A migração de europeus para o Brasil é algo fundador da História do Brasil. O volume dos fluxos, no entanto, experimentou picos e vales ao longo destes mais de 500 anos, mas não deixou de deixar marcas indeléveis em nossa evolução econômica e social. Sendo assim, não é de surpreender que o tema das migrações seja recorrente na historiografia nacional e que tenha sido examinado sob diversos ângulos e abordagens por diversas áreas do conhecimento.
Talvez por requerer o exame de fontes indisponíveis em arquivos nacionais, seja por uma certa preferência pela análise das causas e efeitos macro dessa dinâmica - diplomáticos, macroeconômicos e sociológicos - o fato é que a historiografia nacional ainda não se debruçou com aprofundamento necessário sobre a atuação de certos elos de extrema relevância para a consolidação e efetivação das cadeias migratórias. A obra em questão busca jogar luz sobre alguns desses elos menos explorados até agora pela historiografia: as empresas e empresários envolvidos no recrutamento, transporte e introdução de imigrantes europeus para o continente americano, com ênfase nos emigrantes italianos com destino ao Brasil, entre o final do século XIX e o início do século XX.
Resultado editorial da sua tese de doutorado em História Econômica, defendida em 2008 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Paulo Cesar GonçalvesGonçalves, Paulo Cesar. Mercadores de Braços. Riqueza e acumulação na organização da emigração europeia para o Novo Mundo. São Paulo: Alameda, 2021. 538p. explora a organização corporativa, a atuação de seus representantes e os debates relacionados às legislações brasileiras e italianas que ordenavam e limitavam a atuação destes agentes no traslado de trabalhadores por sobre o Atlântico. O autor, pesquisador das migrações e do mundo do trabalho, nos apresenta uma obra didática e clara em seus objetivos, mas não sem um texto fluído e envolvente que leva o leitor a querer saber mais sobre o assunto explorado.
A obra é dividida em duas partes. A primeira é dedicada à composição dos contextos sociais e econômicos que levaram à emergência dos fluxos de saída de trabalhadores da Itália para outros países da Europa e da América. A segunda descreve a evolução da conjuntura brasileira desde meados do século XIX até a suspensão da escravidão e a preocupação dos setores produtivos quanto a substituição da mão de obra escravizada pela assalariada.
Por meio de uma extensa análise de fontes primárias e secundárias, o livro aborda com clareza os debates entre as forças políticas envolvidas no negócio da emigração na Itália. Os principais tópicos analisados são: os interesses do Estado italiano recém-unificado (consolidar sua marinha, sua indústria naval e as alternativas expansionistas à atuação imperialista na África); os interesses das empresas de navegação comercial (a expansão para além do Mediterrâneo de rotas de importação e a prestação de serviço de transporte a passageiros de terceira classe com escala suficiente para lucro); e os interesses dos grandes produtores rurais (diminuir a pressão social e evitar levantes rurais como o brigantaggio), além de atentar para o debate público nos jornais da época.
No lado brasileiro, o livro faz um apanhado abrangente da evolução dos interesses ligados ao incentivo à imigração, desde os planos de povoamento do Brasil Colônia até a indústria cafeeira, a principal demandante de mão de obra estrangeira, na tentativa de substituição do escravo pelo imigrante assalariado, passando pela evolução das formas de contrato com as quais se ligavam fazendeiros e imigrantes.
O autor aponta, por um lado, para a emergência de uma grande indústria na esteira da imensa demanda por mão de obra nos Estados Unidos, na Argentina e nos campos de café do Brasil; e, por outro, a imensa carestia experimentada nas regiões campesinas italianas, resultado do processo de proletarização dos pequenos agricultores obrigados a se desfazer de suas terras e vender sua força de trabalho.
O livro se foca, então, na atuação de uma tríade: as empresas de navegação, seus agentes e subagentes de recrutamento de emigrantes e as agências de introdução de imigrantes no destino. Para além de todo o aparato político, legislativo e diplomático, é na análise da atuação destes atores que o autor apresenta seu maior legado: o desenho da dinâmica cujo resultado foi o efetivo liame a conectar emigrante e fazendeiro e como ambos lidaram e negociaram seus interesses. Isso sem se furtar da análise desses fatores macro, ou seja, o contexto econômico e político mais amplo dos governos e grandes atores de Brasil e Itália no mercado internacional. Um assunto de destaque é a atuação da diplomacia brasileira como incentivadora e propagadora das vantagens da emigração para o Brasil.
A segunda parte do livro aborda efetivamente os contextos macroeconômicos que deram origem ao fenômeno migratório em escala transnacional e termina com uma detalhada análise sobre o funcionamento do negócio operado pela tríade empresas de navegação, seus agentes e subagentes de recrutamento de emigrantes e as agências de introdução de imigrantes no destino. Ela se inicia abordando o problema global da necessidade de mão de obra, seja pela substituição do escravo pelo assalariado no Brasil, seja pela demanda causada pela industrialização na América do Norte, e como se organizou a emigração nos países da Europa mediterrânea.
De posse do pano de fundo geral, o leitor é guiado através de uma discussão sobre a articulação entre emigração no desenvolvimento econômico italiano através da recepção das remessas enviadas pelos emigrantes e o seu papel como política externa expansionista italiana e sua opção por esta forma de imperialismo.
O livro se encerra com a apresentação e análise dos resultados e balanços de diversas empresas de navegação e agências de introdução de imigrantes que embasam a discussão sobre a acumulação de capitais neste mercado internacional de mão de obra. Novamente, o autor apresenta documentos inéditos, balanços e relatórios de exercícios financeiros de diversas entidades da tríade que lhe é objeto. Os primeiros a serem analisados são os números internos das maiores empresas de navegação (Navigazione Generale Italiana, La Veloce, Lloyd Italiano, Lloyd Sabaudo e Società di Navigazione a Vapore Italo-Platensee) e, em seguida, dois dos maiores agentes de introdução de imigrantes no Brasil (Angelo Fiorita & Co. e José Antunes dos Santos).
Um dos elos da cadeia descrita no livro, porém, não mereceu uma análise mais detalhada, apesar de muito citado por todo o texto e cuja atuação, por ser diretamente ligada aos trabalhadores migrantes, permaneceu uma preocupação entre os políticos e intelectuais que fizeram parte nas discussões sobre as políticas migratórias na Itália. Trata-se dos agentes e subagentes de recrutamento, profissionais ligados às empresas de navegação e essenciais no auxílio ao emigrante quanto às questões burocráticas e financeiras da travessia. O autor chega a abordar os esforços governamentais italianos no sentido de regular a ação dos agentes e subagentes de recrutamento, alguns debates a respeito de sua importância na cadeia migratória e apresenta alguns exemplos que ora justificam um olhar negativo ora positivo sobre seu trabalho. Devido à sua atuação pulverizada pelo interior da Itália e à heterogeneidade de perfil desses profissionais, não caberia nesta obra, tal aprofundamento.
Da mesma forma, o livro se concentra com mais afinco na introdução dos imigrantes em São Paulo e não chega a elaborar a atuação dos agentes responsáveis por essa introdução em outras províncias e estados brasileiros, apesar de apresentar algumas informações sobre o assunto.
Há muitos pontos positivos em Mercadores de braços, com destaque para a apresentação de vasta bibliografia e fontes primárias italianas sobre o tema das migrações envolvendo os atores sobre os quais se detém. Além disso, o ineditismo da análise sobre a evolução econômica das agências de introdução de imigrantes no Brasil é ponto a ser destacado. A obra estende o conhecimento e o entendimento sobre o Atlântico como locus de atuação econômica e vínculo capitalista entre o Velho e o Novo Mundo. Insere-se, extrapolando para além do tráfico negreiro, no debate sobre a importância das rotas transatlânticas na transferência de mão de obra, desta vez não escravizada, para o Novo Mundo, além de apresentar os atores que se beneficiaram destas rotas de transporte para acumulação de capital.
Como um livro que consolida uma linha de pesquisa, é possível encontrar nele diversas possibilidades de aprofundamento posterior e análises específicas sobre os aspectos envolvendo a atuação da tríade agência de introdução de imigrantes, empresas de navegação e seus agentes e subagentes. Temas importantes para entender como foram recrutados, transportados e introduzidos em suas novas realidades americanas os migrantes que cruzaram o Atlântico na virada do século XIX para o XX.
Referência
- Gonçalves, Paulo Cesar. Mercadores de Braços. Riqueza e acumulação na organização da emigração europeia para o Novo Mundo. São Paulo: Alameda, 2021. 538p.
Editor Responsável:
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
24 Out 2022 -
Data do Fascículo
Jul-Sep 2022
Histórico
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Recebido
25 Mar 2022 -
Aceito
11 Maio 2022