Acessibilidade / Reportar erro

HISTÓRIA, CIÊNCIA POLÍTICA E ESTUDO DAS MULHERES: COM A PALAVRA, CÉLI REGINA JARDIM PINTO

History, political science and women’s studies: an interview with Céli Regina Jardim Pinto

Historia, ciencia política y estudio de la mujer: Con la palabra Céli Regina Jardim Pinto

Céli Regina Jardim Pinto é professora emérita da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente é docente permanente convidada no Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS na condição de professora titular aposentada. Graduada em história e mestra em ciência política (UFRGS) e doutora em ciência política pela University of Essex, na Inglaterra. Tem uma trajetória reconhecida e de excelência em ambas as áreas de conhecimento, tanto no Brasil quanto no exterior, tendo sido visiting scholar na University of California, Los Angeles, na Freie Universität Berlin e na University of Oxford. Sua profícua produção acadêmica tem se centrado nos estudos de teoria política com ênfase em teoria da democracia e teoria feminista, bem como abordado, em livros, artigos e palestras, temas da história política brasileira, tais como história das mulheres, estudos de gênero, feminismo e participação política. As questões foram elaboradas de forma a abarcar sua trajetória intelectual e acadêmica destacando os pontos de intersecção entre suas áreas de atuação e suas pesquisas. A entrevista foi realizada no dia 17 de novembro de 2021 de forma virtual pelas autoras, e suas respostas, depois de transcritas, receberam como acréscimo as notas explicativas.

Entrevistadoras: Professora Céli, quais foram as razões que te levaram a migrar da licenciatura em história para a pós-graduação na área da ciência política? E quais foram os desafios principais nessa troca de área?

Céli Pinto: Quando acabei a graduação em história, em 1972, comecei a pensar em fazer um mestrado. E havia uma razão muito simples para não fazer uma pós em história: não existia pós em história em Porto Alegre. Então, não apenas eu, mas muitas outras pessoas migraram da história para ciência política, que nos parecia, na época, o mais próximo da área de história1 1 O mestrado em história na UFRGS foi criado em 1986. . O desafio começava pelo processo seletivo: para fazer a seleção de mestrado, era preciso realizar uma prova de estatística, de que eu não tinha domínio porque, àquele tempo, nem se pensava em história quantitativa ou qualquer equivalente. Sobre a maior dificuldade, eu me lembro, durante a entrevista para a seleção do mestrado, de ter sido questionada da seguinte forma por um dos professores: “Tu queres fazer ciência política ou queres fazer história política?”. Bem, jurei para ele que eu queria fazer ciência política, embora naquele momento tivesse muito pouca ideia do que era a ciência política. E, na verdade, apresentei uma dissertação de história, sobre as classes sociais a que pertenciam os fundadores do Partido Republicano do Rio Grande do Sul no século XIX. Então, a minha entrada na ciência política se dá por razões completamente práticas: não tinha condições para ir a São Paulo ou ao Rio de Janeiro ou a Campinas para cursar mestrado em história, então decidi fazer o mestrado em ciência política na UFRGS.

Entrevistadoras: É interessante observar como os seus interesses de pesquisa migraram desde o início da sua vida acadêmica, de uma forma bem significativa, das questões envolvendo os partidos e os projetos políticos de uma elite gaúcha para as questões de gênero e os feminismos. Como se deu essa guinada historiográfica? O período que passou na Inglaterra durante os anos em que cursou o mestrado e o doutorado (década de 1980) tiveram alguma influência na sua trajetória no que diz respeito aos seus estudos abordando a história das mulheres e os estudos de gênero? Tu achas que há como identificar o seu despertar para a agenda de estudos feministas?

Céli Pinto: Claramente! Há um ciclo de estudos sobre a Primeira República que iniciei ainda durante a minha monografia do bacharelado em história, sob orientação da professora Helga Piccolo. Nesse trabalho, procurei comparar a Constituição republicana do Rio Grande do Sul, nitidamente positivista, e o projeto do Apostolado Positivista de constituição para o Brasil, que não foi aceito, mas foi praticamente replicado no Rio Grande do Sul. Concluí esse ciclo de estudos sobre a Primeira República ao defender a minha tese de doutorado, que tratava do caso do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR). Naquele momento, realizava também uma transição teórica bem clara: passava a incorporar o início do pós-estruturalismo e a problematização do discurso, além de encerrar a fase dos chamados estudos regionais. Já a minha entrada para a temática do feminismo não aconteceu por meio da academia, mas da militância que experimentei durante a minha estadia na Inglaterra, entre os anos 1979 e 1983, dentro da Universidade de Essex2 2 A tese de doutorado intitulada The positivist discourse of the Republic Party of Rio Grande do Sul: a successful political Project in the Brazilian Old Republic (O discurso positivista do Partido Republicano do Rio Grande do Sul: um projeto político bem-sucedido na Velha República brasileira) foi defendida em janeiro de 1986, na University of Essex (Inglaterra), sob orientação de Ernesto Laclau. Uma versão reduzida foi publicada no Brasil, no mesmo ano, na coleção Universidade Livre, publicada pela editora L&PM (Porto Alegre) com o título Positivismo um projeto político alternativo (RS: 1889–1930). . Retornei ao Brasil muito imbuída das ideias feministas e convencida de que poderia trabalhar com teoria política feminista. Passei a me preocupar tanto com a questão da história das mulheres como pelo feminismo enquanto teoria política. Paralelamente, nunca deixei de trabalhar com a análise da política contemporânea, outro tópico que me é bastante caro. É aquela história: considero-me uma cientista política muito calcada na história – e uma historiadora com base muito grande na ciência política. Gosto muito dessa minha mistura.

Entrevistadoras: Quais seriam, a seu ver, os maiores ganhos dessa “mistura” entre história e ciência política?

Céli Pinto: Vários outros colegas historiadores que, assim como eu, redirecionaram a trajetória rumo à ciência política partilhavam de um estranhamento diante do perfil a-histórico das ciências sociais. Não entendíamos como os cientistas sociais poderiam desejar interpretar o Brasil contemporâneo se não conheciam história. Há muitos cientistas políticos que viram quase matemáticos, pois lhes falta toda uma perspectiva histórica nas análises. De outro lado, muitas vezes, quando leio o trabalho de historiadores, sinto falta de uma perspectiva teórica. Daí eu gostar muito dessa minha formação híbrida, de história e ciência política, porque é uma combinação que casa bem: dá liga, assim como antropologia e história também.

Entrevistadoras: Falando em política, uma boa parte da sua produção científica seguiu dedicada ao estudo dos partidos políticos. Dada a sua experiência no tema, como avalia a produção científica disponível a respeito da memória dos partidos políticos brasileiros? Existem períodos menos estudados e lacunas que considera importantes a preencher?

Céli Pinto: Acredito que existe uma produção expressiva sobre os partidos políticos no Brasil elaborada pela área da ciência política e também na história. Quando consideramos o período da chamada República populista de 1946–1964, sobretudo em seus anos iniciais, há uma grande quantidade de trabalhos sobre os três maiores partidos da época (Partido Social Democrático, União Democrática Nacional, Partido Trabalhista Brasileiro), como sobre o Partido Comunista Brasileiro. No caso da ditadura civil-militar, também encontramos pesquisas sobre a Aliança Renovadora Nacional e o Movimento Democrático Brasileiro. Com a redemocratização, porém, a maioria dos estudos passou a focar o caso do Partido dos Trabalhadores (PT), havendo muito menos livros escritos sobre a direita brasileira. Ainda assim, um dos momentos específicos da história partidária brasileira que considero muito pouco estudado, a meu ver, diz respeito aos anos 1961–1964, desde a queda de Jânio Quadros até o golpe civil-militar de 1964. Aquela época foi muito importante, pois existia uma forte organização popular e um temor justificado dos militares diante da possibilidade de um levante comunista. Um segundo período relevante que carece de estudos é o governo Dilma Rousseff (2011–2016). A meu ver, Dilma Rousseff foi posta na “lata do lixo da história” única e exclusivamente pelo fato de ser mulher. Nem a esquerda nem a direita se interessa em resgatá-la para estudo3 3 Sobre o tema ver, por exemplo, o livro O Golpe na perspectiva de gênero (2018), organizado por Linda Rubim e Fernanda Argolo e publicado pela Editoria da Universidade Federal da Bahia, no qual a entrevistada contribui com o capítulo intitulado “Dilma: uma mulher política”. Recentemente (2020) foi publicada a coletânea Mulheres, poder e ciência política – Debates e trajetórias pela Editora da UNICAMP, organizado por Flávia Biroli, Luciana Tatagiba, Carla Almeida, Cristina Buarque de Holanda e Vanessa Elias de Oliveira, que aborda muitos dos temas citados por Céli Pinto. , embora nada justifique deixar de analisá-la.

Entrevistadoras: Desde 2012, está coordenando um projeto junto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico centrado na investigação da contribuição da teoria política feminista. O estudo das mulheres pioneiras que se destacaram na luta pela expansão dos direitos de cidadania tem revelado, entre várias questões, uma certa divisão entre aquelas comprometidas com uma campanha em prol do direito de voto e aquelas progressistas, mas avessas aos canais institucionais da política. Por que acredita que havia essa divisão?

Céli Pinto: Bem, há várias questões colocadas aí. Vamos então por partes. Uma coisa é a discussão sobre a teoria da democracia e a teoria política feminista. Escrevi muito sobre Nancy Fraser, Iris Young, Seyla Benhabib, Chantal Mouffe – e todas essas mulheres construíram uma teoria política feminista e uma teoria da democracia feminista. No início, quando elas começaram a problematizar a teoria política feminista e a democracia feminista, houve uma reação por parte do mainstream. Atualmente, porém, os pontos que levantaram são reconhecidos e devidamente incorporados pelos teóricos da democracia. A influência da teoria política feminista se tornou muito grande, a ponto de abrir caminho para as demandas dos grupos que pleiteiam maior inclusão, a exemplo dos defensores da presença negra na política. Outra coisa é a questão das mulheres na vida política. A luta pelo direito ao voto e, depois, para se fazer eleger, é uma história muito longa: com poucos ganhos e muitas perdas. Há de se ressaltar que o problema da entrada na vida política é um pouco mais amplo.

Vou fazer aqui uma pequena digressão. A direita nunca se preocupou com a democracia, mantendo-se sempre à porta dos quartéis durante a República Populista. Mesmo os partidos progressistas, principalmente o Partido Comunista, tinham muito desprezo pela democracia até os anos 1950–1960 no Brasil. Os partidos progressistas passam a dar importância para a democracia no contexto da redemocratização. Por tudo isso, a ideia de lutar para ser eleito legislador, por exemplo, não representava uma bandeira da esquerda no Brasil. Como a democracia não configurava uma luta da esquerda antes do período militar, essas mulheres mais ligadas ao anarquismo e ao comunismo não estavam tão preocupadas assim em serem eleitas (afinal, tampouco os homens se empenhavam para tanto).

Entrevistadoras: Aproveitando o gancho, teoricamente, a extensão do direito de voto às mulheres pela outorga do Código Eleitoral de 1932 abriu margem para um crescimento no eleitorado no país. Contudo existem poucos estudos sobre o alistamento, o perfil e a mobilização do eleitorado feminino durante a Era Vargas. O que poderia estar por trás desse potencial desinteresse dos analistas em compreender o comportamento do eleitorado feminino na época?

Céli Pinto: Sinceramente, eu não sei se houve tal mobilização… Foi um período muito curto também para analisar. A presença das mulheres na política sempre foi excepcional, mas não tenho me debruçado sobre esse período para responder a contento a pergunta. Necessitamos de mais estudos sobre o período.

Entrevistadoras: Considerando essa questão do envolvimento das mulheres na própria cena eleitoral, pode-se dizer que até os dados sobre o envolvimento das mulheres na cena eleitoral, mesmo durante a democracia de 1946–1964, ainda são desconhecidos. Seu trabalho à frente do projeto do CNPq, que mapeia a presença das mulheres na política brasileira a partir do estudo de trajetórias (1950–2010), tem sido um esforço muito bem-sucedido em trazer luz sobre as candidaturas femininas aos postos eletivos. Como surgiu a concepção desse projeto?

Céli Pinto: Esse projeto continua em andamento pelo seguinte motivo: existe uma imensa bibliografia no Brasil, de altíssimo nível, tratando sobre o porquê de as mulheres não serem eleitas. Eu também escrevi sobre a ausência das mulheres nos cargos eletivos. Em um dado momento, porém, resolvi mudar o foco e problematizar: quem são essas mulheres vitoriosas que conseguiram se eleger? Ao mapear as eleitas para as assembleias estaduais, a Câmara e o Senado Federal durante o curso de 64 anos da história política brasileira, da legislatura iniciada em 1951 até a inaugurada em 2015, deparei-me com menos de 700 nomes4 4 O número exato é de 653, como Céli apresenta em artigo publicado no ano de 2018 pela revista Opinião Pública, em parceria com Augusta Silveira, intitulado “Mulheres com carreiras políticas longevas no legislativo brasileiro (1950–2014)”. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1807-01912018241178>. Acesso em: 10 dez. 2021. . Um número muito pequeno – e que diminuiu consideravelmente conforme centrei a atenção no estudo daquelas legisladoras que tiveram carreiras consideradas longevas, isto é, capazes de se reeleger por duas vezes5 5 Foram 138 mulheres reeleitas ao longo do período analisado. e galgar um assento na Câmara dos Deputados6 6 Apenas 62 mulheres conseguiram tal feito no período considerado pelo estudo. Inclusive, a pesquisa sobre carreiras das mulheres precisou flexibilizar os critérios normalmente utilizados pela ciência política no tratamento convencional das carreiras masculinas. Em vez de se tabular como carreiras longevas apenas aqueles casos nos quais o legislador se reelege por pelo menos três vezes consecutivas à Câmara dos Deputados, foi computada como legisladora de carreira longeva toda mulher capaz de se eleger três ou mais vezes para os legislativos estaduais e federal. Tratava-se de uma adaptação metodológica necessária para retratar a realidade das legisladoras bem-sucedidas em suas carreiras políticas no Brasil. . Buscando entender o que essas mulheres fizeram para se tornarem políticas de sucesso, detentoras de uma carreira mais longeva, eu me surpreendi: o padrão das trajetórias delas se parecia muito com o padrão das carreiras masculinas. Quem conseguia fazer uma carreira política bem-sucedida provinha, basicamente, ou do movimento estudantil ou do movimento sindical ou de família de políticos. Embora eu esperasse que, provavelmente pela falta de espaço dentro dos partidos, as mulheres pudessem emergir de movimentos sociais para catapultar candidaturas competitivas, isso não se confirmou nos dados. Na prática, as legisladoras de carreira longeva apresentavam trajetórias muito parecidas com as dos homens.

Entrevistadoras: Pretende analisar a legislatura iniciada em 2019? Em todos os sentidos, as eleições 2018 parecem atípicas…

Céli Pinto: Sim! Em 2018, temos um crescimento exponencial do número de mulheres de direita eleitas à Câmara dos Deputados. Se antes esse perfil representava entre 12 e 13% da bancada feminina na Casa, agora cerca de 50% das deputadas federais são filiadas a partidos de direita. E essas deputadas de direita provêm dos movimentos que surgiram em 2013 (como Vem pra Rua, Brasil Livre, Brasil Endireita) ou de alas da Igreja católica ultraconservadora (como a Fundação Dom Bosco). Resolvi estudar essas mulheres agora, inclusive fazendo uma comparação com as legisladoras de esquerda, para compreender o que as mulheres têm proposto em termos de projetos de lei.

Nós, feministas, somos responsáveis por essas mulheres estarem lá, pois abrimos caminho para todas as mulheres. Sempre reiterei: estamos lutando para que as mulheres cheguem à política, mas não temos como controlar quais conseguirão. Existe quem demande representação feminina condicionada para um único nicho político-ideológico, como se nem todo perfil de mulher fosse digno de exercer a política. Entretanto isso não é democrático: se tu lutas para que as mulheres cheguem à política, tu estás lutando para que as mulheres como gênero cheguem à política. Outra luta é a luta para garantir que as mulheres comprometidas com as causas feministas cheguem à política. Isso é totalmente diferente de tentar condicionar o acesso das suas preferidas. Não cabe propor uma democracia “só para os meus”.

Entrevistadoras: Estamos vivendo um momento crítico de negacionismo histórico e ascensão de uma visão autoritária no nosso país. Como você considera que isso irá afetar os estudos de gênero, dos feminismos e a militância feminista?

Céli Pinto: Eu não sei como vai afetar. O que eu acho é que nós, estudiosas, estudiosos, historiadores, historiadoras cientistas políticas, cientistas políticos, nós nunca nos ocupamos com o pensamento conservador brasileiro, na forma conservadora de ser o Brasil. Temos que encarar que o Brasil é um país conservador. Mesmo o Partido dos Trabalhadores foi conservador, por exemplo, em relação ao aborto quando esteve no poder. É um assunto tabu! A esquerda também é muito conservadora na esfera dos costumes. Nosso país é conservador porque, inclusive, dá margem para a legitimidade na desigualdade social. Já escrevi a respeito, quando tratei de corrupção e explorei essa noção de “legítima hierarquia das desigualdades no Brasil”: as pessoas se acham desiguais e, pior, consideram natural que umas sejam inferiores às outras7 7 Cf. A banalidade da corrupção: uma forma de governar o Brasil (Pinto, 2011). . Sabemos, ainda, que o país é marcado por uma cultura religiosa muito profunda e por um racismo extremo (vale dizer, negado até recentemente dentro da própria academia, pela esquerda, sob o mito da “democracia racial”). Trata-se de uma sociedade que tem a família patriarcal como princípio articulador embora poucos consigam, de fato, adequar-se ao protótipo de “família margarina”. Além disso, não podemos nos esquecer de que a classe média brasileira é uma das classes médias mais privilegiadas do mundo: basicamente, rodeada por serviçais (das diaristas prontas para limpar casas aos frentistas responsáveis por abastecer os veículos dos consumidores, e mesmo os empacotadores encarregados de embalar as compras no caixa). Temos de passar a considerar que existe um pensamento de direita, uma direita e uma extrema-direita no Brasil. Nunca consideramos esse cenário. No máximo, problematizávamos a centro-esquerda e os militares envolvidos na ditadura militar. Mas, infelizmente, a situação é um pouco mais complexa. O que que vai acontecer? Não sei. Acredito que, mesmo caso um partido de centro-esquerda como o PT vença as próximas eleições presidenciais, o Brasil continuará em dificuldades. Houve uma grande destruição do país nos últimos anos, particularmente na área da cultura e da educação. Desculpem-me encerrar com uma mensagem tão pessimista…

Entrevistadoras: Não seja por isso! Vamos acabar comentando uma novidade que tem repercutido muito positivamente? Pode compartilhar conosco como foi a experiência de elaborar o seu mais novo livro, Tempos e memórias: vida de mulheres, recém-lançado pela Editora Zouk, de Porto Alegre?

Céli Pinto: Claro. Quando voltei da Inglaterra após defender o doutorado, em 1985, estava empenhada em fazer história das mulheres. Então, apresentei um projeto à Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais e consegui o apoio financeiro da Fundação Ford para entrevistar mulheres, àquele tempo (em 1985), com 70 anos ou mais. A minha pretensão era compreender como aquelas mulheres tinham vivenciado a década de 1920, pois seguia muito preocupada com a revolução de 1923 ocorrida no Rio Grande do Sul e esperava captar a memória do episódio pela lente das mulheres. Viajei para Bagé, com duas bolsistas e uma socióloga, para realizar o projeto. Entrevistamos mulheres de todas as classes sociais – e diante das limitações típicas de pesquisa da época, quando gravávamos, transcrevíamos à mão… Como resultado, publiquei um artigo sobre as entrevistas e abandonei o assunto para me concentrar em novos trabalhos. Até que, em março de 2020, no início da pandemia e da quarentena no Brasil, recordei-me sobre uma menção à gripe espanhola feita por alguma das minhas entrevistadas de Bagé. Parti em busca daquele conjunto de entrevistas que sequer sabia onde estava, vasculhando as minhas caixas-arquivo. Foi assim que reencontrei 16 entrevistas transcritas, parte à máquina de escrever, parte manualmente. Descobri que já não tinha mais as fitas com as gravações em áudio. Ao reler o material, eu me apaixonei perdidamente pelas entrevistas – em que pese não ter achado a entrevista de interesse, relatando a gripe espanhola8 8 Algumas entrevistas só estão registradas na forma de resumos. Provavelmente esse é o caso da entrevista que fazia menção à gripe espanhola. . Eu tinha uma dívida com essas mulheres, que haviam me doado um tempo da vida delas e, evidentemente, estavam, agora, todas falecidas. -Comecei a escrever o livro, que foi o mais prazeroso de elaborar em toda a minha vida. Embora eu tenha me permitido algumas liberdades metodológicas, alguns leitores avaliam que o trabalho representa, para além do gênero de história das mulheres, um exemplar livro de metodologia. Primeiro porque me coloco como uma pessoa que fez história oral quando a própria história oral não tinha todo o cabedal teórico-metodológico de nossos dias. Em segundo lugar porque reconheço não poder tratar o meu material empírico como uma entrevista típica de história oral considerando estar diante de um conjunto de documentos-monumentos criados décadas antes com outras preocupações de pesquisa. Já não poderia mais acessar as minhas entrevistadas para esclarecer novas questões. Terceiro porque reflito a respeito da diferença etária capaz de ter impactado no resultado das entrevistas. Àquele momento, eu tinha 30 anos, fazendo questões para mulheres acima de 70. Eu me questiono: por que será que não fiz determinada pergunta? Talvez porque eu tinha 30 anos e a entrevistada, mais de 70? Ou possa ter omitido porque naquele momento era ofensivo fazer tal pergunta? Faria a pergunta hoje, que também cheguei aos 70, para uma entrevistada da minha idade? Como será que uma mulher de 30 anos faria a mesma pergunta para mim? Ou tampouco se arriscaria? Em quarto e último lugar, porque quando mobilizo essa reflexão metodológica, incorporo uma nova entrevistada, que apareceu muito raramente. E essa entrevistada sou eu. As histórias daquelas mulheres me fizeram lembrar da minha infância. Então me coloquei um pouco no livro. Por tudo isso, foi uma experiência maravilhosa, ainda mais para vivenciar naquele contexto temeroso do início da pandemia, que me afligia isolada em casa. Acho que o leitor pode sentir o meu prazer ao escrever este livro!

NOTAS

  • 1
    O mestrado em história na UFRGS foi criado em 1986.
  • 2
    A tese de doutorado intitulada The positivist discourse of the Republic Party of Rio Grande do Sul: a successful political Project in the Brazilian Old Republic (O discurso positivista do Partido Republicano do Rio Grande do Sul: um projeto político bem-sucedido na Velha República brasileira) foi defendida em janeiro de 1986, na University of Essex (Inglaterra), sob orientação de Ernesto Laclau. Uma versão reduzida foi publicada no Brasil, no mesmo ano, na coleção Universidade Livre, publicada pela editora L&PM (Porto Alegre) com o título Positivismo um projeto político alternativo (RS: 1889–1930).
  • 3
    Sobre o tema ver, por exemplo, o livro O Golpe na perspectiva de gênero (2018), organizado por Linda Rubim e Fernanda Argolo e publicado pela Editoria da Universidade Federal da Bahia, no qual a entrevistada contribui com o capítulo intitulado “Dilma: uma mulher política”. Recentemente (2020) foi publicada a coletânea Mulheres, poder e ciência política – Debates e trajetórias pela Editora da UNICAMP, organizado por Flávia Biroli, Luciana Tatagiba, Carla Almeida, Cristina Buarque de Holanda e Vanessa Elias de Oliveira, que aborda muitos dos temas citados por Céli Pinto.
  • 4
    O número exato é de 653, como Céli apresenta em artigo publicado no ano de 2018 pela revista Opinião Pública, em parceria com Augusta Silveira, intitulado “Mulheres com carreiras políticas longevas no legislativo brasileiro (1950–2014)”. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1807-01912018241178>. Acesso em: 10 dez. 2021.
  • 5
    Foram 138 mulheres reeleitas ao longo do período analisado.
  • 6
    Apenas 62 mulheres conseguiram tal feito no período considerado pelo estudo. Inclusive, a pesquisa sobre carreiras das mulheres precisou flexibilizar os critérios normalmente utilizados pela ciência política no tratamento convencional das carreiras masculinas. Em vez de se tabular como carreiras longevas apenas aqueles casos nos quais o legislador se reelege por pelo menos três vezes consecutivas à Câmara dos Deputados, foi computada como legisladora de carreira longeva toda mulher capaz de se eleger três ou mais vezes para os legislativos estaduais e federal. Tratava-se de uma adaptação metodológica necessária para retratar a realidade das legisladoras bem-sucedidas em suas carreiras políticas no Brasil.
  • 7
    Cf. A banalidade da corrupção: uma forma de governar o Brasil (Pinto, 2011).
  • 8
    Algumas entrevistas só estão registradas na forma de resumos. Provavelmente esse é o caso da entrevista que fazia menção à gripe espanhola.
  • Fonte de financiamento: nenhuma.
  • Entrevista concedida em 17 de novembro de 2021, via plataforma Zoom (Porto Alegre e Rio de Janeiro).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • BIROLI, F. et al (orgs.). Mulheres, poder e ciência política: debates e trajetórias. Campinas: Editora da UNICAMP, 2020.
  • PINTO, C. R. J. The positivist discourse of the Republic Party of Rio Grande do Sul 1986. 377 p. Tese (Doutorado) – University of Essex, Colchester, 1986.
  • PINTO, C. R. J. Positivismo um projeto político alternativo (RS: 1889–1930). Porto Alegre: L&PM, 1986.
  • PINTO, C. R. J. A banalidade da corrupção: uma forma de governar o Brasil. 1. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2011.
  • PINTO, C. R. J.; SILVEIRA, A. Mulheres com carreiras políticas longevas no legislativo brasileiro (1950–2014). Opinião Pública, Campinas, v. 24, n. 1, p. 178-208, 2018. https://doi.org/10.1590/1807-01912018241178
    » https://doi.org/10.1590/1807-01912018241178
  • RUBIM, L.; ARGOLO, F. (orgs.). O Golpe na perspectiva de gênero Salvador: UDUFBA, 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Set 2021
  • Aceito
    11 Nov 2021
Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas Secretaria da Revista Estudos Históricos, Praia de Botafogo, 190, 14º andar, 22523-900 - Rio de Janeiro - RJ, Tel: (55 21) 3799-5676 / 5677 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: eh@fgv.br