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O FENÔMENO URBANO NO CATÁLOGO DA ZAHAR EDITORES: POLÍTICA EDITORIAL, INTELECTUAIS E OS ESTUDOS SOBRE AS CIDADES NAS CIÊNCIAS SOCIAIS BRASILEIRAS

The urban phenomenon in the Zahar Editores catalog: publishing, intellectuals, and studies on cities in Brazilian social sciences

El fenómeno urbano en el catálogo de Zahar Editores: política editorial, intelectuales y estudios sobre ciudades en las ciencias sociales brasileñas

RESUMO

Este artigo trata da construção do campo de estudos sobre fenômenos urbanos nas ciências sociais brasileiras nos anos 1970 e 1980, para isso, toma como objeto de análise os livros publicados pela Zahar Editores sobre o tema entre os anos de 1957 e 1984. Com base no material analisado, é possível afirmar que a construção de uma política editorial na Zahar Editores, destinada à publicação de livros vinculados aos recém-fundados programas de pós-graduação em ciências sociais, possibilitou o desenvolvimento e a consolidação de uma proeminente agenda de pesquisa voltada para as cidades no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE:
Edição; Ciências Sociais; Estudos Urbanos; Antropologia Social; Zahar Editores

ABSTRACT

This article deals with the construction of a field of studies on urban phenomena in Brazilian social sciences in the 1970s and 1980s. For this purpose, it takes as its object of analysis the books published by Zahar Editores on the urban subject between the years 1957 and 1984. Based on the material analyzed, it is possible to affirm that the construction of an editorial policy at Zahar Editores focused on the publication of books linked to the recently founded graduate programs in social sciences enabled the development and consolidation of a prominent research agenda focused on cities in Brazil.

KEYWORDS:
Edition; Social Sciences; Urban Studies; Social Anthropology; Zahar Editores

RESUMEN

Este artículo trata de la construcción del campo de estudios sobre los fenómenos urbanos en las ciencias sociales brasileñas en las décadas de 1970 y 1980. Para esto, toma como objeto de análisis los libros publicados por Zahar Editores sobre el tema urbano entre los años 1957 y 1984. Con base en el material analizado, es posible afirmar que la construcción de una política editorial en Zahar Editores enfocada a la publicación de libros vinculados a los programas de posgrado en ciencias sociales recién fundados permitió el desarrollo y consolidación de una destacada agenda de investigación sobre ciudades en Brasil.

PALABRAS CLAVE:
Edición; Ciencias Sociales; Estudios Urbanos; Antropología Social; Editores Zahar

INTRODUÇÃO

A Zahar Editores foi fundada em 1956 e tornou-se uma das principais editoras brasileiras da segunda metade do século XX. Capitaneada por Jorge Zahar, membro de uma família de imigrantes franco-libaneses vinculados ao comércio livreiro no Rio de Janeiro, a editora construiu um catálogo com foco em ciências sociais e humanas. Inicialmente, investiu na tradução de autores estrangeiros, privilegiando textos clássicos, livros de introdução e divulgação, compilações e trabalhos monográficos, baseando-se, sobretudo, na experiência prévia adquirida com a importação e a distribuição de livros. Posteriormente, e de forma paralela às traduções, passou a investir na publicação de autores brasileiros, a maioria deles institucionalmente ligada às universidades e aos programas de pós-graduação que começaram a se expandir nos anos 1970. Foi nesse momento que a editora intensificou uma interlocução com intelectuais brasileiros e desenvolveu uma política editorial voltada à publicação de obras destinadas à graduação e à pós-graduação.

Cada vez mais presentes em coleções editoriais diversas, as ciências sociais passaram a ocupar um lugar de destaque no mercado editorial e nos debates públicos nos anos 1960. A Zahar teve um papel fundamental nesse processo ao contribuir para a consolidação das ciências sociais como um gênero editorial no país (Nóbrega, 2019NÓBREGA, L. Editoras e ciências sociais no Brasil: a Zahar Editores e a emergência das ciências sociais como gênero editorial (1957-1984). Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2019.). Os estudos urbanos formaram parte considerável do catálogo da editora, estando as trajetórias de importantes intelectuais da área vinculados à história da editora.

Neste artigo, busco identificar, por meio da reconstrução histórica do catálogo de publicações da editora e entrevistas com alguns dos seus mais destacados interlocutores, a importância da Zahar Editores na consolidação de parte considerável da tradição brasileira de estudos sobre fenômenos urbanos. Para isso, traço inicialmente um panorama da criação da editora e da formulação de parte de suas redes de interação, em seguida, destaco o fortalecimento da participação de intelectuais brasileiros na editora, sobretudo com a coleção Antropologia Social, que contou com a coordenação de Gilberto Velho. Por fim, sublinho parte significativa do legado editorial deixado pela Zahar, com foco nas principais obras sobre o tema, na interlocução com intelectuais diretamente vinculados aos estudos urbanos no Brasil, tais como Gilberto Velho, Otávio Alves Velho, Moacir Palmeira e Lícia Valladares, e na relevância que a editora teve na organização de parte significativa das reflexões dos cientistas sociais sobre o tema1 1 Este artigo é uma versão modificada de partes da tese “Editoras e ciências sociais no Brasil: a Zahar Editores e a emergência das ciências sociais como gênero editorial” (1957-1984), defendida em 2019 no IESP/UERJ. Sou imensamente grato a Marcella Araújo por me possibilitar traçar, em uma breve e esclarecedora conversa, as linhas gerais que vinculam o início dos estudos urbanos no Brasil à política editorial da Zahar Editores. .

O INÍCIO DA ZAHAR EDITORES: A CONSTRUÇÃO DE UMA POLÍTICA EDITORIAL VOLTADA PARA AS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

O primeiro livro publicado pela Zahar Editores, em 1957, foi o Manual de sociologia, de Jay Rumney e Joseph Maier, então professores de sociologia na Rutgers University, em Nova Jersey, Estados Unidos. O livro inaugurou a Biblioteca de Ciências Sociais, coleção de maior sucesso da editora, que durou até 1984. Com a publicação do primeiro livro, teve início uma agenda de publicações que, no decorrer dos anos 1960, ganharia destaque por ser destinada a divulgar o pensamento das ciências sociais e humanas, visando prioritariamente aos alunos dos cursos universitários, valorizando o didatismo e o poder de síntese das obras, e sua inserção nos debates públicos.

A tradução foi, nesse momento, um elemento fundamental na consolidação e no reconhecimento da política editorial da Zahar. Na primeira metade do século XX, grande parte das obras canônicas das ciências sociais estrangeiras eram acessadas por meio de importações de livros em línguas estrangeiras, principalmente espanhol, inglês e francês. Tanto os custos dos livros quanto a habilidade de leitura em línguas estrangeiras impunham-se como barreiras de acesso aos estudantes que iniciavam seus cursos universitários. A experiência na distribuidora de Antonio Herrera e posteriormente na livraria LER foi, nesse sentido, fundamental para o estabelecimento da política editorial da Zahar de tradução de obras que servissem aos universitários, fato marcante principalmente nos primeiros anos de sua atuação (Azevedo, 2018AZEVEDO, F. C. Editar livros, sonho de livreiros: os Zahar e o livro no Brasil (1940-1970). Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2018.; Nóbrega, 2019NÓBREGA, L. Editoras e ciências sociais no Brasil: a Zahar Editores e a emergência das ciências sociais como gênero editorial (1957-1984). Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2019.).

A tradução do Manual de sociologia foi realizada por Octavio Alves Velho, pai dos antropólogos Otávio e Gilberto Velho, que viriam a ser dois dos mais importantes colaboradores da editora. Octavio Alves Velho era então general do Exército Brasileiro, havia sido professor de português na Academia de West Point, nos Estados Unidos, e diretor da biblioteca do Exército. Sua atuação como tradutor profissional iniciou-se ao verter ao português artigos da revista Seleções Reader's Digest, edição em português de uma das revistas de maior sucesso nos Estados Unidos. Alves Velho já havia feito algumas traduções para a Civilização Brasileira, e o seu contato com Jorge Zahar deu-se por intermédio de Ênio Silveira2 2 Informação obtida por meio da entrevista com Otávio Guilherme Velho, em 13 de outubro de 2017, no Rio de Janeiro. A curiosa posição de militar e tradutor próximo a editores de esquerda, como a Civilização Brasileira, é desdobrada por Otávio Guilherme Velho na entrevista para esta pesquisa. Otávio fala que seu pai teve grande circulação entre os intelectuais da sua geração, muitos deles vinculados à esquerda. É certo, entretanto, que se colocou em situação conflitiva a partir do golpe militar de 1964. A revista Seleções Reader's Digest, para a qual Otávio realizava traduções para o português, publicou o artigo especial de Clarence W. Hall, intitulado “A nação que se salvou a si mesma”. Nas páginas do artigo, que contou, segundo editorial da revista, com mais de 25 milhões de exemplares em 13 idiomas, exalta-se o caráter revolucionário da situação: “Raramente uma grande nação esteve mais perto do desastre e se recuperou do que o Brasil em seu recente triunfo sobre a subversão vermelha. […] Esta narrativa conta como um povo defendeu resolutamente a sua liberdade. Mais do que isso, constitui um claro plano de ação para cidadãos preocupados em nações ameaçadas pelo comunismo” (Hall, 1964: 95-119). O recrudescimento da repressão por parte dos militares nos anos seguintes colocou Octávio Alves Velho em uma situação delicada: lidando com a crescente perseguição que seus filhos e amigos passaram a sofrer, utilizou seu prestígio nos meios militares para intermediar conflitos e solicitar a soltura de vários dos seus conhecidos (Pires, 2017). .

De modo a corroborar a política editorial de traduções, a Zahar adotou, para algumas de suas obras, uma revisão técnica, serviço que funcionava como forma de verificação e adequação conceitual das traduções (Zahar, 2001ZAHAR, J. Jorge Zahar: editando o editor. São Paulo: EDUSP; Com-Arte, 2001. v. 5.; Pires, 2017PIRES, P. R. A marca do Z: a vida e os tempos do editor Jorge Zahar. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.; Nóbrega, 2021NÓBREGA, L. A tradução de livros de ciências sociais no Brasil: Uma análise das publicações da Zahar Editores (1957-1984). Revista Brasileira de Ciencias Sociais, v. 36, n. 107, p. 1-16, 2021. https://doi.org/10.1590/3610710/2021
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). Diversos intelectuais, como Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, César Guimarães e Otávio Guilherme Velho assinaram revisões técnicas de traduções da Zahar. Embora a remuneração não fosse elevada3 3 Entrevista com Otávio Guilherme Velho, em 13 de outubro de 2017, no Rio de Janeiro. , servia como auxílio complementar às atividades de docência e pesquisa, e tinha ainda o papel de auxiliar intelectuais que, no período da ditadura militar, haviam perdido seus cargos4 4 Entrevista com César Guimarães, em 26 de outubro de 2017, no Rio de Janeiro. .

O vínculo com tradutores e intelectuais que prestavam serviços de revisão técnica gradativamente aproximou a Zahar de autores nacionais. Consolidada a coleção Biblioteca de Ciências Sociais, o passo seguinte foi a criação da coleção Textos Básicos de Ciências Sociais, em 1966, por Otávio Guilherme Velho, Moacir Palmeira e Antonio Roberto Bertelli, então jovens estudantes, apenas iniciando suas trajetórias acadêmicas. A coleção deu certo e lançou, até 1975, 28 livros com compilações de textos dos mais importantes cientistas sociais estrangeiros e nacionais. Vários volumes foram adotados nos cursos de graduação e pós-graduação por todo o país e tiveram diversas reedições.

Otávio Guilherme Velho era ainda um jovem estudante de graduação quando foi introduzido no cotidiano da editora pelo pai Octávio Alves Velho; fez a revisão técnica da tradução de Waltensir Dutra para o livro A elite do poder (1962), de C. Wright Mills, e a tradução do livro As elites e a sociedade (1965), de Tom Bottomore.

Matriculado no curso Sociologia e Política da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), em 1961, Otávio juntou-se a seu colega de turma, o alagoano radicado no Rio de Janeiro Moacir Palmeira, filho do senador Ruy Palmeira, e a Antonio Roberto Bertelli, aluno do curso de Sociologia da Universidade de Minas Gerais, que passava uma temporada no Rio de Janeiro por sofrer perseguição na capital mineira decorrente de suas participações políticas no Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Um dos primeiros livros publicados pela coleção, Estrutura de classes e estratificação social (1966) teve a coordenação dos próprios diretores da coleção e disponibilizou ao público brasileiro traduções de textos de autores importantes, como Lukacs, Max Weber; Pitirim A. Sorokin, Georges D. Gurvitch, Kingsley Davis, Wilbert E. Moore e Rodolfo Stavenhagen. Esse foi o volume de maior sucesso, chegando à nona edição em 1981.

A publicação de O fenômeno urbano (1967), organizado por Otávio Guilherme Velho para a coleção Textos Básicos de Ciências Sociais, com textos de Georg Simmel, Robert Ezra Park, Max Weber, Louis Wirth e P. H. Chombart de Lauwe, foi um dos pontos centrais da configuração dos debates sobre questões urbanas no Brasil. Também Urbanização e subdesenvolvimento (1969), organizado por Luiz Pereira, com textos do próprio organizador, além de André Gunder Frank, Gino Germani e Jorge Graciarena, tratou do assunto partindo de uma interlocução com o tema do subdesenvolvimento. Obras como essas viriam a se somar, como se verá nos próximos tópicos, a obras avulsas de grande relevância e a coleções específicas criadas para tratar do fenômeno urbano.

A recepção da coleção Textos Básicos foi positiva tanto em termos de aceitação do público universitário quanto de vendas. Nos anos seguintes, a coleção lançou mais 23 títulos. Além de contribuir com debates fundamentais para as ciências sociais, abordando a relação entre sociedade e estado, política e desenvolvimento, a teoria das organizações sociais, arte, juventude, conhecimento, metrópoles urbanas, direito, práticas científicas, a discussão sobre dialética nas ciências sociais e a introdução ao método estruturalista então em voga, dentre outros tópicos que teriam desdobramentos diversos, a coleção deu oportunidade para que jovens intelectuais tivessem suas primeiras experiências editoriais, já que a maior parte dos organizadores dos volumes publicados na coleção Textos Básicos de Ciências Sociais era de estudantes ou jovens recém-formados nas faculdades de ciências sociais.

A publicação do livro Frentes de expansão e estrutura agrária (1972), de Otávio Guilherme Velho, publicado na coleção Biblioteca de Ciências Sociais, marcou não só o momento em que os irmãos Velho estabeleceram sua primeira contribuição como autores da casa, mas o início de uma política editorial de publicação de dissertações e teses nos recém-inaugurados programas de pós-graduação em ciências sociais. Otávio Guilherme Velho havia sido aluno da primeira turma de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, e o livro publicado pela Zahar era o resultado da sua dissertação, a primeira defendida no programa, em 1970, escrita por ele sob a orientação de Roberto Cardoso de Oliveira. Gilberto Velho, seu irmão mais novo, matriculou-se na turma do ano seguinte, em 1969, e a sua dissertação, defendida também em 1970, sob orientação de Shelton H. Davis, com o título A utopia urbana: um estudo de ideologia e urbanização, foi publicada pela Zahar em 1973, também na coleção Biblioteca de Ciências Sociais.

Dessa forma, Jorge Zahar tinha um leque amplo de jovens intelectuais com os quais contar, solicitando pareceres sobre possíveis obras a serem publicadas e recebendo sugestões de títulos. Poucos anos depois de iniciada a coleção Textos Básicos de Ciências Sociais, Antonio Bertelli se mudou para São Paulo, onde trabalhou com diversas editoras5 5 A partir da sua atuação no mercado editorial, escreveu um pequeno ensaio sobre a edição de ciências sociais no Brasil, cf. Bertelli (2011). . Moacir Palmeira conseguiu uma bolsa de estudos e, em 1966, foi para a França cursar seu doutorado na Universidade René Descartes, ficando relativamente mais afastado das atividades editoriais. Otávio Guilherme Velho foi quem se manteve por mais tempo atuante na editora, vindo a assinar sozinho como diretor os últimos volumes da coleção e sendo posteriormente acompanhado pelo irmão mais jovem, que ganharia destaque na empresa nos anos 1970.

EXPANSÃO DA PÓS-GRADUAÇÃO NO BRASIL E A FORMAÇÃO DE UMA REDE DE INTERLOCUTORES NA ZAHAR EDITORES

Os programas de pós-graduação em ciências sociais no Brasil, cujo marco de expansão foi a reforma universitária de 1968, começaram a dar seus frutos nos anos 1970 e 1980, acarretando um processo de maior especialização e diversificação de enfoques metodológicos e temáticos do que os existentes até a década de 1960. A antropologia e a ciência política passaram a estabelecer trajetórias independentes da sociologia, disciplina que havia sido hegemônica nos anos 1950 e 1960 (Peirano, 1999PEIRANO, M. Antropologia no Brasil (alteridade contextualizada). In: MICELI, S. (org.). O que ler nas ciências sociais brasileiras (1970-1995). São Paulo: Sumaré; ANPOCS, 1999. v. 2. p. 225-266.). Os novos enfoques desenvolvidos nos programas de pós-graduação em ciências sociais e o processo de abertura política foram elementos compartilhados pelas novas coleções e linhas editoriais que se estabeleceram entre os anos 1970 e 1980.

O Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS), vinculado ao Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, criado em 1968, ganhou destaque nesse processo de institucionalização das pós-graduações em ciências sociais, alçando-se a uma posição de liderança e consolidando uma nova geração de pesquisadores que, baseados no Rio de Janeiro, tiveram grande influência nacional. A nova geração de antropólogos vinculados ao programa cristalizou uma atitude intelectual menos afeita às grandes explicações teóricas e mais relacionada à pesquisa de campo do tipo etnográfica e trabalho em equipe, resultando na criação de léxicos específicos para as áreas de estudos que se desenvolviam (Corrêa, 1995CORRÊA, M. A antropologia no Brasil (1960-1980). In: MICELI, S. (org.). História das ciências sociais no Brasil. São Paulo: Sumaré; Fapesp, 1995. v. 2. p. 25-106.).

Marcadamente, em um primeiro momento, a etnologia e os estudos de camponeses e trabalhadores rurais nas frentes de expansão agrícola, e em um segundo momento, o estilo de vida e a organização política das camadas populares e médias nas áreas urbanas.

A influência do estruturalismo, os trabalhos de campo com enfoque em interações microssociais em detrimento das interpretações globais, mais comuns na antropologia praticada entre as décadas de 1930 e 1960, e a nova estrutura da carreira acadêmica foram elementos definidores dessa nova geração. Por um lado, vivia-se a expansão dos programas de pós-graduação mas, por outro, enfrentava-se um dos momentos de maior autoritarismo nos governos militares: “Acostumada historicamente a compreender a perspectiva do outro, foi nesse momento particularmente difícil, atípico, anômalo, que a disciplina teve a melhor oportunidade de demonstrar como fazê-lo” (Corrêa, 1995CORRÊA, M. A antropologia no Brasil (1960-1980). In: MICELI, S. (org.). História das ciências sociais no Brasil. São Paulo: Sumaré; Fapesp, 1995. v. 2. p. 25-106.: 106).

A efervescência nas discussões antropológicas estimulou, por um lado, a publicação de traduções que servissem aos estudantes universitários e, por outro, a publicação de obras de autores nacionais, várias delas oriundas de teses e dissertações que surgiam naquele momento. Duas coleções marcaram o catálogo da Zahar Editores nesse momento: Curso de Antropologia Moderna e Antropologia Social.

Em 1970 e 1971, a Zahar publicou seis livros organizados na coleção Curso de Antropologia Moderna: A formação do estado (1970), de Lawrence Krader; Sociedades tribais (1970), de Marshall Sahlins; Os estágios da evolução humana (1970), de C. Loring Brace; Sociedades camponesas (1970), de Eric R. Wolf; Os caçadores (1971), de Elman R. Service; e Pré-história do novo mundo (1971), de William T. Sanders e Joseph Marino. Os livros organizam uma série de assuntos nas áreas de antropologia e arqueologia voltados principalmente para estudantes universitários. Tratava-se da tradução de uma série originalmente publicada na coleção Foundations of Modern Anthropology, dirigida desde 1966 por Marshall Sahlins para a editora estadunidense Prentice-Hall. Embora o tema central ainda não fossem os estudos urbanos, a participação de intelectuais cariocas vinculados à temática já se fazia presente nessa coleção de traduções. São os casos da revisão técnica de Gilberto Velho para o livro de Eric Wolf e da tradução de Yvonne Maggie para o livro de Marshall Sahlins.

A coleção Antropologia Social, que teve a coordenação de Gilberto Velho, foi iniciada em 1974 e contou com obras clássicas e contemporâneas de reconhecidos antropólogos estrangeiros, por um lado, e com a publicação de autores nacionais, por outro, vários deles alunos e colegas de Gilberto Velho no PPGAS.

O primeiro livro publicado na coleção foi a coletânea Desvio e divergência (1974), organizado por Gilberto Velho. A obra estava diretamente vinculada ao emergente interesse pelos fenômenos urbanos. A especialização em Antropologia Urbana e Sociedades Complexas da Universidade do Texas, por Gilberto, teve bastante influência no seu percurso intelectual e na formulação da coleção Antropologia Social. Dentre as disciplinas, o curso com o antropólogo Ira Buchler foi fundamental para sua decisão de se aprofundar nos estudos de comportamentos desviantes (Velho apud Ferreira, Castro e Oliveira, 2001FERREIRA, M. M.; CASTRO, C. C. P.; OLIVEIRA, L. L. Entrevista com Gilberto Velho. Estudos Históricos, v. 2, n. 28, p. 183-210, 2001.; Velho 2010VELHO, G. Gilberto Velho (depoimento, 2009). Rio de Janeiro: CPDOC/FGV; LAU/IFCS/UFRJ; ISCTE/IUL, 2010., 2012VELHO, G. Homenagem a Gilberto Velho. Mana, v. 18, n. 1, p. 173-212, abr. 2012. https://doi.org/10.1590/S0104-93132012000100007
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)6 6 Gilberto Velho destaca o curso “Etnografia dos hospitais psiquiátricos e prisões”, oferecido pelo professor Ira Buchler, como fundamental na sua trajetória de pesquisas. Foi nessa ocasião que ele teve contato mais completo com as obras de Goffman e de Howard S. Becker, de quem viria a se tornar colaborador e amigo. Na mesma oportunidade, estreitou os contatos com os professores Anthony Leeds e Richard Adams, que havia conhecido em cursos no Museu Nacional. . Com seu retorno ao Brasil, ministrou, em 1972, como professor do PPGAS, uma disciplina sobre o tema. Os artigos finais escritos pelos alunos, sob orientação do professor e com a revisão deste, formaram a base dos textos compilados no livro Desvio e divergência, publicação inaugural da coleção Antropologia Social.

Além do artigo inicial, O estudo do comportamento desviante: a contribuição da antropologia social, escrito por Gilberto Velho como forma de agregar teórica e metodologicamente o debate, foram publicados Cria fama e deita-te na cama: um estudo de estigmatização numa instituição total, de Maria Julia Golwasser; “Alunos excepcionais”: um estudo de caso de desvio, de Dorith Schneider; Umbanda e loucura, de Zilda Kacelnik; Estigma e comportamento desviante em Copacabana, de Gilberto publicado originalmente em 1971 na Revista América Latina; e Acusação e desvio em uma minoria, de Filipina Chinelli.

Yvonne Maggie, à época casada com Gilberto Velho, publicou, no ano subsequente ao da criação da coleção, o livro Guerra de orixá: um estudo de ritual e conflito (1975). Yvonne Maggie era da mesma turma de Gilberto no curso de ciências sociais. É de 1967 a primeira contribuição dela para a editora, assinando, ainda com o sobrenome de solteira, Yvonne Maggie Costa Ribeiro, a tradução do texto de Albert Memmi, Cinco proposições para uma sociologia da literatura, para a coletânea Sociologia da Arte II (1967), organizada por Gilberto Velho como parte da coleção Textos Básicos de Ciências Sociais.

Os dois se casaram em 1968 e estabeleceram uma relação estreita com a família Zahar, tendo o jovem casal, inclusive, recebido a visita de Jorge e sua esposa Ani, nos Estados Unidos, quando cursavam a já referida especialização em antropologia urbana (Pires, 2017PIRES, P. R. A marca do Z: a vida e os tempos do editor Jorge Zahar. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.). Guerra de orixá: um estudo de ritual e conflito foi o título da dissertação de mestrado defendida por Yvonne Maggie em 1974, sob orientação de Roberto DaMatta, então coordenador do PPGAS. Gilberto levou a Jorge Zahar a proposta de publicação da dissertação como livro que, como recordaria Yvonne em entrevista posterior, a recebera com ceticismo, mas aceitou e acabou animado com o sucesso do livro, que teve nova edição apenas dois anos depois.

Além dos já citados Desvio e divergência e Guerra de orixá: um estudo de ritual e conflito, a coleção Antropologia Social publicou diversos outras obras de autores brasileiros: O palácio do samba: um estudo antropológico da escola de samba Estação Primeira de Mangueira (1975), dissertação de mestrado de Maria Julia Goldwasser, sob orientação de Francisca Isabel Keller; Arte e sociedade (1977), organizado por Gilberto Velho7 7 Na obra foram publicados os seguintes textos: “Vanguarda e Desvio”, de Gilberto Velho; “Mundos Artísticos e Tipos Sociais”, de Howard Becker; “Por que os Índios Suya Cantam para Suas Irmãs? ”, de Anthony Seeger; “Relações de Parentesco e de Propriedade nos Romances do “Ciclo da Cana” de José Lins do Rego”, de José Sérgio Leite Lopes; “Uma genealogia de Euclides da Cunha”, de Alfredo Wagner Berno de Almeida; e “Romeu e Julieta e a Origem do Estado”, de Eduardo Viveiros de Castro e Ricardo Benzaquen de Araújo. ; Carnavais, malandros e heróis (1979), de Roberto DaMatta; Individualismo e cultura (1981), de Gilberto Velho; Movimentos urbanos no Rio de Janeiro (1981), dissertação de mestrado de Carlos Nelson Ferreira dos Santos, defendida no PPGAS em 1979, sob orientação de Gilberto Velho; Para inglês ver (1982), de Peter Fry; Os homens de Deus: um estudo dos santos e das festas no catolicismo popular (1983), dissertação de mestrado de Alba Zaluar defendida no programa em 1974, sob orientação de Roberto DaMatta; e O mundo invisível: cosmologia, sistema ritual e noção de pessoa no espiritismo (1983), dissertação de mestrado defendida no PPGAS em 1982 por Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti.

Entre os estrangeiros, foram publicados livros como Elementos de organização social (1974), de Raymond Firth; Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada (1975), de Erving Goffman; Uma teoria da ação coletiva (1977), de Howard S. Becker; Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande (1978), de Evans-Pritchard; A interpretação das culturas (1978), de Clifford Geertz; História social da criança e da família (1978), de Philippe Ariès8 8 Não foi possível averiguar se este livro de Philippe Ariès fez parte desde a primeira edição da coleção Antropologia Social, embora a publicação tenha sido indicada pelo próprio Gilberto Velho (apud Ferreira, Castro e Oliveira, 2001). A menção ao livro como parte da coleção se dá em relação à sua segunda edição, de 1981, e pode ser vista em uma lista de obras da coleção Antropologia Social na orelha do livro Os homens de Deus, de Alba Zaluar, publicado em 1983. O mesmo aconteceu com Sociologia do Brasil urbano, de Anthony e Elizabeth Leeds. Publicado como parte da coleção Biblioteca de Ciências Sociais, foi incorporado posteriormente à Antropologia Social, muito possivelmente como estratégia comercial, já que trata de um tema próximo ao de outras obras da coleção. ; A sociologia do Brasil urbano (1978), de Anthony Leeds e Elizabeth Leeds; e Cultura e razão prática (1979), de Marshall Sahlins.

Ao analisar os livros de antropologia publicados pela Zahar Editores, é possível perceber o surgimento de temas e abordagens metodológicas em diálogo com os temas que vinham sendo abordados por essa nova geração de cientistas sociais vinculados aos programas de pós-graduação. É notável, nesse sentido, a centralidade que passa a ter a antropologia no catálogo da Zahar Editores. Mais do que o universo disciplinar em si, os fenômenos urbanos lançam-se à categoria de objeto privilegiado, presente nos estudos sobre drogas, carnaval, moradia, violência, religião, dentre outros.

O LEGADO DA ZAHAR EDITORES PARA A ORGANIZAÇÃO DOS ESTUDOS SOBRE FENÔMENOS URBANOS NO BRASIL

Os estudos urbanos estiveram intimamente relacionados à institucionalização do PPGAS e fizeram parte considerável do catálogo da Zahar Editores. Este tópico aborda alguns elementos centrais na institucionalização dos estudos urbanos no Rio de Janeiro de forma a compreender as publicações da Zahar Editores devotadas ao tema, com atenção especial para a publicação de alguns livros fundantes da área e a construção da coleção Debates Urbanos, publicada entre 1982 e 1984, em que foram organizadas compilações sobre temas, como o uso do solo nas grandes cidades, as políticas públicas para as áreas urbanas, violência, habitação, movimentos sociais e a condição de vida das camadas populares.

Livros como O fenômeno urbano (1967) e A utopia urbana (1973), este último fruto da dissertação de mestrado de Gilberto Velho, marcaram a vinculação do catálogo da editora aos estudos urbanos empreendidos pelos jovens estudantes de pós-graduação, o que implicava um novo enfoque metodológico e um deslocamento na forma de pensar e produzir antropologia no Brasil.

O ponto de partida da pesquisa para a dissertação de mestrado de Gilberto Velho se deu com a disciplina Antropologia Urbana, ministrada pelo antropólogo Anthony Leeds no PPGAS no segundo semestre de 1969 (Velho, 2011VELHO, G. Antropologia urbana: interdisciplinaridade e fronteiras do conhecimento. Mana, v. 17, n. 1, p. 161-185, 2011. https://doi.org/10.1590/S0104-93132011000100007
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; O’Donnell, 2013O’DONNELL, J. Caminhos de uma antropologia urbana: trajetória e projeto nos primeiros escritos de Gilberto Velho. Anuário Antropológico, v. 38, n. 2, p. 37-51, 31 dez. 2013.). Leeds era professor do Departamento de Antropologia da Universidade do Texas e havia sido convidado por Roberto Cardoso de Oliveira para uma temporada no PPGAS, com financiamento da Fundação Ford. O ponto central do curso que ele ofereceu aos alunos do mestrado foi o da questão da habitação, interesse fundamental das pesquisas que vinha desenvolvendo não só em perspectiva comparada – tratando do Brasil e de outros países da América Latina —, mas organizando reuniões com jovens voluntários do Peace Corps9 9 O Peace Corps foi um programa de assistência a países em desenvolvimento criado por John F. Kennedy, em 1961, no âmbito da Aliança para o Progresso. O programa esteve voltado inicialmente para área rurais, mas passou a enviar equipes para atuarem em favelas do Rio de Janeiro, num programa experimental sob a coordenação de Joan Marasciullo. Anthony Leeds solicitou reunião com os voluntários do Peace Corps no Rio de Janeiro, entre eles Elizabeth, que viria a ser esposa e parceira de pesquisas, acompanhando-o em suas incursões. Convidou jovens cientistas sociais e assistentes sociais interessados no tema. Fizeram parte desses encontros Luiz Antônio Machado, Lícia Valladares e Carlos Nelson dos Santos, pesquisadores que viriam a fazer parte da institucionalização dos estudos urbanos no Rio de Janeiro. Para mais informações sobre a trajetória de Anthony Leeds e sua influência na configuração dos estudos urbanos no Brasil, ver Velho (2011), Lima e Viana (2018b) e Valladares, Lacerda e Girão (2018). e outros estudantes de ciências sociais interessados em etnografias em favelas. Entre os alunos que assistiram às aulas do curso de Antropologia Urbana estavam Gilberto Velho, Yvonne Maggie, Luiz Antônio Machado e Carlos Nelson Ferreira dos Santos.

Gilberto e Yvonne, casados à época, fizeram juntos o trabalho de conclusão de curso. Escolheram o edifício Richard, então famoso edifício de número 200 da Rua Barata Ribeiro, no bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, conhecido pela vizinhança e autoridades policiais como ponto de tráfico de drogas, prostituição e barulho excessivo (O’Donnell, 2013O’DONNELL, J. Caminhos de uma antropologia urbana: trajetória e projeto nos primeiros escritos de Gilberto Velho. Anuário Antropológico, v. 38, n. 2, p. 37-51, 31 dez. 2013.; Velho e Maggie, 2013VELHO, G.; MAGGIE, Y. O Barata Ribeiro 200 com pós-escrito de Yvonne Maggie e comentários de Anthony Leeds. Anuário Antropológico, v. 38, n. 2, p. 19-36, 31 dez. 2013.).

Como relata Yvonne, o estranhamento de Gilberto partiu da própria experiência, uma vez que saiu de um amplo apartamento no bairro de Copacabana, onde morava com a família, para um conjugado no mesmo bairro, no qual passou a viver depois de casado, perguntando a si e aos vizinhos o que havia de bom naquele local: “Gilberto vivia perguntando aos vizinhos por que gostavam tanto daquele lugar. Era uma pergunta sociológica, é claro, mas, na minha percepção, revelava também a angústia de Gilberto de ter de viver naquele lugar de ‘má fama’” (Velho e Maggie, 2013VELHO, G.; MAGGIE, Y. O Barata Ribeiro 200 com pós-escrito de Yvonne Maggie e comentários de Anthony Leeds. Anuário Antropológico, v. 38, n. 2, p. 19-36, 31 dez. 2013.: 11). O edifício Estrela, nome fictício dado pelo casal para o condomínio, seria um dos objetos de análise da dissertação de mestrado de Gilberto, tendo a incursão no vizinho edifício Richard servido como iniciação no campo e exercício de distanciamento sugerido por Anthony Leeds. Como relatou Yvonne:

Aquele curso do Tony [como era carinhosamente chamado Anthony Leeds por vários de seus alunos e amigos] foi o estopim para uma antropologia urbana menos sociológica e influenciada pelos modelos de classe social. As poucas referências bibliográficas, além do trabalho do próprio Leeds, eram de sociólogos que estudaram estratificação social e hierarquia social, ou as formas socialmente construídas de pensar a posição social. Não havia naquela altura a influência da Escola de Chicago e de Howard S. Becker na obra de Gilberto e, muito menos, a influência da antropologia social inglesa, de Victor Turner e de Mary Douglas, nas minhas pesquisas (apud Velho e Maggie, 2013VELHO, G.; MAGGIE, Y. O Barata Ribeiro 200 com pós-escrito de Yvonne Maggie e comentários de Anthony Leeds. Anuário Antropológico, v. 38, n. 2, p. 19-36, 31 dez. 2013.: 12).

É de notar, seguindo a trilha da então escassa bibliografia sobre os estudos urbanos sugerida por Yvonne, que os três textos que o casal utilizou como base para a escrita do trabalho final do curso de Anthony Leeds — e que, supõe-se, devem ter sido utilizados como suporte para as aulas — foram publicados pela Zahar na coleção Textos Básicos de Ciências Sociais: Desenvolvimento econômico, urbanização e estratificação social, de Gino Germani; Urbanização e subdesenvolvimento, de Luiz Pereira; e Estratificação social e estrutura de classe, de Rodolfo Stavenhagen.

Partiu de Gilberto Velho a ideia da organização dos textos de Anthony e Elizabeth Leeds, originalmente publicados em periódicos norte-americanos ou apresentados em congressos, no livro A sociologia do Brasil urbano (1978). Foram publicados seis artigos, além da introdução inédita escrita por Anthony Leeds e o prefácio assinado por Thales de Azevedo. Publicados originalmente em inglês, os textos foram traduzidos por Maria Laura Viveiros de Castro e tiveram a revisão técnica de Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. A sociologia do Brasil urbano firmou-se como um clássico no processo de institucionalização dos estudos urbanos, e vem sendo resgatado por diversas iniciativas10 10 Destaca-se, neste sentido, a publicação da segunda edição da obra, lançada em 2015 e organizada por Elizabeth Leeds e Nísia Trindade Lima. Esta última pesquisadora e Rachel de Almeida Viana organizaram o dossiê sobre Anthony Leeds, publicado no v. 08, n. 03, de setembro–dezembro de 2018 da revista Sociologia e Antropologia do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. .

O trabalho de Gilberto Velho, posteriormente publicado no livro A utopia urbana, com algumas modificações desde a defesa da dissertação, foi um dos pioneiros nos estudos antropológicos sobre as cidades, ajudando a estabelecer não só um campo de pesquisas que se mostraria bastante rico, mas a incluir na alçada das pesquisas etnográficas a própria realidade vivida pelo pesquisador, o que Mariza Peirano (1999)PEIRANO, M. Antropologia no Brasil (alteridade contextualizada). In: MICELI, S. (org.). O que ler nas ciências sociais brasileiras (1970-1995). São Paulo: Sumaré; ANPOCS, 1999. v. 2. p. 225-266. mais tarde veio a denominar de “alteridade próxima”. Na mesma direção está o relato de Garcia Jr. (2009GARCIA JR., Afrânio. Fundamentos empíricos da razão antropológica: a criação do PPGAS e a seleção das espécies científicas. Mana, v. 15, n. 2, p. 411-447, out. 2009. https://doi.org/10.1590/S0104-93132009000200004
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: 416): “Tornar-se antropólogo, nos anos 60, era quase sinônimo de se dedicar ao estudo de um grupo particularmente desconhecido e percebido como ‘não integrado’ à sociedade nacional: os ameríndios”. Esse fato começou a modificar-se nos anos 1970, motivado sobretudo pela apreensão do fenômeno urbano como objeto de interesse antropológico.

Como afirmou Gilberto Velho (2011VELHO, G. Antropologia urbana: interdisciplinaridade e fronteiras do conhecimento. Mana, v. 17, n. 1, p. 161-185, 2011. https://doi.org/10.1590/S0104-93132011000100007
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: 169):

O fato de A utopia urbana e a coletânea Desvio e Divergência terem sido publicadas, respectivamente, em 1973 e 1974, divulgou essa vertente de ciências sociais [vinculada aos estudos urbanos] que passava a ser desenvolvida num programa de Antropologia Social.

Essas obras fizeram também de Gilberto Velho um intelectual público.

Eu comecei a falar na imprensa sobre temas como o Rio de Janeiro, que é o tema que até hoje é central para mim. É claro que o caso de Copacabana é um caso constantemente requisitado, tanto na imprensa escrita como na televisão. […] Então, aí se junta à minha atividade docente. O fato de eu ser professor da UFRJ, primeiro no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais e logo depois no Museu Nacional, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, fez com que eu fosse me tornando uma pessoa mais conhecida. Com a publicação do Utopia urbana e do Desvio e divergência, mais. E eu tive a ousadia de começar a falar sobre a questão das drogas — já naquela época, defendendo a descriminalização das drogas. Também, esse foi outro tema que aparecia. E a problemática geral do desvio, das acusações de desvio, do comportamento desviante (Velho, 2010VELHO, G. Gilberto Velho (depoimento, 2009). Rio de Janeiro: CPDOC/FGV; LAU/IFCS/UFRJ; ISCTE/IUL, 2010.: 15)13 13 Também a circulação internacional de ideias e a configuração de vínculos entre pensadores e instituições são um âmbito fundamental da atuação pública de um intelectual, em que as editoras têm grande importância. Referindo-se a seus vínculos com pesquisadores portugueses, Gilberto Velho atentou para o fato de que a parceria com pessoas daquele país foi possibilitada pela presença dos seus livros naquele território: “Houve um congresso em Lisboa, em 1994, e lá fui procurado por pessoas que tinham lido os meus livros. Eu sabia que se vendiam livros da editora Zahar em Portugal havia muito tempo, pois a Zahar foi uma editora também pioneira em termos de expansão dos livros brasileiros em Portugal, mas não tinha idéia de que os meus livros eram lidos” (Velho apud Ferreira, Castro e Oliveira, 2001). .

Se, por um lado, Gilberto desenvolveu seus estudos com foco primordial nas classes médias urbanas, Luiz Antônio Machado da Silva, outro dos discípulos de Anthony Leeds, desenvolveu sua carreira de olho nas camadas populares (Leite, Araujo e Menezes, 2021LEITE, M.; ARAUJO, M.; MENEZES, P. Luiz Antonio Machado da Silva: um intelectual da mais “fina estampa” nas ciências sociais brasileiras. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 23, e202121pt, 2021. https://doi.org/10.22296/2317-1529.rbeur.202121pt
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). Machado, ao lado de Otávio Velho, foi monitor de José Arthur Rios14 14 José Arthur Rios (1921–2017) foi um dos pioneiros das ciências sociais e dos estudos sobre favelas no Rio de Janeiro (Cf.: Brasil Jr., 2017). Ele fez parte da primeira turma do curso de ciências sociais da FNFi, embora não o tenha concluído. Depois de ter se formado em Direito, defendeu o mestrado nos EUA, em 1947. Coordenou uma pesquisa pioneira sobre favelas encomendada pelo jornal O Estado de S. Paulo, em 1960. Dirigiu a Coordenação de Serviço Social do governo de Carlos Lacerda e assumiu diversos outros postos na administração pública voltados para as políticas urbanas. na Faculdade de Sociologia e Política da PUC-RJ, e na sequência realizou trabalhos para o Brasil-Estados Unidos Movimento de Desenvolvimento e Organização de Comunidade (Bemdoc), em que circulava por favelas para selecionar aquelas que receberiam recursos (Machado da Silva apud Lima e Viana, 2018aLIMA, N. T.; VIANA, R. A. Anthony Leeds: antropologia das interações ecológicas e estudos urbanos. Entrevista com Elizabeth Leeds e Luiz Antonio Machado da Silva. Sociologia e Antropologia, v. 8, n. 3, p. 735-768, 2018a. https://doi.org/10.1590/2238-38752018v831
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). Foi nessa ocasião que travou contato pela primeira vez com Anthony Leeds. A interação se repetiria na disciplina de Antropologia Urbana no PPGAS e nas já mencionadas reuniões do Peace Corps.

Outra experiência importante foi na participação do Projeto Emprego. Embora focado nas áreas rurais, Moacir Palmeira, diretor do projeto, designou Luiz Antônio Machado e José Sérgio Leite Lopes para pesquisarem as relações de emprego nas áreas urbanas (Carvalho, 2015CARVALHO, L. C. Projeto, conhecimento e reflexividade: estudos rurais e questão agrária no Brasil dos anos 1970. 256f. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.; Machado da Silva, 2016MACHADO DA SILVA, L. A. Meio século de sociologia das classes populares urbanas. In: MACHADO DA SILVA, L. A. Fazendo a cidade: trabalho, moradia e vida local entre as camadas populares urbanas. Rio de Janeiro: Mórula, 2016. p. 15-32.), tema que havia sido objeto da dissertação de Machado defendida no PPGAS em 1971, sob orientação de Roger Walker, com o título de Mercados metropolitanos de trabalho manual.

O artigo Organização social do meio urbano, escrito por Gilberto Velho e Luiz Antônio Machado da Silva e publicado em 1976, estabeleceu algumas das bases fundantes do debate sobre os estudos urbanos que vinham se desdobrando naquele momento. Alegando querer escapar de noções aprioristicamente determinadas e da dicotomia que estabelecia uma oposição entre rural e urbano, os autores defendiam que os mesmos procedimentos que a antropologia aplicava nos estudos rurais e de povos indígenas deveriam ser aplicados nas áreas urbanas. Dessa forma, afirmam os autores:

Estaremos fazendo ciência social na cidade e não da cidade. As perguntas que fazemos diante deste objeto não são essencialmente diferentes das que têm sido feitas diante das sociedades tribais camponesas, etc. Como se organizam essas pessoas? Como subsistem? Quais são seus objetivos? Quais são os símbolos que presidem seu comportamento? Como são suas estratégias de vida? Como resolvem seus conflitos? (Velho; Machado, 1976VELHO, G.; MACHADO, L. A. Organização social do meio urbano. Anuário Antropológico, v. 1, n. 1, p. 71-82, 1976.: 71).

Lícia Valladares também participou dos momentos iniciais de institucionalização dos estudos urbanos no Rio de Janeiro. O interesse pelas questões relacionadas às cidades remonta, em termos da sua formação universitária, ao curso de Sociologia e Política da PUC, da qual fora aluna. O livro Passa-se uma casa: análise do programa de remoção de favelas no Rio de Janeiro (1978), publicado pela Zahar, baseado na tese defendida pela autora na Universidade de Toulouse, na França, em 1974, foi central nesse processo. Somam-se às contribuições mais diretamente relacionadas às pesquisas etnográficas os levantamentos bibliográficos no campo dos estudos urbanos, em que organizou o estado da arte das pesquisas tendo em vista a centralidade de temas, como pobreza urbana e mercado de trabalho (Coelho e Valladares, 1982COELHO, M. P.; VALLADARES, L. Pobreza urbana e mercado de trabalho. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, n. 14, p. 5-28, 1982.), a questão da habitação (Valladares e Figueiredo, 1987VALLADARES, L. P.; FIGUEIREDO, A. Habitação no Brasil: uma introdução à literatura recente. In: MICELI, S. O que se deve ler em ciências sociais no Brasil. São Paulo: Cortez; ANPOCS, 1987. p. 25-49.), o legado dos estudos sobre favela no pensamento social brasileiro da primeira metade do século XX (Valladares, 2000VALLADARES, L. P. Gênese da favela carioca: a produção anterior às ciências sociais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 15, n. 44, p. 5-34, 2000. https://doi.org/10.1590/S0102-69092000000300001
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) e a produção da sociologia urbana no Brasil tendo como base os dados organizados pelo UrbanData-Brasil15 15 O UrbanData-Brasil é um banco de dados sobre o Brasil urbano criado por Lícia Valladares no fim dos anos 1980 e atualmente vinculado ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). (Valladares e Freire-Medeiros, 2002VALLADARES, L. P.; FREIRE-MEDEIROS, B. Olhares sociológicos sobre o Brasil urbano: uma visão a partir do Urbandata-Brasil. In: OLIVEIRA, L. L. (org.). Cidade: história e desafios. Rio de Janeiro: FGV, 2002. p. 60-83.), dentre outros.

Um seminário que ocorreu no antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), em 1981, forneceu os textos para a coleção Debates Urbanos, publicada pela Zahar Editores, que teve a coordenação de Lícia Valladares. Foram publicados sete volumes entre 1982 e 1984, em que foram compilados vários artigos provenientes das apresentações no seminário: Solo urbano (1982) e Condições de vida das camadas populares (1984), ambos com organização de Luiz Antônio Machado da Silva; Políticas públicas para áreas urbanas (1982), com organização de Eli Diniz; Violência e cidade (1982) e Movimentos coletivos no Brasil urbano (1983), organizados por Renato Raul Boschi; Repensando a habitação no Brasil (1983), organizado por Lícia Valladares; e Qualidade de vida urbana (1984), organizado por Amaury de Souza.

Além dos organizadores das compilações, que também contribuíram com artigos, participaram da coleção autores como Antônio Octávio Cintra, Ruben George Oliven, Lúcio Kowarick, Clara Ant, Antonio Luiz Paixão, Carlos Nelson Ferreira dos Santos, Raquel Rolnik, Pedro Jacobi, José Sérgio Leite Lopes e Maria Rosilene Barbosa Alvim.

A organização temática é outro indicador dos desdobramentos dos estudos urbanos realizados no Brasil naquele momento. A questão da habitação, que está nos primórdios dos estudos urbanos, tem lugar privilegiado, sempre presente nas pautas que vinham se desdobrando havia pelo menos uma década, com questões relacionadas a políticas de remoção e de financiamento para construção de moradias, como a do Banco Nacional de Habitação (Valladares e Figueiredo, 1987VALLADARES, L. P.; FIGUEIREDO, A. Habitação no Brasil: uma introdução à literatura recente. In: MICELI, S. O que se deve ler em ciências sociais no Brasil. São Paulo: Cortez; ANPOCS, 1987. p. 25-49.). O debate sobre a ocupação do solo, bem como as vinculações que se estabelecem com o estado e o terceiro setor, encontram-se representados nos recortes feitos para pensar nas políticas públicas voltadas para as áreas urbanas. Alguns temas ganham destaque nesse momento, dentre eles os movimentos sociais urbanos, a pobreza e a violência (Valladares e Freire-Medeiros, 2002VALLADARES, L. P.; FREIRE-MEDEIROS, B. Olhares sociológicos sobre o Brasil urbano: uma visão a partir do Urbandata-Brasil. In: OLIVEIRA, L. L. (org.). Cidade: história e desafios. Rio de Janeiro: FGV, 2002. p. 60-83.).

Os movimentos sociais nas grandes cidades passavam a ser tema recorrente no momento de abertura política no Brasil, estabelecendo-se as diretrizes para o retorno da democracia. Foi nesse sentido que parte significativa das esperanças de transformação social e maior participação política foram depositadas nos movimentos sociais urbanos16 16 São reveladores, neste sentido, os movimentos organizados nas periferias de São Paulo, no período que precedeu a redemocratização no Brasil (Sader, 1988). Deve-se destacar, entretanto, que os estudos urbanos em São Paulo seguem caminhos distintos dos do Rio de Janeiro, foco deste artigo, embora respondam a configurações similares em diversos pontos. . O debate tem a ver com o processo de redemocratização e o interesse na compreensão das formas de interação e organização das classes populares e dos movimentos sociais urbanos. Foi dessa forma que “as favelas tornaram-se referência privilegiada, não mais como territórios habitacional ou economicamente problemáticos, e sim positivadas como fonte potencial de ação autônoma de base” (Machado da Silva, 2016MACHADO DA SILVA, L. A. Meio século de sociologia das classes populares urbanas. In: MACHADO DA SILVA, L. A. Fazendo a cidade: trabalho, moradia e vida local entre as camadas populares urbanas. Rio de Janeiro: Mórula, 2016. p. 15-32.: 26).

O tema da pobreza urbana vinculava-se mais especificamente à crise econômica que se instalara no período de transição democrática, com a demanda por serviços básicos encontrando limites institucionais decorrentes da diminuição de políticas públicas voltadas ao setor. Outro tópico que ganhou maior relevo nos anos 1980 foi o da violência urbana, como fica explicitado no livro organizado por Boschi.

São diversos os tópicos abordados nos livros publicados pela Zahar Editores que lidam diretamente com as questões vinculadas aos centros urbanos. A forma como isso foi realizado e as redes intelectuais construídas deixam claro que o centro gravitacional da editora orbitava em torno do PPGAS, possibilitando tanto uma atuação pública mais consistente, como se deu, por exemplo, com Gilberto Velho, como a organização dos estudos urbanos como um campo de pesquisa com dinâmicas próprias, como provam os vários livros lançados pela editora, alguns deles fruto de seminários especializados, como os da coleção Debates Urbanos, coordenada por Lícia Valladares.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo deste artigo foi analisar a construção do campo de estudos sobre os fenômenos urbanos nas ciências sociais brasileiras nos anos 1970 e 1980. Para isso serviram de material os livros publicados sobre o tema pela Zahar Editores e algumas entrevistas com intelectuais vinculados à editora. Iniciando suas atividades utilizando-se de uma política editorial de traduções, a Zahar deu cada vez mais espaço a intelectuais brasileiros. Foi pelo contato com Otávio Guilherme Velho, Gilberto Velho, Moacir Palmeira, Lícia Valladares, dentre outros, que a editora devotou parte significativa de seu catálogo à publicação de obras vinculadas aos estudos urbanos.

Os livros foram inicialmente publicados em coleções de perfil geral, como Biblioteca de Ciências Sociais e Textos Básicos de Ciências Sociais, mas ganharam destaque e identidade própria nas coleções Antropologia Social, coordenada por Gilberto Velho, e Debates Urbanos, coordenada por Lícia Valladares. O contato privilegiado com diversos intelectuais daquela geração, muitos deles vinculados ao Departamento de Antropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e aos primórdios dos estudos urbanos no país, foi decisivo para a construção de parcerias, o que ficou evidente nos processos de seleção de obras, autores e temas publicados pela Zahar Editores.

NOTAS

  • 1
    Este artigo é uma versão modificada de partes da tese “Editoras e ciências sociais no Brasil: a Zahar Editores e a emergência das ciências sociais como gênero editorial” (1957-1984), defendida em 2019 no IESP/UERJ. Sou imensamente grato a Marcella Araújo por me possibilitar traçar, em uma breve e esclarecedora conversa, as linhas gerais que vinculam o início dos estudos urbanos no Brasil à política editorial da Zahar Editores.
  • 2
    Informação obtida por meio da entrevista com Otávio Guilherme Velho, em 13 de outubro de 2017, no Rio de Janeiro. A curiosa posição de militar e tradutor próximo a editores de esquerda, como a Civilização Brasileira, é desdobrada por Otávio Guilherme Velho na entrevista para esta pesquisa. Otávio fala que seu pai teve grande circulação entre os intelectuais da sua geração, muitos deles vinculados à esquerda. É certo, entretanto, que se colocou em situação conflitiva a partir do golpe militar de 1964. A revista Seleções Reader's Digest, para a qual Otávio realizava traduções para o português, publicou o artigo especial de Clarence W. Hall, intitulado “A nação que se salvou a si mesma”. Nas páginas do artigo, que contou, segundo editorial da revista, com mais de 25 milhões de exemplares em 13 idiomas, exalta-se o caráter revolucionário da situação: “Raramente uma grande nação esteve mais perto do desastre e se recuperou do que o Brasil em seu recente triunfo sobre a subversão vermelha. […] Esta narrativa conta como um povo defendeu resolutamente a sua liberdade. Mais do que isso, constitui um claro plano de ação para cidadãos preocupados em nações ameaçadas pelo comunismo” (Hall, 1964HALL, C. W. A nação que salvou a si mesma. Seleções Reader's Digest, p. 95-119, nov. 1964.: 95-119). O recrudescimento da repressão por parte dos militares nos anos seguintes colocou Octávio Alves Velho em uma situação delicada: lidando com a crescente perseguição que seus filhos e amigos passaram a sofrer, utilizou seu prestígio nos meios militares para intermediar conflitos e solicitar a soltura de vários dos seus conhecidos (Pires, 2017PIRES, P. R. A marca do Z: a vida e os tempos do editor Jorge Zahar. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.).
  • 3
    Entrevista com Otávio Guilherme Velho, em 13 de outubro de 2017, no Rio de Janeiro.
  • 4
    Entrevista com César Guimarães, em 26 de outubro de 2017, no Rio de Janeiro.
  • 5
    A partir da sua atuação no mercado editorial, escreveu um pequeno ensaio sobre a edição de ciências sociais no Brasil, cf. Bertelli (2011)BERTELLI, A. R. Editoras e ciências humanas. São Paulo: Scortecci, 2011..
  • 6
    Gilberto Velho destaca o curso “Etnografia dos hospitais psiquiátricos e prisões”, oferecido pelo professor Ira Buchler, como fundamental na sua trajetória de pesquisas. Foi nessa ocasião que ele teve contato mais completo com as obras de Goffman e de Howard S. Becker, de quem viria a se tornar colaborador e amigo. Na mesma oportunidade, estreitou os contatos com os professores Anthony Leeds e Richard Adams, que havia conhecido em cursos no Museu Nacional.
  • 7
    Na obra foram publicados os seguintes textos: “Vanguarda e Desvio”, de Gilberto Velho; “Mundos Artísticos e Tipos Sociais”, de Howard Becker; “Por que os Índios Suya Cantam para Suas Irmãs? ”, de Anthony Seeger; “Relações de Parentesco e de Propriedade nos Romances do “Ciclo da Cana” de José Lins do Rego”, de José Sérgio Leite Lopes; “Uma genealogia de Euclides da Cunha”, de Alfredo Wagner Berno de Almeida; e “Romeu e Julieta e a Origem do Estado”, de Eduardo Viveiros de Castro e Ricardo Benzaquen de Araújo.
  • 8
    Não foi possível averiguar se este livro de Philippe Ariès fez parte desde a primeira edição da coleção Antropologia Social, embora a publicação tenha sido indicada pelo próprio Gilberto Velho (apud Ferreira, Castro e Oliveira, 2001FERREIRA, M. M.; CASTRO, C. C. P.; OLIVEIRA, L. L. Entrevista com Gilberto Velho. Estudos Históricos, v. 2, n. 28, p. 183-210, 2001.). A menção ao livro como parte da coleção se dá em relação à sua segunda edição, de 1981, e pode ser vista em uma lista de obras da coleção Antropologia Social na orelha do livro Os homens de Deus, de Alba Zaluar, publicado em 1983. O mesmo aconteceu com Sociologia do Brasil urbano, de Anthony e Elizabeth Leeds. Publicado como parte da coleção Biblioteca de Ciências Sociais, foi incorporado posteriormente à Antropologia Social, muito possivelmente como estratégia comercial, já que trata de um tema próximo ao de outras obras da coleção.
  • 9
    O Peace Corps foi um programa de assistência a países em desenvolvimento criado por John F. Kennedy, em 1961, no âmbito da Aliança para o Progresso. O programa esteve voltado inicialmente para área rurais, mas passou a enviar equipes para atuarem em favelas do Rio de Janeiro, num programa experimental sob a coordenação de Joan Marasciullo. Anthony Leeds solicitou reunião com os voluntários do Peace Corps no Rio de Janeiro, entre eles Elizabeth, que viria a ser esposa e parceira de pesquisas, acompanhando-o em suas incursões. Convidou jovens cientistas sociais e assistentes sociais interessados no tema. Fizeram parte desses encontros Luiz Antônio Machado, Lícia Valladares e Carlos Nelson dos Santos, pesquisadores que viriam a fazer parte da institucionalização dos estudos urbanos no Rio de Janeiro. Para mais informações sobre a trajetória de Anthony Leeds e sua influência na configuração dos estudos urbanos no Brasil, ver Velho (2011)VELHO, G. Antropologia urbana: interdisciplinaridade e fronteiras do conhecimento. Mana, v. 17, n. 1, p. 161-185, 2011. https://doi.org/10.1590/S0104-93132011000100007
    https://doi.org/10.1590/S0104-9313201100...
    , Lima e Viana (2018bLIMA, N. T.; VIANA, R. A. Entre latifúndios e favelas: O Brasil urbano no pensamento de Anthony Leeds. Sociologia e Antropologia, v. 8, n. 3, p. 771-805, 2018b. https://doi.org/10.1590/2238-38752018v832
    https://doi.org/10.1590/2238-38752018v83...
    ) e Valladares, Lacerda e Girão (2018)VALLADARES, L. P.; LACERDA, A.; GIRÃO, A. L. Anthony Leeds: o esquecimento e a memória. Sociologia e Antropologia, v. 8, n. 3, p. 1027-1058, 2018. https://doi.org/10.1590/2238-38752018v8311
    https://doi.org/10.1590/2238-38752018v83...
    .
  • 10
    Destaca-se, neste sentido, a publicação da segunda edição da obra, lançada em 2015 e organizada por Elizabeth Leeds e Nísia Trindade Lima. Esta última pesquisadora e Rachel de Almeida Viana organizaram o dossiê sobre Anthony Leeds, publicado no v. 08, n. 03, de setembro–dezembro de 2018 da revista Sociologia e Antropologia do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ.
  • 11
    Também a circulação internacional de ideias e a configuração de vínculos entre pensadores e instituições são um âmbito fundamental da atuação pública de um intelectual, em que as editoras têm grande importância. Referindo-se a seus vínculos com pesquisadores portugueses, Gilberto Velho atentou para o fato de que a parceria com pessoas daquele país foi possibilitada pela presença dos seus livros naquele território: “Houve um congresso em Lisboa, em 1994, e lá fui procurado por pessoas que tinham lido os meus livros. Eu sabia que se vendiam livros da editora Zahar em Portugal havia muito tempo, pois a Zahar foi uma editora também pioneira em termos de expansão dos livros brasileiros em Portugal, mas não tinha idéia de que os meus livros eram lidos” (Velho apud Ferreira, Castro e Oliveira, 2001FERREIRA, M. M.; CASTRO, C. C. P.; OLIVEIRA, L. L. Entrevista com Gilberto Velho. Estudos Históricos, v. 2, n. 28, p. 183-210, 2001., p. 209).
  • 12
    José Arthur Rios (1921–2017) foi um dos pioneiros das ciências sociais e dos estudos sobre favelas no Rio de Janeiro (Cf.: Brasil Jr., 2017BRASIL JR., A. La sociología en Río de Janeiro (1930-1970): un debate sobre Estado, democracia y desarrollo. Sociológica, v. 32, n. 90, p. 69-107, 2017.). Ele fez parte da primeira turma do curso de ciências sociais da FNFi, embora não o tenha concluído. Depois de ter se formado em Direito, defendeu o mestrado nos EUA, em 1947. Coordenou uma pesquisa pioneira sobre favelas encomendada pelo jornal O Estado de S. Paulo, em 1960. Dirigiu a Coordenação de Serviço Social do governo de Carlos Lacerda e assumiu diversos outros postos na administração pública voltados para as políticas urbanas.
  • 13
    Também a circulação internacional de ideias e a configuração de vínculos entre pensadores e instituições são um âmbito fundamental da atuação pública de um intelectual, em que as editoras têm grande importância. Referindo-se a seus vínculos com pesquisadores portugueses, Gilberto Velho atentou para o fato de que a parceria com pessoas daquele país foi possibilitada pela presença dos seus livros naquele território: “Houve um congresso em Lisboa, em 1994, e lá fui procurado por pessoas que tinham lido os meus livros. Eu sabia que se vendiam livros da editora Zahar em Portugal havia muito tempo, pois a Zahar foi uma editora também pioneira em termos de expansão dos livros brasileiros em Portugal, mas não tinha idéia de que os meus livros eram lidos” (Velho apud Ferreira, Castro e Oliveira, 2001FERREIRA, M. M.; CASTRO, C. C. P.; OLIVEIRA, L. L. Entrevista com Gilberto Velho. Estudos Históricos, v. 2, n. 28, p. 183-210, 2001.).
  • 14
    José Arthur Rios (1921–2017) foi um dos pioneiros das ciências sociais e dos estudos sobre favelas no Rio de Janeiro (Cf.: Brasil Jr., 2017BRASIL JR., A. La sociología en Río de Janeiro (1930-1970): un debate sobre Estado, democracia y desarrollo. Sociológica, v. 32, n. 90, p. 69-107, 2017.). Ele fez parte da primeira turma do curso de ciências sociais da FNFi, embora não o tenha concluído. Depois de ter se formado em Direito, defendeu o mestrado nos EUA, em 1947. Coordenou uma pesquisa pioneira sobre favelas encomendada pelo jornal O Estado de S. Paulo, em 1960. Dirigiu a Coordenação de Serviço Social do governo de Carlos Lacerda e assumiu diversos outros postos na administração pública voltados para as políticas urbanas.
  • 15
    O UrbanData-Brasil é um banco de dados sobre o Brasil urbano criado por Lícia Valladares no fim dos anos 1980 e atualmente vinculado ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
  • 16
    São reveladores, neste sentido, os movimentos organizados nas periferias de São Paulo, no período que precedeu a redemocratização no Brasil (Sader, 1988SADER, E. Quando novos personagens entram em cena: experiências e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo, 1970-1980. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.). Deve-se destacar, entretanto, que os estudos urbanos em São Paulo seguem caminhos distintos dos do Rio de Janeiro, foco deste artigo, embora respondam a configurações similares em diversos pontos.
  • Fonte de financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    31 Dez 2021
  • Aceito
    05 Abr 2022
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