as múltiplas dimensões das concepções e das práticas educativas presentes no chamado mundo ibero-americano, no contexto de difusão das ideias ilustradas acerca da organização social e política e de seu papel na construção da desejada civilização. Os olhares se voltam para as instituições religiosas, militares, administrativas, familiares, e suas relações com as diferentes possibilidades de entendimento dos fenômenos educativos, suas funções na construção da chamada civilidade moderna, bem como os conflitos inerentes a esses processos.

As instituições religiosas são o objeto direto dos três primeiros artigos deste dossiê, em suas diferentes configurações, abordadas conforme as distintas relações construídas com a educação. No artigo "Dos conventos e recolhimentos para os colégios de freiras: as diferenças da educação feminina católica nos séculos XVIII e XIX", Ana Cristina Pereira Lage opera uma análise comparativa entre duas formas de educação desenvolvidas em instituições de caráter confessional destinadas às mulheres e organizadas no Brasil conforme suas congêneres europeias. As mudanças de direção nas concepções e nos objetivos da educação para as mulheres marcaram a organização e a atuação de comunidades religiosas e são mostradas na dimensão cotidiana das práticas educativas em conventos e recolhimentos instalados entre os séculos XVIII e XIX. Teresa Maria Rodrigues da Fonseca Rosa, no artigo "O ensino e a ciência nas instituições inacianas do mundo luso de setecentos", joga seu foco na Companhia de Jesus, ordem religiosa com grande influência educacional até meados do século XVIII, quando sofreu duros golpes em diversos países europeus. Partindo do documento pedagógico mais importante da ordem, o Ratio Studiorum, Teresa Rosa analisa seus programas de ensino das ciências, salientando a relação dos jesuítas com o cenário intelectual dos séculos XVI e XVII, inclusive nos momentos de avanço do pensamento ilustrado em Portugal. Por isso, a análise do ensino jesuítico das ciências em duas importantes instituições portuguesas, o Colégio de Santo Antão e a Universidade de Évora. Finalmente, o artigo de Itacir Marques da Luz, "Irmandade e educabilidade: um olhar sobre os arranjos associativos negros em Pernambuco na primeira metade do século XIX", no qual vemos a análise das possibilidades da educação de negros integrantes de associações religiosas leigas em Pernambuco, na primeira metade do século XIX, e que se constituíam, entre outras coisas, em instâncias formativas e educativas para aquela população. Por meio dessas instituições, propagavam-se valores e saberes e buscava-se distinção individual e coletiva no contexto de uma sociedade escravista.

Explorando a relação entre o processo de educação letrada e as trajetórias individuais, Eduardo Flores Clair, no artigo "La secularización de la cotidianidad, la persecución de Juan José López Vidaurri por la Inquisición novohispana, 1795-1800", analisa o processo inquisitorial sofrido por Juan José Lopez Vidaurri no contexto de secularização da sociedade na Nova Espanha, marcado pela educação e pelo hábito da leitura no ambiente influenciado pela ilustração. A trajetória de Vidaurri permite perceber as práticas educativas presentes na sociedade hispano-americana, ligadas aos processos de letramento e formação civilizadora, bem como o papel das redes de sociabilidades no desenvolvimento das ideias liberais. Foram essas ideias - ou como foram recebidas e interpretadas - que jogaram Vidaurri nas malhas da Inquisição.

As instituições militares são o objeto da reflexão de Nileide Souza Dourado no artigo "A Organização Militar: instituição educativa, seus diferentes sujeitos e cultura escolar na Capitania de Mato Grosso", no qual ela analisa as práticas educativas e culturais que envolviam essas instituições na Capitania de Mato Grosso. A autora considera diversos segmentos daquelas instituições, das que eram formadas pelas elites às que reuniam indivíduos dos grupos sociais subalternos, considerando os saberes e as normas relacionados às atividades militares que poderiam ter impactos na vida cotidiana das populações daquela parte da América portuguesa. Chamados a integrar o projeto de povoamento e defesa da fronteira oeste, índios, negros e brancos foram agentes do processo de entrecruzamentos culturais no qual se forjaram diferentes práticas educativas, ou foram igualmente resultantes delas.

A instituição familiar e sua relação com a educação é o foco do artigo "'Em sua companhia': estratégias femininas no processo educativo dos filhos - Vila Rica, Minas Gerais (1770-1830)", de Kelly Lislie Julio e Silvia Maria Amâncio Rachi Vartuli. Privilegiando o âmbito das famílias legitimamente constituídas - o que, no contexto do período colonial, significava terem se formado a partir do casamento consagrado pela Igreja Católica -, as autoras analisam a atuação de mulheres que, diante da viuvez, assumiram em diferentes condições a responsabilidade pelo cuidado de seus filhos órfãos, o que incluía a sua educação. As relações entre os homens e as mulheres são evidenciadas como tendo a educação enquanto mediadora e importante elemento a permitir uma participação mais ativa das mulheres no gerenciamento de suas famílias na ausência de seus maridos.

Por fim, no campo de uma educação mais direcionada e cada vez mais orientada para as instituições escolares, no artigo "Circulação e apropriação de concepções educativas: pensamento ilustrado e manuais pedagógicos no mundo luso-americano colonial (séculos XVIII-XIX)", Thais Nívia de Lima e Fonseca analisa as concepções sobre educação e instrução circulantes no cenário intelectual influenciado pelo Iluminismo e colocadas a serviço da formação dos súditos cristãos, particularmente na América portuguesa. Nesse contexto, sobressaíam as instituições ligadas ao Estado e seus agentes, que, na América, procuravam orientar aquela formação no sentido da eliminação dos comportamentos contrários à construção de uma civilidade no modelo europeu.

O tema escolhido para este dossiê tem relação direta com as discussões empreendidas no âmbito do Grupo de Pesquisa Cultura e Educação na América Portuguesa, envolvendo seus colaboradores diretos e eventuais, e inscreve-se em um campo ainda pouco explorado pela historiografia da educação, qual seja, os processos e as práticas educativas presentes nas sociedades ibéricas e americanas durante o período da colonização, especialmente no século XVIII e nas primeiras décadas do século XIX. Naquele momento, a difusão do pensamento iluminista contribuiu para o desencadeamento de mudanças importantes, entre as quais, as reformas educacionais realizadas em diferentes países europeus e com efeitos em seus domínios ultramarinos. Assim, com artigos decorrentes de estudos sobre as realidades históricas da educação no Brasil, em Portugal e na América espanhola, pretende-se ampliar a compreensão sobre esses processos, que se conectaram, e contribuir para o diálogo entre as diferentes historiografias.

Belo Horizonte, abril de 2016


Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016
Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais Avenida Antonio Carlos, 6627., 31270-901 - Belo Horizonte - MG - Brasil, Tel./Fax: (55 31) 3409-5371 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: revista@fae.ufmg.br