Open-access O TEMPO NO LIMITE: A OPERAÇÃO HISTORIOGRÁFICA NO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL ENTRE O FATO E A FICÇÃO (1922-1959)

Time is on the limit: the historiographic operation at the national historical museum between fact and fiction (1922-1959)

El tiempo está al límite: la operación historiográfica en el museo histórico nacional entre realidad y ficción (1922-1959)

RESUMO

A abordagem é composta por indagações sobre a experiência temporal na “operação historiográfica”, de acordo com Michel de Certeau. Escrito em forma de ensaio e tomando partido a favor da explicitação dos lugares políticos de produção do saber, o artigo propõe discussões em torno dos modos pelos quais o passado torna-se o “ausente”, na medida em que certo presente é delimitado. Relações entre História, Museu e Literatura na escrita de Gustavo Barroso são analisadas com base nesse modo de ler a “operação historiográfica”, relacionando-a diretamente com indicações, ou sugestões, para a pesquisa sobre os usos do tempo.

PALAVRAS-CHAVE:
Museu; Tempo; Michel de Certeau; Historiografia; Ficção

ABSTRACT

The approach is composed of questions about the temporal experience in the “historiographic operation”, according to Michel de Certeau. Written in the form of an essay and taking sides in favor of explaining the political places of knowledge production, the article proposes discussions around the ways in which the past becomes the “absent”, insofar as a certain present is delimited. Relationships between History, Museum and Literature in Gustavo Barroso’s writing are analyzed based on this way of reading the “historiographical operation”, relating it directly to indications, or suggestions, for research on the uses of time.

KEYWORDS:
Museum; Time; Michel de Certeau; Historiography; Fiction

RESUMEN

El enfoque se compone de indagaciones sobre la experiencia temporal en la “operación historiográfica”, según Michel de Certeau. Escrito en forma de ensayo y tomando partido por explicar los lugares políticos de la producción de conocimiento, el artículo propone discusiones en torno a las formas en que el pasado se convierte en “ausente”, en la medida en que se delimita un determinado presente. Se analizan las relaciones entre Historia, Museo y Literatura en la escritura de Gustavo Barroso a partir de esta manera de leer la “operación historiográfica”, relacionándola directamente con indicaciones, o sugerencias, para la investigación de los usos del tiempo.

PALABRAS CLAVE:
Museo; Tiempo; Michel de Certeau; Historiografía; Ficción

INTRODUÇÃO

Diálogo entre Adrian e “ELE”. “Vim te falar de negócios”, “ELE” explica, mas deixando os detalhes para mais adiante (Mann, 1984: 302). Depois de muitas idas e vindas é que Adrian consegue chegar à pergunta decisiva: “Então quereis me vender tempo?” (Mann, 1984: 311). Aí, finalmente, “ELE” revela: “Tempo? Unicamente algum tempo? Não, meu caro, não é só com esse artigo que o Diabo faz negócios. (…) O que importa é a espécie de tempo que se fornece!” (Mann, 1984: 311).

Interessa-me, aqui, levar essa resposta/exclamação “DELE” a um pacto específico: como se anuncia no subtítulo, a “operação historiográfica no Museu Histórico Nacional entre o fato e a ficção (1922-1959)”. Para me orientar a respeito da “espécie de tempo que se fornece”, mobilizo certas postulações de Michel de Certeau em torno da “operação historiográfica” (Certeau, 2013), compreendendo-as como indicativas da possibilidade de estudo sobre a própria “historicidade” de experiências temporais, que se fundam e se articulam em certos limites autolegitimados entre passado e presente. Daí, então, o título do artigo: “O Tempo no Limite”.

Dito isto, é preciso explicitar o porquê do recorte 1922-1959. Nesse período, Gustavo Barroso assumiu, com um pequeno intervalo em 1930-1931, a direção do Museu Histórico Nacional. Foi, também, o organizador das exposições, e o escritor prestigiado que incorporou essas mesmas exposições em determinadas polêmicas e certos enredos da ficção historicamente lastreada. Por isso, a sua atuação intelectual pode ser tomada, aqui, como possibilidade de estudo da experiência do tempo nas imbricações entre História, Literatura e “Técnicas de Museu”, como então se dizia. Daí a polaridade, talvez demasiadamente irônica, exibida no subtítulo (“[…] entre o fato e a ficção”), como forma de sondar a invenção da necessidade de narrativas ditas “literárias” para aumentar (ou complementar) a desejada veracidade do acervo exibido.

Os tópicos a seguir, convém esclarecer desde logo, não se apresentam como roteiros explicativos encadeados. Instala-se, assim espero, um exercício menos conclusivo e mais sugestivo. Por isso, não poderia concluir esta introdução sem dizer que as tomadas de posição se inclinam, deliberadamente, ao fluxo textual que Adorno (2003) chamou “ensaio”.

O APELO BIOGRÁFICO ENTRE O LUGAR, A PRÁTICA E A ESCRITA

Publicado no início da década de 1930, o livro História militar do Brasil resultou da campanha nacionalista que Gustavo Barroso iniciou pelo Jornal do Comércio em 1911, quando houve o lançamento da ideia da fundação do Museu Histórico de caráter militar. Campanha continuada nos anos seguintes, não apenas pelos jornais, mas também em palestras e discursos, na publicação de livros sobre guerras do Brasil no século XIX, tradições militares ou folclore, e na atuação dele como Deputado Federal. Contudo, nada se compara com a nomeação que ele recebeu do presidente Epitácio Pessoa, em 1922, para organizar e dirigir o Museu Histórico Nacional, instituição onde os temas militares tornar-se-iam destacados. O livro História militar do Brasil resultou, então, da experiência acumulada. Mas, de maneira mais direta, o livro veio de dois cursos, cujas lições tinham o mesmo título: História Militar do Brasil. O primeiro ministrado no Museu Histórico Nacional, em 1933, e o segundo na Escola de Oficiais da Milícia Integralista do Distrito Federal, no ano seguinte.

Em resumo parafraseado, esse é o trajeto que Gustavo Barroso desenha na apresentação do livro História militar do Brasil (Barroso, 1938: 7). Tempos depois, mais precisamente em 1951, ao apresentar outro livro, Introdução à técnica de museus, ele repete o apelo do texto (auto)biográfico, e devotado à pátria: “A criação do Museu Histórico Nacional em 1922 foi o ponto de partida de uma obra fecunda (…)”. A seguir, ele afiança o quanto ele mesmo foi fecundo, lutando e inovando no “culto às tradições do nosso país”. Em destaque: o pioneirismo da Inspetoria de Monumentos Nacionais, instância administrativa criada por ele como setor do Museu Histórico Nacional, responsável por várias obras de restauração em Ouro Preto (Barroso, 1951: 3). Depois dessas e outras referências a si mesmo, vem à luz, finalmente, a origem do livro: as suas aulas na disciplina “Técnica de Museus” ofertada pelo “Curso de Museus”, cuja criação se deu em 1932, como setor do Museu Histórico Nacional. “Preparam-se nele”, explica Gustavo Barroso, “quase todos os atuais Conservadores de Museus”. Mais explicações… E, para concluir: “a obra que agora ofereço aos estudantes é o resultado de estudos, da prática e da constância durante mais de vinte anos” (Barroso, 1951: 4).

O “lugar”: diretor do Museu Histórico Nacional. A “prática”: inserir, de alguma forma, o exercício da direção no método da pesquisa e no próprio rol de fontes históricas, sem esquecer as incursões basilares da (auto)biografia. A “escrita”: crítica diante da aridez dos historiadores, em nome da leveza que os protocolos da ficção deveriam trazer, em conexão com a autoridade de escritor que lançava (em média) dois livros por ano e a legitimidade de ser membro (e, por certo tempo, presidente) da Academia Brasileira de Letras. Eis, então, a combinação das três dimensões da “operação historiográfica”, tal como Michel de Certeau as define: lugar social, práticas “científicas” e a uma escrita. Combinação que permitiria desde a “análise de premissas, das quais o discurso não fala”, até o desnudamento de “leis silenciosas que organizam o espaço produzido como texto”. (Certeau, 2013: 47)

Dito de outra forma: um diretor de museu que trata esse “lugar” como parte da “prática”, e a “escrita” também como parte desse mesmo “lugar”, assim reivindicando-se a fiança autoral. Para definir melhor as combinações desse quiproquó, em que as instâncias se misturam em movimento quase circular, vale a pena se deter na capa do primeiro catálogo do museu, publicado em 1924. De cima para baixo, primeiro se lê “MUSEU HISTÓRICO NACIONAL”, depois o brasão da república, e o título “CATÁLOGO GERAL”, com o subtítulo “1 Secção: ARCHEOLOGIA E HISTÓRIA”. No meio, um desenho com legenda “capacetes da imperial guarda de honra”. Por fim, antes da informação do lugar (Rio de Janeiro) e da data (1924), o crédito “organizado pelo diretor GUSTAVO BARROSO”.

O lastro autoral não está apenas na duplicidade de funções: direção do museu, por um lado; organização do catálogo, por outro. A fiabilidade se aporta, ainda, na própria definição de uma tarefa anterior à feitura do catálogo: a composição roteiro museográfico, cujo método consistia em dividir o acervo em salas, a partir de variadas estratégias de hierarquização do passado. O desenho da capa do catálogo é uma das ferramentas que Gustavo Barroso usou. O desenho dos três capacetes aludia, entre outras coisas, ao feito que ele, Gustavo Barroso, iria considerar como um dos mais significativos da sua vida: a campanha pela criação dos “Dragões da Independência”, iniciada em 1916, no meio de altercações na imprensa e no parlamento. Os capacetes pertenciam à Guarda de Honra de D. Pedro I. E, pela proposta de Gustavo Barroso, serviriam de modelo para o uniforme dos “Dragões da Independência”.

Como ocorre em outros livros, no História militar do Brasil, a (auto)biografia não emerge exclusivamente na apresentação. A autorreferência se espraia por outras páginas. Demorando-se na criação da Guarda de Honra, em dezembro de 1822, ele não deixa de se demorar na luta pela recriação, numa espécie de (auto)biografia em terceira pessoa: “foi esse uniforme tradicional, nobre e profundamente significativo dos primeiros momentos de nossa emancipação política que o então deputado Gustavo Barroso pretendeu restaurar (…)” (Barroso, 1938: 44).

Pelo catálogo de 1924, o acervo estava sendo exibido em vários espaços, geralmente chamados de “salas”. É lógico que a “Sala dos Capacetes” mostrava capacetes. Mas não era apenas com essa lógica que Gustavo Barroso trabalhava. Na verdade, lá foram postos artefatos variados: retratos, gravuras, móveis, mapas, armas, livros, manuscritos, relógios, objetos pessoais de “personagens históricos”, fragmentos de arquitetura, como é o caso das “grades do cárcere em que esteve preso o Tiradentes” (Barroso, 1924: 50) etc. Ao todo 328 itens, e apenas cinco eram capacetes, do tipo daqueles estampados na capa do catálogo. Em 1924, vale destacar, ele ainda estava em campanha para a criação dos “Dragões da Independência”, iniciada no seu mandato de Deputado Federal (1915-1917).

A “prática” (dar centralidade aos capacetes) ocorria em uma “escrita” (o catálogo), e a partir de um “lugar” (a direção do Museu Histórico Nacional). Mas, nesse caso, é preciso reconhecer que a “operação” se faz em cruzamento com outro “lugar”: a trincheira de defensor das tradições militares. Cruzando esses dois “lugares”, ele faz a sala dos capacetes e as demais salas com a hierarquia que caracteriza a sua “prática”: separando, reunindo, distribuindo e assim produzindo seus “documentos”.

“Em história”, afirma Michel de Certeau, “tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em documentos certos objetos distribuídos de outra maneira. Essa nova distribuição cultural é o primeiro trabalho”. Distribuição que, na realidade, consiste em produzir os documentos. Copiá-los ou transcrevê-los, por exemplo, já é uma produção. Assim, os documentos vão mudando de lugar e de estatuto. “Esse gesto”, enfatiza Michel de Certeau, “consiste em ‘isolar’ um corpo, como se faz em física, e em ‘desfigurar’ as coisas para constituí-las como peças que preencham lacunas de um conjunto proposto a priori. Ele forma a ‘coleção’.” (Certeau, 2013: 69).

Desse modo, Gustavo Barroso empreende na sua “prática” uma sucessiva sobreposição de tarefas. Ao colecionar os artefatos que frequentam a sua escrita em livros e na imprensa, transformando em “documentos certos objetos distribuídos de outra maneira”, parte de uma coleção que ele mesmo já tinha formado no catálogo. Não raramente, a “operação historiográfica” de Gustavo Barroso desenvolve sua “prática” na medida em que funda mais uma coleção a partir daquela que ele já tinha fundado. Por outro lado, a sua escrita (dentro e fora do catálogo) legitima não apenas a (re)distribuição museográfica das salas, mas também o filtro para a ampliação do acervo. O museu vai crescer na direção que ele aponta. Escritas e reescritas, coleções de coleções que se ampliam, tudo se retroalimenta.

A “operação historiográfica” de Gustavo Barroso se autorizava na competência para filtrar o que seria realmente um acervo do passado. Não qualquer passado. Em princípio, interessava-lhe pertences de biografias ilustres. Também lhe interessava objetos que, de alguma maneira, foram tocados ou usados por esses ilustres. Interessava-lhe, ainda, objetos que testemunharam algum acontecimento histórico. Pelo catálogo, determinadas armas como pistolas e revólveres autenticaram-se com base nesse terceiro interesse: pertenciam à “época da Guerra do Paraguay” (Barroso, 1924: 155). Ou seja, pertenciam não à pessoa de uma época, e sim à época como se fosse uma pessoa.

Com critérios assim armados, o museu moldava-se conforme as balizas do diretor, sempre preocupadas com a formação do Brasil. Se os capacetes da Guarda de Honra testemunhavam o início (ou um dos inícios) da nacionalidade em 1822, os objetos pertencentes à “época da Guerra do Paraguay” confirmavam que o sacrifício não tinha sido em vão. Com idas e vindas, avanços e recuos na unidade nacional, a pátria ia se consolidando, sobre isso ele e o seu museu tinham “provas materiais”. Com relação às “provas espirituais”, elas estavam nos seus livros de folclore: do povo teria saído, com o passar do tempo, a “alma nacional”, apesar das distinções regionais ou exatamente pelo encaixe entre elas, como se fossem as peças de um quebra-cabeça.

Referência e sobretudo reverência ao passado. Mas, se a questão é posta no âmbito de uma “operação historiográfica”, não se tratava de aproximar o passado do presente.

“A história moderna ocidental começa efetivamente com a diferenciação entre o presente e o passado” (Certeau, 2013: XVI). Essa ordem do tempo, destaca Michel de Certeau, corresponde a determinado sentido da morte: o isolamento do presente, nesse caso, tem a ver com isolamento do morto no cemitério. Mas, expulso da vida, o morto retorna para assombrar. Nova relação com o passado que o modifica, modificando o presente. De modo que, na nova relação, por causa dela, presente e passado não param de se modificar.

Assombrada porque controladora e controladora porque assombrada, a “operação historiográfica” será refém dos ausentes que ela mesma procura e encontra, numa reinvenção do “Além” que singulariza o Ocidente diante de outras culturas. Sem a criação de determinados procedimentos para isolar os ausentes, a “operação historiográfica” tornar-se-ia inviável, ou melhor, não seria uma “operação” e sim algo mais próximo da revelação.

Como lidar, então, com os mortos assim isolados? Como enfrentar essas novas assombrações? No tempo partido da modernidade, procurar e encontrar os mortos é o primeiro passo para domesticá-los, dar-lhes um lugar minimamente delimitado. O segundo, que pode vir antes ou depois, é dar-lhes nome. Cada passo articula-se mais explicitamente graças à escrita. O ausente não identificado corresponde à inadequação do túmulo sem lápide. Desse modo, nunca houve uma preocupação tão forte de separação entre os mortos e os vivos. O “outro”, possível pela localização institucionalizada do sujeito diante do objeto, é antes de tudo “morto”.

Gustavo Barroso administrou determinado tipo de cemitério, em que eram interditados túmulos sem identificação. Nos expositores, era inconcebível a existência de objetos sem palavras, a presença de acervo sem legenda. Escrita e verdade, pares inextrincáveis, assim pensava Gustavo Barroso. Assim, ele ia expandindo o seu domínio sobre as exposições e o mundo das letras, tornando-se um escritor preocupado com a preservação de tradições perdidas ou à beira do desaparecimento.

Nesse tipo de “operação historiográfica”, o passado não se tornava mais presente. Tornava-se mais ausente. Não qualquer ausente, é verdade, mas aquele devidamente identificado em sua pertinência a um tempo que já não havia. O presente, dono de uma competência autolegitimada, autorizava a circunscrição do passado. Um passado perdido, em um presente que afirma e nega a perda. Como afirma Michel de Certeau, um “estranho procedimento, que apresenta a morte, corte sempre repetido no discurso, e que nega a perda”. Ou seja: “trabalho da morte e trabalho contra a morte”. (Certeau, 2013: XIX).

Afirmando e negando a perda, Gustavo Barroso investe em catálogos, artigos, contos e polêmicas envolvendo a vida dos objetos mortos. Quer dizer: a escrita, longe de ser a linguagem que informa sobre o passado, o constitui na medida em que vai pondo a cultura material no tempo.

A LANÇA, A DÚVIDA E A AUSÊNCIA

O histórico, o literário, o folclórico e o museológico interessavam-lhe na medida em que, juntos ou separadamente, poderiam apresentar enredos bem articulados. Um livro como A Guerra do Lopez se fez, também, pela interseção com o Folclore, e não apenas por cruzamentos entre História, Literatura e Museologia. Tanto é que, ao fazer a quarta edição (Barroso, 1929b), ele inseriu um capítulo já publicado no livro Casa de Maribondos (Barroso, 1921b), composto por “contos e anedotas” explicitamente em conexão com os seus estudos de Folclore. Refiro-me ao conto “Odor di Femina”, título que se repete nos dois livros e que conta o caso de um cearense sentimental e saudoso na guerra do Paraguai.

A Guerra do Lopez, vale destacar, integra uma série de cinco livros. No final da década de 1920, ele começa a desenvolver técnicas narrativas articulando três procedimentos: a pesquisa histórica em documentos escritos e estudos de folclore; a exposição dos fatos com recursos da ficção; e, na medida do possível, a composição de personagens que usam objetos expostos no Museu Histórico Nacional. O intuito: divulgar para o público mais amplo as guerras do Brasil do século XIX. Assim, são publicados os cinco volumes: A Guerra do Lopez:: contos e episódios da campanha do Paraguay (Barroso, 1928); A Guerra do Rosas: contos e episódios relativos à campanha do Uruguai e da Argentina, 1851-1852 (Barroso, 1929a); A Guerra do Flores: contos e episódios da campanha do Uruguai, 1864-1865 (Barroso, 1930a); A Guerra do Vidéo: contos e episódios da campanha da Cisplatina, 1825 (Barroso, 1930b); A Guerra de Artigas. (Barroso, 1930c).

Na série dos cinco livros, ele garante a originalidade da autoria reivindicando, ainda, a função de personagem, pontuando o texto com incursões na (auto)biografia, como ocorre no História militar do Brasil ou Introdução à técnica de museus, conforme foi aqui abordado, mais precisamente no início do primeiro tópico. A autorreferência nos cinco livros entremeia-se pelo texto em pelo menos duas ocasiões: nas informações sobre a entrada, na trama, de objetos do museu, e nas recordações sobre sua vida no Ceará. Se, na primeira ocasião, ele se autoriza como conhecedor dos objetos, na segunda, ele se demora na emoção de ter conhecido, durante a infância no Ceará, os próprios personagens: “Muitos eu ainda conheci. Vi-os passar. Ouvi a sua história. Conversei com eles. Escutei-lhes a palavra singela, rememorando a campanha.” (Barroso, 1930: 14).

A ele eram atraentes montagens ou modelagens vinculadas à disposição de acontecimentos descritos com “ganchos” e “engates”, como possibilidade e qualidade da trama. Não lhe apetecia a escrita cronológica exatamente por isso: ela dispunha os fatos um atrás do outro sem nenhum tipo de amarração mais consistente. Daí sua admiração por anedotas e fábulas: nelas, as tramas, embora necessariamente curtas, são admiráveis pela manipulação incontornável de “ganchos” e “engates”, além do final exemplar. Ao buscar, dessa maneira, um público mais amplo, ele se se aproximava das estratégias usadas por certos intelectuais entre as décadas de 1920 e 1940, como Paulo Setúbal e Viriato Correa (Oriá, 2011; Gomes, 2013; Ramos, 2020), ao mesmo tempo em que tensionava o emergente circuito dos folcloristas responsáveis pela configuração do “Nordeste”, como Câmara Cascudo e Leonardo Mota (Albuquerque Junior, 2013a; 2013b).

Na ânsia para inserir o acervo do museu na sua escrita, as táticas do fictício foram usadas em variadas direções, inclusive para pôr em evidência artefatos que não estavam no acervo, mas poderiam estar. Ou estavam no acervo, mas poderiam não estar na narrativa. De um jeito ou de outro, sua escrita não se acanhou. Pelo contrário: usou o que foi possível a seu favor, inclusive a dúvida. O artificio se justificava porque a ideia era nobre: dar vida aos objetos do passado, confirmando que eles eram mesmo do passado, um passado a ser admirado pelo presente.

Exemplo disso é a dúvida sobre a lança de Osório em uma nota do livro A guerra do Vidéo. A trama a qual a nota se refere assim se abre: ao se ver livre uma perseguição, o jovem Osório caminha um pouco, avista o coronel Bento Manoel, seu chefe, e tem que se apressar, porque os inimigos se aproximam de novo. No calor da hora, Osório reúne soldados e recebe os perseguidores a tiro de clavina. Ao montar essa situação, Gustavo Barroso estica a descrição dos lances de heroísmo, em golpes e contragolpes. Ápice da narrativa: quando o coronel Bento Manoel oferece a sua lança ao jovem Osório.

E a voz do robusto Bento Manoel chegava-lhe aos ouvidos:

- Vem salvo o alferes Osório?

Felipe Nery retrucou-lhe que sim. E o chefe brasileiro acrescentou:

- Hei de legar-lhe a minha lança, porque ele a levará onde a tenho levado!

E o guerrilheiro, rendendo essa grande homenagem à bravura do futuro marquês de Herval, apertou significativamente de encontro ao peito largo a haste negra e rija (…) (Barroso, 1930b: 39-40).

Um grande morto não se fazia apenas com a exposição de seus objetos. Era preciso convocar, além das outras escritas, a escrita da ficção, eis a questão com a qual Gustavo Barroso se debatia. E a dúvida? A dúvida apareceu na nota explicativa: “A lança com que o lendário Osório combateu e venceu (…) se acha hoje no Museu Histórico Nacional. Será ela a de Bento Manoel?” (1930b: 40).

Que a lança de Osório exposta no museu era autêntica, não havia suspeita. Que Osório recebeu uma lança de Bento Manoel, também era certo. A dúvida consistia em saber se a lança que estava no museu era a mesma que Osório recebeu de Bento Manoel. O fato, portanto, não se alojava no que era dado como certo, assim como a ficção não residia na dúvida. A ficção de fato, de acordo com Gustavo Barroso, era um trabalho de construção do fato por narrativas formadoras de imagens em movimento: a verdade sobre os personagens é montada por cenários, ações, artefatos e tradições comprovadamente pertencentes ao tempo do movimento imaginado. Se os cenários e as ações eram alcançados por ele por meio do estudo da escrita do romance romântico, os artefatos e as tradições eram circunscritos por sua intimidade com a produção de saberes em museus e pesquisas folclóricas. Aí a dúvida não apenas cabia, mas também era adequada, até porque ele havia aprendido que ao romance moderno era permitido o abrigo de estratégias muito variadas.

A centralidade da escrita na “operação historiográfica” fazia dos museus históricos instituições que dependiam de protocolos da palavra, como inventários, catálogos, legendas, livros. Ao tomar parte desse jogo, Gustavo Barroso investiu em todas as frentes disponíveis, inclusive na literatura. Desde que fosse uma ficção de fato. Usando a ficção, ele julgava se distanciar da aridez historiográfica. E, para ser de fato, a ficção não apenas dava um formato mais dinâmico ao texto, mas formava o próprio fato de maneira mais adequada, porque mostraria que os mortos de hoje já foram, de fato, vivos no passado.

Houve um tempo em que se usou lança: na trama do conto, tudo ocorre em 1825, quando “Osório era alferes de cavalaria e tinha menos de vinte anos” (Barroso, 1930b: 37). O ano de 1825 não apenas localiza o fato no tempo. A lança (no museu e na escrita) não apenas exibe o uso que já não há. Não apenas o passado, mas uma determinada maneira de compor o passado, fazendo-o funcionar como diferença diante do presente. Na própria criação da diferença temporal, entra em cena a intimidade entre passado e ausência.

A lança de Osório, que talvez tenha sido também de Bento Manoel, está exposta no presente, cercada pela escrita do catálogo, pela escrita da legenda na vitrine e pela escrita dos “contos históricos” de Gustavo Barroso. Escritas que desdobram um conhecimento do passado com aplicação de regras para a constituição de “dados”, mas não somente isso, porque se opera aí “um discurso organizado por uma presença do ausente” (Certeau, 2021: 55). Não o ausente que se transfigura em presente e sim a reafirmação da existência do ausente que age no presente. Presente que, por sua vez, se assume como sujeito fazendo do passado um objeto de investigação. Nessa perspectiva, o regime temporal de Gustavo Barroso trata o passado como ausente, na medida em que a sua cronologia é uma “exterioridade”.

Se Michel de Certeau conclui que o tempo é “o impensado de uma disciplina”, a conclusão pode parecer contraditória à primeira vista: a História, que utiliza o tempo sem cessar, utiliza-o como matéria não pensada. Não qualquer tempo e não qualquer História, mas aquele se dá na “exterioridade”, e aquela vem se operando “nos últimos três séculos” (Certeau, 2011: 65-66). Aqui, eis uma hipótese central, o “impensado de uma disciplina” é a chave de leitura para “pensar” a proposta de estudo do tempo a partir da “operação historiográfica”. É, pois, como historiador, hoje, que retorno à Michel de Certeau para examinar uma experiência de exterioridade do tempo, aquela levada adiante no Museu Histórico Nacional, já distante, mas não tanto, do presente “atual”.

“Nessa concepção típica da economia ‘burguesa’ e conquistadora, causa impressão o fato de que o tempo é a exterioridade” (Certeau, 2011: 65-66). Na epistemologia “surgida com o Século das Luzes”, para separar o sujeito do objeto, foi preciso ir separando o passado do presente (Certeau, 2011: 65-66). Surge uma simultaneidade: tornam-se exterioridades o objeto de pesquisa (o “outro” do sujeito) e o passado (o “outro” do presente). Por isso, o trabalho com a “operação historiográfica” supõe, com maior ou menor intensidade, o trabalho com as especificidades da temporalização do saber histórico envolvido com a transformação do passado em objeto de estudo do presente. Nesse sentido, estudar a “operação historiográfica” pode ser uma via para pensar “o impensado de uma disciplina”. Mas, vale ressaltar, Michel de Certeau quer menos transformar o “impensado” em “pensável”, e mais compreender que o “impensável” é condição da “exterioridade” e suas implicações políticas. Não se trata apenas de revelar o velado, e sim interrogar-se sobre a operação que, para funcionar, precisou de certos ocultamentos.

Aqui, interrogar-se a respeito do funcionamento das temporalidades nessa perspectiva, eis a questão incontornável, implica reconhecer que o passado e o presente passam a funcionar na modernidade em outro regime temporal, compatível com a história como operação que “fabrica”, verbo que está espalhado em vários trechos do texto “A operação historiográfica”, e não apenas na pergunta inicial, “O que fabrica o historiador quando ‘faz história’?” (Certeau, 2013: 45). Como se vê, por exemplo, na comparação entre o “veículo saído de uma fábrica” e uma produção da História: “(…) o estudo histórico está muito mais ligado ao complexo de uma fabricação específica e coletiva do que ao estatuto de efeito de uma filosofia pessoal ou à ressurgência de uma ‘realidade’ passada” (Certeau, 2013: 57).

O que fabrica Gustavo Barroso quando “faz história”? Ou melhor, o que fabrica a temporalização de Gustavo Barroso quando “faz história” temporalizada pelo distanciamento entre passado e presente? Como ocorre com outros fabricantes, a primeira coisa que não se deixa mostrar é a própria fábrica; apresenta-se o produto e não a produção. Não se trata, convém repetir, de “filosofia pessoal” e sim de regra do jogo, feita de três dimensões (lugar, prática, escrita), o que necessariamente significa explicitar que a produção faz parte do produto.

O produto dado a ver, no papel e nas vitrines, parece trazer pedaços do passado como “relíquias” (termo, aliás, bastante usado por Gustavo Barroso e os pares letrados), combinando com a ideia de promover o “culto da saudade”, e indicando que, se o presente não pode mais ser tocado pelo passado (como prometiam as relíquias religiosas), o passado pode ser tocado pelo testemunho (material) garantido pela verdade (da escrita).

Como? A produção trabalhava para suturar o corte entre passado e presente? Talvez com a esperança de maquiar a cicatriz? Ainda, portanto, algum resquício (saudade, fantasma, retorno do recalcado…)? Uma espécie de corpo do tempo, quando vida (presente) e morte (passado) organizavam relações entre o eterno e o perecível em outros termos? De um jeito ou de outro, as estratégias de produção e distribuição desses afetos (mal) resolvidos dependiam das técnicas de restauração.

Por exemplo, a restauração de um objeto não poderia apagar as marcas do tempo. Mesmo numa restauração que recompõe partes corroídas, o objeto deveria ser conservado em sua antiguidade. “A restauração executada de modo a se tornar percebível é um testemunho de profundo amor à peça restaurada, porquanto prova (…) o respeito à sua antiguidade” (Barroso, 1951: 81). Nesses termos, Gustavo Barroso ia cultivando a saudade como forma privilegiada de usar o passado (Albuquerque Junior, 2006; Magalhães, 2006). Sabendo da impossibilidade de reconciliação das partes separadas, o saudosista adora e odeia o presente que vai em frente e abandona a matéria vitimada pelas agressões do tempo. O “profundo amor à peça” supõe que o presente da restauração está rompido com o passado da coisa restaurada; mais um indício da temporalidade que distribui passado e presente em compartimentos diferentes.

Por isso, Michel de Certeau conclui que Psicanálise e História se constituem em “duas estratégias do tempo”, apesar das semelhanças entre ambas no que diz respeito à elaboração de narrativas. Enquanto o tempo da Psicanálise põe o passado no presente, a História coloca “um ao lado do outro”. Para a Psicanálise, o tempo se faz com imbricações entre passado e presente, com “jogos de máscaras”, “reviravolta”, “ambiguidade”. Para a História, o tempo é constituído por distinções entre passado e presente. Diferentes, um e outro funcionam de maneira interdependente conforme os seguintes modelos: “da sucessividade (um depois do outro), da correlação (maior ou menor grau de proximidade), do efeito (um segue o outro) e da disjunção (um ou o outro, mas não os dois ao mesmo tempo)” (Certeau, 2011: 73).

Em sucessividades, correlações, efeitos e disjunções, Gustavo Barroso se autoriza a escrever pela saudade da nação e de si mesmo. Saudade do que ele não viu, mas não deixa de ver a partir da cultura material restante: como, por exemplo, os capacetes da guarda de honra de Pedro I, que ele não viu quando efetivamente usados, mas pode vê-los pelas sobras que foram parar nas vitrines do Museu Histórico Nacional.

Embora lastreado na autodeclaração de cientificidade metodológica da pesquisa sobre a verdade, a última palavra ou a palavra que a tudo precede é justificada, também, pela competência para sentir saudade. Para ele, o “amor pelo passado” dependia de uma competência para amar. A ele, então, cabia transmitir essa competência, protocolo devidamente lastreado no sentimento de quem sabe sentir de verdade e a verdade.

A PÁGINA EM BRANCO

Lugares: entre outros, o Museu Histórico Nacional, a Academia Brasileira de Letras, o integralismo e ele mesmo. Práticas: entre outras, conhecer a verdade do passado em pesquisas para identificar a sequência dos fatos e, a depender do caso, em cruzamento com pesquisas folclóricas ou ênfase no relato biográfico de militares. Escritas: entre outras, do enfileiramento de peças ou acontecimentos ao trabalho minucioso na constituição de tramas, ora a favor, ora contra a ficção. Diante de uma “operação historiográfica” assim tão deslizante, talvez exposta aqui de maneira um tanto jocosa, é preciso livrar-se de qualquer tentação para transformar, em ponto de partida ou de chegada, a imagem de intelectual que Gustavo Barroso fazia questão de mostrar. Por isso, nada poderia ser mais inadequado do que investir em interpretações aliadas ao procedimento de apenas enumerar e esmiunçar a infinita quantidade de lugares, práticas e escritas que ele atribuía a si mesmo. É o caso, sim, de examinar que qualquer “operação historiográfica” se processa como operação política.

Nessa direção, vale a pena se deter na justificativa para o título A Guerra do Vidéo, que assim se abre: “o Brasil nunca fez guerra aos povos americanos, seus irmãos e vizinhos”. O Brasil apenas acolheu “a chamada dos oprimidos e dos que desejavam a paz e a organização imperial, e isso, lealmente, libertando-os de tiranias ultrajantes”. (Barroso, 1930b: 06). Assim se supõe, e assim se conclui:

Eis por que o seu povo nunca se referiu a guerras ou campanhas do Uruguai, da Argentina e do Paraguai. O seu folclore desconhece tais expressões. Ele dá a essas lutas os nomes dos caudilhos que as provocaram: guerra do Rosas, guerra do Flores, guerra do Lopez. Ignorando a existência de Alvear, Rivera e Lavalleja, ouvindo falar continuamente em Montevidéu, a gente miúda tomou, na sua ignorância, essa palavra como o nome duma pessoa e deturpou-o, denominando as lutas da Cisplatina - guerra do Vidéo. É uma curiosa tradição das gerações passadas que devemos conservar antes que se perca (Barroso, 1930b: 06).

Uma “escrita conquistadora”, no sentido que Michel de Certeau dá a esse termo. Para Michel de Certeau, a “operação historiográfica” supõe essa escrita conquistadora, e para mostrar como isso funciona, ele toma como ponto de partida uma gravura do começo do século XVII. Américo Vespúcio, homem, branco, vestido, colonizador, diante da mulher indígena, “nua, presença não nomeada da diferença”, a América: “essa imagem erótica e guerreira tem valor quase mítico”, que “representa o início de um funcionamento novo da escrita ocidental”. Américo e América: o inventor e mais uma das suas invenções. Ou seja: “uma colonização do corpo pelo discurso do poder”, a “escrita colonizadora”, o recurso que “utilizará o Novo Mundo como uma página em branco”. (Certeau, 2013: XI)

As elites exibidas no museu eram uma extensão espacial e temporal do domínio português. Brancos, com a colaboração de negros e índios, deram a figuração do Brasil. Prova disso é o domínio da língua portuguesa e do próprio avanço civilizatório que caracterizava a jovem nação. Prova maior, contudo, foi a participação do povo nas guerras do século XIX, porque aí o povo já sabia não apenas que era brasileiro, mas também quais eram os inimigos. Sabia “na sua ignorância”, mas ser assim era do povo. Cabia ao Folclore preservar o saber que não sabe, tratá-lo como conjunto de corpos semelhantes à “página em branco”. Corpos passíveis de receber denominações da “escrita colonizadora” que vai torná-los corpos devidamente inscritos, em nome das diversidades regionais que formam uma só nação.

Em 1912, com a publicação do Terra de Sol, seu primeiro livro, Gustavo Barroso institucionaliza o pseudônimo “João do Norte”, porque é do sertão cearense que ele pretende falar. Mas, na Guerra do Vidéo, ele vai mais longe e fala do Brasil, ou melhor, de todo o seu povo. Não a História de uma região e sim da História do Brasil, numa perspectiva verdadeira, porque leva em consideração as elites e o povo. Além de convocar elementos para uma trama ficcional mais atraente, o Folclore fornecia determinada autorização da “operação historiográfica” que Gustavo Barroso articulou em sintonia com a sua “escrita colonizadora”.

Como parte das iniciativas de Gustavo Barroso e participante de muitas outras iniciativas, o Museu Histórico Nacional firmou-se nas primeiras décadas como “página em branco”, em que seria possível isolar um determinado passado, aquele que tem como referência de legitimidade um corpo específico: como disse Michel de Certeau, o corpo branco, masculino, adulto e racional (Certeau, 2006: 208).

Em certa medida e em certo sentido, ficou fora do Museu Histórico Nacional o povo que ele transformou em objeto central nos livros de folclore e na sua primeira publicação Terra de Sol, obra que ele dizia ser de “sociologia sertaneja”. Para o povo, ele sugeriu a criação de outro museu, um “museu ergológico”, não em contraposição ao Museu Histórico Nacional, mas para complementá-lo (Barroso, 1945). Aí, nessa espécie de “Museu do Folclore”, o povo continuaria com seus corpos mortos pela distância temporal, mas em uma morte com sentido diferente daquele apresentado por heróis como Caxias e Osório, em repouso merecido na “Casa do Brasil”, para usar um termo que ele usava para chamar o seu museu (Magalhaes, 2006: 34).

Quando, por meio da escrita da história, delimita-se um passado, é dado um lugar à morte. Mas quem ganha um lugar não é apenas a morte ou os mortos. Enterrar os mortos, dando-lhes túmulo e lápide, é um meio de estabelecer lugar para os vivos. “Nomear os ausentes da casa e introduzi-los na linguagem escriturária é liberar o apartamento para os vivos (…)” (Certeau, 2013: 109). Eis o cerne do último tópico da segunda versão do texto “A operação historiográfica”. Aí a relevância do corte entre passado e presente, trabalhada em todo o texto, cede mais espaço para relação entre mortos e vivos. Pode-se compreender que, desse modo, Michel de Certeau se desloca com mais ênfase do jogo antes/depois para as ambiguidades entre o que acaba e o que permanece, pondo em relevo as relações da linguagem (em especial a escrita), com retornos alterados do que parecia ter acabado, (re)começos na continuidade, sobreposições de ganhos e perdas.

Considerando isto, cabe perguntar como Gustavo Barroso nomeava os ausentes, e como a nomeação liberava “o apartamento para os vivos”. Ou, para ser mais incisivo: o que era a morte para Gustavo Barroso? O fim de um passado e o começo de um presente. Ou seja, cisão, ruptura entre um e outro tempo, ideal para se morrer de saudade. Mas, obviamente, essa é uma resposta demasiadamente generalizante (e talvez desnecessariamente irônica). Dizer que, para ele, os mortos deveriam ser lembrados também é muito vago. Que a História era mestra da vida, é bastante evidente. Seria necessário precisar melhor os termos, indagando-se sobre a sua maneira de “simbolizar o limite” (Certeau, 2013: 89).

Sua simbolização do limite fazia do poder de conhecer o passado o poder de direcionar o presente, delimitando o que o presente deveria ser diante do passado. Poder magistral, como poder de mando. Para ele, o passado não se resumia a um relicário de orientações para o presente. Uma das questões silenciadas na operação é que esse “outro”, já morto, já tinha dono, dono que era ele mesmo, ou alguém com o poder de tratar os “outros”, no tempo e no espaço, como “página em branco”.

Repondo, mais uma vez, as três dimensões da “operação historiográfica”. O “lugar”: homem, branco, adulto e racional, portanto em condições favoráveis para ser dono legítimo de parlatórios e escritórios. A “prática”: o sujeito pesquisador pronto para ser dono da operação de “simbolizar o limite”, um intelectual capaz de provar que, conhecendo bem o passado, divulgando e preservando o passado, já tão distante, conheceria bem o presente por comparações com o que já não há, inclusive com autoridade para saber como o presente poderia ser melhor do que o passado. A “escrita”: atirando em todas as direções, escolhendo inimigos, promovendo réplicas e tréplicas, com o intuito de preservar as tradições que não ferissem os privilégios do seu “lugar” ou de lugares de alguma forma parecidos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não há dúvida que Gustavo Barroso não cansou de se autodeclarar como defensor do passado. Que ele mobilizou estratégias variadas nessa direção, também sobre isso não há muito o que questionar. O que aqui se pôs em dúvida, ou melhor, o que aqui se questionou foi tal autoridade atribuída ao passado a partir do regime temporal característico da “operação historiográfica”. O que aqui se pôs em dúvida foi um uso do tempo que, hoje, ainda insiste em retornar como base não declarada que afiança recortes autolegitimados.

Até quando a busca do idêntico cronológico? Até quando a “espinha dorsal” dessa identidade recomposta pelo apego à infinita descoberta da (verdadeira) tradição que advém de um passado fabricado como “ausência” no presente? Até quando a renovação (oficial ou alternativa) da defesa do passado?

De acordo com Michel de Certeau, o cerne da história moderna (a partir do século XVIII) é a divisão cada vez mais sistematizada entre passado e presente (quanto maior a demarcação do passado, maior será a delimitação do presente). A sua proposta não parte de constatações a respeito da menor ou menor autoridade do passado: “mais importante que a referência ao passado é a sua introdução sob a forma de uma distância tomada” (Certeau, 2013: 86). Sendo assim, Gustavo Barroso foi tratado aqui não simplesmente como “defensor do passado” e, sim, como criador e criatura da distribuição temporal que está em jogo na “operação historiográfica”: “trabalho da morte e trabalho contra a morte” (Certeau, 2013: XIX); regime de temporalidade que supõe a “página em branco”.

A “página em branco”, uma das ideias centrais do prefácio à segunda edição do A escrita da história, volta a ser matéria de preocupação no A invenção do cotidiano. Se, no primeiro caso, a relação se dá com a imagem de Américo Vespúcio diante da índia “americana”, no segundo a “página em branco” é posta em conexão com o “diário” de Robson Crusoé. A “página em branco”, argumenta Michel de Certeau, fabrica o “outro” para dominá-lo e explorar seu trabalho. Não há nada de inocência, portanto, na “decisão de escrever o diário” (Certeau, 1994: 227).

Daí ser incontornável indagar: “o que fabrica o historiador quando faz história, hoje?” (Cezar, 2018), já que seria inadequado, pelo caráter assumido pelo presente artigo, esquivar-se de um melhor delineamento do “lugar onde o olhar se inquieta” (Certeau, 1995: 81). Embora os próximos três parágrafos sejam os últimos, vale sublinhar que suas questões precedem, em certa medida, o que aqui foi escrito.

Hoje, para ficar fora da política colonizadora da “página em branco”, um museu teria que repensar o cerne temporal da “operação historiográfica” (o passado separado do presente, fazendo do passado um objeto do presente), inspirando-se, por exemplo, em renovações e rebeldias no campo da História: “(…) a operação escriturária e os desvios metodológicos (semióticos, psicanalíticos etc.) que introduziram outras possibilidades teóricas e práticas no funcionamento ocidental da escrita” (Certeau, 2013: XII).

Seria necessário se interrogar sobre os vetores políticos articulados na legitimidade do presente autodeclarado como “competente” e, por isso mesmo, desobrigado da tarefa de transformar ele mesmo, o presente, em objeto, o que implica reconhecer a tradição ocidental que fundou a “operação historiográfica” como uma possibilidade de vivência do tempo entre outras. A temporalidade que separa o passado como objeto do presente, “muito longe de ser genérica, essa construção é uma singularidade ocidental”. (Certeau, 2013: XVIII).

Seria preciso acolher o desafio que Michel de Certeau lança logo no primeiro parágrafo do livro A fábula mística, quando ele se diz incompetente para examinar um objeto que, aliás, era sua “especialidade” (Certeau, 2015: 01). Isso em nome de um presente que já não se vê mais com a autoridade de antes, que já se interroga sobre as relações de poder estabelecidas quando se pensa em termos de sujeito e objeto. Isso, também, em nome de outro regime de temporalidade, aquele que se abre às interrogações na medida em que elas se deixam atravessar: “Só é preciso um lugar onde possa aparecer o que ultrapassa” (Certeau, 2015: 04).

Disponibilidade de dados:

Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

REFERÊNCIAS

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  • Fonte de financiamento:
    Nada a declarar.
  • Contribuição dos autores:
    Não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    01 Jan 2025
  • Aceito
    19 Maio 2025
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