O pesquisador brasileiro Marcelo Medeiros publicou, pela Companhia das Letras, o livro “Os ricos e os pobres”. Nele, Marcelo apresenta a sua leitura da desigualdade de renda no Brasil. O livro é escrito em linguagem acessível e fluente. Organizado em 24 capítulos curtos, distribuídos em três partes - Desigual, Os ricos e Os pobres -, em menos de 200 páginas Marcelo consegue descrever o tema. Marcelo respeita o tempo do leitor.
Para mim o livro tem um grande mérito, mais do que suficiente para mobilizar o interesse e justificar o tempo de leitura, e tem três deficiências. Tratemos primeiro do mérito.
Há algumas décadas persiste um desentendimento surdo entre os economistas e os sociólogos. Estes enxergam as classes sociais como organizadas em torno de valores e hábitos diferentes e não gostam das classificações de renda dos economistas. Marcelo, formado em economia, mas com doutorado em sociologia, consegue fazer a ponte entre esses dois mundos.
Os economistas olham a desigualdade pela classificação da população em faixas de renda, dividindo-a em parcelas populacionais iguais. Assim, é possível dividir em cinco partes e, portanto, teremos cinco quintos da população, ou em décimos ou em centésimos. Em seguida, olha-se dentro de cada classe. Isto é, considera-se que cada classe representa grupos relativamente homogêneos.
Essa forma de enxergar a desigualdade gera o resultado que incomoda os sociólogos: uma classe média com renda relativamente baixa. A renda domiciliar per capita média da PNAD é de R$1.623 e a renda mediana é de R$980. Trata-se de uma classe média bem pobre.
Marcelo inicia notando que a desigualdade brasileira está concentrada no topo. Isto é, se desconsiderarmos os 10% mais ricos, a desigualdade brasileira é bem baixa. Como aponta Marcelo (p. 24): “A renda de uma pessoa nos 90% gira em torno de R$50 mil por ano. Isso equivale a um salário aproximado de R$3800 mensais de um trabalhador formal, que recebe décimo-terceiro e adicional por férias, e não é muito mais que o dobro da renda de uma pessoa nos 66%. Embora já seja quatro vezes mais que a renda de uma pessoa nos 33%, ainda não é muito. Portanto, até os 90% a homogeneidade é razoável, sobretudo porque os primeiros 20% são de adultos sem renda. Se o Brasil parasse aí, seria um país aceitavelmente igualitário”.
De fato, o coeficiente de desigualdade de Gini de todas as rendas da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, a PNADC, é de 57%. Quando consideramos somente os 90% mais pobres, a desigualdade cai para 41%, uma redução expressiva de 16 pontos percentuais, para o nível aproximado da desigualdade americana.
Para encontrar uma maneira formal de construir faixas de renda com maior homogeneidade, Marcelo propõe a seguinte mudança de ponto de vista: em vez de dividirmos a população em grupos populacionais com o mesmo número de pessoas, dividir por grupos de pessoas em que o crescimento percentual da renda entre eles seja o mesmo.
Um exemplo: considere como o piso de renda o limite da pobreza extrema, isto é, a renda de US$2,15 por dia por pessoa ou de R$322 por mês ao câmbio de R$5 por dólar americano. Como teto da renda, considere R$800.000 por mês. Segundo os dados da Receita Federal, este último valor é aproximadamente a renda de entrada dos contribuintes que estão na faixa do 0,01% mais rico,1 grupo que corresponde a 15 mil contribuintes e aproximadamente 30 mil pessoas. Sob a hipótese de que cada declarante daquele teto de renda pertence a um domicílio com duas pessoas, temos uma renda mensal per capita de R$400 mil. Se dividirmos o ganho de renda entre o piso e o teto em cinco faixas, a taxa de crescimento geométrico entre cada faixa é de 316%. Segundo essa divisão teríamos cinco faixas de renda mensal per capita, como na tabela abaixo:2
Há arbitrariedade na definição do piso de renda e do teto de renda per capita - respectivamente R$322 e R$400 mil - adotados para estabelecer o crescimento geométrico entre as faixas de 316%. Independente das limitações inerentes às escolhas que geraram a tabela, as faixas de renda consideradas são mais homogêneas. Temos os muito pobres, os pobres, a classe média, os ricos e os muito ricos. Essa classificação corresponde melhor à ideia que os sociólogos têm de classes sociais. Importante frisar que o número de pessoas em cada faixa de renda não é o mesmo: reduz-se muito conforme se sobe nas classes de renda. E essa é a maior diferença entre a forma de olhar o tema dos economistas e dos sociólogos. Confesso que Marcelo me convenceu que esta é uma maneira melhor de organizar os dados. Há mais homogeneidade entre as classes de renda do que se a população fosse dividida em cinco classes com a mesma população em cada uma.
Outra diferença importante tratada por Marcelo é a diferença da fonte da renda. Até os 90% mais pobres, a maior parte da renda é do trabalho. A partir daí, conforme subimos na distribuição de renda, o peso da renda do capital, que inclui aluguéis e distribuição de dividendos, se eleva. “Já no 1% mais rico, o trabalho puro não chega a responder por metade do total” (Medeiros, 2023, p. 87). Assim, a agenda de tributação no topo da distribuição de renda demanda um desenho melhor da tributação na pessoa jurídica em seus diversos regimes tributários e da renda do capital em geral.
Agora, passo às minhas críticas. Um dos argumentos mais importantes do livro é que a educação tem baixa capacidade de reduzir a pobreza e a desigualdade. A educação é um investimento a longo prazo. Baseando-se num texto de 2020 do autor com colegas (Medeiros, Barbosa, e Carvalhares, 2020), Marcelo apresenta o resultado de exercícios contrafactuais do impacto de uma grande expansão da escolaridade da população sobre a pobreza e a desigualdade. A partir dos ganhos de salários estimados com dados do mercado de trabalho brasileiro, o estudo reconstrói a distribuição de renda e a taxa de pobreza considerando uma população com maior escolaridade. Documenta que os ganhos expressivos de salários ocorrem em profissões prestigiosas do ensino superior - advogados, médicos e engenheiros -, o que torna a estratégia de atacar a desigualdade e a pobreza por meio da maior escolarização da população muito lenta e tímida. Mesmo no longo prazo, os números pouco mudam.
A estratégia educacional pode ser ainda mais difícil pois a escolarização das massas pode gerar queda de retorno da educação se a economia não crescer e não absorver a força de trabalho. “Para que a economia pague melhores salários, a economia precisa crescer” (Medeiros, 2023, p. 62).
Há duas teorias sobre o impacto da educação nos salários. A teoria do capital humano e a da sinalização. A teoria do capital humano estabelece que um trabalhador mais escolarizado é intrinsecamente mais produtivo. A teoria da sinalização estabelece que a produtividade é um atributo do trabalhador, independente da escolarização. O trabalhador já nasce mais habilidoso. A educação somente sinaliza ao empregador essa característica. Nesse caso a educação tem efeito importante para a pessoa, sinaliza a sua qualidade, mas tem efeito nulo para a produtividade agregada (o trabalhador já era mais produtivo, o empregador que não sabia e usou o diploma para inferir a maior produtividade).
Outra teoria, popular entre os sociólogos, é considerar que a produtividade não é um atributo do trabalhador, mas sim do posto de trabalho. Há postos de trabalho melhores e há os piores. Qualquer trabalhador serve para a posição (com exceção de atividades que exigem grande treinamento, como medicina, em que a teoria do capital humano se aplicaria). O mercado de trabalho emprega algum mecanismo para alocar os trabalhadores, que pode ser conexões das pessoas ou das famílias. Diplomas podem servir como um fator de discriminação e de alocação. E, nesse caso, se todos conseguem diploma seu valor cai.
O exercício contrafactual do texto de Marcelo com os colegas supõe que os ganhos associados de salário em função da maior escolarização devem-se a uma combinação das duas teorias tratadas nos últimos dois parágrafos acima, e não a um ganho de produtividade intrínseco da pessoa mais escolarizada, como estabelecido pela teoria do capital humano. Se os ganhos de salários representassem um ganho de produtividade real e intrínseco ao trabalhador, o exercício contrafactual teria que considerar que o aumento da educação elevaria o retorno do capital físico, isto é, que a rentabilidade do investimento elevar-se-ia. Mas Marcelo e colaboradores consideram somente o efeito direto sobre a renda da pessoa mais escolarizada. Também não há, no exercício de Marcelo e colaboradores, uma relação clara entre aumento da escolaridade e PIB per capita.
A evidência consolidada pela academia indica que a maior parcela dos ganhos de salários, 85% (Lange e Topel, 2006, p. 503), é associada a ganhos de produtividade do trabalhador.3 Artigo de revisão recente conclui que: “No geral, a melhor evidência sugere que o capital humano é responsável por pelo menos um terço da variação dos rendimentos do trabalho dentro dos países, e por pelo menos metade da variação dos rendimentos por trabalhador entre os países” (Deming, 2022). De fato, em paper recente ainda não publicado, Gethin (2025) documenta que a melhora educacional responde por 50% do crescimento econômico da economia mundial e por 40% da redução da pobreza extrema no mundo entre 1980 e 2022.
A maneira de conciliar os resultados dos exercícios contrafactuais de Marcelo Medeiros e colaboradores com a evidência da literatura de educação e crescimento econômico é que o processo de escolarização da população brasileira não tem tido qualidade. Isto é, os alunos frequentam a escola, mas não aprendem ou aprendem muito pouco. De fato, há evidências de que o valor adicionado (na forma de aprendizado) pela escola no Brasil, medido por desempenho dos alunos em testes independentes de proficiência, é muito baixo. Tão baixo que o Brasil foi um caso raro em que não houve piora do desempenho logo após a pandemia. Tudo sugere que não houve piora pois não há o que piorar, dada a falta de aprendizado que já ocorre (veja, por exemplo, Menezes 2024).
Os exercícios contrafactuais empregados por Marcelo em seu livro consideram que não é possível melhorar a qualidade de nossa educação. A hipótese pode fazer sentido. Temos perdido essa batalha. Mas perder essa batalha, à luz de tudo que sabemos hoje da ligação de crescimento econômico e educação, é aceitarmos que economicamente não progrediremos. É essa a hipótese subjacente aos exercícios de Marcelo.
A segunda crítica que tenho ao livro é haver uma falta de simetria. O livro tem uma premissa: “somente combater a desigualdade e pobreza com educação não funcionará.” Marcelo propõe uma segunda política: tributar os ricos e redistribuir. Por exemplo, retomar políticas mais agressivas de elevação do salário mínimo e financiar o impacto fiscal desses aumentos por meio de maiores impostos sobre os ricos. Não tenho nenhum problema com essa estratégia. Em novembro de 2015, defendi a necessidade de maior justiça tributária (Pessôa, 2015). A falta de simetria é que Marcelo não apresenta exercícios contrafactuais com o emprego dessa estratégia. Qual é a capacidade da política tributária e do gasto público de alterar a desigualdade e a pobreza?
Estudo recente documenta que “uma agenda bem desenhada de resgate da progressividade da tributação de renda tem potencial de levantar receitas de até 1,8% do PIB” (Orair, Ribas, e Carvalho, 2022, p. 278). Para tal, “levaríamos as alíquotas de imposto de renda da pessoa jurídica e física para a média observada nos países da OCDE”, segundo o estudo (p. 276). Qual o ganho de redução de pobreza e desigualdade possível com 2% do PIB financiado por meio de impostos mais progressivos? Lembremos que, nos últimos anos, adicionamos 1,2% do PIB, aproximadamente, ao programa Bolsa Família e temos hoje um déficit primário na casa de 1% do PIB ou um pouco mais. Qual foi o ganho, em termos de redução da pobreza e desigualdade, ocorrido com a forte expansão do gasto com o programa Bolsa Família?
A terceira crítica ao livro de Marcelo é não tocar no patrimonialismo. É possível discutir desigualdade no Brasil sem abordar o patrimonialismo? Por exemplo, à página 107 lê-se: “Metade de todo o patrimônio declarado estava nas declarações de 0,5% dos adultos. Eram pessoas com riqueza superior a R$1,5 milhão em valores de maio de 2021. O pouco que sabemos sobre o final da década de 1990 reforça essa ideia, pois sugere que o 1% dos adultos detinha mais de metade do patrimônio total declarado”. Uma conta simples mostra que um servidor público aposentado com uma renda mensal, líquida de imposto de renda, de R$30 mil reais por 30 anos (expectativa de vida aos 65 anos de 20 anos e pensão por morte de 10 anos) tem o equivalente a um patrimônio (não contabilizado) de R$6,6 milhões. Empreguei nessas contas juro real de 5,5% ao ano, inflação de 5% e imposto de renda sobre o juro nominal de 10%. Nas últimas décadas, o Estado brasileiro, sempre com a anuência do Congresso Nacional, outorgou benefícios a indivíduos que chegam muitas vezes a quase uma dezena de milhão de reais.4
Em que pesem as minhas três críticas, o livro de Marcelo é obrigatório para quem se preocupa em entender a sociedade brasileira.
Referências
- Deming, David J. “Four Facts about Human Capital”. Journal of Economic Perspectives, volume 36, número 3, p. 75-102, 2022.
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Gethin, Amory. “Distributional Growth Accounting: Education and the Reduction of Global Poverty, 1980-2019,” The Quarterly Journal of Economics, 2025;, qjaf033, https://doi.org/10.1093/qje/qjaf033
» https://doi.org/10.1093/qje/qjaf033 - Lange, Fabian; e Robert Topel. “The social value of education and Human Capital”. In: Eric Hanushek e Finis Welch (eds.), Handbook of the Economics of Education, volume 1, cap. 8, 2006.
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Medeiros, Marcelo; Rogério J. Barbosa; e Flavio Carvalhares. “Education expansion, inequality and poverty reduction in Brazil: A simulation study.” Research in Social Stratification and Mobility, vol. 66, 2020. (https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0276562419302343).
» https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0276562419302343 - Medeiros, Marcelo. Os ricos e os pobres: o Brasil e a Desigualdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2023.
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Menezes, Naércio. Valor Econômico, 26/1/2024. (https://valor.globo.com/opiniao/coluna/aprendizado-na-pandemia.ghtml).
» https://valor.globo.com/opiniao/coluna/aprendizado-na-pandemia.ghtml - Orair, Rodrigo Octavio; Theo Ribas Palomo; e Laura Carvalho. “O resgate da progressividade tributária: uma agenda para a justiça social e ambiental”. In: Felipe Salto, João Villaverde e Laura Karpuska (orgs.), Reconstrução, o Brasil nos anos 20, cap. 12. São Paulo: Saraiva, 2022.
- Pessôa, Samuel. “Chegou a hora dos ricos contribuírem para o ajuste”, Coluna Ponto de Vista de novembro de 2015, (file:///C:/Users/Admin/Downloads/admin,+PONTO+DE+VISTA%20(1).pdf).
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Esta resenha havia sido publicada em 16/02/2024 no Blog do IBRE. Agradeço ao professor André Portela da EESP pelos dados de renda domiciliar per capita e de coeficiente de desigualdade de Gini.
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DECLARAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE DADOS
Os dados utilizados neste estudo estão disponíveis mediante solicitação ao autor. Dados adicionais e informações complementares também poderão ser fornecidos para fins de verificação ou replicação. A disponibilização está condicionada à inexistência de restrições de acesso público.
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Ver https://observatorio-politica-fiscal.ibre.fgv.br/politica-economica/pesquisa-academica/concentracao-de-renda-no-topo-novas-revelacoes-pelos-dados-do. No blog é possível baixar um arquivo excel. A informação encontra-se na segunda aba.
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Da forma como construí, a primeira faixa seria de R$322 até R$1.340. Incluí na primeira faixa as pessoas que ganham por mês menos do que a linha de pobreza extrema. Analogamente, a quinta faixa deveria ser de R$96.240 até R$400.000. Incluí na última faixa os domicílios com renda per capita superior a R$400.000, um universo de aproximadamente 30 mil pessoas ou 15 mil domicílios.
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Ver, por exemplo, a conclusão de Lange e Topel (2006). Deming (2022, p. 80) apresenta diversos motivos para que os ganhos de salário associados à sinalização sejam pequenos.
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Em longo prazo esse problema está resolvido, pois os novos servidores se aposentam no teto do regime CLT e contribuem para um sistema de previdência complementar.
Editado por
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EDITOR-CHEFE
Dante Mendes Aldrighi https://orcid.org/0000-0003-2285-5694Professor - Department of Economics University of São Paulo (USP)
Disponibilidade de dados
Os dados utilizados neste estudo estão disponíveis mediante solicitação ao autor. Dados adicionais e informações complementares também poderão ser fornecidos para fins de verificação ou replicação. A disponibilização está condicionada à inexistência de restrições de acesso público.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
19 Set 2025 -
Data do Fascículo
Jul-Sep 2025
Histórico
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Recebido
17 Dez 2024 -
Revisado
14 Abr 2025 -
Aceito
15 Abr 2025
