RESUMO
Este artigo tem como propósito avaliar a produção de Manuel Diégues Júnior na imprensa carioca. Para tanto, adotamos uma abordagem que articula análise quantitativa e leitura detida dos textos publicados. Os resultados revelam o compromisso de Diégues com o cultivo e a difusão das ciências sociais em meio ao agitado processo de delimitação disciplinar desse campo. A adoção de um enfoque “comunicacional” evidencia a criação de um espaço público para esses saberes e permite reavaliar o lugar e os sentidos assumidos pela atuação de Diégues Júnior no contexto das gerações pioneiras das ciências sociais no país. Desse modo, o trabalho colabora para um entendimento mais aprofundado do processo de sistematização da área.
PALAVRAS-CHAVE:
Manuel Diégues Júnior; Ciências Sociais na imprensa; Pensamento social brasileiro; Folclore e Ciências Sociais; Movimento Folclórico
ABSTRACT
This paper examines Manuel Diégues Júnior’s contributions to the Rio de Janeiro press. To this end, we adopted an approach that combines quantitative analysis with a close reading of the published texts. The results reveal Diégues’s commitment to cultivating and disseminating the social sciences amid the dynamic process of defining its disciplinary boundaries. The adoption of a “communicational” approach highlights the creation of a public space for this knowledge and enables a reassessment of the place and meanings of Diégues Júnior’s work within the context of the pioneering generations of social scientists in Brazil. Therefore, the article contributes to a deeper understanding of the process of systematization of the field.
KEYWORDS:
Manuel Diégues Júnior; Social Sciences in the press; Brazilian social thought; Folklore and Social Sciences; Brazilian folklore movement
RESUMEN
Este artículo busca evaluar la obra de Manuel Diégues Jr. en la prensa carioca. Para ello, adoptamos un enfoque que combina el análisis cuantitativo con la lectura exhaustiva de textos publicados. Los resultados revelan el compromiso de Diégues con el cultivo y la difusión de las ciencias sociales en medio del turbulento proceso de definición de disciplinas dentro de este campo. La adopción de un enfoque comunicacional destaca la creación de un espacio público para este conocimiento y nos permite reevaluar el lugar y los significados asumidos por la obra de Diégues Jr. en el contexto de las generaciones pioneras de las ciencias sociales en Brasil. Por tanto, contribuyendo a una comprensión más profunda del proceso de sistematización en este campo.
PALABRAS CLAVE:
Manuel Diégues Júnior; Ciencias Sociales en la prensa; Pensamiento social brasileño; Folklore y Ciencias Sociales; Movimiento Folklórico en Brasil
INTRODUÇÃO
Manuel Baltazar Pereira Diégues Júnior nasceu em Maceió, em 1912, tendo completado sua formação universitária em 1935, na Faculdade de Direito do Recife. Egresso da última geração de cientistas sociais formada nos cursos de ciências jurídicas e sociais, frequentou os cursos livres de Sociologia Regional e Rural oferecidos por Gilberto Freyre: “Manuel Diégues Júnior foi do grupo de estudantes que, no Recife de 1933, 1934, 1935, reuniam-se comigo todas as tardes na Biblioteca Pública, para juntos examinarmos papéis e jornais velhos” (Freyre, 2006: 9).
Faria (1993: 228) assinala que a produção intelectual de Diégues Júnior “tem a plasticidade e a indefinição, que constituiriam a marca do seu tempo. […] poderá ser designada como sociológica, etnográfica, antropológica ou de folclore, história, demografia, geografia humana”. Como professor e pesquisador, destacou-se no Departamento de Sociologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e publicou obras importantes, como O Banguê nas Alagoas, de 1949, População e açúcar no Nordeste, de 1954, e Regiões culturais do Brasil, de 1960. No plano institucional, entre outras funções, foi diretor do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade do Brasil, membro ativo da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, um dos fundadores da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e ocupou cargos de liderança na Associação Latino-Americana de Sociologia (ALAS) e no Centro Latinoamericano de Investigaciones em Ciencias Sociales (CLAPCS) (Grisendi, 2014)Manuel Diegues Junior, se convirtió en una figura central en la labor institucional y la expansión continental del CLAPCS, especialmente en sus contactos con las comunidades académicas de Argentina y México. El fin del ciclo de vida del CLAPCS, a mediados de la década de 1970, se explica por las transformaciones en las condiciones político-institucionales (nacionales e internacionales. Na esfera administrativa, integrou o Conselho Federal de Cultura (CFC) e dirigiu o Departamento de Assuntos Culturais do Ministério da Educação (MEC).
Embora sua faceta como autor e diretor institucional seja reconhecida, existe um outro aspecto importante, mas pouquíssimo explorado, de sua atuação: a intensa participação nos órgãos da imprensa carioca, em que publicou centenas de artigos ao longo de três décadas. Durante boa parte dos anos 1950, Manuel Diégues manteve a coluna Folclore e História, no suplemento literário do Diário de Notícias (SLDN), iniciativa que se consolidou como um importante espaço de debate sobre o folclore e as ciências sociais como um todo.
Dada a relevância dessa produção, o foco deste artigo recai sobre os textos de Manuel Diégues Júnior publicados na imprensa carioca, em especial aqueles reunidos em sua coluna Folclore e História. Nosso objetivo é compreender, a partir desses textos, as disputas entre folcloristas e cientistas sociais em um contexto marcado pela consolidação disciplinar das ciências sociais no Brasil. Por meio de sua atuação na imprensa, Diégues desempenhou um papel central nesse processo, discutindo tanto o desenvolvimento das ciências sociais quanto a institucionalização do folclore. Botelho (2002) argumenta que processos assim não se realizam sem que as ideias sejam submetidas à uma ‘rotinização’ mais ou menos sistemática no âmbito da vida social. Nesse sentido, Diégues destacou-se como um importante agente de “rotinização” ao escrever centenas de artigos que contribuíram para a sistematização das disciplinas emergentes, mesmo sem se fixar de maneira inequívoca em nenhuma delas. Em seus textos, há um esforço persistente em tematizar o processo de diferenciação de novas identidades disciplinares e profissionais, questão central na metade do século passado, buscando, porém, sempre estabelecer nexos, pontes e questões compartilhadas entre elas.
Nossa abordagem adota um enfoque comunicacional de análise do processo de sistematização das ciências sociais no Brasil. Por “comunicacional”, entendemos que nossa ênfase não recai no estudo das organizações e instituições que participaram desse processo, mas, sim, nos eventos comunicativos que, ao se enlaçarem sucessivamente no tempo, vão conformando, tensionando ou dissolvendo fronteiras nas relações entre diferentes disciplinas e áreas de estudo, assim como novas formas de interação entre os novos especialistas e os diferentes públicos de seus textos1.
Nesse sentido, refletiremos sobre as possíveis relações entre o processo de consolidação disciplinar das ciências sociais e o debate público. Consideramos que a imprensa diária se configurou como um circuito comunicativo relevante para compreender os sentidos assumidos pelo processo de sistematização das ciências sociais no Brasil (Maciel, 2024). A noção de “sistema literário” de Antonio Candido (2006; 2007), transposta para as ciências sociais, permite concebê-las como um sistema intelectual em formação, cujas regras se consolidaram em meio a práticas discursivas diversas - entre elas, a escrita na imprensa - como parte da criação de um espaço público para a área. Parte expressiva da produção dos cientistas sociais brasileiros foi publicada em jornais de grande circulação, como A Manhã, Diário de Notícias, Diário Carioca e O Estado de S. Paulo. Além de Manuel Diégues, nomes como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Guerreiro Ramos, Florestan Fernandes e Roger Bastide também contribuíram ativamente com esses veículos2.
Ao analisar a presença das ciências sociais na imprensa periódica, é possível reexaminar o próprio processo de consolidação desse campo de estudos no país. Contextos de transição, como o de meados do século passado, possibilitam uma combinação entre novos “especialistas” e velhos “generalistas”, entre profissionais e leigos, entre cientistas e literatos. No processo, os cientistas sociais foram, de modo incremental, alargando o escopo das discussões até então predominantes na imprensa, trazendo novos gêneros, temas e conceitos.
A produção de Manuel Diégues na imprensa carioca foi mapeada em cinco periódicos diferentes, os mais relevantes do período, por meio da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, uma plataforma que permite a pesquisa em grandes volumes de textos por meio do uso de palavras-chave (Brasil; Nascimento, 2020). Para o levantamento, utilizamos o nome do autor como termo de busca e, a partir dos resultados obtidos, realizamos a anotação e consolidação manual dos dados. Em seguida, identificamos os registros correspondentes aos artigos de sua autoria, o que totalizou mais de 400 textos, lidos integralmente para a realização deste estudo.
A seguir, examinamos os dados referentes à produção de Manuel Diégues Júnior na imprensa carioca, articulando-os com sua trajetória intelectual e profissional mais ampla. A descrição de sua trajetória, somada à avaliação quantitativa de sua produção, permitem compreender o lugar que ele ocupou no campo das ciências sociais brasileiras. Na seção seguinte, analisamos, à luz de seus artigos, como o autor refletiu sobre a autonomia científica dos estudos de folclore e como esse debate se liga ao processo mais amplo de consolidação disciplinar das ciências sociais no Brasil. Nesse sentido, analisamos o “movimento folclórico” para além da preservação das tradições populares, situando-o como um espaço de disputa pelo reconhecimento científico do folclore e discutindo suas tensões com a sociologia acadêmica, em especial a vertente paulista liderada por Florestan Fernandes. Por fim, na conclusão, discutimos o papel dos jornais no processo de rotinização e sistematização das ciências sociais no Brasil, mobilizando a metáfora do “sacerdote” como chave interpretativa para compreender tanto a regularidade quanto o sentido público da intervenção intelectual de Diégues Júnior.
A PRODUÇÃO DE MANUEL DIÉGUES JÚNIOR NA IMPRENSA
O levantamento realizado na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional permitiu mapear a produção de Manuel Diégues Júnior no Rio de Janeiro em diferentes periódicos entre as décadas de 1940 e 1960. No total, foram identificados 431 artigos, distribuídos de forma bastante desigual entre os jornais (Tabela 1). A grande maioria foi publicada no suplemento literário do Diário de Notícias, que concentrou 406 textos, enquanto periódicos como A Manhã e o Jornal do Brasil registraram presença bem menor, com 10 e 12 artigos, respectivamente. Já o Diário Carioca e o Correio da Manhã acolheram apenas contribuições pontuais do autor.
A prevalência do Diário de Notícias nos resultados obtidos se deve ao fato de Diégues ter mantido nesse jornal, ao longo de sete anos, a coluna Folclore e História. Jornal de maior tiragem da época, com mais de 100 mil exemplares nas publicações dominicais, o periódico foi um dos mais importantes do período. Couto (1992) afirma que o SLDN foi um veículo com viés tradicionalista, priorizando na área das ciências sociais conteúdos mais “conservadores”, como os estudos do folclore. Nesse contexto, a forte presença dos temas folclóricos no SLDN não se deve apenas a Diégues; o grupo de folcloristas como um todo teve presença significativa em suas páginas. Renato Almeida (1895-1981), Édison Carneiro (1912-1971), Théo Brandão (1907-1981), Marisa Lira (1899-1971) e Luís da Câmara Cascudo (1898-1986) foram importantes colaboradores, alguns mantendo colunas fixas.
Antes de se tornar colunista fixo, em 1953, Diégues já havia contribuído com diversos artigos, entre eles “Bibliografia Folclórica” (Diégues Júnior, 1951a), ““Nordeste” como estudo de Região” (Diégues Júnior, 1951b) e “O Patriarcados Urbano como Fase de Transição Social” (Diégues Júnior, 1951c). É importante ressaltar que os números relativos à produção de Manuel Diégues não expressam uma uniformidade ou um crescimento contínuo ao longo das três décadas pesquisadas. No recorte cronológico proposto, observam-se variações significativas na quantidade de artigos publicados pelo autor (Gráfico 1).
O pico de publicações nos anos 1950 coincide com o auge da atuação do “movimento folclórico”, iniciativa que abordaremos adiante, refletindo-se em uma intensa participação no debate público. Nessa década, também observamos um aumento no interesse geral pela produção das ciências sociais - as características da década de 1950 favoreceram a expansão da área (Villas-Bôas, 2007). Além disso, os próprios suplementos, espaço privilegiado para a veiculação de textos das ciências sociais, atingiram o ápice de sua popularidade nesse momento.
Em relação à trajetória de Diégues, os anos 1950 foram um período de grande atividade profissional. Alves (2017) observa que o percurso do autor foi marcado pela construção paulatina de três competências, comuns entre as elites técnicas e intelectuais brasileiras do período, mas que nele se acomodaram de maneira rara. Em primeiro lugar, ele construiu uma sólida carreira de pesquisador e professor universitário, exercitando a pesquisa e o magistério no âmbito do folclore, da antropologia e da sociologia por cerca de trinta anos, período em que integrou o Departamento de Sociologia da PUC-Rio. Essa primeira frente, chamada por Alves (2017) de intelectual-científica, foi marcada pela publicação das três obras que o projetaram no cenário das ciências sociais brasileiras: O banguê nas Alagoas: traços da influência do sistema econômico do engenho de açúcar na vida e na cultura regional, de 1949, População e açúcar no Nordeste, de 1954, e Regiões culturais do Brasil, de 1960.
A sua segunda frente de atuação, caracterizada por Alves (2017) como político-científica, marca seu intenso trabalho na construção das instituições científicas das ciências sociais brasileiras e latino-americanas. Durante as décadas de 1950 e 1960, ele promoveu e organizou diversos encontros científicos. No âmbito dessa frente, foi um membro ativo da Campanha Nacional do Folclore e exerceu o cargo de diretor do ICS da Universidade do Brasil, entre 1960 e 1962, do CLAPCS, entre 1961 e 1974, e da ALAS, em duas ocasiões distintas, de 1953 a 1955, e de 1967 a 1969. Manuel Diégues Júnior foi também um dos fundadores da ABA, integrando a diretoria do órgão entre 1957 e 1958 e, posteriormente, entre 1966 e 1974.
Finalmente, a terceira frente de atuação, a técnico-administrativa, foi marcada pela ocupação de diversos postos na estrutura burocrática do Estado. Diégues foi membro do CFC, em 1966, de cuja instituição se tornou vice-presidente, e foi diretor do Departamento de Assuntos Culturais (DAC) de 1974 a 1979. Sua atuação nesses órgãos ajudou a expandir a moldura institucional das artes e da cultura, sobretudo no âmbito do MEC (Alves, 2017).
Segundo Faria (1993), essa pluralidade não pode ser descartada na avaliação da trajetória de Diégues no interior de sua geração, pois ela é marca de um tempo no qual, para além dos limites dos saberes rigorosamente profissionais especializados, os saberes tinham que ser construídos segundo o plano individual de apropriação e uso das fontes de conhecimento, pois as disciplinas ainda não haviam se consolidado completamente e seus lugares na academia ainda não estavam totalmente estabelecidos. Assim, bacharéis em Direito e de outras formações tomaram-se autores de trabalhos de sociologia e antropologia, refletindo um campo profissional em pleno processo de especialização. Nesse sentido, o debate em torno da autonomia disciplinar dos estudos de folclore não é apenas sintomático, mas constitutivo desse contexto.
FOLCLORE E CIÊNCIAS SOCIAIS
Ao abordar a trajetória de Manuel Diégues, devemos destacar o peso do chamado “movimento folclórico”, iniciativa com larga atuação pública e com repercussões para o campo das ciências sociais entre as décadas de 1940 e 1960. O movimento foi marcado por uma intensa mobilização dos estudiosos do folclore em torno do estudo e preservação das manifestações folclóricas e pelo reconhecimento da área como disciplina3. Esse direcionamento refletiu-se na criação da Comissão Nacional do Folclore (CNFL), em 1947, e, posteriormente, na realização dos Congressos de Folclore, que teve edições em 1951, 1953, 1957 e 1959. Ainda nesse contexto, houve o Congresso Internacional do Folclore, em 1954, além dos encontros regionais. Esse conjunto de iniciativas culminou com a Campanha Brasileira de Defesa do Folclore, deflagrada em 1958 (Vilhena, 1997).
Luís Rodolfo Vilhena (1997) destaca que o movimento abrangeu uma série de empreendimentos de um grupo de intelectuais que almejava, entre outras coisas, o reconhecimento do folclore como saber científico. O autor mostra que os folcloristas consideravam a institucionalização fundamental, porém não necessariamente nos moldes de uma instituição acadêmica tradicional. A CNFL e seu presidente, Renato Almeida, expandiram a rede institucional do movimento por meio de comissões estaduais de folclore e adotaram a prática de envolver colaboradores não especializados. Posteriormente, a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro consagrou esse modelo, contando com o apoio estatal e estabelecendo uma proximidade dos intelectuais folcloristas com o campo político.
A situação levou a certa ambiguidade, como aponta Marisa Peirano (1992), pois, se de um lado havia todo um esforço para que essa área de estudo se firmasse de maneira autônoma, de outro uma visão negativa passou a caracterizar os trabalhos dos folcloristas como superficiais, demasiadamente empíricos e desprovidos de análise teórica. Quanto ao estatuto científico desses estudos, Vilhena (1997) assinala que, paralelamente à luta pelo reconhecimento institucional, desenvolviam-se processos correlatos de delimitação das fronteiras da ciência do folclore e de estabelecimento da identidade de folclorista científico. Ambos os processos dependiam da autonomização do folclore em face da literatura e da história, campos que, tradicionalmente, englobavam o pensamento sobre a cultura popular4.
Villas-Bôas (2007) assinala que, durante seu trabalho de classificação da produção das ciências sociais em livros, verificou-se que o folclore se encontrava em uma posição intermediária, sendo ora considerado um ramo da antropologia, ora uma disciplina humanística, ou, ainda, um fenômeno a ser estudado por outras áreas, como a sociologia ou a linguística. Ao mesmo tempo, no entanto, havia a reivindicação de um domínio próprio. Gostaríamos de pontuar que esse processo de especialização ocorrido no interior dos estudos do folclore está inserido em um movimento mais amplo de especialização, não apenas das ciências sociais, mas da própria ciência como um todo.
A identificação de Manuel Diégues Júnior com o grupo dos folcloristas deu-se cedo em sua trajetória. No 1º Congresso Afro-Brasileiro do Recife, realizado em 1934, o então estudante de Direito atuou como secretário da Comissão de Folclore do encontro. Na segunda edição, em 1937, participou como autor do trabalho intitulado “Danças negras do Nordeste (notas e observações colhidas em Alagoas e Pernambuco)”.
Uma das mais importantes contribuições de Diégues para o movimento folclórico, no entanto, pode ser revelada por meio de sua contribuição para a imprensa. Em sua vasta produção, recolhida por nós nos periódicos cariocas, observa-se nitidamente a discussão mencionada anteriormente sobre o folclore como disciplina autônoma das ciências sociais - a maior parte dos textos concentra-se na análise dos aspectos teóricos e metodológicos que fundamentam essa área do saber. A partir da leitura dos artigos, fica evidente a busca pelo reconhecimento científico da disciplina, todavia, dando um direcionamento próprio à questão.
Quando pensamos no conjunto da produção de Manuel Diégues Júnior para a imprensa, parece oportuno estabelecer uma divisão em três momentos principais. Nos artigos do início dos anos 1950, observa-se uma preocupação predominante com a apresentação e a delimitação do folclore como um campo de estudos científicos, o que se reflete na tentativa de estabelecer o conceito de “fato folclórico” como referência conceitual. A segunda fase, que tem como marco o Congresso Internacional de Folclore, realizado em 1954, é caracterizada pelo predomínio de textos voltados à discussão das relações entre o folclore e as demais ciências sociais, com ênfase na afirmação da autonomia da disciplina. Já a terceira, no final dos anos 1950, é marcada por uma revisão crítica do percurso trilhado até então pelos estudos folclóricos.
Em consonância com os atributos da fase inicial, a definição de “fato folclórico” ocupou uma posição central. Na busca pela cientificidade dos estudos folclóricos, era necessário determinar claramente seus objetos, como demonstra o artigo abaixo, de 1953, intitulado “Os dois folclores”:
É o que se chama o fato folclórico, o elemento que se pesquisa, que se procura no meio do povo, o objeto de sua criação mental, material ou social. […] Como o botânico procura na flora, distinguindo-a em famílias, classes e subclasses, os elementos para seu estudo, para análise, classificação, comparação, o folclorista procura no fato folclórico - uma dança, um mito, uma adivinha, um conto - os elementos para seu estudo, para analisar, classificar, comparar, interpretar. É o mesmo que sucede na Sociologia - para citar outro exemplo, e agora de ciência também social ou do homem - que procura os fenómenos sociais, os fatos sucedidos na sociedade, para seu estudo, análise, interpretação. […] Como ciência do homem, o folclore ganhou autonomia, e se pesquisa, se procura as peculiaridades da vida popular, também as analisa, interpreta, compara (Diégues Júnior, 1953b).
A centralidade do “fato folclórico” levou à constante revisão e reelaboração do conceito ao longo dos textos publicados por Diégues em sua coluna. Em uma de suas definições, observamos um cuidado especial em destacar o caráter dinâmico do constructo:
Pode-se resumir esta conceituação no seguinte: o fato folclórico é traduzido nas maneiras de pensar, sentir e agir de um povo, preservadas pela tradição popular e pela imitação, sem influencias de círculos eruditos ou de estudiosos, aceitando-se, todavia, também aquelas observações que se apresentem sem o elemento tradicional e que não sejam anônimas. É sem dúvida uma conceituação que abre novas perspectivas ao modo de ver o fato folclórico, integrando-o no seu legitimo ritmo de progresso e de participação na vida da coletividade a que pertence. E é justamente esta nova posição do conceito do fato folclórico que provocará o pronunciamento dos folcloristas que se reunirão em 1954, no Congresso internacional de Folclore (Diégues Júnior, 1953a).
Segundo Cavalcanti (1990), o congresso resultou na elaboração da Carta do Folclore Brasileiro, documento que estabeleceu as bases conceituais do “fato folclórico” e de seu estudo, além de delinear o Plano Nacional de Pesquisa Folclórica, marco importante para a atuação da área nas décadas seguintes. Para os autores, a posição adotada pela carta quanto aos limites do campo do folclore consagrava certa ambiguidade: ao mesmo tempo em que situava o folclore no âmbito da antropologia cultural, abria espaço para reivindicações de autonomia da chamada “ciência do folclore” - ponto central da tensão entre folcloristas e cientistas sociais. Nesse contexto, compreende-se a insistência de Diégues em esforços de sistematização conceitual. Seu artigo “O Congresso de Folclore” (Diégues Júnior, 1954a) reforça essa percepção ao relatar o desentendimento entre os representantes de São Paulo e a comissão organizadora, que rejeitou a definição de “fato folclórico” proposta pelos paulistas.
De certo modo, observa-se uma mudança de ênfase nas reflexões de Manuel Diégues após o congresso internacional. A partir desse momento, os artigos passam a focar menos a definição conceitual do campo e mais as relações entre o folclore e as demais disciplinas das ciências sociais5. Na segunda metade da década de 1950, suas atenções se voltam com maior intensidade para as interfaces entre o folclore e outras áreas das ciências sociais. Nesse período, nota-se uma busca nítida por delimitações disciplinares, como ressalta o artigo “Terminologia das Ciências Sociais” (Diégues Júnior, 1955c), e pela reafirmação da autonomia do folclore como campo específico de saber:
Seis foram as disciplinas consideradas ciências sociais pela Unesco [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura] para fins dos estudos e documentos de trabalho destinados à Conferência que, nesta capital, se iniciou segunda-feira última: Economia Política, Sociologia, Psicologia Social, Antropologia, Ciência Política e Relações Internacionais. […] Quanto ao Folclore, por exemplo. Trata-se, é evidente, de uma ciência social, que não poderia deixar de figurar em currículos de especialização científica nesse campo - o das ciências sociais. […] Figura o nosso país, apesar do desenvolvimento que o Folclore - tanto as pesquisas como os estudos - vem tendo entre nós, entre os que não têm essa disciplina nos currículos universitários. […]. Não há, portanto, ensino universitário de Folclore no Brasil a não ser esporadicamente, através de cursos rápidos, de referências ao assunto dentro do programa de outras cadeiras (Diégues Júnior, 1956b).
Diégues lamenta a ausência do folclore na classificação da Unesco, destacando que, para aqueles que desejam especializar-se nas pesquisas cientificas, seria indispensável que o folclore fosse tratado em pé de igualdade com as demais disciplinas. Segundo ele, enquanto “ciência do homem”, muito se pode aproveitar do folclore, não só por suas ligações com a sociologia, a antropologia e a etnologia, mas, principalmente, pelo papel que lhe caberia na aproximação entre os povos, facilitando as relações humanas e “aquelas boas relações internacionais, por que tanto se interessa a Unesco, a ponto de considerar a estas uma disciplina das ciências sociais” (Diégues Júnior, 1956b).
Sobre o processo de autonomia disciplinar do folclore, Diégues avalia que a Unesco deveria estudar a conveniência da inclusão da área entre os assuntos de suas futuras reuniões sobre ciências sociais, o que representaria “o reconhecimento de sua posição científica no campo dos estudos do homem” (Diégues Júnior, 1956a). No artigo “A respeito do folclore” (Diégues Júnior, 1956a), o autor recorda que, no Congresso Internacional de 1954, foi aprovada uma resolução solicitando que a Unesco reunisse um grupo de técnicos e especialistas com o objetivo de elaborar uma conceituação satisfatória para o “fato folclórico”, pois foi nesse ponto que os especialistas reunidos em São Paulo não “conseguiram harmonizar suas ideias”.
Os estudiosos do folclore enfrentaram resistências significativas a suas pretensões de autonomia disciplinar. Cavalcanti (1990) destaca que a sociologia, especialmente a escola paulista, foi o campo de onde partiu o maior empenho em marcar essa distinção. Segundo a autora, Florestan Fernandes foi quem expressou com mais ênfase a preocupação em delimitar as fronteiras da sociologia em relação às demais disciplinas. Na série de textos em que desenvolve os argumentos de “As trocinhas do Bom Retiro”, publicados no jornal O Estado de S. Paulo ao longo de 1945, Florestan fez uma crítica feroz aos pressupostos que teriam dado origem aos estudos de folclore, recusando sua validade metodológica (Cavalcanti, 1990).
Posteriormente, ele revisitou o tema, ainda definindo o folclore e a sociologia como práticas distintas, mas reconhecendo um valor humanístico nos estudos sobre folclore. Em “Os estudos folclóricos em São Paulo” (1956), Florestan mantém o cerne de suas ponderações, mas admite um tipo de atuação específica para o folclorista, deixando claro que sua crítica não se dirigia diretamente ao “folclore” ou aos “folcloristas”, mas a uma concepção que pretendia conferir caráter científico à prática folclórica. Segundo Garcia (2001: 163), a mudança não alterou o modo como Fernandes avaliava a produção dos folcloristas; seus julgamentos continuaram pautados por critérios de consistência metodológica, priorizando a sistematicidade dos procedimentos.
O confronto entre a “escola paulista de sociologia”, representada por Florestan Fernandes, e os folcloristas da CNFL revela a disputa entre dois modelos distintos da ciência, cada um vinculado a diferentes projetos de “modernização” para o Brasil. Do ponto de vista da produção de conhecimento, a hegemonia posteriormente obtida pela sociologia paulista no campo das ciências sociais pode ser apontada como uma das causas da marginalização dos estudos de folclore (Cavalcanti, 1990). Segundo a interpretação de Mariza Peirano (1992: 85), a chamada “escola paulista de sociologia” desenvolveu uma concepção de ciências sociais que ocupou uma posição hegemônica no Brasil no que se refere ao tratamento científico do folclore. De acordo com a autora, os folcloristas eram considerados, no meio acadêmico da época, estudiosos bem-intencionados, porém diletantes, desprovidos de formação teórica e limitados a produzir descrições que desconsideravam o contexto no qual os fenômenos da cultura popular se manifestavam6.
Em sua busca por conferir cientificidade e autonomia aos estudos do folclore, Manuel Diégues buscou se pautar pela dissolução de fronteiras rígidas entre os saberes disciplinares, enfatizando o caráter complementar das disciplinas das ciências sociais. A estratégia é perceptível, por exemplo, no artigo “Folclore e ciências sociais”:
Não se desdoira o Folclore de colocar-se entre as disciplinas do mundo social; e neste ocupa uma posição que o situa no mesmo pé de igualdade, no mesmo campo de interesse, na mesma compreensão científica das demais disciplinas: da Sociologia ou da História, da Antropologia ou da Psicologia, da Economia ou da Etnologia. […] e isto porque as ciências sociais não vivem isoladas ou estanques, mas interdependentes ou interrelacionadas (Diégues Júnior, 1957b).
Na terceira fase de sua produção na imprensa, no final da década de 1950, observa-se em Manuel Diégues uma preocupação crescente com a avaliação crítica do percurso dos estudos de folclore no Brasil. Com a proximidade do IV Congresso Brasileiro de Folclore, realizado em 1959, essas revisões tornam-se mais intensas. Em artigos como “Divagações sobre o Folclore” (Diégues Júnior, 1959c), “Congresso de Folclore” (Diégues Júnior, 1959b) e “O IV Congresso de Folclore” (Diégues Júnior, 1959d), ele faz uma avaliação dos congressos passados e identifica alguns avanços:
Quanto a este último aspecto, queremos dizer o IV Congresso Brasileiro de Folclore, vale salientar a orientação realmente sadia, do ponto de vista científico, que começa a dirigir o movimento folclórico. Os folcloristas brasileiros, dentro dos princípios fundamentais das disciplinas sociais, procuram dar ao seu campo de estudo as necessárias bases científicas, sem as quais o folclore continuaria a ser entendido ou compreendido como pura diversão, curiosidade ou «hobby» de alguns, simples coleta e levantamento de material. Algumas das decisões adotadas pelo Congresso mostram este rumo, isto é, o desejo com que os verdadeiros folcloristas, e neste caso - por extensão também cientistas sociais, encaminham nas atividades folcloristas em nosso país […] (Diégues Júnior, 1959d).
A tese central de Vilhena (1997) sustenta que o sucesso do folclore como ação mobilizadora foi a outra face da moeda do seu fracasso como ciência. A explicação mais comum do fenômeno consiste em apontar a debilidade teórico-metodológica da pesquisa de folclore, produtora de ideologia, não de conhecimento. No entanto, o autor mostra que os folcloristas tinham muita coisa em comum com outros intelectuais de seu tempo: tomaram a formação da nação como problema básico dos estudos da cultura, apostaram em um modelo de institucionalização vinculado estreitamente ao Estado e elegeram temas de investigação que estiveram presentes, sob outro ângulo, nos trabalhos de sociologia e nos chamados estudos de comunidade. A explicação, portanto, pode ser localizada na estratégia de mobilização que valorizava intelectuais espalhados em todo o território nacional, estava afinada com o empirismo documental e com a ênfase na coleta em detrimento da conceituação. A tolerância com o colaborador sem especialização profissional, porém com especialização espacial e afetivamente próximo da realidade cultural que documenta, fez entrar pelos fundos o amadorismo que o folclore científico quisera expulsar. Para o autor, o movimento teria ocupado um lugar “intermediário” no campo intelectual brasileiro, tanto do ponto de vista conceitual quanto institucional.
CONCLUSÃO: UM SACERDOTE DO FOLCLORE
Em 1960, considerando que sua missão havia sido cumprida, Manuel Diégues Júnior encerra sua coluna no suplemento literário do Diário de Notícias, despedindo-se do público por meio do artigo intitulado “Despedida”. Nesse texto, o autor faz um balanço de sua trajetória, avaliando os esforços empreendidos ao longo dos anos e destacando a relevância de sua interlocução com um público amplo e diversificado:
Sete anos vem esta coluna procurando preencher uma finalidade: a de informar. Bastaria esta para ser grande, nos começos de 1953 quando o folclore iniciava sua jornada triunfal no Brasil, depois da criação da Comissão Nacional de Folclore e da realização do I Congresso Brasileiro de Folclore […]. Pareceu-nos oportuno não ir além do número mágico: do 7. Folcloricamente, sete anos bastam. Estamos hoje, aqui, encerrando estes sete anos, que procuramos manter de fidelidade contínua menos a nós próprios que aos leitores que nos honravam com suas leituras. Procurando informar, divulgar o que há em matéria de folclore, comentar os fatos históricos, noticiar livros de interesse nesses dois setores disciplinares, a preocupação era o leitor. […] Sei, modéstia à parte, que estes foram muitos. Muitos me honraram com cartas, com telegramas, com consultas. Quantas crônicas não eram simplesmente informação ou resposta a uma consulta que me faziam? (Diégues Júnior, 1960, grifo nosso).
A ligação com o público leitor ressalta o caráter comunicacional que estamos buscando enfatizar e revela a importância da atuação de Diégues na construção de um espaço público para as reflexões da área, entendido como elemento essencial para os processos de sistematização das ciências sociais. Brasil Junior (2015) argumenta que a natureza mais heterogênea e multifacetada da institucionalização da sociologia no Rio de Janeiro abriu a possibilidade para que os recursos da disciplina fossem acionados em diferentes contextos institucionais e burocráticos, capilarizando uma variada gama de influências. A imprensa, por sua natureza, proporcionava um ambiente propício para as discussões correntes das ciências sociais, configurando os jornais e revistas como veículos de um processo de mobilização de recursos simbólicos e intelectuais que, de modo conflitivo e sempre em profunda negociação com diferentes agentes, foi viabilizando a criação de um espaço público considerável para esse campo de estudo.
Segundo Alzira Alves Abreu et al. (2008), a presença do folclore e dos temas regionais nas páginas dos suplementos literários da imprensa deve ser compreendida à luz do choque entre o arcaico e o moderno. Na avaliação da autora, na medida em que os intelectuais se voltavam para o estudo das diferenças regionais e dedicavam-se à descrição dos costumes, tradições, festas e crenças do povo, buscavam, antes de mais anda, preservar a memória de uma “fase cultural” que estava prestes a desaparecer. Ela argumenta ainda que os folcloristas, nesse contexto, viam-se rejeitados por seus pares das ciências humanas, e assim “foram levados a procurar os suplementos literários como forma de divulgação de seus trabalhos e, mais do que isso, como instrumento de legitimação no meio intelectual” (Abreu et al., 2008: 42).
Em contraste com essa interpretação, nossa hipótese sugere que espaços como os suplementos literários atendiam às expectativas desses intelectuais, considerando sua forma de inserção institucional e os modos de articulação adotados por eles. Na avaliação de Couto (1992), os suplementos literários cumpriram o papel de conectar a produção intelectual a um público mais amplo de consumidores dos bens culturais. Ele ressalta que além do público “leigo”, os suplementos, dada a carência de publicações especializadas, também ajudaram a suprir as demandas relativas à circulação dos conteúdos entre um público mais especializado. Nesse sentido, não devem ser vistos apenas como instâncias marginais às quais os folcloristas recorreram em razão de sua exclusão do meio acadêmico, mas como suportes estratégicos de comunicação e convencimento em torno de um projeto específico de ciência e cultura.
À primeira vista, a trajetória de Manuel Diégues Júnior é similar à de muitos de seus contemporâneos, afinal a posição disciplinar fronteiriça, a ocupação de cargos públicos e a atuação na imprensa compunham o repertorio clássico dos cientistas sociais dos anos 1940-1960. Sendo assim, em que sentido podemos afirmar sua singularidade? Para responder à questão, precisamos nos distanciar um pouco das representações comumente aceitas sobre o movimento folclórico e sobre a trajetória institucional das ciências sociais. Nesse sentido, não basta olharmos para o percurso de Diégues simplesmente como um reflexo do contexto vivido por ele; é preciso recuperar a identidade histórica da sua trajetória em busca de um sentido social para sua atuação.
Apreender a identidade histórica de Diégues por meio da figura do sacerdote não visa dar um significado para sua atuação, mas ressaltar o sentido de seus esforços. Para Weber (1982), o que caracteriza a função sacerdotal é, em primeiro lugar, o pertencimento a uma agência coorporativa religiosa por parte do sacerdote e o seu compromisso irrestrito com ela. Em outras palavras, o carisma do sacerdote não lhe pertence, mas à instituição que lhe abriga e que inclusive lhe remunera. Ele é um porta-voz desses valores e de sua visão de mundo. Os sacerdotes estão a serviço da instituição, distribuem a salvação, mas não a inventam, são administradores de um conhecimento rotinizado. O compromisso “sacerdotal” de Diégues foi demonstrado na impressionante regularidade de sua coluna Folclore e História.
O sacerdote, para Weber (2000, 1992), detém um saber peculiar de forma profissional e hierarquizada. Desse modo, não há a necessidade de um dom especial e pessoal para legitimá-lo, embora possa existir sem que ele deixe suas atribuições sacerdotais. O que de fato o diferencia das citadas categorias de agentes religiosos é a “organização institucional e o sentido ético gerador de uma moral”. Ou seja, admite-se a presença de elementos mágicos e até mesmo carismáticos na categoria do sacerdote, desde que ele permaneça legitimado por sua instituição e gerando em sua conduta e pregação os valores éticos e morais. Enquanto o profeta impulsiona a mudança e a revitalização da religião, o sacerdote garante sua continuidade e estabilidade. Essa interação é crucial para compreender tanto a transformação quanto a preservação das tradições religiosas ao longo da história.
O sentido assumido pela atuação de Manuel Diégues Júnior aponta para um compromisso sacerdotal com a rotinização do conhecimento do folclore e das ciências sociais como um todo. Ele buscou intensamente o público e seus colegas propondo uma permanente interlocução, em meio a um ambiente relativamente indistinto quanto ao nível de especialização disciplinar. Sua participação nas reuniões e congressos das diferentes disciplinas reforçam essa percepção; reuniões que ele também divulgou por meio da sua coluna em textos como “Duas reuniões na Bahia” (Diégues Júnior, 1955b), “O Congresso de História” (Diégues Júnior, 1954b), “Reunião de antropologia” (Diégues Júnior, 1953c), “Antropólogos reúnem-se no Recife” (Diégues Júnior, 1958a), “Ciências Sociais no Rio” (Diégues Júnior, 1959a) e “Mutirão de folclore” (Diégues Júnior, 1958b). Agindo na sua forma habitual de cronista, Diégues ajudou a dar os contornos da separação disciplinar em um momento crucial do processo de consolidação das ciências sociais no Brasil.
Disponibilidade de dados:
Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
REFERÊNCIAS
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A referência teórica mais geral aqui é a Teoria Geral dos Sistemas Sociais, proposta por Niklas Luhmann (1996), que redescreve o objeto da sociologia como “comunicação”, isto é, os sistemas sociais (o que inclui a própria ciência como sistema) têm como seu fundamento operativo básico eventos comunicativos (Leydesdorff, 2007; Luhmann, 1996). Nas pesquisas sobre as ciências sociais no Brasil, abordagens afins a esse enfoque “comunicacional” podem ser vistas, de um lado, na pesquisa de Glaucia Villas-Bôas (2007) sobre a produção em livro das ciências sociais em meados do século passado, e nas propostas de Elide Rugai Bastos (2010) e Antonio Brasil Junior (2015) de considerar analiticamente as ideais como forças sociais. Mais recentemente, esse esforço teórico, antes descentrado, está sendo debatido coletivamente na chave do “aprendizado social da mudança” (Botelho, 2020), o que exige justamente tratar de forma central os aspectos comunicativos (internos e externos) da produção científica a fim de conectá-la às transformações das formas de auto-observação da sociedade brasileira.
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Os dados sobre essa produção são significativos. Entre as décadas de 1940 e 1960, os autores mencionados publicaram mais de 900 artigos em jornais cariocas, sendo a maior parte nos suplementos literários (Maciel, 2024).
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Tal impulso foi em grande parte motivado pela orientação da Unesco no pós-guerra, que preconizava o papel do folclore na construção da paz entre as nações.
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Inaugurada no final do século XIX por Sílvio Romero (1851-1914), a tensão entre literatura e ciências sociais teve vida longa na história dos estudos de folclore, deixando marcas em Amadeu Amaral (1875-1929) e Mário de Andrade (1893-1945), estudiosos do tema que, segundo Cavalcanti (1990), já enfatizavam a necessidade de alguma forma de atuação organizada na área.
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As relações entre as disciplinas passaram a ser também a tônica dos encontros promovidos pelos estudiosos do folclore, como registra Diegues nas “Conclusões do Congresso de Folclore” (Diégues Júnior, 1957a). Nesse artigo, ele explicita as recomendações aprovadas pelo III Congresso Brasileiro de Folclore, salientando que a principal delas determina que a “integração das pesquisas e análises do fenômeno folclórico seja feito nos métodos da sociologia e da antropologia cultural, e que essas disciplinas sejam incluídas nos cursos de formação de pesquisadores do folclore”.
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Como afirma Villas-Bôas (2007: 25), “O folclore é um dos temas já em voga no país quando se inicia o processo de institucionalização no ensino superior das chamadas ciências sociais. […] Folclore, sociologia e antropologia de então são nesse período interlocutores próximos; e o processo de construção de seus respectivos campos de ação pode ser vislumbrado num jogo de atribuições e autodefinições”.
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Fonte de financiamento:
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).
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Contribuição dos autores:
Não se aplica.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Dez 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
01 Jan 2025 -
Aceito
26 Set 2025


