Em 1988, em seu primeiro número, a Estudos Históricos publicou um dossiê que se tornou uma referência incontornável para a produção historiográfica brasileira. Intitulado Caminhos da historiografia, o volume contou tanto com a colaboração de historiadores experientes quanto com os de uma nova geração. Nomes como os de Manoel Luís Lima Salgado Guimarães, Ricardo Benzaquen de Araújo, Francisco Iglésias, Francisco Falcon e Luiz Eduardo Soares apresentaram temáticas e perspectivas teórico-metodológicas então inéditas que inauguraram vias alternativas para a historiografia brasileira. Queria-se, nas palavras dos editores da época, uma revista que fosse “um órgão de divulgação de uma perspectiva multidisciplinar voltada para a história do Brasil”, isto é, “um instrumento de divulgação de um saber que considera irrelevante o traçado de certas fronteiras acadêmicas e entende o conhecimento da história de um país não como um objetivo exclusivamente erudito, mas como uma preocupação fundamental para a vivência cotidiana de seus cidadãos”. (Estudos históricos, 1988: 4)
Trinta e cinco anos depois, não se trata mais de repetir aquele gesto inovador – mas sim de retomá-lo, à luz de outras perguntas. Nesse intervalo, o Brasil atravessou transformações políticas, sociais, culturais e econômicas profundas, que alteraram significativamente o horizonte nacional em relação ao período da ditadura civil-militar: desde a promulgação de uma nova carta constitucional até os sucessivos governos eleitos democraticamente, o país atravessou processos de estabilização monetária, avanços significativos em políticas públicas voltadas à população mais vulnerável, impeachments presidenciais, o ressurgimento de formas autoritárias e negacionistas no campo político, o recrudescimento das desigualdades sociais e os impasses ecológicos contemporâneos. A historiografia, atenta a essa conjuntura e às suas interfaces com o cenário internacional, tampouco permaneceu inerte: voltou-se para novas temporalidades, sujeitos e modos de narrar, tensionando, por exemplo, os limites entre ciência e ficção, política e ética, entre objetividade e interpretação.
Hoje, à luz dos desafios do século XXI, nos perguntamos: como está sendo reavaliado o legado historiográfico dos séculos XIX e XX, que construiu sentidos para a história do Brasil? Uma herança intelectual transpassada por marcadores de gênero, raça e etnia, e que ora utilizou a história como promessa de redenção, ora como instrumento de superação do passado, ora como base para políticas de anistia ou de esquecimento, ora como aquilo que ela de fato é, ou deveria ser: um conhecimento cientificamente construído.
Observa-se que esse acúmulo historiográfico tem sido intensamente glosado, anotado, questionado e reinterpretado por um amplo espectro de estudos recentes. Este dossiê reúne uma seleção representativa dessas pesquisas, que espelham as tendências atuais e os novos rumos que a historiografia brasileira vem explorando. Por meio de distintos enfoques temáticos e metodológicos, os artigos aqui reunidos reafirmam a vitalidade crítica do campo e sua capacidade de renovação diante das exigências contemporâneas da disciplina.
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No artigo de Eduardo Ferraz Felippe, a noção de antropoceno emerge como problema para o campo da história profissional, não apenas como diagnóstico ambiental, mas também como horizonte de reformulação narrativa e ética. A partir de uma abordagem que se distingue da história dos conceitos, o autor mobiliza os estudos da narrativa para tensionar as fronteiras entre história e ficção, conferindo especial atenção à temporalidade e à responsabilidade ética implicada na escrita histórica. Ao se debruçar sobre prosas latino-americanas, como Distancia de rescate, de Samanta Schweblin, Felippe propõe uma leitura que articula linguagem literária e catástrofe climática como chave de acesso aos impasses contemporâneos da matéria histórica. A crítica, aqui, não se limita ao conteúdo: atinge a própria estrutura da narrativa histórica e seus pressupostos de continuidade e inteligibilidade.
O texto de Pedro Henrique Pereira Campos e Rafael Vaz da Motta Brandão insere-se em uma agenda internacional de investigação sobre as relações entre empresas e regimes autoritários no século XX, com foco no contexto da ditadura empresarial-militar brasileira (1964–1988). A partir dos desdobramentos de dois editais do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), os autores discutem os efeitos e os benefícios econômicos derivados da colaboração empresarial com o regime, abordando a responsabilidade de 13 empresas investigadas. Ao reunir e problematizar as contribuições mais recentes desse campo de pesquisa, o artigo aponta para a consolidação de uma linha crítica de estudos sobre os vínculos entre capital e repressão de Estado.
No artigo de Maíra Vendrame, a micro-história italiana é tomada como vetor de transformação do debate historiográfico brasileiro nas últimas décadas. Sem pretensões de exaustividade, a autora analisa a recepção e a reinterpretação dessa metodologia por diferentes áreas temáticas, com atenção especial ao modelo proposto por Giovanni Levi. O texto aponta para a vitalidade e permanência desse enfoque, sobretudo nos estudos migratórios, onde a micro-história impulsiona uma renovação analítica ao reconstruir, a partir do uso de fontes diversas e do cruzamento de informações, dinâmicas e estratégias sociais de migrantes em contextos diversos. Trata-se, aqui, de uma reflexão sobre os efeitos prolongados de uma prática historiográfica que privilegia o detalhe e a lógica das ações individuais e coletivas no entrelugar entre origem e destino.
No artigo de Petrônio Domingues, o conceito de história negra é proposto como objeto de reflexão crítica e como campo em constituição. Longe de constituir uma categoria pronta e estável, trata-se de uma noção em processo: um devir historiográfico que se delineia a partir da confluência entre autoria negra, temática racializada e um ponto de vista politicamente afroidentificado. Nenhum desses elementos, isoladamente, é suficiente para fundar uma epistemologia própria, pois é no entrelaçamento dinâmico entre eles que a história negra adquire densidade conceitual. Presente em textos de diferentes épocas, essa produção histórica se inscreve na historiografia nacional como parte de sua cadeia narrativa, mas também como desvio interno, suplemento, fratura. Está dentro porque partilha dos pressupostos da investigação moderna; está fora porque instaura deslocamentos hermenêuticos, redireciona públicos e linguagens e convoca outras sensibilidades. Trata-se, assim, de uma intervenção que desloca os marcos convencionais da escrita da história, forçando a historiografia brasileira a repensar seus próprios fundamentos.
Fechando o dossiê, dois textos nos convidam a refletir sobre os limites da própria escrita histórica. Na colaboração especial de Beatriz de Moraes Vieira, a interlocução entre história e literatura é tratada como um campo de tensões e possibilidades, refletido em debates acadêmicos e grupos de estudo que interrogam os fundamentos teóricos dessa relação. Inspirada pela Teoria Crítica , a autora propõe uma travessia que recusa dicotomias rígidas – subjetividade e objetividade, texto e contexto, forma e conteúdo – em favor de uma abordagem mais complexa, capaz de acolher múltiplas temporalidades, realismos e processos de sentido. A literatura não é aqui apenas objeto da história, mas parceira de construção: meio e linguagem, gesto e vestígio. É nesse entrelaçamento que se situam as articulações com a história cultural, a história intelectual e a teoria da história, que se projetam sobre redes de circulação, recepção e criação, marcadas também pelas violências e dores que moldam as formas do sensível. Trata-se, assim, de pensar com a literatura – e não apenas sobre ela – as possibilidades da própria escrita histórica, em chave local e transnacional.
Por fim, Francisco Régis Lopes Ramos propõe uma leitura crítica da experiência temporal na operação historiográfica, à luz das formulações de Michel de Certeau. Em registro ensaístico, o autor interroga os lugares políticos de produção do saber histórico, concentrando-se nas estratégias narrativas do Museu Histórico Nacional entre 1922 e 1959. A figura de Gustavo Barroso serve como fio condutor para a análise das formas pelas quais o passado se configura como ausência, estruturada por um presente delimitado. História, museu e literatura entrelaçam-se como vetores de uma escrita que insinua, em suas lacunas e seleções, sugestões para repensar os usos do tempo na historiografia.
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Nesse cenário de deslocamentos e reconfigurações, o presente dossiê não propõe um novo paradigma. Propõe, antes, uma atenção renovada às rupturas da experiência histórica e aos modos como essas são escritas, lidas, silenciadas ou encenadas. A historiografia brasileira, aqui representada por vozes diversas e por investigações rigorosas, mostra-se viva em sua disposição para a autocrítica, para a abertura disciplinar e para o enfrentamento do presente. Não se trata mais apenas de abrir novos caminhos, mas de reconhecer que as rotas, agora, são múltiplas, irregulares e, muitas vezes, difíceis de transitar. Por isso, escrever história, hoje, exige escuta, vigilância e invenção.
Referências
- 1. DOSSIÊ: Negacionismos e usos da história. Revista Brasileira de História, v. 41, n. 87, 2021.
- 2. EDITORIAL. Por uma revista de história. Estudos históricos. Rio de Janeiro, n. 1, p. 3-4, 1988.
- 3. HANSEN, Patrícia Santos; OLIVEIRA, Maria da Glória de (orgs.). Dossiê: Corpos, tempos, lugares das historiografias. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, Ouro Preto, v. 16, n. 41, p. 1-15, 2023.
- 4. RAMOS, André; HARTOG, François; CEZAR, Temístocles; RODRIGUES, Thamara. Formas de repensar e experimentar a temporalização do tempo e regimes historiográficos. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, Ouro Preto, v. 16, n. 41, p. 1-16, 2023.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
10 Nov 2025 -
Data do Fascículo
2025
