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NIZE ISABEL DE MORAES: MEMÓRIAS DE UMA HISTORIADORA DA SENEGÂMBIA

Nize Isabel de Moraes: memoiris of a historian specializing in Senegambia

Nize Isabel de Moraes: memorias de un historiador Senegambia

Resumo

Entre os anos de 1960 e 2015, Nize Izabel de Moraes, historiadora paulista, viveu em Dacar (Senegal) e trabalhou como pesquisadora do Institut Fondamental d’Afrique Noire (IFAN), na atual Université Cheikh Anta Diop. Explorando seu arquivo privado e outros registros entre Brasil e Senegal, com destaque para seus diários, correspondências e anotações sobre suas pesquisas e viagens entre África e Europa, o objetivo deste artigo é a análise de sua trajetória acadêmica, bem como o impacto de sua produção para a historiografia da Senegâmbia, área em que se destacou como pesquisadora pioneira. Nesse percurso, pontuamos os silêncios em torno de sua vida e obra, bem como questionamos sua experiência como “intelectual negra” em redes nacionais e internacionais de diálogos, marcadas pelas intercessões de gênero, raça e nacionalidade.

Palavras-chave:
Senegal; Brasil; Trajetória; Intelectual negra; Nize Isabel de Morais; Historiadora

Abstract

Between 1960 and 2015, Nize Izabel de Moraes, a historian from São Paulo, lived in Dakar (Senegal) and worked as a researcher at the Institut Fondamental d’Afrique Noir (IFAN), at the current Université Cheikh Anta Diop. Exploring her private archive and other records in Brazil and Senegal, with emphasis on her diaries, correspondence and notes on her research and travels between Africa and Europe, the purpose of this article is to analyze her academic trajectory, as well as the impact of her production for the historiography of Senegambia, an area in which she stood out as a pioneering researcher. In this journey, we will point out the silences surrounding her life and work, as well as question her experience as a “black intellectual” in national and international networks of dialogues, marked by the intercessions of gender, race and nationality.

Keywords:
Senegal; Brazil; Trajectory; Black intellectual; Nize Isabel de Morais; Historian

Resumen

Entre los años 1960 y 2015, Nize Izabel de Moraes, historiadora paulista, vivió en Dakar (Senegal) y trabajó como investigadora en el Institut Fondamental d’Afrique Noire (IFAN), en la actual Universidad Cheikh Anta Diop. Explorando su archivo privado y otros registros entre Brasil y Senegal, con énfasis en sus diarios, correspondencia y notas sobre sus investigaciones y sus viajes entre África y Europa, el objetivo de este artículo es el análisis de su trayectoria académica, así como el impacto de su producción para la historiografía de Senegambia, área en la que se destacó como investigadora pionera. En este recorrido, puntuamos los silencios en torno a su vida y obra, además de cuestionar su experiencia como “intelectual negra”, en redes de diálogos nacionales e internacionales, marcadas por las intercesiones de género, raza y nacionalidad.

Palabras clave:
Senegal; Brasil; Trayectoria; Intelectual negra; Nize Isabel de Morais; Historiadora

ESCRITAS DE SI

Nize Izabel de Moraes nasceu na cidade de Bauru, em São Paulo, em 2 de fevereiro de 1938, dia de Iemanjá. Em seu documento de cidadania senegalesa, que conquistou em 2001, ela destacou que era filha de Corina Barbosa de Moraes e de sua avó materna, Ignacia Barbosa, afirmando que duas mulheres negras foram responsáveis por sua existência, reproduzindo um modelo de família negra predominante na história do Brasil, com a presença feminina na administração do lar. Podemos considerar vários fatores que explicam esse modelo de formação familiar: o patriarcalismo, machismo e a escolha das mulheres em viver de forma independente. No caso da família da Nize, a ausência paterna foi resultado da morte precoce de seu pai, o operário Ophélio de Paula de Moraes. Ele faleceu em 1951, quando Nize tinha 22 anos. Por enquanto, não sabemos até quando, ou mesmo se eles estabeleceram contato. Já sua mãe, Dona Corina, de quem temos mais informações, trabalhou por longo período como cozinheira.

Quando decidimos iniciar as investigações sobre sua trajetória, não sabíamos se existia um acervo específico referente a suas obras ou mesmo sobre sua vida dos dois lados do Atlântico. Em contatos com antigos funcionários da Embaixada Brasileira em Dacar, chegamos até Rosimar Diouf. Brasileira, nascida no Rio de Janeiro e casada com o senegalês Semou Diouf, ela vive no Senegal desde o fim dos anos 1980 e cuidou de Nize até seus últimos anos de vida, até o falecimento da historiadora em 2015. Médica, Rosimar tratou de seu corpo adoentado, do velório e enterro católicos, bem como de seus pertences. Decidiu, porém, depositar uma parte significativa de seus documentos e registros no Institut Fondamental d’Afrique Noire (IFAN), na Universidade Cheikh Anta Diop, instituição em que a historiadora trabalhou como pesquisadora assistente até se aposentar. Outra parte do acervo ficou, e ainda permanece, na casa de Rosimar. Esse arquivo é composto de inúmeras fotografias, livros resultantes da pesquisa de mestrado e doutorado, diários, cartas, escritos esparsos, anotações de pesquisa. Sabemos que também há obras de arte na casa de Nina Gonçalves Silva, também brasileira e amiga de Nize. As duas conheceram-se na Embaixada do Brasil em Dacar, onde até hoje Nina trabalha na parte administrativa.

Também constatamos que Bella, como Nize era chamada no Senegal, doou 518 livros para a biblioteca da Universidade Cheikh Anta Diop. Em primeiro plano, lemos essa ação como uma pista do que a historiadora desejava disponibilizar, publicamente, de seu arquivo. Como as caixas de seu acervo não receberam tratamento arquivístico no IFAN, consideramos que talvez Nize não tenha tido tempo de organizá-lo antes de falecer. Não conseguiremos responder a algumas dessas instigantes e cruciais questões. Sabemos, por exemplo, que o pagamento da publicação de seu último livro, referente à tese, também não foi resolvido completamente até sua partida deste mundo.

Conforme assinala a historiadora Maria Teresa Cunha (2009CUNHA, M. T. S. Territórios abertos para a história. In: PINSKY, C. B.; LUCA, T. R. (org.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009. 251 p. p. 251-279.), esses registros de experiências pessoais conservados pelas escritas permanecem, quase sempre, “invisíveis”, em velhos caixotes, queimados ou jogados no lixo, já que são considerados como “escritas ordinárias” (Cunha, 2009CUNHA, M. T. S. Territórios abertos para a história. In: PINSKY, C. B.; LUCA, T. R. (org.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009. 251 p. p. 251-279.). Quando protegidos em acervos pessoais, essas “práticas de produção de si” permitem compreender um diversificado conjunto de ações, incluindo desde as mais diretamente ligadas a uma “escrita de si”, como as autobiografias e os diários, até a constituição de uma “memória de si”, com o recolhimento de objetos materiais, que podem ou não ter a intenção de constituir coleções (Gomes, 2004GOMES, Â. C. (org.). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2004. : 10).

Todavia, Ângela de Castro Gomes (2004GOMES, Â. C. (org.). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2004. ) também nos alerta para o “grande feitiço do arquivo privado”. Ao guardar uma documentação pessoal, armazenada e produzida com a marca da personalidade e nem sempre destinada ao espaço público, acreditamos estar diante de seu produtor de forma “verdadeira”. A espontaneidade e a intimidade seriam “garantias” de que ele estaria se mostrando “de fato”. Isso não deve, entretanto, fazer-nos esquecer que esse acervo também nasce da desordem e supõe mãos que manipulam e classificam os documentos, olhos que vigiam o escrito ou ainda cheiros que despertam memórias (Farge, 2009FARGE, A. O sabor do arquivo. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2009.: 35).

Não sabemos exatamente como Nize Isabel selecionou o que constaria de seu arquivo, definindo, em diferentes momentos de sua vida, o que valia ou não guardar. Em seu acervo, dividido entre o IFAN e a residência de Rosimar Diouf, destacam-se inúmeras correspondências (ativas e passivas) trocadas com familiares, amigos, professores, pesquisadores, funcionários das embaixadas e escolas onde trabalhou em São Paulo e mesmo com os presidentes do Brasil e do Senegal; anotações esparsas (manuscritas até mesmo em guardanapos) sobre suas pesquisas e leituras, sobre viagens, amigos, investigadores, professores; e finalmente alguns diários.

Embora essas fontes ainda não estejam sistematizadas, ou tampouco permitam uma análise mais contínua, os diários, as cartas e mesmo os registros dispersos têm sido nosso ponto de partida para perscrutar a trajetória de Nize Isabel de Moraes entre Brasil e Senegal. Praticamente desconhecida pelos africanistas brasileiros, entre os poucos estudiosos que dialogam com sua obra, podemos citar o historiador Thiago Henrique Mota (2018MOTA, T. H. História atlântica da islamização na África Ocidental Senegâmbia, séculos XVI e XVII. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018.), em sua tese de doutorado História atlântica da islamização na África Ocidental Senegâmbia, séculos XVI e XVII. Sabemos ainda que uma cópia da dissertação de Nize pode ser encontrada no catálogo de dissertações e teses do Centro de Estudos Africanos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), com o título La petite cote d’aprés le capitão Francisco Lemos Coelho.

Neste artigo, apresentamos os primeiros resultados de uma longa investigação que se pretende desenvolver nos dois lados do Atlântico. Neste percurso inicial, interessa-nos, particularmente, examinar sua trajetória acadêmica, bem como o impacto de sua produção para a historiografia da Senegâmbia, área em que se destacou como pesquisadora pioneira. Ao mesmo tempo em que pontuamos os silêncios em torno de sua vida e obra, questionamos sua experiência como “intelectual negra”, em redes nacionais e internacionais de diálogos, marcadas pelas intercessões de gênero, raça e nacionalidade.

ATIVISTAS, ARTISTAS E INTELECTUAIS BRASILEIROS EM MOVIMENTO NO ATLÂNTICO NEGRO

Desde as primeiras décadas do século XX, pesquisadores brasileiros vêm enfrentando o desafio de apresentar diversos registros orais e artísticos da população negra em uma abordagem analítica sócio-histórica, num cenário em que suas obras, quase sempre, acabam marginalizadas pela produção hegemônica do país (Bernardino-Costa, 2018BERNARDINO-COSTA, Decolonialidade, Atlântico negro e intelectuais negros brasileiros. Sociedade e Estado, v. 33, n. 1, p. 119-137, 2018. https://doi.org/10.1590/s0102-699220183301005
https://doi.org/10.1590/s0102-6992201833...
: 132). O sociólogo Clóvis Moura (1925-2003), assim como Nize Moraes, não se transformou em professor universitário e não teve oportunidade de formar pesquisadores. No processo de busca por registros desses intelectuais, deparamo-nos com uma produção “do corpo geopolítico do conhecimento”, uma análise das experiências negras vividas pelo intelectual negro.

Parte desses intelectuais interferiu na luta contra “a colonialidade do poder e do ser do conhecimento” tanto em âmbito nacional, ao participar de lutas nacionais e internacionais, como também se solidarizando com as populações afro-diaspóricas e construindo conexões no Atlântico negro. Nesse longo percurso, podemos retornar a André Rebouças (1838-1898), que, após a queda do Império brasileiro (1888), exilou-se na Europa e, em seguida, fez uma viagem pela África entre os anos de 1891 e 1893. Nessa ocasião, escreveu cartas aos colegas brasileiros, assinando como o “negro André” ou “Ulisses africano”, o que sugere um diálogo com o pan-africanismo que estava em gestação nos Estados Unidos. Outro exemplo foi Abdias do Nascimento (1914–2011), que, durante seu exílio nos Estados Unidos, no contexto da ditadura militar brasileira, lecionou na State University of New York, em Buffalo, e na Universidade Obafemi-Awalo (antiga universidade Ile-Ifé), na Nigéria (Bernardino-Costa, 2018BERNARDINO-COSTA, Decolonialidade, Atlântico negro e intelectuais negros brasileiros. Sociedade e Estado, v. 33, n. 1, p. 119-137, 2018. https://doi.org/10.1590/s0102-699220183301005
https://doi.org/10.1590/s0102-6992201833...
: 133).

Lélia Gonzalez (1935–1994) também circulou entre Américas e Áfricas, ao acompanhar as lutas políticas na África do Sul e na Namíbia, participar de mesas redondas com feministas norte-americanas e ter contato com os movimentos afro-caribenho, afro-colombiano e afro-peruano. A historiadora Beatriz Nascimento (1942–1995) fez algumas viagens internacionais para seu trabalho de campo em torno dos “quilombos históricos” em Angola, passando por Lisboa, em 1979. Também esteve no Festival Pan-Africano de Arte e Cultura (FESPAC), em Dacar (1988), e na Martinica, em 1991, momento em que o bloco Ilê Ayê e Lélia Gonzalez igualmente compareceram (Ratts, 2021RATTS, A. Uma história feita por mãos negras. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.: 16).

Nesse sentido, ao abordar a trajetória de Nize Moraes, não a consideramos como paradigma de exceção, sobretudo pensando no movimento de deslocamento para África de ativistas, artistas e intelectuais negros. Thereza Santos, artista e militante negra, esteve em Angola na década de 1970. Em 1969, foi acusada de ter resistido à ditadura militar e de fazer parte dos movimentos pró-independência dos países africanos, mas conseguiu demonstrar que não tinha envolvimento com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e deslocou-se para São Paulo. Na cena paulista, nos anos 1970, escreveu em coautoria com o sociólogo e também ativista Eduardo de Oliveira e Oliveira e dirigiu um elenco composto de jovens negros que já tinham trabalhado com ele no Coral Crioulo, criado em coautoria com o angolano K. ­Massangu (Rios, 2014RIOS, F. A trajetória de Thereza Santos: comunismo, raça e gênero durante o regime militar. Plural, v. 21, n. 1, p. 73-86, 2014. https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2014.83619
https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099....
: 75).

Segundo Flávia Rios, a construção do argumento da peça E agora… falamos baseou-se na pesquisa histórica e sociológica da dissertação desenvolvida por Eduardo de Oliveira no curso de Ciências Sociais da USP, imprimindo vasto repertório iconográfico do Brasil escravista, além de dialogar com as produções de Aimé Césaire e de Léopold Sédar Senghor (1906–2001). Thereza Santos conhecia também literatura angolana por fazer parte do círculo anticolonialista do Rio de Janeiro liderado por José Maria Nunes Pereira (Rios, 2014RIOS, F. A trajetória de Thereza Santos: comunismo, raça e gênero durante o regime militar. Plural, v. 21, n. 1, p. 73-86, 2014. https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2014.83619
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: 85). E agora… falamos foi uma peça popular, com imagens históricas e modernas sobre a resistência dos negros, e fez sucesso no Centro de Cultura e Arte Negra (Cecan), entidade que foi idealizada e criada pela própria Thereza.

De outro parte, Petrônio Domingues (2020DOMINGUES, P. A redescoberta da África, o Grupo de Trabalho de Profissionais Liberais e Universitários Negros. Acervo, v. 33, n. 1, p. 101-127, 2020.) analisou o surgimento das manifestações das organizações negras, demonstrando o descontentamento dos afro-brasileiros perante o quadro de desigualdades no período da ditadura militar, na primeira metade da década de 1970. Nessa época, surgiram o Grupo Decisão (1973); o jornal Árvore das Palavras (1974); o grupo Negro da Liga Operária (1974), que assumiu a seção Afro Latino América do jornal Versus; e também foi criado o Instituto Brasileiro de Estudos Africanistas (1975). O historiador afirmou, entretanto, que o grupo de maior envergadura do período foi o Cecan. Formado em 1971 por um grupo de militantes, intelectuais e artistas negros no bairro do Bexiga, priorizava a ideia da negritude, afirmando a necessidade de que a revalorização do negro ocorresse sob a égide da identidade e, simultaneamente, contemplando o resgate da história e da cultura como elementos de luta e resistência. Nesse contexto, o teatro foi acionado como instrumento de conscientização e de denúncia contra o racismo (Domingues, 2020DOMINGUES, P. A redescoberta da África, o Grupo de Trabalho de Profissionais Liberais e Universitários Negros. Acervo, v. 33, n. 1, p. 101-127, 2020.: 104).

Citando Borges Pereira, Domingues destacou que o Grupo de Trabalho de Profissionais Liberais e Universitários Negros (GTPLUN) promoveu uma exaltação da África, e as associações negras fizeram um movimento de aproximação com as embaixadas africanas, como um plano de ação que incluiu palestras sobre o continente africano (Domingues, 2020DOMINGUES, P. A redescoberta da África, o Grupo de Trabalho de Profissionais Liberais e Universitários Negros. Acervo, v. 33, n. 1, p. 101-127, 2020.: 105). Em outras palavras, as embaixadas, no Brasil ou na África, como veremos para o caso do Senegal, foram acionadas por intelectuais e ativistas como locais de articulação política para a descolonização.

Voltando à história de Thereza Santos, que fez parte do Cecan, sabemos que ela trabalhou ainda na reconstrução das nações no processo de independência no âmbito da cultura e da luta armada. A artista retornou de Angola em maio de 1978, depois de ter vivido o processo político de independência e refundação dos estados nacionais africanos, e foi presa em Angola sob a acusação de “atentado à segurança nacional”. Rios afirma que a cronologia da permanência de Santos no exterior não está correta e afirma que ela regressou ao Brasil depois de quatro anos. Mesmo saindo de Angola, passou por Moçambique e Guiné-Bissau (onde recebeu treinamento militar), tendo atuado com as forças revolucionárias desses países. Parece que a própria Thereza disse, para a imprensa e polícia, que teria saído do Brasil em 1974, “a convite do partido africano de Independência da Guiné e Cabo Verde”, após conhecer o ministro da Justiça, Fidelis Cabral, que havia estudado no Brasil e era amigo e noivo de Santos (Rios, 2014RIOS, F. A trajetória de Thereza Santos: comunismo, raça e gênero durante o regime militar. Plural, v. 21, n. 1, p. 73-86, 2014. https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2014.83619
https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099....
: 75).

Na Guiné-Bissau, iniciou um trabalho teatral, mas, ao receber uma proposta melhor do governo angolano para desenvolver atividades artísticas, partiu para o outro país, já independente de Portugal, em 1976. Como comentou Rios, Thereza teve boas relações com a cúpula do Movimento de Libertação de Angola (MPLA). Nesse momento, a atriz brasileira relacionou-se, principalmente, com o partido político liderado por Agostinho Neto e atuou no Ministério da Cultura, recriando o teatro e outras formas de expressão dramatúrgica. Na capital angolana, Luanda, Santos foi também assessora do ministro da educação, o revolucionário e poeta Antônio Jacinto. Foi nesse momento que criou História de Angola; África e Liberdade; e Angola, terra e cultura, produções dramatúrgicas que foram encenadas em datas e eventos comemorativos, nacionais e internacionais, como os congressos do MPLA e o Festival Mundial de Artes Negras e Africanas — Festac (Rios, 2014RIOS, F. A trajetória de Thereza Santos: comunismo, raça e gênero durante o regime militar. Plural, v. 21, n. 1, p. 73-86, 2014. https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2014.83619
https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099....
: 76).

Santos saiu de Angola por motivos políticos, que envolviam alunos brancos de sua escola, o que a levou a ter conflitos com a direção do partido e, no contexto de disputas e fracionamentos do MPLA, com tentativas de golpes, que tinham como propósito o intervencionismo político soviético sobre Angola. Tais conflitos resultaram em massacres e no aprisionamento de um grande número de pessoas, entre os quais membros do MPLA e populares envolvidos em revoltas. Para conseguir sair de Angola, Thereza forçou uma greve de fome (Rios, 2014RIOS, F. A trajetória de Thereza Santos: comunismo, raça e gênero durante o regime militar. Plural, v. 21, n. 1, p. 73-86, 2014. https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2014.83619
https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099....
: 77).

As experiências da atriz brasileira em Angola e as denúncias da imprensa sobre o processo de independência colaboraram para o rompimento das visões idílicas sobre o continente africano nutridas por intelectuais e ativistas. Conforme assinalou Rios (2014RIOS, F. A trajetória de Thereza Santos: comunismo, raça e gênero durante o regime militar. Plural, v. 21, n. 1, p. 73-86, 2014. https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2014.83619
https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099....
), o percurso de Santos aproxima-se do feminismo do Brasil dos anos 1970, quando parte expressiva dos grupos feministas se articulou às organizações de influência marxista e clandestina e em oposição à ditadura militar. Diferentemente das mulheres que foram para a Europa ou para a América Latina, Santos tomou outro rumo, estabelecendo laços com o comunismo e o anticolonialismo (Rios, 2014RIOS, F. A trajetória de Thereza Santos: comunismo, raça e gênero durante o regime militar. Plural, v. 21, n. 1, p. 73-86, 2014. https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2014.83619
https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099....
: 91).

Perseguindo a trajetória de outro intelectual negro que atravessou o Atlântico, chegamos à “história de rejeição” vivida por Abdias do Nascimento (1914–2011) para participar de dois eventos na África, como ele mesmo narrou em O genocídio do negro brasileiro. No prólogo desse livro, Nascimento reproduziu um ensaio escrito para o diretor do colóquio do 2º Festac, realizado na Nigéria entre 15 de janeiro e fevereiro de 1977. Preparado para ser apresentado como conferência pública no desenrolar do colóquio, o documento foi rejeitado pelo establishment, como lhe informou o professor Pio Zirimu, diretor do festival, 15 dias antes de morrer (Nascimento, 2017NASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2017.: 27).

Nascimento escreveu uma carta aberta ao coronel Ahmadu Ali, presidente do colóquio, pedindo justificativas sobre a exclusão da sua conferência intitulada “Democracia racial, mito ou realidade”. Como resposta, o coronel lhe informou que não estava no cargo quando da seleção dos trabalhos. A história de rejeição do trabalho de Abdias foi publicada em vários jornais locais e internacionais e comentada por intelectuais como Wole Soyinka. O jornal Daily Sketch argumentou que o trabalho de Abdias fora recusado por ser considerado ofensivo para alguns governos ou interesses. De toda sorte, o texto acabou sendo editado pelo Departamento de Línguas e Literaturas Africanas na Universidade de Ifé e distribuído aos participantes do colóquio. Durante o evento, o professor brasileiro Fernando Mourão fez uma apresentação sobre a presença cultural da África e a dinâmica cultural do processo sociocultural no Brasil.

O etíope Aleme Eshete, um dos relatores do grupo de trabalho do encontro, fez a seguinte narrativa referente aos confrontos de ideias entre Abdias e Fernando Mourão:

O orador brasileiro disse que a cultura africana tanto tem penetrado na sociedade brasileira que hoje é difícil compreender a cultura brasileira sem compreender a africana. Os participantes souberam pelo mesmo autor que o Brasil era uma sociedade multirracial e multicultural. ­Entretanto, esta afirmação foi fortemente desafiada por outro professor brasileiro, Nascimento, o qual disse que no Brasil a cor negra era considerada inferior… Os membros deste colóquio recomendam, em vista do forte protesto do professor Nascimento, que uma investigação seja feita sobre as condições do negro no Brasil (Nascimento, 2017NASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2017.: 27).

Conforme narrou Abdias, cerca de cinco ou seis delegados oficiais do Brasil não abriram a boca, durante as sessões plenárias, para articular qualquer comentário, sugestão ou crítica. Um posicionamento surgiu entre os brasileiros quando ele propôs que a língua portuguesa fosse considerada uma das línguas oficiais nos futuros festivais, para que a comunidade africana não ficasse subjugada ao inglês e ao francês. Essa proposta foi aprovada pela plenária, menos pelo representante do governo brasileiro, George Alakija (1921–2005), que proferiu as seguintes palavras:

Eu sou representante do governo brasileiro junto ao Festac. Eu sou meio brasileiro e meio nigeriano. A proposta em discussão é de natureza política. O professor Nascimento não é um delegado oficial neste colóquio, por isso não pode fazer nenhuma proposta. Se esta recomendação, de sentido político for aprovada, ela criará complicações e embaraços nas relações entre Brasil e Nigéria (Nascimento, 2017NASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2017.: 36).

Diante do discurso de Alakija, visto por Abdias como ameaça, o coronel Ahmadu Ali proferiu a seguinte resposta: “para Nigéria não haverá nenhuma dificuldade e nenhum embaraço”. Além de Fernando Mourão, compuseram a delegação do Brasil Clarival do Prado Valladares, René Ribeiro, Yeda Pessoa de Castro, Guilherme A de S. Castro e o Dr. Alakija.

Quando consultamos a documentação de Nize Moraes, notamos que Fernando Mourão foi uma referência para seus estudos sobre a África. Em correspondência remetida pela USP, assinada justamente pelo professor Mourão no âmbito do Centro de Estudos Africanos da USP, ele destacou a proeminência das pesquisas desenvolvidas por Nize. A seguir, transcrevemos na íntegra o que ele disse sobre a produção acadêmica da historiadora:

A professora Nize Isabel de Moraes no período em que realizou pesquisas em Dakar, junto ao Institut Fondamental de L’Afrique Noire — Universidade de Dakar — produziu 17 trabalhos, ora sozinha e ora em colaboração com especialistas de renome internacional na matéria específica, trabalhos estes que li a seu pedido. A maior parte destes trabalhos são de maior interesse para a reconstituição do passado histórico da Costa Ocidental da África, principalmente em função das relações comerciais, o que apresenta duplo interesse atual. Cabe pôr em destaque o fato de que estes trabalhos mereceram publicação e já se encontram estampados em revistas do exterior, órgãos de instituições de maior renome científico, o que torna evidente o esforço da pesquisadora e a qualidade dos referidos trabalhos (São Paulo, 29 nov. 1977).

Seguindo as emaranhadas redes de contatos construídas dos dois lados do Atlântico, outra referência intelectual importante para Nize foi o próprio Léopold Sédar Senghor (1906–2001), primeiro presidente do Senegal independente. Entre os diversos documentos de seu acervo que reafirmam as estreitas relações entre eles, localizamos uma espécie de atestado emitido por Senghor para justificar a presença de Nize no país. Nele, o primeiro destacou tanto a contribuição da comunidade de língua portuguesa na história do Senegal como a relevância do tema de pesquisa de Nize, ao pontuar as contribuições para o Senegal da comunidade lusófona cabo-verdiana e dos falantes do crioulo de Casamance (como crioulo da Guiné-Bissau), região localizada ao sul do Senegal que fez parte do império colonial português. Mais adiante, veremos que esse argumento sobre as contribuições da comunidade de língua portuguesa foi uma estratégia lançada pelo presidente senegalês diante da luta anticolonial. Tanto no discurso de Senghor quanto no de Abdias, a afirmativa de contribuição dos povos negros para a história da humanidade era uma constante.

***

Em nota publicada pela Universidade Federal da Bahia, somos informados que o Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO), representado pelo professor Waldir Freitas Oliveira, coordenou a comissão oficial que, por intermédio do Ministério das Relações Exteriores, conduziu a atuação do Brasil no 1º Festival Mundial de Artes Negras (Fesman), na cidade de Dacar, em 1966. Além do diretor do CEAO, integraram a representação brasileira o professor Candido Mendes de Almeida, diretor do Instituto Brasileiro de Estudos Afro-Asiáticos, no Rio de Janeiro; os professores Edson Carneiro e Estácio Lima (Universidade Federal da Bahia — UFBA), da Bahia; o crítico de arte Clarival do Prado Valladares; Raimundo de Souza Dantas (primeiro negro nomeado embaixador em Gana, em 1961); os pintores Rubem Valentim e Heitor dos Prazeres; entre outros artistas.

Naquele mês de março de 1966, no prédio da Assembleia Nacional, região central de Dacar, houve um colóquio sobre a função e o significado da arte negra na vida dos povos presidido pelo próprio presidente do Senegal, Léopold Sédar Senghor, que contou ainda com a participação do Ministro das Relações Culturais da França, o escritor André Malraux; o representante da Unesco, Lourival Machado; e Alioune Diop, presidente da Sociedade Africana de Cultura e fundador da icônica revista Présence Africaine. Como destacado no texto da UFBA, os discursos mais importantes foram proferidos por Malraux e Senghor; este último exaltou a negritude, demonstrando a originalidade dos valores da civilização e da arte negra e defendendo também a construção de uma civilização universal.

O evento contou com a participação de 37 países e intelectuais de diversos países africanos e da diáspora, como William Fagg, uma das maiores autoridades em arte negra (Museu Britânico); o francês Roger Bastide, então professor da Universidade de Paris; e ainda Katherine Dunham, coreógrafa e dançarina afro-americana. Durante o Fesman, foram inauguradas duas exposições: de arte tradicional e de arte contemporânea1 1 Os grandes museus da Europa e da América contribuíram para essas exibições com peças dos reinos do Benim e de Ifé, entre as quais máscaras rituais dos bambaras, dos pesos em ouro dos ashantes, representações zoomórficas dos povos negros da estepe, esculturas dos povos bantos do Congo e de Angola e ainda ourivesaria da África Ocidental. . Nesta última seção, as obras dos artistas brasileiros Rubem Valentim, Heitor dos Prazeres e Agnaldo dos Santos também foram expostas. Ao fim, o prêmio de escultura foi concedido a Agnaldo dos Santos, que havia falecido em 1962.

O crítico de arte Clarival Valadares, que integrou o comitê brasileiro do Fesman como júri, fez uma grande defesa das obras de Santos, considerando-o como “o escultor primitivo”, “único continuador dos valores estéticos ancestrais e atuais referentes à cultura negra”. Como analisou a historiadora Luísa Reis (2015REIS, L. N. Dos improvisados a eméritos: trajetórias intelectuais no centro de Estudos Afro Orientais (1959-1999). Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Estudos Afro-Orientais, Salvador, 2015.: 148), “a perspectiva com a qual os intelectuais localizados na Bahia olhavam para a contribuição africana remetia à valorização de expressões da cultura negra como influências africanas”. Havia um esforço dessa intelectualidade em valorizar elementos africanos da sociedade baiana, especialmente os que estavam associados ao candomblé. Nesse sentido, os intelectuais que integravam o comitê projetavam Salvador como uma cidade africana no Brasil.

Ainda conforme o pequeno texto publicado pela UFBA, o primeiro grupo da delegação brasileira a se apresentar teria sido o de capoeira, coordenado por Mestre Pastinha. Em seguida, os ritmos típicos dos lundus, sambas de roda, de partido alto e beira-mar, entoados por Clementina de Jesus. Ainda subiram à cena o cantor Ataulfo Alves com seu conjunto de Pastoras, acompanhados das passistas da Escola de Samba Mangueira e, finalmente, a cantora Elizete Cardoso, com sambas brasileiros. Para complementar, a embaixada brasileira ainda ofereceu um jantar organizado pela ialorixá Olga de Alaketu, com suas “vestes vistosas de baiana” (CEAO, s.d.: 177).

Nos registros do festival, encontramos uma Carta-declaração-manifesto escrita por Nascimento e direcionada aos intelectuais pan-africanos, como espécie de resposta por ele ter sido barrado pelo governo brasileiro para participar do Fesman. Além das críticas à comitiva do Brasil no Senegal, argumentou que aquela amostra não era significativa da situação ocupada pelo negro no território das artes no Brasil. Para Abdias, o ponto mais alto da reflexão seria um “balanço da contribuição da raça negra”, e o “instante de fixá-lo na curva dessa história humana” era justamente o Festival Mundial das Artes Negras. Por isso mesmo, era grato às figuras e líderes paradigmáticos da negritude, tais como o presidente Léopold Sédar Senghor, os poetas Aimé Césaire e Léon Damas (Nascimento, 2017NASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2017.: 3).

Ainda em diálogo com a Carta-declaração-manifesto, Abdias afirmava que o Brasil deveria repensar sua “integração racial”, uma vez que sua significação era relativa e restrita, assim como existia o desejo das camadas ditas superiores de branquear o Brasil. Em suas palavras,

Daí uma política de manutenção do negro em seu lugar, com franquia em certas áreas como o futebol e o samba. A indústria do pitoresco existente em vários mercados do mundo se mantém, entre nós, pela comercialização dos produtos que o negro cria para o Carnaval. A alegria vital do negro, seu pendor coreográfico, seus cantos, seus ritmos e cores, transformados em mercadoria exótica, instauram um novo tipo de exploração. Com a vantagem de ajudar a manter o estereotipo do negro bom, que não cria casos. Mantendo-se na linha, sem projetos mais ousados ou ambiciosos (Nascimento, 2017NASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2017.: 4).

Em sua visão, o Itamaraty e o Departamento Cultura do Ministério do Exterior não ouviram a população negra, agindo de forma paternalista na seleção daqueles que foram para Dacar, deixando de fora importantes nomes no campo das artes negras, tais como: Solano Trindade, o maestro Abigail Moura, os pintores Cléo e Wilson Azeredo Sérgio, a Orquestra Afro-Brasileira, o Ballet Folclórico Mercedes Baptista, o Teatro Popular, o poeta e literato Fernando Góes, Oswaldo de Camargo, o crítico de cinema Ironildes Rodrigues, o sociólogo Antônio Alves Soares, e ainda estudiosos dos cultos religiosos. Além do mais, assinalava Abdias Nascimento, o próprio presidente Léopold Senghor, em visita ao Brasil em 1964, manifestou o desejo de reencontrar a orquestra brasileira em Dacar. Seguiu em suas discordâncias com os nomes dos pesquisadores selecionados para a confecção do livro Contribuição da África a civilização brasileira, produzido especialmente para o Fesman, sem a autoria de artistas ou escritores negros. Assim, ficaram de fora Grande Otelo, Ruth de Souza, Lea Garcia, Milton Gonçalvez, Jorge Coutinho, Aurea Campos, Zeni Pereira, Dalmo Tião e muitos outros notáveis intérpretes negros do teatro dramático (Nascimento, 2017NASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2017.: 4). Ao fim de suas incisivas críticas, concluiu que o teatro e a literatura foram excluídos pelo comitê.

Nesse processo, que não deixou de ser turbulento, a indicação dos artistas foi resultado de uma disputa entre os integrantes da Comissão. E, já de início, a primeira questão em debate era quem, de fato, deveria compor o comitê organizador. Reis assinala que Henri Senghor, sobrinho do presidente do Senghor e embaixador do Senegal no Brasil, criou uma tensão nesse processo seletivo, uma vez que se aliou aos militantes negros no Brasil e insistiu para que a comissão brasileira fosse composta de pessoas negras. No entanto, entre os convidados para compor esse grupo, apenas Souza Dantas era negro2 2 Raimundo Souza Dantas foi embaixador do Brasil em Gana entre 1961 e 1965. . No desenrolar das discussões, o comitê discordou da proposição de Henri Senghor e Henry teria “acusado o embaixador brasileiro de negro degenerado”. Dantas respondeu ser “negro brasileiro”, “indicando que sua identidade brasileira era mais significativa que sua cor e defendeu a ideia de que o comitê deveria ser formado por brasileiros de qualquer cor” (Reis, 2015REIS, L. N. Dos improvisados a eméritos: trajetórias intelectuais no centro de Estudos Afro Orientais (1959-1999). Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Estudos Afro-Orientais, Salvador, 2015.: 144).

Na entrevista que Waldir Oliveira concedeu a Luiza Reis, ele revelou que Henri Senghor foi influenciado por Abdias do Nascimento, que, por conseguinte, foi influenciado por Leon Damas. Abdias teria questionado o Itamaraty por apoiar a participação de pessoas brancas no comitê e a divulgação no Brasil sob o argumento da democracia racial. Após o Fesman, Henri Senghor e Abdias Nascimento divulgaram um texto, intitulado de Carta a Dacar, na imprensa senegalesa. O embaixador brasileiro, Francisco Chermont Lisboa, considerou a carta um “violento ataque” ao Ministério das Relações Exteriores e “especulou” que essa publicação tivera a colaboração de Henri, já que fora publicada no L’Unité, o jornal do partido do governo senegalês (Reis, 2015REIS, L. N. Dos improvisados a eméritos: trajetórias intelectuais no centro de Estudos Afro Orientais (1959-1999). Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Estudos Afro-Orientais, Salvador, 2015.: 162).

O Fesman contou com a cúpula de intelectuais africanos em terra africana e a Carta-declaração-manifesto de Abdias teve repercussão sobre os debates do Colóquio do Festival e foi publicada na Revista Présence Africaine, importante órgão do movimento pan-africano da Negritude3 3 A cúpula da Negritude reuniu-se pela primeira vez em Paris (1957) e depois em Roma (1959), no contexto anterior às independências efetivas dos países africanos. As independências da Etiópia, Libéria, Gana e Guiné ocorreram a partir de 1960. Os fóruns pan-africanistas da Negritude contaram com as presenças de Aimé Césaire, Frantz Fanon, Leon Damas, Richard Wright, Cheikh Anta Diop, Léopold Sédar Senghor e Alioune Diop. . Vale lembrar que o Brasil, durante o regime militar, sumia com seus opositores. E, diante dessas repercussões, Abdias Nascimento fugiu do país e refugiou-se nos Estados Unidos até 1981 (Moore, 2002MOORE, C. W. Abdias Nascimento e o surgimento de um Pan-Africanismo contemporâneo global. In: NASCIMENTO, Abdias (org.). O Brasil na mira do Pan-Africanismo. Salvador: EDUFBA, 2002. p. 17-32.: 2).

Antes disso, em setembro de 1964, Léopold Sédar Senghor fez uma visita ao Brasil e aproveitou-se da posição ambígua do país perante a descolonização para angariar adeptos, com a estratégia de “projetar o Brasil como líder de uma comunidade afro-lusa brasileira de nações independentes’’. Assim, visitou Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo, bem como assinou acordos culturais entre Senegal e Brasil. Foi recepcionado, na Bahia, pelo reitor da UFBA, Miguel do Calmon, e recebeu o título honoris causa quando realizou uma conferência sobre os valores da negritude e assinou um acordo cultural que levaria algum tempo para ser efetivado, criando a cadeira de Estudos Brasileiros na Universidade de Dakar e no ensino secundário. Durante essa estadia, jantou com o governador do Estado, Lomanto Júnior, o professor Renato Mesquita e o diretor do CEAO, Waldir Oliveira, no Palácio da Aclamação, sede do governo estadual. Esse encontro resultou em uma foto histórica com as autoridades (Reis, 2015REIS, L. N. Dos improvisados a eméritos: trajetórias intelectuais no centro de Estudos Afro Orientais (1959-1999). Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Estudos Afro-Orientais, Salvador, 2015.: 137).

Na tese de Luiza Reis há uma foto sobre a visita de Senghor à UFBA, nas dependências da biblioteca do CEAO, com o presidente “muito bem vestido e ostentando as insígnias e honrarias, tendo ao fundo estantes de livros compondo uma pequena imagem oficial”. Como informou a historiadora, ninguém soube informar quando teria ocorrido tal visita, nem as razões da ligação do ilustre visitante ao centro e suas relações com o continente. Reis também não localizou muitas informações do momento da entrega do título honoris causa a Senghor e não identificou a presença de cinco pessoas que acompanharam o presidente do Senegal sentado no sofá, como nos mostra outra foto (Reis, 2015REIS, L. N. Dos improvisados a eméritos: trajetórias intelectuais no centro de Estudos Afro Orientais (1959-1999). Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Estudos Afro-Orientais, Salvador, 2015.: 161). Reconhecemos, porém, Nize Isabel de Moraes na imagem, ao lado do presidente — e seu amigo — Senghor. Ela era a mulher negra de cabelo trançado que portava um vestido em estilo africano, usado em outras fotos que compõem seu acervo fotográfico — depositado na casa de Rose Diouf. Há outras fotos desse mesmo momento, mas sob outros ângulos, em sua coleção ainda guardada em Dacar.

UMA “SENEGA-BRASILEIRA”

Segundo as amigas brasileiras de Nize, Rosimar Diouf e Nina Gonçalves, ela teria chegado a Dacar para o Fesman. Ainda não temos informações mais exatas sobre as condições de sua partida do Brasil ou mesmo da chegada ao país africano. De toda forma, em 1967 ela já estudava na Universidade de Dakar (atual Cheikh Anta Diop) e recebia uma bolsa de pesquisa. Os primeiros dias na capital senegalesa foram de muitas dificuldades para encontrar um alojamento fixo e estruturado, companhias, trabalho, conforme escreveu em seu diário.

Hoje é dia 16/11/1967. Hoje faz exatamente 15 dias que estou em Dakar. Aqui não é muito fácil. Todos são diferentes. Fiz 2 exames e não passei em nenhum, pois a língua francesa para mim está se tornando um bocado difícil. Pelo que vejo vou ser obrigada a entrar numa escola para crianças (enfant) para começar o B-A-BA francês. Os negros africanos são completamente diferentes uns dos outros (assim penso eu). Pois não tomam conhecimento da mulher, a moça, que para eles é algo comum, todas são iguais, eles não fazem diferença alguma. Já tive uma experiência um bocado desagradável com um rapaz de Ghana, por sinal bastante desagradável mesmo, tudo por falta de experiência e orientações neste sentido. Só agora posso compreender porque me chamavam de inocente no teatro, todos continuam rindo de mim aqui na África. Tudo por causa da minha maneira de pensar. Ninguém me entende. Quando penso que encontrei uma pessoa amiga, jas trás… (Diário, 1967, grifo nosso)4 4 Toda a documentação de Nize Isabel de Moraes, tanto aquela conservada no IFAN como na residência de Rosimar Diouf em Dacar, não está catalogada, apenas acondicionada em caixas e pastas, sem qualquer referência arquivística. Sendo assim, ao longo deste artigo, iremos identificar apenas a data e a natureza dos documentos. .

Essas anotações deixam entrever suas dificuldades de adaptação à cidade e para aprender rapidamente a língua francesa. Indagamos ainda se ela aprendeu a falar wolof, pulaar, serer, jola, entre outras línguas nativas, e se a questão determinou o tipo de pesquisa que ela se empenhou em fazer ao longo de sua trajetória acadêmica. Os relatos demonstraram um avanço na construção de redes de apoio como moradora dakaroise. Ela mesma reconheceu a solidariedade senegalesa (a “famosa” teranga), em comparação à francesa, como veremos no diário escrito na França, ao enfrentar os desafios como estudante e moradora parisiense. Também expressava suas amarguras e desesperanças no processo de construção de sua trajetória, bem como não deixava de lançar um tom irônico e divertido para analisar as situações difíceis.

As narrativas dos diários impulsionaram-nos à seguinte problematização: mulher, negra e latina. Como essas identidades eram lidas socialmente nos lugares em que Nize morou e visitou como pesquisadora? Na leitura dos diários compreendemos que essas questões se tornaram mais importantes quando respondidas do ponto de vista da própria Bella, isto é, como ela lidava com as leituras sociais sobre seu corpo feminino negro. No trecho seguinte ela comentou, até mesmo, que recebia tratamento semelhante ao das moças negras senegalesas. Para ela, os homens africanos, considerando-se aqui os ganeses e senegaleses, desvalorizavam as mulheres negras e não faziam diferenciação intelectual e de personalidade entre elas, um comportamento masculino típico das sociedades patriarcais e colonizada pelos europeus e árabes, como é o caso do Senegal5 5 Elikia M. Bokolo (2009: 137), no livro África Negra História e Civilização, compreendeu que o impacto do islamismo provocou a desaparição progressiva das regras matrilineares das sociedades africanas em proveito dos mecanismos de patrilinearidade. .

Hoje, justamente o ano que cheguei em Dakar. Como o meu francês estava péssimo fui aconselhada a fazer estágio durante o ano letivo de 67-68. Entretanto não cheguei ao fim do curso de francês devido aos acontecimentos que atingiram a Universidade de Dakar. Os resultados dos descontentamentos dos estudantes senegaleses tiveram graves consequências. Uma boa parte dos estudantes estrangeiros deixaram Dakar definitivamente: franceses, dahomeanos, malianos, camaroneses, ivoerenes, sudaneses, etc. De minha parte as coisas se complicaram, pois resisti, teimei e fiquei. Isso porque a embaixada brasileira foi obrigada a fazer uma declaração dizendo que eu ficava no Senegal de livre e espontânea vontade. Aliás, bastante racista a referida embaixada. Acabei ficando, estou aqui há cinco meses (29/05/68 a 30/10/68) e ainda não consegui bolsa para a França e nem renovação aqui no Senegal. Nem sei como isso vai terminar. Promessa de trabalho tive muitas, promessas de ajuda de pessoas que não me conheciam me ofereceram ajuda, tudo está no começo. Há quatro meses que luto para sobreviver: convites quase diários são feitos para almoçar e jantar. […] No início fui hospedada na casa de uma brasileira a pedido de uma francesa e de um brasileiro que estava no IFAN. […] Depois me deram um quarto pequeno mas bom, pois passei a morar sozinha, onde estou até hoje. Para isto foi necessário desabrigar um rapaz da Guiné, houve muito falatório mas… passou. […] Morei na cité Universitária durante seis meses (Diário, 30 out. 1968, grifo nosso).

Com esta frase: “os resultados dos descontentamentos dos estudantes senegaleses tiveram graves consequências”, Nize referia-se aos conflitos resultantes das divergências políticas internas e da crise econômica que enfrentou em Dacar. No final dos anos 1960, a Universidade de Dakar foi palco de reivindicações de professores e estudantes. O ano de 1968 foi uma efeméride em termos de protestos para o mundo e não seria diferente para o Brasil e o Senegal. Enquanto no Brasil foi instaurado o ato institucional AI-5, que radicalizou a repressão política, no Senegal Senghor barrou as crescentes reivindicações das camadas populares. Como informou a historiadora Luiza Reis (2015REIS, L. N. Dos improvisados a eméritos: trajetórias intelectuais no centro de Estudos Afro Orientais (1959-1999). Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Estudos Afro-Orientais, Salvador, 2015.: 166), “a correspondência diplomática da Embaixada Brasileira registrou informações acerca das alterações provocadas pelos estudantes da Universidade de Dacar que protestavam contra a política financeira e salarial do governo”. Esse evento resultou em choques violentos que levaram à intervenção das forças militares. Alguns estudantes foram presos e feridos e três foram mortos (Reis, 2015REIS, L. N. Dos improvisados a eméritos: trajetórias intelectuais no centro de Estudos Afro Orientais (1959-1999). Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Estudos Afro-Orientais, Salvador, 2015.: 166).

Com a possibilidade de crescimento das manifestações, o presidente Senghor determinou o fechamento da Universidade de Dacar. Meses depois, em março de 1969, nova crise atingiu a Universidade, com a adesão de todos os estudantes após a expulsão de 25 alunos. Talvez pairasse nesse contexto uma “tentativa de derrubada do presidente Senghor”, ancorada na “insatisfação geral provocada pela crise econômica que o país atravessava”. A situação econômica financeira minou as bases políticas de Senghor no interior do país. O embaixador brasileiro, naquele contexto, Raul Vicenzi, considerou como necessária uma ajuda externa “em víveres destinados aos ministrados”. Vicenzi atribuiu as fragilidades do governo à dificuldade de abastecimento alimentar, ao deterioramento do preço do amendoim, ao crescente custo para a manutenção do funcionalismo público, ao custo de vida e à crise do franco. A instabilidade francesa também reverberou no Senegal, que era visto como “a ex-colônia mais dependente da ajuda da França” e que, ao mesmo tempo, mantinha laços econômico, político e militar. (Reis, 2015REIS, L. N. Dos improvisados a eméritos: trajetórias intelectuais no centro de Estudos Afro Orientais (1959-1999). Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Estudos Afro-Orientais, Salvador, 2015.: 167).

As críticas ao governo Senghor residiam, justamente, no relacionamento estabelecido com a França. O cientista político Carlos Moore, que viveu em Dacar como pesquisador e era amigo de Cheikh Anta Diop, considerava que o governo de Senghor fez parte de uma trama neocolonial alienante e alienadora6 6 Em entrevista concedida à historiadora Juliana Barreto Farias, em setembro de 2019, e publicada na revista Capoeira – Humanidades e Letras em 2021 (v. 7, p. 225-236), o historiador senegalês Boubacar Barry ressalta que os “problemas” entre Senghor e Cheikh Anta Diop eram políticos, “de escolha da política, em relação ao poder colonial, tanto quanto Cheikh Anta Diop foi por uma ruptura com o poder colonial, tanto quanto Senghor foi por uma continuidade da política francesa, porque sentiu que sem a França o Senegal não se desenvolveria. Penso que o Senegal se desenvolveu com a ajuda da França”. Além disso, “Senghor, como todos os líderes da África Ocidental e Central votaram sim no referendo [proposto pela França em 1958, recusando a independência imediata do Senegal], com exceção da Guiné de Sekou Touré. Era um fenômeno político global que fazia com que os líderes dessa geração estivessem com medo de romper com a França. Foi essa política que Senghor continuou no seu regime”. . A ideologia da Negritude, difundida em congressos, festivais de arte e colóquios, encobriu “seu rosto assimilacionista, seu hábil oportunismo político, mas também a sua proposta de cooperação submissa com o neocolonialismo imperial”. Durante o governo de Senghor, os intelectuais senegaleses dissidentes foram vigiados, banidos, expulsos das instituições de ensino e impedidos de ensinar nas instituições. Entre os perseguidos, podemos citar o caso de Cheikh Anta Diop (Reis, 2015REIS, L. N. Dos improvisados a eméritos: trajetórias intelectuais no centro de Estudos Afro Orientais (1959-1999). Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Estudos Afro-Orientais, Salvador, 2015.: 167)7 7 Na mesma entrevista citada anteriormente, Barry também comenta sobre as relações entre produção acadêmica, militância e ativismo político, e como isso tudo se dava sob o governo de Senghor. “Digamos que a maioria dos oponentes de Senghor [primeiro presidente do Senegal independente] estava na faculdade. No meu departamento, havia pelo menos dois candidatos à presidência: Iba Der Thiam e Abdoulaye Bathily, Abdoulaye Ly era político, Cheikh Anta Diop era político. As pessoas sempre fizeram política, especialmente historiadores. Mody Cissoko queria ser candidato no Mali, Alpha Omar Konaré se tornou presidente, a sua esposa e o marido de Madina Ly também eram políticos. Ibrahima Ly estava na prisão, escreveu o livro sobre a prisão. Ou seja, além da descolonização da história, havia a militância para afirmar a África e sua independência em relação ao poder colonial. O neocolonialismo era o combate do ensino da época, por isso a universidade era controlada por Senghor, apesar de seu nível intelectual, que é elogiado em todo o mundo. Ele colocou tanta pressão na universidade que houve hostilidades no nível linguístico, literário e filosófico. Haviam [sic] oposições, ele queria impor a negritude, que era rejeitada pela maioria dos professores”. .

De início, Nize teve uma relação conflituosa com a Embaixada Brasileira, que se transformou nos anos 1970, após a posse de João Cabral de Melo Neto como embaixador. Quais eram as informações e fontes de informação de Nize sobre o Senegal antes da chegada a Dacar? Nos diários, reclamou da perpétua solidão vivenciada nos primeiros dias como moradora dakaroise, talvez comum para uma mulher negra e estrangeira que buscava criar uma rede de amigos e trabalho. Em um contexto de incertezas sobre a possibilidade de construir uma carreira como professora e/ou pesquisadora, ela reclamou por dividir um quarto com uma companheira angolana, que estava em Dacar simplesmente “por estar”.

De 31-10 a 29/05/1968. Fiquei um pouco decepcionada com tudo e com todos. Aliás eu já sabia mesmo antes de chegar que não era um mar de rosas o Senegal, etc. Durante a invernagem eu estive com as chaves do apartamento de pessoas amigas. Um bem perto do IFAN no qual eu dormia quase que diariamente. […] Existe uma vizinhança que não é lá estas coisas. Existe uma criança de nove meses, senegalesa, que gosto demais, moro ao lado, vou lá de vez em quando para carregá-lo, chama-se Patrick Sow. O restante creio que mal apreciam muito. Talvez o guarda que faz a limpeza simpatize um pouco comigo. Creio ser um tipo esquisito e difícil. Todos gostam de mim, mas de longe. É interessante notar que o mesmo fenômeno que acontecia no Brasil se repete na África. As pessoas se aproximam de mim à medida que necessitam de qualquer coisa, e depois elas se vão cheias de mágoas de minha pessoa: depois dizem, Bella, você não procura a gente… Interessante. Na maior parte do tempo estou sempre só. Creio ser uma solidão perpétua. Tento, entretanto, fazer aproximações com as pessoas, mas percebo que é forçada, nada é natural, amizade forçada não vale a pena. No entanto, estou vivendo uma destas amargas experiências. […] Às vezes fico pensando: será que fiz bem em sair do Brasil, esta minha atitude de fuga do meu próprio ambiente. Será que foi propícia? Estou noutro ambiente completamente diferente e não estou contente. A solidão é a mesma que sentia antes. Não consigo me atachar [sic] a ninguém, hoje estou triste, só e saudosa, Deus meu, voltar àquela vida antiga? É horrível (30/10/68) Vou ficando por aqui até que a França decida me dar uma bolsa do Ministério des Affaires Étrangères, assim poderei mudar de país, até encontrar um pouco de paz interior, quem sabe (Diário, 30 out. 1968, grifo nosso).

As memórias sobre o Brasil foram narradas por meio de um diálogo com um pintor brasileiro, talvez Wilson Tibério, um artista negro, que também era morador de Dacar e se sentia revoltado com a permanência da desigualdade racial experimentada pela população negra brasileira no século XX. Nize concordava apenas em parte com a análise do pintor, conforme é possível observar em alguns parágrafos de seu diário, em 1968.

Entrei em contato com um pintor brasileiro que deixou o Brasil há 23 anos passados. Resultado: todos os dias descrições sobre as questões: racismo, sociedade, situação de miséria e o que mais me irrita o “negro”. Para ele não houve progresso algum do negro brasileiro. É sempre aquele que ele conheceu há 23 anos atrás. Que lástima, e o pior, ele (…) faz uma propaganda completamente desfavorável de nosso país comparando o negro brasileiro com o senegalês. E o pior é que aqui, e por toda a África francófona, só chegam as péssimas notícias do Brasil. O que é bom fica no território nacional e mais, o que é ruim chega rapidamente. Pobre Brasil, deitado eternamente em berços esplêndidos (Diário, 30 out. 1968, grifo nosso).

Vários artistas brasileiros passaram pelo Senegal e sobretudo Dacar, cidade cosmopolita e considerada como referência no campo das artes. Num primeiro momento, tivemos dificuldades em identificar o artista que se mostrava extremamente revoltado com a permanência do racismo no Brasil. Pensamos que esse diálogo poderia ter acontecido entre Nize e o artista brasileiro Rossini Perez, homem branco que morou em Dacar entre 1974 e 1975. Contudo, notamos que Nize marcou o ano da conversa com o artista: 1968. Lendo sobre a trajetória e o engajamento de Wilson Tibério e reconhecendo seu posicionamento contestatório ao governo de Leopoldo Senghor, pareceu-nos mais coerente nomeá-lo como personagem do diário de Nize. Vejamos: tanto Nize quanto Wilson Tibério “chegaram” ao Senegal no período do Fesman e ambos frequentavam o Teatro Daniel Solano. Se porventura não acertamos na identificação do artista, ao falarmos de Wilson Tibério, estaremos construindo uma reflexão para pensarmos na atuação de outro artista negro brasileiro no Senegal.

Tibério realmente foi convidado para o festival e, quando o evento terminou, passou a morar em Dacar, onde instalou seu ateliê e realizou uma exposição em 1967, na companhia do amigo e pintor sul-africano Gerard Sekoto. No catálogo para a exposição Pintores negros do Museu Afro Brasil (2008), Emanuel Araújo lembrou que Tibério viveu por longos anos na França, e esse distanciamento da pátria talvez o tenha levado a uma arte voltada à representação de aspectos da cultura negra. Nas palavras de Araújo: “seria nostalgia do exílio ou uma posição política por ele adotada para evidenciar suas mágoas e sua condição de revolta com as injustiças do mundo?” (Bispo, 2019BISPO, A. A. Os percursos da memória e da integração social: o arquivo pessoal de Nery e Alice Resende. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.: 15).

No Senegal o pintor se envolveu no movimento de revolta dos mineiros, o que resultou em sua expulsão do país. Para Francielly Dossin (2016DOSSIN, F. R. Entre as evidências visuais e novas histórias sobre a descolonização estética na arte contemporânea. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016.), Tibério foi definido em vida e obra pela condição de ser negro. Em seus desenhos sobre a região senegalesa de Casamance, aquarelas do acervo do Museu Afro-Brasil (SP), há uma confluência de referências. Para a produção dessas obras, ele dialogou com a estética do muralismo mexicano. Notamos que o artista foi influenciado pelo movimento latino-americano que denunciava as desigualdades sociais, a miséria e a exploração. Como assinala Dossin, “fundamentado pelo modernismo e pelo realismo socialista, o muralismo mexicano pode ter sido a primeira importante referência de uma arte orientada para o povo com articulações socais e políticas com a qual Tibério se deparou” (Dossin, 2016DOSSIN, F. R. Entre as evidências visuais e novas histórias sobre a descolonização estética na arte contemporânea. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016.: 232). Além do Teatro Experimental do Negro (TEN), Tibério participou de outras iniciativas motivadas por preocupações sociais e pela militância política: a criação do sindicato dos artistas plásticos em São Paulo (1921–1949), o Clube de Gravura de Porto Alegre (1950), assim como esteve na companhia de Luiz Carlos Prestes.

Sobre suas viagens, sabemos que Tibério foi para Paris, pela primeira vez, em 1947, onde esteve no Musée de l’Homme e na Academie de la Grande Chaumière (Montparnasse). Foi aí que conheceu o sul-africano Gerard Sekoto (1913–1999), que se tornaria seu amigo e com quem passaria uma temporada em Casamance. O biógrafo de Sekoto, Manganyi, citado por Dossin (2016DOSSIN, F. R. Entre as evidências visuais e novas histórias sobre a descolonização estética na arte contemporânea. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016.), assim registrou o posicionamento político de Tibério:

Os trabalhos que eu tenho exposto em Roma expressam o homem que sou, brasileiro, homem do terceiro mundo torturado pela opressão, barbárie e colonização, externa e internamente. Eu dei intencionalmente grandes dimensões ao meu trabalho tricontinental para que fosse proporcional ao que representa para nós a luta de Che Guevara. Muitas dessas obras encontram sua inspiração nos sofrimentos hoje da África, do Congo, de Byafra, de Moçambique e do Brasil (Manganyi, 1996MANGANYI, C. A black man called Sekoto. Johannesburg: Witwatersrand University Press, 1996.: 111-112 apud Dossin, 2016DOSSIN, F. R. Entre as evidências visuais e novas histórias sobre a descolonização estética na arte contemporânea. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016.: 232).

De Paris, Tibério seguiu para a África Ocidental Francesa, conhecendo o Senegal, o Sudão, o Daomé (Benin) e Alto Volta (Burkina Faso), com bolsa cedida pelo governo francês. Como explica Dossin (2016DOSSIN, F. R. Entre as evidências visuais e novas histórias sobre a descolonização estética na arte contemporânea. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016.), o pintor viajou três vezes para África e, por duas vezes, fixou residência, mas em todas essas passagens pelo continente teve que deixá-lo contra sua vontade. Quando esteve na condição de bolsista, parece que Tibério teria surrado um capataz branco, que tentava controlar “um bando de trabalhadores africanos”, e o brasileiro teria instigado um trabalhador a reagir à exploração. Em outras palavras, Tibério revoltou-se contra o trabalho forçado na África.

Ainda assim, como narra Manganyi, Tibério era consciente, politicamente, de que sua pintura e escultura o levaram à expulsão do Senegal. Ele sabia que suas críticas à figura de Senghor e à Negritude resultaram em sua inclusão na lista do indesejados do presidente. Desde 1956, Tibério dialogava com o movimento da negritude, uma vez que foi convidado pela revista Présence Africaine para participar do Primeiro Congresso de Escritores e Artistas Negros em Paris. É possível vê-lo numa foto do evento, que também contou com a presença de Senghor. Era um momento em que se discutia a crise da cultura, a necessidade de espaço para as artes negras no mundo e o projeto de realização do Fesman (Dossin, 2016DOSSIN, F. R. Entre as evidências visuais e novas histórias sobre a descolonização estética na arte contemporânea. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016.: 249).

Reconhecemos, entretanto, que carecemos de mais dados para explicar as críticas de Tibério ao governo de Senghor. Tibério dizia que achava injusto ser expulso das terras de seus ancestrais. Sabemos que Nize, diferente de Tibério, foi uma defensora do governo de Senghor, embora nesse provável diálogo com o artista não tenha tecido comentários dessa ordem política. Outro ponto de intersecção entre as trajetórias de Tibério e Nize é que ambos tematizaram a África no centro das suas produções artísticas e históricas. Como nos explicou Gilroy (2012GILROY, P. O Atlântico negro: modernidade e dupla. Rio de Janeiro: 34, 2012.: 227), o retorno às raízes foi um traço marcante nos fluxos pelo Atlântico, onde a África emergia como contraparte mítica da modernidade nas Américas. Já Roger Bastide (1961BASTIDE, R. Variations sur la Négriture. Revue Présence Africaine, Paris, n. 36, p. 7-17, 1961.) afirmava que os movimentos estéticos e políticos afro-brasileiros tiveram um caráter nacionalista, no qual se notava a ausência da mítica volta à mãe África. Nesse sentido, falta uma análise mais profunda das estratégias e discursos dos movimentos negros brasileiros mediante a África. Como analisou Francielly Dossin (2016DOSSIN, F. R. Entre as evidências visuais e novas histórias sobre a descolonização estética na arte contemporânea. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016.), nesse contexto, Tibério apresentava-se como exceção, pois sua vivência diaspórica, aliada a seu engajamento na luta de classes e na busca por uma “autenticidade africana”, resultava numa experiência da negritude diferente da escrita por Bastide.

Nize anotou em seu curriculum que sua formação em História da África a instigava a participar de projetos importantes de promoção do continente africano, assim como se dedicava a pensar os problemas educacionais enfrentados pelo “Terceiro Mundo”. Como Wilson Tibério, preocupava-se com questões relativas à opressão, barbárie e colonização, candentes nos países ditos periféricos ou nas diásporas africanas. O tema de pesquisa de Nize, comércio e tráfico, traduzia diretamente essa preocupação em compreender e explicar as questões levantadas anteriormente. A própria Nize escreveu, justificando seu tema de pesquisa, que escolheu analisar a Petite Côte “porque esta região constituiu um microcosmos das primeiras confrontações entre as potências ocidentais no continente africano” (Moraes, 1998MORAES, N. I. de. À la découverte de la Petite Côte au XVIIe siècle (Sénégal et Gambie). Dakar: Université Dakar, IFAN, Cheikh Anta Diop de Dakar, 1998. 4 v.: 382).

Nesse sentido, a historiadora parece dialogar, assertivamente, com o que foi dito por Joseph Ki-Zerbo sobre pesquisadores da África. Para Ki-Zerbo, a história da África não será escrita por frenéticos da reivindicação, muito menos pelos diletantes sem simpatia, desejosos, na melhor das hipóteses, em transformar os “países subdesenvolvidos” em locais de lazer. A história da África será escrita por não africanos que colocarem de lado “a libré imperial dos civilizadores”, adeptos de uma vestimenta moderna, bela e humanista. Para os outros, os não humanistas, ele não pretendia apresentar conselhos sobre a forma de interpretar a “história de Cromwell, de Napoleão, de Washington ou de quem quer que seja”. Não pretendia dar conselhos sobre a forma de interpretar a história de Sundjata. Ki-Zerbo ensinou-nos que a história da África será escrita por africanos e não africanos que tenham compreendido que “as glórias como as histórias de misérias, os altos e baixos, os fastos como os aspectos populares e cotidianos podem e devem haurir energias espirituais e razões de viver” (Ki-Zerbo, 1972KI-ZERBO, J. História da África Negra. Paris: Hatier, 1972.: 32).

Recuperando a análise do diário de Nize em pequeno bilhete enviado para uma conhecida brasileira, de quem só conhecemos o primeiro nome, Diva, Nize solicitou informações relativas ao racismo vivenciado pelos afro-americanos. Lá pelo meio do texto, ela lançou suas inquietações:

Como passou a sua viagem a USA? Almejou o que queria? E a Negrada está melhorando cada vez mais ou…??? Quais as novidades? Diva e esses crimes atrozes (matar para roubar?). Soube que o racismo cresce dia a dia em São Paulo, Rio de Janeiro, no Sul…8 8 Não consideramos que a expressão “negrada” tenha conotação negativa, sendo acionada por Nize para se referir aos negros que viviam na América. (Diário, sem data).

A participação de Nize em organizações antirracistas não ficou evidente na análise dos dados de seu arquivo. Não encontramos dados substanciais para problematizar sua trajetória nessa dimensão. Temos poucos elementos sobre sua participação em uma escola de samba não identificada por ela no diário:

No dia 21 de novembro fui homenageada por um grupo muito simpático da “Velha Guarda” com seu presidente e primeiro secretário, ambos simpaticíssimos, com respectivas esposas, uma jornalista cronista social que fez uma reportagem muito simpática em seu jornal com o acontecimento […] Tinha flores, poesias, fotos, músicas, whisky, etc. Cantora e declamadora loira me homenagearam, também um compositor com seu conjunto de Escola de Samba. Adorei tudo […] Meus amigos estavam presentes em pequeno número mas simpático. Levei (um buquê?) para casa no carro do casal por mim convidados. Minha mãe adorou. Enfim, foi uma demonstração de carinho e simpatia. Aliás, essa cronista é uma mulher e tanto. Chegamos duas horas da manhã em casa, depois de termos comido pizza de muçarela […] Fui convidada para tomar sopa de cebola no Seasa mas a turma estava cansada (Diário, 21 nov. 1970).

Nize fazia parte, efetivamente, da Associação dos Funcionários Públicos de São Paulo, da Associação de Historiadores do Senegal, da Associação de Pesquisadores do Senegal e era membro do Clube da Imprensa de Dacar (participação em debates e publicações).

Em um dos breves relatos do ano de 1968, em tom de ânimo, Bella narrou que lutava por uma bolsa, realizou um trabalho na casa do embaixador de Israel como cuidadora de uma menina, de sete anos, que ela considerava “garotinha adorável”, muito viva e inteligente. Sentia que a embaixatriz e o chofer simpatizavam com ela e, para sua sorte, tinha um quarto à disposição. O quarto localizava-se na parte de baixo da casa do embaixador israelense. Nize demonstrava preocupação com essa situação. “Não pago nada, mas não sei o que vou ganhar com isto tudo; no momento nada está claro. Vou fazer experiência de um mês, para ver o que dá (Diário de Nize, 15 nov. 1968).

Alexandre Araújo Bispo lançou a seguinte questão para pensarmos nos locais de trabalho das mulheres negras. “Será então verdade a observação aguda do escritor Oswaldo de Camargo, citado em epígrafe, de que a história recente do negro é uma história de doméstica?” (Bispo, 2019BISPO, A. A. Os percursos da memória e da integração social: o arquivo pessoal de Nery e Alice Resende. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.: 212). Em primeiro plano, Oswaldo de Camargo alerta-nos sobre a necessidade de ouvirmos as histórias das domésticas. No caso de Nize, compreendemos que a posição de babá foi transitória e, ainda assim, quando ela era professora de História, tinha uma profissão. Ela aproveitou a posição de empregada da família do embaixador para pleitear mais tarde uma bolsa de estudos. Descobrimos, por exemplo, que Nize estabeleceu contato com a embaixada de Israel na tentativa de angariar uma bolsa de pesquisa com o tema “A influência dos núcleos judeus no Senegal do século XVII”. Lá atrás dissemos que Nize acusou a embaixada brasileira de racista. Tudo indica que Nize angariou uma declaração para a embaixada brasileira, quando Beata Vettori foi embaixadora brasileira em Dacar (1970-1971), e Nize não teve seu pedido acolhido. Essa declaração era parte de um processo de documentação importante para pleitear uma bolsa de pesquisa da embaixada israelense.

Em julho de 1972, Nize estava radiante porque conseguira um estágio na Suíça, que deveria lhe ter rendido algum recurso para sobreviver em Paris. Chegando lá, a experiência profissional foi frutífera no campo da pesquisa sobre tecidos. Em Bâle, mais uma vez, foi morar no sótão e o contato com as pessoas lhe provocou “dores nos nervos”, para usar sua própria expressão em situações tensas. Como ela narrou, a “sorte lhe sorriu” e ela recebeu uma resposta positiva para estagiar no Museu da Etnografia. E também ganhou estadia na casa de uma pessoa chamada Hama, onde se sentia feliz por estar só, “num quarto muito simpático no sótão”.

Bâle, nos anos 1970, era uma pequena cidade onde a maioria dos estrangeiros constituía-se de italianos, espanhóis, portugueses, russos, húngaros e alemães. Eles falavam um dialeto derivado do alemão. Como Nize descreveu, todos os tipos humanos apresentavam-se com “olhos claros, com olhos azuis, verdes, negros, castanhos”, e havia até o tipo “moreno com cabelos negros e ondulados”. Ela foi bem recebida pela senhora responsável por seu estágio no museu de Etnografia de Bâle e por toda a equipe do museu e de amigos. Já em relação ao “povo”, as desigualdades — e também ofensas — raciais parece que foram as que mais a marcaram:

Escutei certas reflexões não muito interessantes, por exemplo, existe ainda a concepção que o negro cheira mal por causa da cor da pele escura. Eles têm uma reação engraçada, põem as mãos na narina quando eu passo. Que engraçado, não esperava encontrar este tipo de gente na Suíça, onde dizem ser um dos países mais civilizados do mundo: que palhaçada do povo, isto é a massa será sempre a massa. Quando passo todos me olham com admiração e alguns saem achando graça da minha maneira de falar, sorrir, etc. Suporto tudo menos os tampas narinas… enfim veremos quanto tempo isso vai durar (Diário, 5 jul. 1972, grifo nosso)9 9 Certamente não por acaso, o escritor afro-americano James Baldwin também descreveu, no artigo intitulado “Um estranho na aldeia”, o estranhamento e o racismo por que passou na comuna de Leukerbad, na Suíça, na década de 1950. O artigo foi publicado pela primeira vez na Harper’s Magazine em 1953, e depois na coletânea Notas de um filho nativo, em 1955. Na edição brasileira do livro, publicada em 2020, o escritor americano-nigeriano Teju Cole, no posfácio de título “Um corpo negro”, volta à Leukerbad e também registra suas impressões e as reações a seu “corpo negro” naquela região suíça. Ver: Baldwin (2020). .

UMA HISTORIADORA DA SENEGÂMBIA

Como observamos em seu currículo, Nize frequentou o curso de História da USP entre os anos de 1959 e 1964, tendo concluído Bacharelado (1963) e Licenciatura (1964). Mesmo que não conste desse documento, o período em que estudou no Colégio Caetano de Campos certamente a preparou para lecionar na educação infantil, já que em 1955 — antes, portanto, de ingressar na universidade — já aparecia como professora da educação básica de São Paulo. E, como a maior parte das colegas da USP, dois anos depois de se formar, também passou a trabalhar como docente de História no ensino secundário. Não temos, até o momento, informações mais detalhadas sobre projetos ou investigações em que, porventura, ela se tenha envolvido naqueles anos. Sabemos, porém, que em 1960 ela concluiu estudos superiores no Centro de Estudos e Cultura Africana da Universidade de São Paulo, conforme também anotou em seu currículo. Será que foi nesse momento que começou a se interessar pelos estudos africanos?

Seja como for, apenas dois ou três anos após sua formatura na USP, ela já estava em Dacar. Embora a própria historiadora não forneça indicações nesse sentido, sabemos que mal aportou no continente africano e já começou a realizar investigações em acervos senegaleses e também europeus. Algumas lembranças desses primeiros tempos de estudos e pesquisas estão numa carta que escreveu em 1992, quando tentava conseguir recursos para uma estadia em Portugal. Ao rememorar seu percurso, dizia residir “há muito tempo no Senegal, tendo chegado aqui com uma bolsa de estudos”. E, de fato, conforme anotou na capa de um de seus diários, intitulado “Meus dias em Dacar”, ali escreveu sobre seus tempos de “estudante na Universidade de Dacar — bolsa de cooperação entre França e Senegal nos 2 primeiros anos 67 a 68 — 68 a 69”.

Em 1969, quando contava, pelo menos, dois anos de estadia em Dacar, concluiu um curso de História da África na Universidade de Dakar. Nesse mesmo ano, realizou sua primeira viagem a Portugal, numa missão de pesquisa que durou seis meses. Todavia, os resultados não atingiram o esperado. De acordo com seus registros naquela correspondência de 1992, “na altura, não pude ter acesso a vários documentos históricos, relativamente ao século XVII, pelas dificuldades colocadas pelo Comandante Avelino Teixeira da Mota”. Voltaremos a essa correspondência mais adiante.

Por ora, cabe ressaltar ainda que, mesmo vivendo em Dacar, ela tornou-se aluna do mestrado (maîtrise) em História na Faculdade de Letras e Ciências Humanas de Paris-Sorbonne, na França. Foi aí que iniciou suas investigações sobre a Petite Côte, espaço senegambiano que viraria seu objeto de pesquisa pelos 20 a 30 anos seguintes. Conforme assinala na introdução de seu livro À la découverte de la Petite Côte au XVIIe siècle (Sénégal et Gambie), a costa do Senegal desenha um amplo ângulo aberto. Do lado do litoral, às vezes chamado de “Grande Costa”, estende-se a foz do rio Senegal até a península de Cabo Verde. Já uma segunda área, a Petite Côte, ia da península até a embocadura da Gâmbia. Embora nascessem num mesmo rio e chegassem a se unir na aglomeração que mais tarde se tornaria Dacar, essas duas porções tinham muito mais diferenças do que semelhanças. A “Grande Costa”, área linear, sem estradas ou pontos de água, sujeita às ondas da barra, fazia parte de dois reinos: Cayor e Oualo. Já a Petite Côte possuía com a baía de Hann um “excelente local de ancoragem”, e quatro estados, Cayor, Baol, Sine e Saloum, terminavam ali.

Em 1444 os portugueses chegaram até Cabo Verde e, na sequência, à costa senegalesa. Só a partir de 1540 outros europeus aportaram ali e começaram a negociar. Do fim do século XVI até as primeiras décadas do XVII, ingleses e especialmente os holandeses faziam visitas regulares à região. Estes últimos tinham assentamentos nos três principais portos da Petite Côte (Rufisque, Portudal e Joal) e, desde 1627, também pareciam ter ocupado a ilha de Gorée. Mas navios de várias nacionalidades atracavam nessa parte da costa, para que suas tripulações comercializassem ou obtivessem água, madeira e alimentos frescos (Moraes: 1998MORAES, N. I. de. À la découverte de la Petite Côte au XVIIe siècle (Sénégal et Gambie). Dakar: Université Dakar, IFAN, Cheikh Anta Diop de Dakar, 1998. 4 v.: 9).

Quando partiu para as investigações em Lisboa, em 1969, a ideia de Nize era coligir documentos portugueses que, justamente, descreviam a Petite Côte, partindo sobretudo das descrições sobre a região e as práticas comerciais feitas no século XVII pelo capitão português Francisco Lemos, que viveu na costa por mais de 20 anos. Depois daquela primeira tentativa frustrada de acessar mais fontes, Nize retornou à capital portuguesa em 1972 e, novamente, saiu de “mãos quase vazias”. Para a finalização desse primeiro trabalho, “apenas” conseguiu “oito documentos (alguns manuscritos), relativos ao referido período”. Como apontou na carta de 1992, o Comandante Teixeira da Mota indispôs-se com ela, pois ela utilizava um documento de sua área de investigação, publicado anteriormente por Damião Peres, acerca do Capitão Lemos Coelho. Ela argumentava que, por não ter acessado os arquivos de Portugal, sua tese ficara empobrecida, somente com oito documentos portugueses (IFAN, Moraes, Dakar, 1992).

Para esses primeiros trabalhos acadêmicos, ela contou uma dupla de orientadores: o historiador francês Jean Boulègue, autor do livro Les royaumes wolof dans l’espace sénégambien (XIIIe-XVIIIe siècle), e do belga Guy Thilmans. Sobre este último, precisamos nos deter mais um pouco. Suas cartas, diários e anotações de pesquisa revelam um contato constante com Thilmans, chamado por Nize de Mister Belga, um companheiro de pesquisa, amigo e orientador em Dacar. Nas entrevistas realizadas com Nina e Rosimar, elas dizem que, após as mortes de Thilmans e Léopold Sedar Senghor, no mesmo ano de 2001, ela sentiu-se desprotegida.

Desde julho de 1965, o pesquisador belga, que nasceu em 1922 na cidade de Louvain, estava vivendo em Dacar. Três anos antes, ele havia defendido uma tese de doutorado em Antropologia sobre os pigmeus de Haut-Ituri (ex-Congo belga), na Universidade de Louvain. Como queria continuar as investigações em antropologia africana, e sabendo que certas populações da Senegâmbia enterravam seus griôs nos troncos ocos de grandes baobás, decidiu partir para o Senegal, com um programa de pesquisa já bem definido. E não deixou mais o país, passando toda a sua carreira no IFAN — inicialmente como trabalhador temporário (1965–1966) e, daí até 1987, como “trabalhador belga de desenvolvimento”. Quando atingiu o limite de idade, a universidade fez um “contrato local”, continuamente renovado, já que não queriam se “separar de um pesquisador tão ativo”. No Senegal, Thilmans destacou-se não apenas como antropólogo, mas também como arqueólogo especializado em proto-história, museógrafo e também historiador.

Como tinha domínio de diversos idiomas, incluindo o latim e o holandês antigo, ele tinha acesso a documentos desconhecidos e raros, que renovaram a história da Senegâmbia nos séculos XVI e XVII, muitas vezes em parceria com Nize Izabel, “sua colaboradora habitual”. Embora figure como diretor da publicação e tradutor de alguns documentos, a obra À la découverte de la Petite Côte au XVIIe siécle (Sénégal et Gambie), editada em quatros tomos, num total de mais de mil páginas, era resultado das pesquisas realizadas por Nize para sua tese de 3° Ciclo, conforme veremos mais adiante. No artigo em sua homenagem publicado em 2002 na revista Outre-mers, Cyr Descamps, pesquisador francês associado ao IFAN, parece dizer que esses volumes foram apenas dirigidos por Thilmans. Ainda que sua participação também tenha sido fundamental, a produção do trabalho foi feita pela pesquisadora brasileira (Descamps, 2002DESCAMPS, C. Y. Hommage à Guy Raoul Thilmans. Outre-mers, v. 89, n. 334-335, p. 683-687, 2002.: 684).

Nos primeiros anos da década de 1970, Nize Izabel estava preparando sua tese de 3° Ciclo também na Sorbonne-Paris. Dessa vez, o projeto de pesquisa era ainda mais ambicioso: reunir documentos sobre a Petite Côte espalhados por diversos países. Além de retornar a Portugal, ela esteve na Holanda, na Bélgica, na Espanha e na França. Em Lisboa, porém, novamente teve problemas para acessar a documentação. Numa carta endereçada em 1974 a Teixeira Mota, destacava que:

A grande admiração que tenho pelo vosso trabalho leva-me a escrever-vos. Já tenho o prazer de vos enviar alguns dos meus artigos e estou a preparar uma tese documentada de 2 ciclos, sob a direção do Prof. R Mauny. O assunto é o seguinte: Histoire de la Petite Côte de 1600 à 1680. Até agora, consegui reunir 40 textos em português, holandês, francês, inglês, alemão, espanhol e italiano. Traduzi os textos para francês e cada um deles está presente, na ordem cronológica da escrita. Cada um deles é precedida de uma introdução que será completada. Para o texto em português só consegui reunir os seguintes documentos:

-Descrição de P. Baltasar Barreira (1606)

Relação dos abonos de um posto português (1626), após a tradução francesa do P. Labat

-As duas relações de Francisco de Lemos Coelho (1669-1648)

Utilizei outros documentos, especialmente para a tomada de Gorée por João Pereira Corte-Real e para a missão do P. João Pereira Corte-Real.

No entanto, gostaria de poder traduzir outros textos portugueses “Etiopie Menor” de P. Manuel Alvares (apenas passagens relacionadas com a Petite Côte) ou peças relacionadas com Álvaro e Jorge Gonçalves Francês e outros… relacionados com este período.

Estaria disposto a aconselhar-me? Ficar-lhe-ia muito grata. Eu poderia ir para Portugal numa altura conveniente para ti e ficar lá durante alguns meses. Aguardo com expectativa a sua resposta e peço desculpa por qualquer inconveniente. Peço que receba Comandante, a expressão dos meus sentimentos (IFAN-Moraes, Dakar, 1974, grifo nosso).

Nessa comunicação, Nize pedia conselhos a Teixeira da Mota e indicava os materiais que desejava encontrar nos arquivos portugueses, mas os apelos novamente parecem não ter sensibilizado o pesquisador. Em outra carta endereçada à Diretora do Centro de História e Cartografia Antiga do Instituto de Investigação Científica e Tropical, de 1992, ela ainda estava em busca de documentos nos arquivos portugueses para compor seu livro, fruto da tese, e reclamava do tratamento recebido nos arquivos em Portugal:

A falta de 25 ou mais documentos, a sustentar a minha tese, talvez evitasse as críticas e hostilidades de um júri manifestamente avesso à época portuguesa e holandesa, bem representada nas costas da Senegâmbia, ao longo do século XVII. Esta referência faço relativamente a 1977, quando defendi tese do terceiro ciclo, na Sorbonne Paris I. Estive ainda na Holanda, na Bélgica, na Espanha e em França, conseguindo vários documentos para o referido período, os quais são indicados no índice documental, que lhe envio pelo nosso estimado professor Rui de Almeida. Por este motivo (projeto de investigação para mim sempre inacabado, pelas razões que apontei), gostaria muito de voltar a Portugal, beneficiando-me de uma bolsa de investigação, no seu instituto a fim de continuar o trabalho iniciado há mais de vinte e cinco anos. Sinto me hoje triste e frustrada, por saber que o projeto de investigação que fui alicerçando ao longo dos anos, não comportar a dimensão histórica do real, do que constituiu a presença dos navegadores e comerciantes e de origem portuguesa nesta região da África (IFAN, Moraes, Dakar, 1992, grifo nosso).

Durante os anos em que preparou sua tese, Nize enfrentou, mais uma vez, grandes dificuldades, especialmente em torno do pouco que recebia das instituições brasileiras e senegalesas. Em suas palavras:

do IFAN não consegui nada, apenas uma carta de apresentação do Diretor do referido Instituto dirigida ao Museu do Homem, a fim de que eu pudesse vir a Paris. Tudo foi dado ou feito de uma maneira muito interessante. Muitos sorrisos, mas nem um tostão de ajuda (Diário, Nise, 1972).

Apesar dessas reclamações, informou que conseguira uma ajuda governamental, isto é, o presidente da República pagou sua passagem, com redução de 40% da tarifa na compra para estudantes. Além da ajuda de Senghor, ela contou, novamente, com a colaboração de Guy Thilmans. Nos escritos do diário, mostrou-se “entusiasmadíssima” com essa etapa:

Fiquei contente de ter conseguido a passagem, pois tinha que vir de qualquer maneira a Paris, a fim de prestar exame de História da África (Pequena Costa no século no século XVII) de Francisco de Luís Coelho, dia 21/06/1972 às 14, Sorbonne, Paris I - no Centre de Recherches Africaines com os professores Mauny e Person. Vamos ver no que vai dar… […] No momento estou bem mais calma, pois moro em pleno quarteirão latino (Paris 5ème), num foyer para estudantes estrangeiros, moro com uma Uruguaia leoazinha… pago uma média de 6,35 por dia (isto é, de 12.30 cfa por dia), isto é 190, 50 (ECU-Unidade monetária europeia). Dizem que não é caro… Minha bolsa do IFAN, talvez aumente a partir do mês de julho para 60.000 cfa por mês. No momento ainda tenho uma quantia de 32.000 cfa por mês (Diário, Nise, 1972).

A felicidade de realizar seu sonho de cursar a pós-graduação na Sorbonne veio acompanhada de preocupação, como se a distância de Dacar lhe desse uma visão mais nítida do que ela vivia na capital senegalesa. Como escreveu, sentia, naquele momento, certo cansaço de sua pessoa no IFAN, não só da parte do “Dr. X”, como também dos próprios dirigentes do referido instituto. Quanto às autoridades locais, pensava em deixá-las em paz, pois sentia que já começava a se tornar uma pessoa inoportuna. Como afirmou, tentaria deixar “de pedir favores a este pessoal todo”. Neste ponto podemos traduzir o cansaço de Nize como, de fato, um cansaço por toda a energia investida no processo de formação profissional, mas também, talvez, como se ela tivesse percebendo que as trocas de favores, principalmente com o presidente Senghor, lhe comprometiam como intelectual, retirando sua liberdade de posicionar-se politicamente. Aqui lançamos algumas palavras professadas por Milton Santos ao tentar dar sentido à incessante busca de Nize por reconhecimento e apoio em sua carreira, talvez mais apoio do que reconhecimento, sem desprezar a importância do reconhecimento para a historiadora. Como disse Milton Santos, falando do intelectual outsider:

o intelectual é aquele que resiste, e para resistir tem que ser só. É a solidão a grande arma com a qual podem continuar sendo intelectuais. Cada vez que dizemos nós, afastamo-nos do ideal de ser intelectual, porque estamos manifestando a necessidade do aplauso ou da cooptação. O intelectual não é aquele que busca o aplauso, mas o que busca a verdade e que fica com ela, a despeito do que sejam, naquele momento as preferências dos seus contemporâneos (Santos, 1998SANTOS, M. O professor como intelectual na sociedade contemporânea. In: ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO, 9., 1998, Águas de Lindóia. Conferência de Abertura. 1998.: 4).

Em seu acervo, numa carta não datada, Nize teceu inúmeros elogios a Mostapha Niasse, chefe da casa civil de Senghor, pela sua atuação como Ministro das Relações Estrangeiras e como defensor das ideologias socialistas, também seguidas pelo chefe do estado senegalês naquele momento histórico. Esse registro passaria despercebido se não contássemos que Nize apontou esse ministro como aquele que colaborou para que ela construísse um vínculo de apoio com o presidente Léopold Sedar Senghor. Em princípio, consideramos desnecessário dizer que ela tinha a intenção de conquistar uma audiência com o ministro para reforçar sua rede de apoio como pesquisadora. Ao mesmo tempo, suas reflexões traduzem um alinhamento político ao governo de Senghor, mas as relações entre eles também tinham seus altos e baixos. Numa das cartas a sua madrinha Glória, em 1975, comentou: “Quanto ao presidente da República, parece que está voltando a se interessar pela minha pessoa; sim, é verdade, meus irmãos de seara, ‘filho de umbanda tomba, mas não cai’” (Dakar, 7/08/1975). Por outro lado, ela mesma disse, ao redigir seu curriculum vitae, que se importava com as questões educacionais do “Terceiro Mundo” e, verdadeiramente, com o campo da política do Senegal independente. Seu trabalho permitia-lhe entender a realidade e o mundo a sua volta.

A princípio, caracterizamos a biografada como estrategista incansável, sem pensar que o apelar constantemente para as autoridades políticas e educacionais, clamando para se qualificar, revelava que sua trajetória de intelectual negra fora sucateada pelas instituições e universidades dos três continentes por que passara. Mesmo em Paris, estudando na renomada Sorbonne, ela morou no quarto de um professor da instituição, que já nos primeiros diálogos lhe exigiu silêncio. Não por acaso, ela se enfureceu com essa situação, considerando sua vida em Paris uma “porcaria”. Na capital francesa, vamos encontrá-la nos primeiros contatos com o orientador Raymond Mauny, época em que estava “bem agitada” e “com os nervos à flor da pele”, como ela mesma escreveu. Conforme registrou no diário, era o momento em que se preparava para realizar o exame de mestrado, que contaria na banca com os professores Raymond Mauny, Yves Person e um senegalês não identificado.

Ao descrever o “suplício” que foi o processo do exame, Nize também reconheceu a boa “impressão” causada por seu trabalho, que já conseguiu externar uma de suas principais contribuições, especialmente a apresentação das fontes sobre a história da Petite Côte no século XVI.

Pensava em ficar sozinha toda a manhã, mas isto não se produziu, ao contrário, a colega de quarto não saiu… mas no final foi bom pois ficamos e conversamos como de costume e ele me suportou mais uma vez, ouvindo o relatório ou melhor resumo do meu mémoire. O exame começou às 14: 30 passada e sai às 17:45, que suplício. Mas tudo acabou bem. Achei estranho e curioso como eu estava dominando o assunto. Consegui dar o meu ponto de vista todo o tempo, impressionei bem o principal professor titular e o meu velho prof de Dakar ficou contente. Tive muitos elogios sobre a documentação encontrada e estilo, apresentação, etc. Publicável, disse Mauny e Person, boa contribuição para a historiografia da África, capítulo sobre o comércio do couro foi considerado o melhor e deve ser publicado o quanto antes. Documentação boa e a parte holandesa de grande importância… Mas depois de me terem posto nas nuvens o tombo foi tremendo… A crítica não foi nada fácil. Eles adoraram as fotos que nós pusemos a canoa, com os dois pescadores, a ilha de Gorée, Cropius d’Estrees etc. Tudo de grande e enorme responsabilidade… Enfim, resultado, Bien (Diário, 21 jun. 1972).

Contando mais uma vez com a parceira e o trabalho direto (na indicação e tradução de alguns documentos) de Guy Thilmans, a tese de Nize foi orientada pelo francês Raymond Mauny (1912–1994), professor de história africana na Sorbonne de 1962 a 1977. Junto com Hubert Deschamps e Georges Balandier, ele esteve na criação, em 1962, do Centre de Recherches Africaines (CRA) e sua Biblioteca. Entre 1942 e 1962 Mauny chefiou a seção de Arqueologia e Pré-história do IFAN, em Dacar.

Estreitamente ligada à fundação do IFAN e ao Departamento de História da Universidade de Dakar, a chamada Escola de Dakar formou várias gerações de historiadores no Senegal a partir dos anos 1950. Em sua primeira geração, os historiadores Cheikh Anta Diop e Abdoulaye Ly (que, em 1958, lançou a primeira tese sobre a história do Senegal) tiveram papel fundamental e de liderança no que Boubacar Barry chama de “gigantesco processo de descolonização da história da África”. Da década de 1960 até pelo menos os anos 1980, aconteceu uma proliferação, “sem precedentes”, da produção dos historiadores da escola, mantendo íntima colaboração com historiadores franceses, britânicos e americanos (Barry, 2000BARRY, B. Senegâmbia: o desafio da História Regional. Brasil; Amsterdã: South South Exchange Programme for Research on the History of Development (SEPHIS); Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA) da Universidade Cândido Mendes (UCAM), 2000.).

A capital senegalesa tornou-se o principal centro para reflexão e discussão da história africana e também lugar de interação de historiadores que retornavam das universidades francesas para lecionar história africana nas universidades de Abidjan, Conakry, Bamako e Ouagadougou. Barry lembra que, naqueles “anos eufóricos de reconstrução do passado pré-colonial”, a conclusão das pesquisas era esperada com impaciência, como uma espécie de ajuda vital para ingressar na obscuridade dos “séculos escuros”, como Raymond Mauny enfaticamente identificou. Ainda assim, conforme assinala Barry — citando o historiador norte-americano Martin Klein (que também se dedicava às investigações no Senegal) —, a Escola de Dakar ainda encontraria dificuldades nessas primeiras décadas em se “libertar do jugo” da academia francesa, sobretudo em função da continuidade da instituição da “thèse d’Etat” de Doutorado (Barry, 2000BARRY, B. Senegâmbia: o desafio da História Regional. Brasil; Amsterdã: South South Exchange Programme for Research on the History of Development (SEPHIS); Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA) da Universidade Cândido Mendes (UCAM), 2000.).

Do ponto de vista metodológico, a descolonização da história vai transformar progressivamente a forma de abordagem dos historiadores africanos. Tanto para a Senegâmbia como para outros tantos lugares na África, desenvolve-se uma metodologia de coleta, transcrição e interpretação das tradições orais. Sem abandonar as fontes escritas africanas ou europeias, muitos pesquisadores vão usar amplamente os registros orais em conjunto, e aproximação, com a documentação escrita. Ao traçar uma espécie de padrão desses novos estudos, Barry aponta que se tratava de

uma história escrita por filhos da terra, que estudaram de preferência o reino a que pertenciam por etnia. Ela entra no contexto da descolonização da história africana e é sobretudo uma história política, que privilegiou as tradições dinásticas, mesmo se, sob certos aspectos, se interessa pelas transformações econômicas e sociais — pela realidade do tráfico negreiro e da colonização (Barry, 2000BARRY, B. Senegâmbia: o desafio da História Regional. Brasil; Amsterdã: South South Exchange Programme for Research on the History of Development (SEPHIS); Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA) da Universidade Cândido Mendes (UCAM), 2000.: 23, grifo nosso).

Como Nize Izabel de Moraes se inseriu nesse grupo? Como uma mulher, negra, brasileira e filha de uma terra do outro lado do Atlântico. Muitos dos historiadores senegaleses, franceses e norte-americanos que se dedicaram aos estudos sobre a Senegâmbia eram próximos à brasileira, mas o fato de ela ser uma “estrangeira” em terras africanas — tanto em termos de origens como de gênero — talvez explique algumas de suas escolhas. Mesmo que muitos de seus contemporâneos historiadores estivessem privilegiando as fontes e tradições orais, ela optou por construir sua obra com base em registros escritos, dispersos pelos antigos países colonizadores europeus. Sem ser uma “filha da terra” nem tampouco dominar as diferentes línguas faladas no espaço senegambiano, como optar por outra metodologia?

Isso decerto não impediu que, ao longo dos anos, sua obra fosse ganhando destaque na historiografia sobre a Senegâmbia. Ao realizarem, em 1988, um inventário dos trabalhos sobre a região produzidos no Senegal e em outras regiões, especialmente na França e no mundo anglo-saxão, os pesquisadores Charles Becker e Mamadou Diouf chegaram ao total de 706, entre dissertações, trabalhos de pós-graduação, teses de doutorado, entre outros. Avaliando esse conjunto, apontaram alguns padrões e estimativas. Dividindo-os de acordo com o “tipo e o país principal de estudo (reino, país ou etnia)”, localizaram apenas três obras sobre a Petite Côte, espaço privilegiado por Nize Moraes. E as três eram justamente de sua autoria. Separando os autores conforme sua origem, os autores encontraram 469 (60, 8%) africanos e 277 (39,2%) não africanos.

Também constataram uma preponderância de abordagens sobre os séculos XIX e XIX, o que atestava o uso ainda preferencial das fontes escritas europeias. A baixa escolha por períodos mais antigos, tal como fizera Nize, refletia as opções metodológicas e o interesse ainda limitado dos historiadores pelos séculos que antecederam a conquista colonial. Embora pouco citado nos índices e memórias acadêmicas dos dois lados do Atlântico, o trabalho de Nize Izabel de Moraes continuou, por muitas décadas, como referência fundamental para quem busca investigar as histórias da Senegâmbia (Becker e Diouf, 1988BECKER, C.; DIOUF, M. Histoire de la Sénégambie: une bibliographie des travaux universitaires. Journal des Africanistes, v. 58, n. 2, p. 163-209, 1988.).

NOTAS

  • 1
    Os grandes museus da Europa e da América contribuíram para essas exibições com peças dos reinos do Benim e de Ifé, entre as quais máscaras rituais dos bambaras, dos pesos em ouro dos ashantes, representações zoomórficas dos povos negros da estepe, esculturas dos povos bantos do Congo e de Angola e ainda ourivesaria da África Ocidental.
  • 2
    Raimundo Souza Dantas foi embaixador do Brasil em Gana entre 1961 e 1965.
  • 3
    A cúpula da Negritude reuniu-se pela primeira vez em Paris (1957) e depois em Roma (1959), no contexto anterior às independências efetivas dos países africanos. As independências da Etiópia, Libéria, Gana e Guiné ocorreram a partir de 1960. Os fóruns pan-africanistas da Negritude contaram com as presenças de Aimé Césaire, Frantz Fanon, Leon Damas, Richard Wright, Cheikh Anta Diop, Léopold Sédar Senghor e Alioune Diop.
  • 4
    Toda a documentação de Nize Isabel de Moraes, tanto aquela conservada no IFAN como na residência de Rosimar Diouf em Dacar, não está catalogada, apenas acondicionada em caixas e pastas, sem qualquer referência arquivística. Sendo assim, ao longo deste artigo, iremos identificar apenas a data e a natureza dos documentos.
  • 5
    Elikia M. Bokolo (2009BOKOLO, E. África negra, história e civilizações. Salvador: Edufba, Casa das Áfricas, 2009.: 137), no livro África Negra História e Civilização, compreendeu que o impacto do islamismo provocou a desaparição progressiva das regras matrilineares das sociedades africanas em proveito dos mecanismos de patrilinearidade.
  • 6
    Em entrevista concedida à historiadora Juliana Barreto Farias, em setembro de 2019, e publicada na revista Capoeira – Humanidades e Letras em 2021 (v. 7, p. 225-236), o historiador senegalês Boubacar Barry ressalta que os “problemas” entre Senghor e Cheikh Anta Diop eram políticos, “de escolha da política, em relação ao poder colonial, tanto quanto Cheikh Anta Diop foi por uma ruptura com o poder colonial, tanto quanto Senghor foi por uma continuidade da política francesa, porque sentiu que sem a França o Senegal não se desenvolveria. Penso que o Senegal se desenvolveu com a ajuda da França”. Além disso, “Senghor, como todos os líderes da África Ocidental e Central votaram sim no referendo [proposto pela França em 1958, recusando a independência imediata do Senegal], com exceção da Guiné de Sekou Touré. Era um fenômeno político global que fazia com que os líderes dessa geração estivessem com medo de romper com a França. Foi essa política que Senghor continuou no seu regime”.
  • 7
    Na mesma entrevista citada anteriormente, Barry também comenta sobre as relações entre produção acadêmica, militância e ativismo político, e como isso tudo se dava sob o governo de Senghor. “Digamos que a maioria dos oponentes de Senghor [primeiro presidente do Senegal independente] estava na faculdade. No meu departamento, havia pelo menos dois candidatos à presidência: Iba Der Thiam e Abdoulaye Bathily, Abdoulaye Ly era político, Cheikh Anta Diop era político. As pessoas sempre fizeram política, especialmente historiadores. Mody Cissoko queria ser candidato no Mali, Alpha Omar Konaré se tornou presidente, a sua esposa e o marido de Madina Ly também eram políticos. Ibrahima Ly estava na prisão, escreveu o livro sobre a prisão. Ou seja, além da descolonização da história, havia a militância para afirmar a África e sua independência em relação ao poder colonial. O neocolonialismo era o combate do ensino da época, por isso a universidade era controlada por Senghor, apesar de seu nível intelectual, que é elogiado em todo o mundo. Ele colocou tanta pressão na universidade que houve hostilidades no nível linguístico, literário e filosófico. Haviam [sic] oposições, ele queria impor a negritude, que era rejeitada pela maioria dos professores”.
  • 8
    Não consideramos que a expressão “negrada” tenha conotação negativa, sendo acionada por Nize para se referir aos negros que viviam na América.
  • 9
    Certamente não por acaso, o escritor afro-americano James Baldwin também descreveu, no artigo intitulado “Um estranho na aldeia”, o estranhamento e o racismo por que passou na comuna de Leukerbad, na Suíça, na década de 1950. O artigo foi publicado pela primeira vez na Harper’s Magazine em 1953, e depois na coletânea Notas de um filho nativo, em 1955. Na edição brasileira do livro, publicada em 2020, o escritor americano-nigeriano Teju Cole, no posfácio de título “Um corpo negro”, volta à Leukerbad e também registra suas impressões e as reações a seu “corpo negro” naquela região suíça. Ver: Baldwin (2020BALDWIN, J. Notas de um filho nativo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.).
  • Fonte de financiamento: União Europeia, por meio do Programa de Intercâmbio em Pesquisa e Inovação Marie Skłodowska-Curie (MCSA-Rise).

REFERÊNCIAS

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  • SANTOS, M. O professor como intelectual na sociedade contemporânea. In: ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO, 9., 1998, Águas de Lindóia. Conferência de Abertura 1998.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    16 Ago 2021
  • Aceito
    16 Maio 2022
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