Open-access Estudos Curriculares: das teorias aos projectos de escola

Curricular Studies: from the theories to the school project

Resumos

Desde a sua génese até à actualidade, o campo de Estudos Curriculares tem sido marcado pela divergência de argumentos, situados tanto no plano dos discursos académicos quanto no terreno das práticas escolares. Se a desordem conceptual, sobretudo entre tradicionalistas e reconceptualistas, tem originado uma pluralidade de escritos, redigidos em diferentes contextos (social, económico, cultural, político e ideológico), as práticas curriculares têm seguido um percurso quase único, ditado por normas e regras nem sempre fáceis de alterar. Com este texto pretendemos retomar a discussão sobre as teorias do currículo, confrontando, de um lado, a teoria de instrução e a teoria crítica, num debate que ainda se trava entre neotylerianos e neoreconceptualistas, ou entre tradicionalistas e reconceptualistas, e, de outro, a dissonância entre discursos e práticas de construção do currículo ao nível da realidade portuguesa. Sobre este último aspecto, argumentaremos que os projectos de escola estão mais próximos da teoria de instrução do que da teoria crítica, na medida em que resultados de investigação permitem concluir que são projectos essencialmente administrativos e burocráticos, obedecendo a uma lógica de normatividade, construtora de uma identidade de legitimação.

Estudos Curriculares; Teoria de instrução; Teoria crítica; Projectos de Escola


From their appearance to the actuality, Curricular Study field has been marked by the divergence of arguments, placed so much in the plan of the academic speeches, as in the field of the school practices. If the conceptual disorder, above all between traditionalists and reconceptualists, is originating a plurality of writings, written in different contexts (social, economical, cultural, political and ideological), the curricular practices has been following an almost only course, dictated by norms and rules not always easy to alter. We intended to retake the discussion on the theories of the curriculum, confronting, on one side, the instruction theory and the critical theory in a debate that it is still locked between neotylerians and neoreconceptualists, or between traditionalists and reconceptualists, and, for other, the dissonance between speeches and construction practices of the curriculum at the level of the portuguese reality. On this last aspect, we will argue that the school projects are closer of the instruction theory than of the critical theory, in the measure that the results of investigation allow to conclude that these are projects essentially administrative and bureaucratic, obeying to a normative logic, builder of a legitimating identity.

Curriculum Studies; Instruction Theory; Critical Theory; School Project


DOSSIÊ FILE

O CAMPO DO CURRÍCULO HOJE: DEBATES EM CENA THE CURRICULUM'S FIELD NOWADAYS: DEBATES IN SCENE

Estudos Curriculares: das teorias aos projectos de escola

Curricular Studies: from the theories to the school project

José Augusto PachecoI; Nancy PereiraII

IInstituto de Educação e Psicologia, Universidade de Minho (Braga/Portugual). jpacheco@iep.uminho.pt

IIInstituto de Educação e Psicologia, Universidade de Minho (Braga/Portugual). nancypereira79@portugalmail.pt

RESUMO

Desde a sua génese até à actualidade, o campo de Estudos Curriculares tem sido marcado pela divergência de argumentos, situados tanto no plano dos discursos académicos quanto no terreno das práticas escolares. Se a desordem conceptual, sobretudo entre tradicionalistas e reconceptualistas, tem originado uma pluralidade de escritos, redigidos em diferentes contextos (social, económico, cultural, político e ideológico), as práticas curriculares têm seguido um percurso quase único, ditado por normas e regras nem sempre fáceis de alterar. Com este texto pretendemos retomar a discussão sobre as teorias do currículo, confrontando, de um lado, a teoria de instrução e a teoria crítica, num debate que ainda se trava entre neotylerianos e neoreconceptualistas, ou entre tradicionalistas e reconceptualistas, e, de outro, a dissonância entre discursos e práticas de construção do currículo ao nível da realidade portuguesa. Sobre este último aspecto, argumentaremos que os projectos de escola estão mais próximos da teoria de instrução do que da teoria crítica, na medida em que resultados de investigação permitem concluir que são projectos essencialmente administrativos e burocráticos, obedecendo a uma lógica de normatividade, construtora de uma identidade de legitimação.

Palavras-chave: Estudos Curriculares; Teoria de instrução; Teoria crítica; Projectos de Escola

ABSTRACT

From their appearance to the actuality, Curricular Study field has been marked by the divergence of arguments, placed so much in the plan of the academic speeches, as in the field of the school practices. If the conceptual disorder, above all between traditionalists and reconceptualists, is originating a plurality of writings, written in different contexts (social, economical, cultural, political and ideological), the curricular practices has been following an almost only course, dictated by norms and rules not always easy to alter. We intended to retake the discussion on the theories of the curriculum, confronting, on one side, the instruction theory and the critical theory in a debate that it is still locked between neotylerians and neoreconceptualists, or between traditionalists and reconceptualists, and, for other, the dissonance between speeches and construction practices of the curriculum at the level of the portuguese reality. On this last aspect, we will argue that the school projects are closer of the instruction theory than of the critical theory, in the measure that the results of investigation allow to conclude that these are projects essentially administrative and bureaucratic, obeying to a normative logic, builder of a legitimating identity.

Keywords: Curriculum Studies; Instruction Theory; Critical Theory; School Project

INTRODUÇÃO

O campo dos Estudos Curriculares alicerçou-se conceptual e metodologicamente no último século a partir de contributos oriundos de diferentes ramos do conhecimento, incluindo a Filosofia, a Administração, a Psicologia, a Sociologia, a Ciência Política, a História, a Teoria da Literatura, a Fenomenologia e, recentemente, os Estudos Culturais. Se as primeiras décadas do século XX são as da génese do campo, se as décadas de 1950 e 1960 são as da institucionalização, se as décadas de 1970 e 1980 são as da (re)conceptualização, a década de 1990 corresponde à complexidade teórica.

Neste artigo debruçamo-nos sobre a contemporaneidade do debate curricular, travado entre tradicionalistas e reconceptualistas, e esboçamos um breve percurso das teorias curriculares, referindo duas tendências de pensamento curricular que estão, respectivamente, associadas à teoria de instrução e à teoria crítica, esta entendida na multiplicidade de textos com vista à compreensão do currículo, aquela centrada na linearidade da implementação do currículo.

Ao defendermos a existência da teoria crítica, no plano dos discursos, e da teoria de instrução, no terreno das práticas, não apresentamos estas duas conceptualizações como dicotómicas, tão-só como duas vertentes de uma realidade que é interceptada por diversas lógicas de pensamento e por variados modos de acção.

Apresentamos, neste caso, um olhar sobre a realidade portuguesa de modo a interligar a possibilidade de uma teoria crítica quer com os discursos políticos e pedagógicos, quer com as práticas de construção do projecto educativo de escola.

A CONTEMPORANEIDADE DO DEBATE CURRICULAR

No seu longo percurso de um século, os Estudos Curriculares caracterizam-se pela dúvida e pela crise persistente, pois jamais poderão deixar de ser entendidos como um campo de fronteiras híbridas nas suas raízes conceptuais, funcionando na base de lógicas bem estruturadas ao nível das suas práticas. Porque não é uma área de conhecimento completamente autónoma, sendo marcada pela diversidade de designações, o Currículo não é, nos espaços académicos e escolares, uma disciplina com um campo estável e delimitado, com um nome reconhecido nos âmbitos escolar e social.1 Daí que, desde a sua génese, o Currículo esteja marcado pelo hibridismo epistemológico, com fortes raízes na Filosofia, Administração, Psicologia, Sociologia, Ciência Política, História, Teoria da Literatura, Fenomenologia e Estudos Culturais, originando diversas e contraditórias fronteiras disciplinares que lançam sobre o actual debate muitos desafios e muitas incertezas (Garcia; Moreira, 2003), mais ainda quando o currículo, como projecto social e cultural, é construído no terreno de políticas transnacionais e supranacionais (Moreira; Pacheco, 2006).

Mas qual é a relação entre Estudos Culturais e Estudos Curriculares? – interroga-se Pinar (2006). Considerando que os Estudos Culturais têm, em muitos casos, incorporado e substituído a teoria curricular, defendendo que deveriam ser integrados nos Estudos Curriculares e considerando que isso seria já uma marca da era pós-reconceptualista, em que nos encontramos, Pinar (2006, p. 93) salienta:

Como tal, os Estudos Culturais não só complicam os Estudos Curriculares como os intensificam, enquanto os imergem na cultura de massas, experiências subjectivas e lutas políticas. Os Estudos Culturais são, então, uma importante especialização dentro dos Estudos Curriculares, e dificilmente os substituem. Sem Estudos Curriculares, os Estudos Culturais tornam-se apenas uma "moda passageira", condenada a uma curta vida de prateleira no presente campo norte-americano da educação em que as suas "fundações" estão a desaparecer.

Perante a diversidade conceptual que marca o questionamento do currículo, cujo eixo estruturante, segundo Autio (2006), está ligado à racionalidade instrumental de Weber, à normatividade de Herbart e à psicologia educacional de natureza comportamentalista, há uma cíclica tendência para a produção de crises – para Cuban (1995), o campo curricular tem sido marcado pela desordem conceptual – sugerindo-se mesmo o seu estado colmatoso, tal como foi pronunciado por Schawb, em 1969, em reacção ao excessivo pendor da teorização técnica e das práticas curriculares dominadas pela racionalidade tyleriana (rationale Tyler), isto é, uma noção de currículo centrada no seu processo de desenvolvimento a partir de quatro alicerces fundamentais: objectivos, conteúdos, actividades e avaliação. Com esta proposta teórica está criado o grupo dos tradicionalistas, dominante até finais da década de 1970 e contestado pelos conceptualistas e reconceptualistas.2

Baseando-se na compreensão do currículo como uma pluralidade de textos, a reconceptualização (Pinar, 1975) rasga novas fronteiras com a noção de diferença, as questões de poder e as narrativas identitárias, originando a diversidade teórica, sobretudo para o caso das teorias críticas e pós-críticas.

No momento em que se proclama a homogeneização da escola (Kress, 2003), o debate é novamente reabilitado pelos neotylerianos (Wraga; Hlebowitsh, 2003) através de uma proposta para a genuína renascença do currículo.

A morte aparente do currículo foi superada pelo movimento da reconceptualização, vista pelos seus críticos como um movimento dominado por contendas ideológicas internas e por críticas externas fracturadas no campo, sendo acusados de "ignorarem completamente questões relativas às práticas curriculares" (Wraga; Hlebowitsh, 2003, p. 429).

Nessa perspectiva, o renascimento do campo far-se-ia pelo não divórcio entre teoria e prática e pela focalização dos Estudos Curriculares nas questões práticas: "Eu concordo que a reconceptualização de que Bill Pinar é pioneiro falhou na tentativa de aliviar as crises no campo do currículo, embora não esteja seguro que um contínuo, ou até mesmo crónico, estado de crise seja uma coisa má." (Urban, 2003, p. 441) Neste caso, perfilha-se a existência de uma linearidade do pensamento curricular como se existisse uma única ordem conceptual para entender a relação entre a teoria e a prática curriculares. Ao contrário, e no quadro da pós-reconceptualização, o Currículo é uma "conversação complexa" (Pinar, 2004), e entendê-lo assim introduz no debate curricular a dissenção, isto é, reconhecer que "o entendimento se dá por meio da conversa, do conflito e da incerteza" (Pinar, 2003, p. 154).

Recentemente, Pinar (2006, p. 5) pergunta: "o que pressupõe o processo de construção do currículo na era da pós-reconceptualização?", para logo responder:

Em termos gerais, o estudo das relações entre subjectividade, sociedade e conhecimento académico requer pesquisa autobiográfica e cultural (incluindo política, económica, racial e de género) e trabalho intelectual dando significado subjectivo de facto, urgência existencial pela primeira e significado social pela segunda. Em termos mais específicos, para fazer este estudo como montagem curricular como matéria de originalidade, criatividade e com capacidade para "improvisação" (ver Aokii, 2005, 1990) requerem-se perícias técnicas no assunto e uma formulação pedagógica da sua possível importação para a educação pública. Emprego esta última frase para tornar explícito que a educação pública não é necessariamente idêntica à aquisição de conhecimento nas disciplinas académicas tais como estas são institucionalizadas actualmente em escolas e universidades. O ponto de tal pesquisa não pode ser (só) melhorar os resultados de testes em exames estandardizados (para estabelecer direitos de ostentação para os políticos) ou preparar os estudantes para o sucesso nas salas de aula, embora nenhum educador se possa opor a ambas. O ponto de tal pesquisa é fortalecer o conteúdo intelectual do currículo escolar ao mesmo tempo que sugere o seu significado subjectivo e social.

Independentemente dos argumentos avançados pelos seus autores, o pseudorenascimento do currículo é mais um argumento contrário à teorização crítica, pretendendo reduzi-lo a um assunto técnico e administrativo, contestando a ideia do currículo como uma possibilidade que existe em determinados contextos sociais e culturais, ou como um texto, que pode ser escrito e reescrito pelos seus autores no interior das comunidades educativas. Embora o Currículo não seja só um discurso, o textismo, que constitui a realidade social como texto (Bourdieu, 2004, p. 45), carece de uma visão da realidade estruturada em práticas que conferem sentido às escolas e aos seus projectos de formação.

Ao invocar a ausência das práticas, o renascimento do currículo distancia-se de propostas muito teóricas, defendendo o regresso às ideias tylerianas, centradas no processo de desenvolvimento do currículo, numa nostalgia que ignora a reconceptualização, a criatividade e a multiplicidade como características marcantes dos estudos curriculares (Reynolds, 2003), bem como os contributos da teorização crítica.

Como Morrow e Torres (2003, p. 35) sugerem relativamente à noção de reprodução cultural, é necessário trazer a teoria crítica de volta para o campo curricular, não deixando que fique aparentemente sequestrada pela "ortodoxia dos estudos sobre a teoria da ideologia e os neomarxismos", nem tampouco contestada nos seus fundamentos basilares pelos neotylerianos, cujas idéias centram-se na existência de uma teoria normativa, que regula práticas identificadas cada vez mais com políticas que valorizam os resultados de aprendizagem no âmbito das políticas de accountability.

Para além de redefinir o pensamento de Schwab, aproximando-o de Tyler, a renovação do discurso neotyleriano explora as ideias de um desenvolvimento do currículo centrado na experiência da escola e na relevância da sua autoridade (Hlebowitsh, 2005), sendo, por isso, fortemente potencializado pelas políticas de descentralização, cujos fundamentos, contraditoriamente, também podem ir de encontro às ideias perfilhadas por educadores críticos.

TEORIA TRADICIONAL E TEORIA CRÍTICA3

Em termos históricos, a teoria crítica é um projecto interdisciplinar que, partindo da teoria marxista de mudança social, foi muito divulgada pela escola de Frankfurt (Nobre, 2004). A sua base é a reflexividade e o interesse emancipatório dos agentes (Payne, 1996). Desse modo, "a teoria crítica é uma metáfora para uma certa orientação teórica que tem a sua origem em Kant, Hegel e Marx, a sua sistematização em Horkheimer está associada ao Instituto para a Investigação Social, em Frankfurt" (Ramussen, 1999, p. 1). Apesar de uma fundamentação filosófica inicial,4 a teoria crítica reconhece-se, hoje em dia, nos mais diversos campos do conhecimento e traduz-se pela "teoria que não reduz a realidade ao que existe" (Santos, 1999, p. 197).

A utilização da teoria crítica nos Estudos Curriculares remonta a 1967, à Conferência sobre Teoria Curricular, realizada na Ohio State University, onde MacDonald usou as expressões teorias de engenharia (para se referir à influente racionalidade tecnológica tyleriana) e framework theories (para abarcar os que perfilham a conceptualização não técnica do currículo e se identificam, de igual modo, com o conceito de racionalidade estética – de Marcuse –, que, aplicado ao campo curricular, significa a adopção de novas formas de interpretação do currículo).

Do mesmo modo, Mann (1975) dicotomiza a teorização num modelo aberto (disclosure model) e num modelo fechado (picturing model),5 defendendo que, sendo o currículo visto como um objecto literário que dá origem a diferentes formas de significação, a teoria curricular não é teórica, mas praxiológica. Esta é também a posição de MacDonald (1995), quando afirma que o currículo deve ser perspectivado pela praxis, ou pela acção com reflexão.

A teoria crítica traz à realidade curricular os lados mais ocultos das práticas e, sobretudo, a geografia das relações, na medida em que se torna possível olhar criticamente para as diversas relações que existem quando se pensa no conteúdo e na forma daquilo que se faz no contexto das organizações escolares. As linhas de acção dos actores curriculares são delineadas por forças mais vastas que controlam os contextos social, económico e político, aceitando-se, assim, o argumento gramsciano de que as lutas e os conflitos culturais não são superficiais, mas reais e cruciais na batalha da hegemonia (Apple, 1999).

Embora o currículo jamais deixe de ser uma estrutura, pois a escolaridade traduz-se, nos dias de hoje, num direito constitucional, com funções culturais, sociais, políticas e económicas bem declaradas, podemos utilizar para a sua análise diversos referentes teóricos. Perante a diversidade dos quadros teóricos em torno das teorias curriculares, e sem que tal signifique o regresso à dicotomia ou ao dualismo conceptual, ou mesmo que a teoria dos interesses constitutivos dos saberes de Habermas não forme uma plataforma válida de fundamentação, reiteramos a existência de duas teorias curriculares dominantes (teoria de instrução e teoria crítica), aliás subsidiárias da classificação de Horkheimer (2000), quando distingue teoria crítica de teoria tradicional, situadas na complexidade de formalização das políticas educativas e curriculares entre os modelos das racionalidades técnicas e das racionalidades contextuais (Pacheco, 2002).

É na confluência destes modelos que situamos a teoria de instrução e a teoria crítica (Figura 1), sabendo-se que currículo não existe nem a partir de critérios meramente técnicos nem no corpo de sólidos argumentos teóricos. Nos Estudos Curriculares, a abordagem teórica é um trabalho de compreensão das práticas em função de referentes (políticos, profissionais, administrativos, jurídicos, entre outros) que permitem discutir tanto o conhecimento transformado em conteúdo de aprendizagem quanto as formas da sua organização.


Assim, a teoria crítica é situada mais no lado das racionalidades contextuais e menos no lado das racionalidades técnicas, pois trata-se de uma abordagem conceptual que consiste em olhar para a possibilidade de transformação da prática na base de dois princípios estruturantes: a orientação para a emancipação e o comportamento crítico.

A teoria de instrução tem como palco de fundamentação a margem das racionalidades técnicas, convertendo o currículo num facto que é o resultado de práticas de dominação, com a secundarização das racionalidades contextuais.

A análise conjunta das teorias de conceptualização do currículo e dos modelos compreensivos das políticas educativas e curriculares coloca uma questão central: o antagonismo ou a complementaridade das teorias na construção do currículo. São teorias antagónicas, na base da argumentação de Horkheimer (2000), quando faz a distinção entre teoria tradicional e teoria crítica, ou teorias complementares, na esteira do pensamento de Habermas, com a dupla face da racionalidade (instrumental e comunicativa)?

Se complementares, as teorias de instrução e de crítica, entendidas na diversidade de abordagens conceptuais no seu interior, contribuem para a compreensão de uma realidade curricular, regulada pelas racionalidades técnicas e problematizada pelas racionalidades contextuais. Tal perspectiva corresponde a que o currículo não deixa de conter, em momentos do processo do seu desenvolvimento, práticas de natureza técnica, ainda que na globalidade também constitua um espaço de acção reflexiva, com a discussão crítica dessas mesmas práticas.

Se as teorias de instrução e de crítica são antagónicas na totalidade dos seus argumentos, de que modo é possível actuar na base da deliberação crítica?

Uma outra questão problemática: a teoria de instrução, situando-se no lado das práticas, ou no modo como é o currículo, no quadro de uma prescrição, é um suporte teórico que estrutura as práticas curriculares dos actores comprometidos com soluções técnicas enquanto que os seus discursos são recorrentes da teoria crítica. A co-existência da teoria de instrução com a teoria crítica faz-se, assim, no terreno do pensamento e da acção dos intervenientes curriculares.

TEORIA CRÍTICA

A problematização do campo curricular é constante, e qualquer teorização não representa mais do que um caminho possível de inteligibilização da realidade ligada a processos e práticas de educação e formação. Na diversidade de propostas teóricas (Pinar, 1975; Kemmis, 1988; Tadeu da Silva, 2000), que têm marcado a identificação de perspectivas conceptuais na linha do pensamento habermasiano, sublinhamos o texto "Teoria tradicional e teoria crítica", publicado por Horhheimer, em 1937.

A partir da interrogação "Como se relaciona o pensamento crítico com a experiência?", Horhheimer propõe uma actividade teórica que, uma vez orientada para a emancipação, tenha por objectivo a transformação da totalidade social por meio da identificação de categorias dominantes. O pensamento crítico reconhece que toda a mudança, numa perspectiva de uma filosofia negativa (Torres, 2003),6 dado que revalece a lógica de negação das estruturas existentes, não é tarefa de um só sujeito mas de sujeitos comprometidos com a construção do presente histórico.

Assim, exercitar a atitude crítica pressupõe rejeitar a teoria no sentido tradicional, ou positivista, isto é, como um conjunto de proposições racionalmente deduzidas a partir de factos, pugnando-se quer pela noção de sujeito activo, quer pelo peso histórico da noção de classe. Daí que, para Horkheimer (2000, p. 51), "a profissão do teórico crítico é a luta, que pertence ao seu pensamento, e não o pensamento como algo independente ou que possa ser separado da luta", adoptando uma postura de agressividade: "a sua crítica é agressiva não só contra quem conscientemente faz a apologia do existente, bem como contra as tendências desviantes, conformistas ou utópicas que surgem nas suas próprias fileiras" (p. 50).

Ao integrar-se numa comunidade de homens livres, o teórico crítico recrudesce a luta porque não se contenta com mudanças parciais, exigindo a transformação da totalidade a que está ligado, e vincando bem o conflito que lhe é inerente, já que estar do lado da teoria crítica é reconhecer o espaço da contestação, olhar de uma outra forma para a realidade e comprometer-se politicamente com o que se faz e se pensa.

"De que lado estamos?" é a pergunta que "sempre serviu de ponto de partida para a teoria crítica", tornando-se "para alguns, uma pergunta ilegítima, para outros, uma pergunta irrelevante e, para outros ainda, uma pergunta irrespondível" (Santos, 1999, p. 200).

Porque é difícil estar do lado crítico na totalidade da mudança e na utopia do discurso, acreditando-se que a realidade não está suficientemente ancorada em estruturas de racionalidade técnica. Porque não há sugestões para uma prática docente crítica, e a teoria se utiliza de "um discurso altamente abstracto e complexo, cujos princípios dificilmente podem ser entendidos e operacionalizados pelos professores" (Moreira, 1998, p. 13). Ou seja, "em termos gerais, os pedagogos críticos não foram capazes de desenvolver um discurso crítico que proporcionasse a base teórica necessária para sugerir abordagens alternativas à organização escolar, ao currículo, à pedagogia na sala de aula e às relações sociais" (McLaren; Giroux, 1997, p. 51). A interrogação mais real é esta: "por que é tão fácil estar do lado contrário ao da teoria cítrica?" (Pacheco, 2006, p. 165).

Uma das respostas possíveis radica-se na existência, de um lado, de uma teoria tradicional (de instrução, no campo das práticas curriculares), que estrutura as práticas escolares e, de outro, de uma teoria crítica, prevalecente no nível dos discursos. Neste duplo sentido de se entender o currículo, fraccionado na relação entre teoria e prática, Pinar (2003, p. 148) salienta a categoria identidade, podendo o teórico crítico ajudar os professores a compreenderem porque se pretende que passem de chefe de secção de fábrica a gerente de corporação, evitando, assim, "o desaparecimento de seus ideais no redemoinho das exigências cotidianas da sala de aula".

Porém, e uma vez que toda a identidade é construída histórica e socialmente, a formação de identidades ligadas a contextos profissionais como o do ensino, seguindo-se a argumentação de Day (2006), é algo mais marcado pelas questões técnicas (gestão da sala de aula, conhecimento da disciplina, resultados dos testes dos alunos), do que pelas questões de natureza pessoal, profissional, social e emocional. Os contextos de ensino são essencialmente produtores de identidades "técnicas", pois os professores, no contexto das políticas de homogeneização da educação e da escola (Kress, 2003), são mais avaliados e responsabilizados pelo lado dos resultados dos alunos do que pelo seu lado mais pessoal e de gestão dos processos de aprendizagem.

Quando inscrita numa agenda de performatividade e de gerenciamento escolar e de estandardização curricular, Sachs7 associa aos professores a identidade empresarial: "Esta identidade poderá caracterizar-se como sendo individualista, competitiva, controladora e reguladora, definida externamente e orientada para standards."

Perante essa realidade, cada vez mais presente nas escolas, o teórico crítico pode ajudar os professores a conhecerem os fundamentos das agendas políticas, desocultando as redes de pressupostos económicos que estão na sua base. Por exemplo: afirmar que as políticas de descentralização, introduzidas na década de 1980 e aceleradas na década de 1990, estão associadas a políticas supranacionais (Mons, 2004). A transferência de competências para o nível da organização escolar e para os actores locais e o reconhecimento da autonomia escolar, entre outros aspectos da descentralização, "não são tanto instrumentos de políticas educativas quanto instrumentos ao serviço de objectivos estrangeiros para a qualidade do ensino" (Mons, 2004, p. 44). Por mais que a descentralização seja veiculada nos documentos de definição das políticas educacionais, admitir-se-á que "o Estado central não abdica de todo o seu poder na organização do sistema educativo: se as suas competências se limitam à regulação e ao controlo, o conjunto das tarefas de gestão são delegadas nos actores locais, sobretudo às escolas, que passam a se beneficiar de um amplo estatuto de autonomia" (Mons, 2004, p. 46).

Conseqüentemente, a participação dos actores locais, a autonomia das escolas, a construção de projectos educativos e curriculares (político-pedagógicos) são dimensões que, aplicadas ao currículo, poder-se-iam situar nos pressupostos da teoria crítica, que surge como "estrutura seminal para entender educação, currículo e instrução, práticas de ensino e políticas educacionais" (Torres, 2003, p. 111).

TEORIA CRÍTICA E PROJECTOS DE ESCOLA

No contexto da reforma do sistema educativo, que começa na década de 1980 em Portugal e se tem prolongado até ao presente, marcada pela descentralização, autonomia, participação, identidade e projecto, entre outros termos, a escola é chamada a desempenhar um papel relevante na construção do currículo sem que os seus alicerces sejam profundamente alterados. Volvidos os tempos em que a escola era pensada central e burocraticamente, inicia-se, no contexto de reformas sociais e económicas, um processo de transformação que discursivamente a aproxima de uma escola autónoma, crítica e participativa.

Desse processo de mudança resulta o entendimento da escola como uma organização complexa, dotada de regras formais e informais, que se situam essencialmente em espaços de construção de identidades locais, que resultam sobretudo da construção e da operacionalização de projectos educativos e curriculares.8 Esta escola, como organização, é perspectivada em função de projectos que abarcam a dimensão social e educacional (projecto educativo), a dimensão formativa e instrucional (projecto curricular) e a dimensão administrativa (projecto organizativo).

O termo projecto educativo é introduzido em Portugal através de vários documentos surgidos no âmbito das alterações introduzidas pela Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE), em 1986, sendo que o seu uso surge no ensino público em 1989.9

Relativamente à centralidade deste documento de escola, é de sublinhar que, no plano intermédio da gestão e administração das escolas do ensino básico (fundamental), e no quadro não só da valorização dos contextos locais de decisão política bem como da assunção de políticas descentralizadas, o projecto educativo surge nos normativos10 como sendo um documento de planificação estratégica das práticas pedagógicas, na medida em que permite chegar a uma partilha de princípios e objectivos que traduzem o trabalho dos agentes educativos na procura de definição de uma política educativa de escola.

Assim, um projecto de escola existe, de um lado, como sentido abstracto ou idéia global de uma autonomia possível, dentro de um quadro organizacional e, de outro, como síntese e corporização dos projectos a que correspondem actividades de natureza formativa, instrutiva e administrativa.

Guerra (2002, p. 99) salienta, no plano das idéias, que o projecto educativo de escola é uma plataforma de análise sobre a qual se constrói o conhecimento e a acção educativa de toda a escola, não sendo um documento de carácter burocrático nem uma exigência administrativa que encerra sobre si própria o alcance da sua finalidade. A elaboração desse documento deverá originar uma reflexão crítica, uma compreensão profunda e uma reconstrução de valores, devendo este ser "um procedimento articulado de reflexão de toda a comunidade educativa que impede a improvisação, a rotina, o individualismo, a inércia, a ingenuidade e o peso excessivo da sorte" (Guerra, 2002, p. 99).

A possibilidade de a escola elaborar os seus projectos educativos e curriculares constituiria, por si só, uma das situações que a colocariam no espaço de uma teoria curricular crítica, com a valorização da autonomia e da participação dos actores na construção auto-referencial do currículo e num diálogo permanente com a comunidade. No entanto, torna-se necessário questionar não só os argumentos que estão na base de uma reforma centrada nos projectos de escola bem como nas práticas da sua construção, admitindo-se que as práticas curriculares são mais determinadas pelos parâmetros curriculares nacionais do que pelas práticas de organização intrínsecas às escolas. A existência de projectos de escola não implica directamente a emergência de práticas emancipatórias geradoras de uma práxis deliberativa.

Com base em um breve levantamento bibliográfico, realizado em Portugal, a partir do momento em que o projecto educativo foi introduzido na organização escolar dos ensinos básico (fundamental) e secundário (médio), constata-se que o projecto educativo é associado, essencialmente, às temáticas da autonomia e da participação, sendo secundarizadas as questões da planificação das práticas pedagógicas, que constituem a centralidade da sua definição.

Com efeito, as primeiras referências relativas ao projecto educativo são, de modo geral, indirectas, ligadas às questões da participação da comunidade (Azevedo, 1995), às culturas organizacionais de escola (Gomes, 1995) e à LBSE (Fernandes, 1995).

As referências directas encontradas correspondem a questões organizacionais e curriculares, com destaque para as da autonomia e as da participação. Numa análise mais pormenorizada desses textos, verifica-se que o projecto educativo é defenido como um "pendão do poder da comunidade educativa e uma marca de fronteira para o desenvolvimento da vida e da acção social dentro da escola" (Sarmento; Formosinho, 1995, p. 73).

Outras referências encontradas evidenciam que o projecto educativo surge na tentativa de preencher o vazio das intencionalidades que a reforma educativa normalizava, ou seja, corresponde à tentativa de modificar as práticas educativas (Branco, 1997). Mas também se verifica que nem todos os projectos têm a capacidade de introduzir mudanças nas práticas educativas nem de criar dinâmicas de acção, pelo que os termos "projecto educativo", "inovação" e "mudança" (das práticas educativas) não são sinónimos.

Para Costa (1997), que apresenta um estudo relativo a diferentes modelos de organização e gestão, o projecto educativo desempenha um papel central na organização escolar. Referindo as etapas e os resultados das observações, quando da construção de três projectos educativos de diferentes escolas, conclui que os projectos educativos são perspectivados pelos actores como um ritual de legitimação. Este tipo ideal de imagem organizacional da escola é integrado num quadro teórico que caracteriza o projecto como planificação eficiente, como identidade conceptual e como negociação conflitual.

O projecto educativo é rapidamente incluído nos procedimentos administrativos da escola, podendo ser definido como "um instrumento de administração da escola que visa superar alguns dos défices crónicos isolamento, ausência de empenhamento, fragmentação, indeterminação dos objectivos, fluidez dos meios através da introdução de novos processos" (Gomes, 1997, p. 105). Para tal, é necessário ter alguns cuidados de modo que não se verifiquem as seguintes situações: não criem mais problemas do que aqueles que se propõem resolver; não centralizem, ao tornar técnicos e pesados os processos de diagnóstico, planeamento e avaliação; não impeçam a mudança ao ratificar, retrospectivamente, práticas regulares e dominantes; não consolidem rupturas programáticas, onde existiam apenas fragmentações organizacionais. Ainda, é preciso cuidar para não se criar a ilusão de que se controlam os acontecimentos, em situações em que no passado havia intuição e resolução ad hoc de problemas.

Uma perspectiva diferente é apresentada por Gonçalves (1997), para quem o projecto educativo se constitui como uma estratégia de "formação-acção", numa estreita relação entre projecto de escola e projecto de formação contínua de professores, na medida em que a formação é uma das condições essenciais para a qualidade do ensino, da inovação pedagógica e do processo organizativo das escolas, determinado em grande parte pelo projecto educativo de cada escola.

Encontram-se ainda outras referências ao projecto educativo, sendo associadas à Área-Escola11 (Monge; Rosário; Santos, 1997), mormente no que esta área curricular não disciplinar representa em termos de construção da autonomia das escolas e dos professores. Numa aproximação aos contextos de decisão, Canário (1999, p. 222) aborda a questão dos projectos educativos locais, que apresenta como "um instrumento de realização de uma política educativa local, articulando as ofertas educativas existentes, os serviços sociais com os serviços educativos, promovendo a gestão integrada dos recursos existentes e inserindo a intervenção educativa numa perspectiva de desenvolvimento da comunidade".

Outras referências ligam o projecto educativo a modelos e práticas de administração escolar (Barroso, 2002), com destaque para as questões da descentralização educativa (Ramos; Vinagre, 2005), da relação escola-família (Villas-Boas, 2002), da participação do poder local (Ramos; Ambrósio, 2002), da inovação curricular (Fernandes, 2002), das políticas curriculares (Fontoura, 2002; Morgado, 2002; Morgado, 1999;12 Fernandes, 2005; Pacheco, 2005) e da autonomia (Solano; Sanches, 2005). Para estes últimos, e no seguimento da explicitação de uma abordagem teórica centrada na autonomia das organizações escolares, a autonomia só é possível no quadro de um projecto educativo regulado pelo Estado como forma de garantir coerência, eqüidade e democracia. Daí que a autonomia da escola, que é possível assumir através da construção de um projecto educativo, entendido como um documento de planificação estratégica das práticas pedagógicas, passe pelo reconhecimento e valorização de dimensões sociais, educacionais, instrucionais e organizativas existentes nos diferentes tipos de projectos de escola.

Num estudo empírico realizado por Pereira (2006), resulta a ideia de que os projectos educativos não cumprem, na prática, as orientações que estão na base da sua elaboração, pois os professores aceitam-nos como documentos de ritualização escolar. Com efeito, os projectos de escola, ao contrário do que seria de esperar, não são o resultado da acção dos diferentes actores educativos, principalmente de professores e alunos, apresentando-se estes como o somatório de políticas educativas concretas, com uma identidade normativa bem vincada, coincidente com a identidade de legitimação, definida por Castells (2000).

Tal situação prende-se quer com um excesso de regulamentação, quer com a existência de inúmeras incongruências entre o plano da regulação normativa e da acção, dado que a lógica dominante é a do controlo hierárquico e da produção de normativos, enquanto que uma política de reforço da autonomia implica uma lógica de funcionamento centrada na prestação de serviços de apoio.

No mesmo estudo (Pereira, 2006), constata-se que, em Portugal, os docentes ainda se encontram numa situação de resistência perante medidas que visam melhorar a qualidade do serviço prestado pelas escolas, assente numa maior autonomia destas. Esta concepção redutora da actividade docente constitui-se como um dos maiores inimigos da implementação da autonomia das escolas e na concretização de uma escola crítica no sentido em que esta exige abertura, cooperação, inovação, participação em órgãos colectivos e actividades de equipa por parte de docentes ou de outros actores. Segundo Nóvoa, citado por Teodoro (1994, p. 23), para inverter este estado é preciso convencer os docentes de que devem assumir uma postura diferente, abandonando "o comportamento defensivo, mais próprio de funcionários do que de verdadeiros profissionais". Esta visão deve ser encarada como uma mentalidade, que é necessária fazer evoluir, demonstrando exemplarmente os benefícios de uma autonomia assumida, com formação contínua adequada e com estímulos relacionados, por exemplo, à progressão na carreira. Consideramos também que esta evolução é um desafio necessário que se coloca aos docentes, às escolas e ao poder político, à medida que o "isolacionismo" docente refugia-se em posições corporativistas que visam a defesa do controlo da escola por parte dos docentes.

Num outro estudo, Roldão (2005, p. 69) sublinha a sobrecarga burocrática real e a escassa eficácia que os projectos originam, "vistos apenas como textos escritos, a produzir uma lógica de conformidade, difíceis de articular entre si, na perspectiva dos professores, e de uma utilidade que se lhe apresenta, no quadro da cultura de escola e da profissão em que estão inseridos, no mínimo duvidosa".

Neste caso, constata-se que a existência de um discurso centrado nos projectos e na noção de desenvolvimento curricular baseado na escola, predominante nos normativos que configuram a estrutura curricular do sistema educativo português, não configura uma identidade de projecto, ou emancipatória, dos professores; pelo contrário, o lado da burocracia que introduzem originam a adopção de uma estratégia de sobrevivência por parte dos docentes, na medida em que as suas práticas não se alteram a partir de normativos, mantendo-se enquadradas numa tradição alicerçada em práticas uniformes, veiculadas pela teoria de instrução e distantes de uma teoria crítica.

Neste sentido, na avaliação dos projectos de escola,

parece assim evidenciar-se um carácter retórico dos documentos que não provêm apenas da visão um pouco "seguidista" dos docentes, aliás historicamente explicável, mas também dos efeitos dessa mesma história e seus mecanismos instituintes ao nível de todo o sistema e dos diversos agentes da sua administração, todos eles portadores, tal como os docentes, de culturas burocráticas fortemente enraizadas que, justamente, não podem mudar-se por via igualmente burocrática (Roldão, 2005, p. 67).

Tratando-se da construção de um identidade de resistência passiva, os professores, perante as exigências administrativas, tornam-se, eles próprios, normativistas.

No estudo de Roldão (2005, p. 59), para o ensino básico em Portugal, "constatou-se, assim, mais uma vez, no clima e na cultura dos professores, da escola e do sistema, um conjunto de contradições evidentes que leva os professores a desenvolverem uma postura cada vez mais orientada para a normatividade". No estudo de Costa, Dias e Ventura (2005, p. 117), no contexto da reorganização curricular, o comportamento dos professores "parece ter sido mais reactivo, mais orientado pela necessidade de cumprir o melhor possível o que os normativos legais determinam".

A identidade de projecto, sinónimo de uma proposta de alteração das práticas instituídas, é, assim, algo que existe numa identidade de legitimação, centralmente delineada, e que procura, através de normativos, impor a mudança e inovação sem que as práticas sejam modificadas nos seus aspectos mais substantivos. À luz de resultados de estudos empíricos realizados em Portugal (Pacheco, 2002), verifica-se que os conceitos de autonomia, participação, comunidade, projecto e descentralização, entre outros, se encontram preferencialmente na discursividade dos normativos e documentos de orientação política da Administração central e não, como seria de esperar, nas práticas dos professores.

As reformas educativas intersectam a mudança curricular nos seus aspectos menos relevantes, em termos da concepção, gestão e avaliação do currículo nacional, deixando os aspectos centrais do currículo imunes a qualquer alteração, a não ser a introdução de novos conceitos (projecto, competência), a modificação de cargas horárias das disciplinas e a introdução de áreas curriculares não disciplinares. O que constitui o núcleo central do currículo, ou seja, os conteúdos e suas formas de organização escolar, não se altera ao nível das práticas, mesmo que os princípios inerentes aos discursos políticos se situem no lado da autonomia das escolas. Contudo, as reformas, nos mais diversos termos que são utilizados pela administração educacional, não deixam de afirmar a preponderância da autoridade curricular13 da Administração central face à secundarização da autoridade profissional das escolas, diminuindo o poder localizante dos professores.14

No entanto, também não se pode enveredar, assim o reclama Duarte (2006, p. 100), pela ideia de que a teorização crítica, geralmente identificada com as novas pedagogias (caso da pedagogia de projecto, a pedagogia por competências e da pedagogia do professor reflexivo) está totalmente afastada de uma autoridade curricular:

A negação do ensino e da transmissão do conhecimento que está na base de todas essas pedagogias produz no ambiente da pós-graduação em educação uma atitude pseudocrítica que se limita a repetir o surrado bordão de denúncia do anacronismo, do autoritarismo e do espírito verbalista e livresco da escola tradicional. Essa atitude pseudocrítica, além de disfarçar a fragilidade dos fundamentos teóricos das "novas" pedagogias, desviando a atenção para o sentimento de aversão pelas mazelas da escola tradicional, difunde ainda uma ideia falsa sobre o que seria um pensamento crítico, o qual passa a ser identificado de forma directa e mecânica com a defesa de pedagogias supostamente democráticas em oposição a pedagogias supostamente autoritárias. Esse fenómeno dificulta a discussão séria sobre o que seria um intelectual crítico em educação, na medida em que, implícita à difusão dessas pedagogias, difundiu-se também a ideia de que um educador que antes de tudo rejeite a escola tradicional e adote uma dessas pedagogias já seria, automaticamente, um educador crítico.

CONCLUSÃO

Apesar da linha de divisão que existe entre teóricos críticos e professores, apesar de se reconhecer que o grupo dos teóricos do currículo talvez não esteja na escola (Pinar, 2003), e que os avanços teóricos afectam muito pouco a prática docente (Moreira, 1998), é necessário trazer de volta a teoria crítica para campo dos estudos curriculares por mais evidente que seja o reforço da teoria de instrução ao nível das práticas e que seja incongruente o discurso em torno de conceitos próximos aos da teoria crítica. Neste caso, o teórico crítico, para além de um compromisso ético,15 pode ajudar os professores a compreenderem o currículo como algo que lhes pertence social e culturalmente, se para tal se comprometerem politicamente com a melhoria dos processos de aprendizagem e com a formação humanista e crítica dos alunos. Ajudar ainda os professores a desenvolverem mecanismo de auto-reflexão, buscando nas práticas escolares princípios que são teoricamente interpretados em função de categorias dominantes, pois a teoria tem a função de cartografar o presente (Tadeu da Silva, 2000), ao mesmo tempo que se torna numa ferramenta conceptual para analisar os porquês das práticas.

Recorrer à teoria para analisar discursos e práticas escolares é uma opção necessária se entendermos a produção de discursos teóricos como uma prática crítica, ou seja, no dizer de Hall (2003, p. 131), como uma tentativa de solucionar problemas. A teoria corresponde, nesta perspectiva, a uma forma concreta de interrogar, de um levantar de pedra, sendo conhecimento conjuntural, contestado e não a verdade. A teoria pode ser utilizada para trabalhar a compreensão da realidade escolar, associando-se a um potencial de intervenção e a rupturas significativas, em que velhas correntes de pensamento são rompidas, velhas constelações deslocadas, e elementos novos e velhos são reagrupados em redor de uma nova gama de premissas e temas.

Por isso mesmo, argumenta Pinar (2003, p. 150), "ser um teórico [crítico] significa que a organização contemporânea do currículo e os modos de cognição que requer precisam de ser questionados e situados na história, na política e em nossas histórias de vida".

Recebido em: 02/01/06

Aprovado em: 02/03/07

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  • 1
    Para Bourdieu (2004, p. 92), "a disciplina é um campo relativamente estável e delimitado, portanto relativamente fácil de identificar: tem um nome reconhecido escolar e socialmente [ ] está inscrita em instituições, laboratórios, departamentos universitários, revistas, instâncias nacionais e internacionais (congressos), processos de certificação de competências, sistemas de retribuição, prémios".
  • 2
    Para Kim Pyeong-Gook e J. Marshall (2005), existem dois grupos representativos dos textos curriculares: os tradicionalistas, ligados a Tyler, e os reconceptualistas, identificados com Pinar.
  • 3
    Muitas destas ideias contidas neste ponto estão expressas no livro
    Estudos Curriculares: para a compreensão crítica da educação, publicado em 2006, pela Porto Editora.
  • 4
    A este respeito, Santos, 1999, p. 200, afirma que as raízes de uma teoria crítica moderna, para além da influência de Marx, do romantismo do século XVIII e de princípios do século XIX, do pragmatismo americano do século XX, se encontram "em múltiplas orientações teóricas, estruturalistas, existencialistas, psicanalíticas, fenomenológicas, e os ícones analíticos mais salientes foram, talvez, classe, conflito, elite, alienação, dominação, exploração, racismo, sexismo, dependência, sistema mundial, teologia de libertação".
  • 5
    Posteriormente a John Mann, William Doll (1993) aplica ao campo curricular a visão fechada do paradigma moderno e a visão aberta do paradigma pós-moderno. Baseando-se numa definição pós-moderna do currículo, argumenta que tanto a formulação de fins universais e de objectivos comportamentais quanto a predeterminação dos resultados são um oxímoro.
  • 6
    De acordo com Torres (2003, p. 109), "os conceitos de contradição, dialéctica, exploração, dominação e legitimação são decisivos no arsenal da teoria crítica e do neomarxismo".
  • 7
    Citado por Day (2006, p. 89).
  • 8
    Em Portugal, com a revisão curricular de 2001, as escolas dos ensinos fundamental e médio têm a seguinte estrutura de projectos: projecto educativo (correspondente ao projecto político-pedagógico, no Brasil); projecto curricular de escola; projecto curricular de turma. Dada a concentração dos estabelecimentos escolares em agrupamentos, medida que tem sido imposta nos últimos anos, o projecto educativo e o projecto curricular de escola podem dar lugar, respectivamente, ao projecto educativo do agrupamento e ao projecto curricular do agrupamento.
  • 9
    Cf. Decreto-lei n. 43/89, de 3 de fevereiro. O preâmbulo desse decreto-lei salienta que a "autonomia da escola concretiza-se na elaboração de um Projecto Educativo próprio, constituído e executado de forma participada, dentro de princípios de responsabilização dos vários intervenientes na vida escolar, e de adequação a características e recursos da escola e à solicitações e apoios da comunidade em que se insere".
  • 10
    Decreto-lei n. 43/89, de 3 de fevereiro, e o Decreto-lei n. 115 A/98, de 4 de maio.
  • 11
    Na reforma curricular de 1989 (cf. Decreto-lei n. 286/89, de 29 de agosto), a Área-Escola é uma componente curricular que visa a transdisciplinaridade da formação pessoal e social.
  • 12
    Morgado (1999, p. 329) associa projecto educativo a autonomia, constatando que o conceito de autonomia se traduz, à luz dos normativos, na elaboração de um projecto educativo, ou seja, "na definição dos vectores fundamentais que orientam a realização do projecto formativo que é proposto aos alunos".
  • 13
    Os dois conceitos de autoridade são retirados de Campbell (2006).
  • 14
    Na introdução ao livro de Ivor Goodson
    Currículo e mudança , publicado em 2001, pela Porto Editora, Joe Kincheloe fala do
    poder imperializante, para descrever formas fortes de poder, exercidas do topo para a base, e do
    poder localizante, para referir as formas fracas de poder, desenvolvidas a partir da base.
  • 15
    Eis o testemunho de Torres (2003, p. 139): "Observo alguns dos membros mais politicamente orientados da nossa profissão, e por mais que eu goste deles e os admire, eles às vezes não parecem capazes de usar as ferramentas críticas para ponderar, refletir, selecionar estrategicamente [ ] em vez disso, julgam rápida, confiante e desdenhosamente."
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Jan 2008
    • Data do Fascículo
      Jun 2007

    Histórico

    • Aceito
      02 Mar 2007
    • Recebido
      02 Jan 2006
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