RESUMO
O artigo tem como propósito apresentar os avanços recentes nas pesquisas acerca da relação entre empresas e regimes ditatoriais no século XX, com ênfase no período da ditadura empresarial-militar brasileira (1964-1988). O tema compõe uma pauta internacional de pesquisas, que teve, no Brasil, um crescimento significativo a partir de dois editais do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) da Unifesp, nos quais 13 empresas foram estudadas em sua responsabilidade por violações cometidas durante a ditadura inaugurada em 1964. Problematizamos, portanto, as mais recentes contribuições nessa agenda de pesquisa acerca da responsabilidade das empresas nas violações e nos benefícios econômicos obtidos no período analisado.
PALAVRAS-CHAVE:
Empresas; Regimes ditatoriais; Responsabilidade empresarial; História de empresas; Ditadura empresarial-militar brasileira
ABSTRACT
This article analyzes recent advances in Brazilian historiography regarding the relationship between companies and dictatorial regimes in the 20th century. The topic forms part of an international research agenda, which saw significant progress following the notice issued by Unifesp’s Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) on the topic, in which 13 companies were studied for their responsibility for violations committed during the 1964 dictatorship. We problematize the historiographical and conceptual advances regarding the responsibility of companies for violations and economic benefits in the Brazilian dictatorship.
KEYWORDS:
Companies; Dictatorial regimes; Corporate responsibility; Company history; Brazilian business-military dictatorship
RESUMEN
Este artículo analiza los avances recientes de la historiografía brasileña respecto de la relación entre empresas y regímenes dictatoriales en el siglo XX. El tema forma parte de una agenda de investigación internacional, que registró importantes avances tras el aviso emitido por el Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) de la Unifesp sobre el tema, en el que se estudió a 13 empresas por su responsabilidad en violaciones cometidas durante la dictadura de 1964. Problematizamos los avances historiográficos y conceptuales sobre la responsabilidad de las empresas por violaciones y beneficios económicos durante el período de la dictadura brasileña.
PALABRAS CLAVE:
Empresas; Regímenes dictatoriales; Responsabilidad corporativa; Historia de la empresa; Dictadura empresarial-militar brasileña
INTRODUÇÃO
Em dezembro de 2024, o Ministério Público do Trabalho acionou judicialmente a Volkswagen pelas violações cometidas em sua fazenda no Sul do Pará durante a ditadura, demandando indenizações de R$ 165 milhões (Sakamoto; Harari, 2024). A empresa era dona da Companhia Vale do Rio Cristalino, que, entre 1974 e 1986, atuou na pecuária extensiva de gado bovino voltada para exportação, contando com dezenas de milhares de reses. A companhia tem denúncias de contratação de força de trabalho escrava por meio de empreiteiros ou “gatos”, além de violações socioambientais, com devastação da floresta com incêndios, além de financiamento estatal subsidiado disponibilizado pela Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia e Banco da Amazônia (Braga; Campos, 2024).
Assim como a Volkswagen, muitas empresas têm sido processadas e investigadas acerca das suas relações com regimes ditatoriais. Neste artigo pretendemos discutir, de forma panorâmica, os avanços recentes na agenda de pesquisa sobre a relação entre empresas e regimes ditatoriais, apresentando estudos que apontam para a responsabilidade desses grupos econômicos nas violações sobre trabalhadores/as e grupos sociais afetados pelas suas atividades, bem como o benefício econômico proporcionado a essas companhias. Conforme veremos, o assunto teve desenvolvimento nos últimos anos e já é possível identificar características e padrões na interface entre empresas e Estado em períodos de governo autoritário.
Nosso texto se inscreve no campo da História econômica e da História de empresas, porém em uma perspectiva crítica. Conforme assinalam muito bem, na coletânea de textos, Goularti Filho e Saes (2021), a história de empresas, no mundo e no Brasil, possui diversas tendências e bases teóricas distintas. Nosso artigo se afasta das perspectivas de uma memória empresarial ou de um estudo laudatório, adotando uma perspectiva crítica acerca da trajetória dos grupos econômicos, relacionando-a não somente às escolhas dos empresários e dirigentes desses grupos, mas também à política econômica e interface com o aparelho de Estado.
O artigo está dividido em três partes. Inicialmente, abordamos publicações recentes acerca da questão ao redor do mundo, demarcando como se trata de uma agenda de pesquisa global. Na segunda seção, recuperamos estudos clássicos sobre os grupos econômicos na ditadura brasileira, sinalizando os estudos feitos no período e após a democratização, em particular os impactados pela Comissão Nacional da Verdade (CNV). Na terceira parte, analisamos as pesquisas desenvolvidas no âmbito dos dois editais do Centro de Arqueologia e Antropologia Forense (CAAF), da Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp), as 13 empresas foram investigadas por pesquisadores por sua responsabilidade em violações durante a ditadura. Como veremos, esses estudos trazem novos elementos sobre o assunto, apontando padrões e características dessa interface entre empresas e o regime ditatorial.
A AGENDA INTERNACIONAL DE ESTUDOS SOBRE EMPRESAS E REGIMES DITATORIAIS
O marco fundamental do início da discussão sobre a relação de grupos econômicos e regimes ditatoriais data do Tribunal de Nuremberg, em 1945. O fórum que julgou os crimes nazistas durante a II Guerra Mundial colocou no banco dos réus os empresários aliados da ditadura de Hitler. Banqueiros foram presos e donos de grandes empresas industriais, como os Krupp, os Thyssen e os Flick, sofreram acusações e seus grupos econômicos foram obrigados a realizar reparações de guerra (Black, 2001).
Desde então, o assunto se desenvolveu em pesquisas universitárias, investigações jornalísticas e ações na justiça. O caso das empresas envolvidas com o Estado nazifascista continua bastante visitado. Em 2023, foi publicado o livro do jornalista e cientista político holandês David de Jong, Bilionários nazistas: a tenebrosa história das dinastias mais ricas da Alemanha. A obra problematiza a relação de famílias empresariais alemãs com o nazismo, incluindo grandes marcas poderosas até hoje, como Volkswagen, Siemens, Basf, Allianz, BMW, Bayer, Dr. Oetker, Deutsch Bank, Mercedes-Benz, Krupp, Porsche, Bosch e Hugo Boss. O livro relata como esses grupos foram beneficiados pelo governo nazista, receberam encomendas estatais, contribuíram com o esforço de guerra e empregaram força de trabalho escrava nos campos de concentração. Foram 12 milhões de pessoas que exerceram trabalho forçado durante o conflito, atuando para esses e outros grupos econômicos. Em um trecho, Jong trata do encontro do ditador alemão com o empresário Ferdinand Porsche, o “engenheiro do Hitler”:
Assim que Porsche entrou na suíte, o chanceler nazista começou a lançar ordens para ele: o Volkswagen tinha de ser um carro de quatro lugares com um motor a diesel, refrigerado a ar, que pudesse ser convertido para propósitos militares. Hitler não tinha em mente apenas “o povo”. A verdadeira prioridade era o rearmamento (de Jong, 2023: 90)
A Volkswagen foi uma empresa fundada pelo Estado nazista em 1937, em Wolfsburg, e tinha como meta produzir um carro popular para o cidadão comum alemão, o Fusca, mas que logo foi convertida para o esforço de guerra, usando trabalho forçado. Hoje, a empresa é a maior fabricante de automóveis do mundo e ainda é controlada pela família Porsche.
Outra obra recente que aborda a relação dos empresários alemães com o nazismo é a de Éric Vuillard, A ordem do dia. O livro analisa o apoio dos industriais alemães ao governo de Hitler na anexação da Áustria e negociações diplomáticas antes da guerra. Essas empresas receberam força de trabalho forçada durante o conflito, como a metalúrgica Krupp, que tinha operários supridos pela SS para suas fábricas. A montadora BMW possuía unidades produtivas em cinco campos de concentração. A química IG Farben possuía em Auschwitz uma grande fábrica e algo similar ocorria com a Daimler, Telefunken, Schnider e Siemens (Vuillard, 2019).
Após a guerra, a proposta soviética era que a economia alemã passasse por um processo que eles chamavam de quatro D’s: democratização, desnazificação, desmilitarização e descartelização. A intenção era desarticular os grandes grupos econômicos alemães. No entanto, com a Guerra Fria, esses grupos empresariais tiveram multas e punições absolvidas e passaram a ter encomendas e incentivos dos países ocidentais, marcadamente os Estados Unidos, fazendo com que eles se tornassem grandes marcas capitalistas globais. Nos anos 1970, quando era a marca mais valiosa do mundo, a Siemens foi escolhida para fornecer equipamentos das usinas nucleares de Angra e as turbinas da hidrelétrica de Itaipu (Brandão; Campos, 2019).
Importante frisar que não eram só empresas alemãs que colaboraram com o nazismo. O jornalista Edwin Black escreveu sobre a relação da norte-americana IBM, do empresário Thomas Watson, e o III Reich, mostrando como a companhia ajudou o governo de Hitler a identificar os 600 mil judeus que viviam na Alemanha, em 1933, e atuou com as suas máquinas nos campos de concentração e na estrutura militar e industrial da Alemanha (Black, 2001). Já a fabricante de automóveis italiana Fiat, da família Agnelli, teve muitas encomendas de veículos e equipamentos pela Wehrmacht durante a guerra, em uma época próspera para a empresa de Turim. E a automotiva francesa Renault colaborou com o nazismo durante a ocupação da França, sendo estatizada após o conflito por traição nacional (Landes, 2017).
O regime nazista não foi o único governo de extrema direita dos anos 1930 e 1940 que defendeu grupos econômicos capitalistas e proporcionou um Estado ditatorial, repressivo para os trabalhadores e favorável aos empresários. O jornalista espanhol Mariano Sánchez Soler escreveu a obra Los Ricos de Franco, na qual analisa como grandes empresários espanhóis apoiaram o golpe militar contra a República, controlada por um governo progressista, ajudando Franco a comprar armas na Alemanha, Inglaterra e Itália durante a guerra civil. O ditador espanhol fazia falas públicas acessando uma nostalgia feudal, com um discurso anticapitalista, encobrindo a proteção que ele dava à burguesia espanhola:
La historia de España durante el siglo XX es también la historia de un enriquecimiento perpetrado em condiciones excepcionales. Los grandes nombres, los poderosos personajes que unieron su fortuna y su destino a la suerte del franquismo, desde el entorno familiar del general Franco y en la cima política de su régimen, supieron adaptarse al sistema democrático, mientras una nueva generación se preparaba para el relevo. El tránsito de la dictadura a la democracia consistió para ellos em que se cumpliera, con el menor desgaste posible, el axioma lampedusiano: “Si queremos que todo siga como está, es preciso que todo cambie” (Soler, 2020: 13).
O governo de Franco proporcionou um ambiente favorável aos grandes grupos econômicos desde que chegou ao poder, no final dos anos 30. Soler indica que o ditador foi subornado pelo serviço secreto britânico (MI-5) para manter a Espanha neutra na II Guerra Mundial, e aponta como essas grandes empresas fizeram a transição da ditadura para o regime democrático, associando-se a figuras políticas conservadoras, como o ex-presidente José María Aznar.
Outra região do globo que tem avanços recentes nas pesquisas e ações judiciais contra grupos econômicos associados a regimes ditatoriais foi a América Latina. Durante o século XX, os países da região passaram por seguidos governos autocráticos. Após a Revolução Cubana de 1959, uma leva de golpes de Estado levou militares e civis ao poder em diversos países da região, em especial no Cone Sul, apoiados pelos Estados Unidos e impondo regimes conservadores e anticomunistas. Muitos autores se debruçaram sobre a associação entre empresários e governos ditatoriais na América do Sul nos anos 60 e 70. O jornalista Horacio Verbitsky e o advogado Juan Pablo Bohoslavsky escreveram, em 2013, uma obra marcante nessa agenda de trabalho, a coletânea Cuentas Pendientes: los cómplices económicos de la dictadura. O livro analisa a associação de empresários com a ditadura argentina, inaugurada em 1976, e que levou ao assassinato de 30 mil pessoas na guerra sucia, que tinha a participação dos grandes empresários. Conforme salientam os autores:
La denominación “dictadura militar” va cayendo en desuso, a favor de otras más complejas y aproximadas a la realidad de lo que fue un bloque cívico, militar, empresarial y eclesiástico. Empresarios que son procesados penalmente por contribuir a desaparecer sus operarios, víctimas que demandan a los bancos que financiaron a la dictadura, reclamos económicos en el fuero laboral por detenciones en el lugar de trabajo que se convierten en desapariciones y son declarados imprescriptibles, sentencias que instruyen investigar la complicidad editorial de diarios, pedidos efectivos de procesamiento contra empresarios de medios por haber implementado campañas de manipulación de la información en connivencia con los planos represivos, procesamientos por extorsión de empresarios y usurpación de bienes, la investigación estatal sobre el caso “Papel Prensa”, la creación de una unidad especial de investigación de delitos de lesa humanidad con motivación económica en el ámbito de la Secretaría de Derechos Humanos y de una oficina de coordinación de políticas de derechos humanos, memoria, verdad y justicia dentro de la Comisión Nacional de Valores son algunas muestras de esta nueva tendencia (Verbitsky; Bohoslavsky, 2013: 12-13).
A obra traz textos que problematizam em diferentes dimensões a atuação dos empresários na ditadura. Há o caso da automotiva norte-americana Ford, que teve 21 operários detidos e torturados dentro da fábrica, em um caso que foi judicializado e teve a condenação de diretores da empresa. A Mercedes teve 16 trabalhadores desaparecidos no período da ditadura. São analisados casos de benefício econômico para grandes grupos de comunicação, além de cooperação com a repressão por parte das siderúrgicas Techint e Acindar, dentre outros.
Bohoslavsky continuou na agenda da cumplicidade empresarial com as ditaduras no Cone Sul publicando, em 2016, a coletânea El negocio del terrorismo de Estado: los cómplices económicos de la dictadura uruguaya. O trabalho analisa a ditadura inaugurada com o golpe de 1973, que impôs um regime militar que teve intensa participação empresarial. Tal como na Argentina, o governo autoritário uruguaio apostou em um modelo econômico neoliberal, que levou à desindustrialização e reprimarização, com ampliação das exportações de carne bovina. Gastos militares foram elevados de 2 para 4% do PIB e a dívida externa foi de US$ 300 milhões, em 1971, para US$ 3 bilhões, em 1985, saltando de 10 para 55% do PIB, o que serviu para justificar medidas privatizantes. Apesar de não possuir tantos dados e pesquisas como na Argentina, o livro traz uma série de elementos de benefício econômico e colaboração dos empresários com o regime ditatorial no país (Bohoslavsky, 2016).
Em 2019, Bohoslavsky completou sua trilogia sobre cumplicidade econômica com regimes ditatoriais no Cone Sul organizando, em parceria com Karinna Fernández e Sebastián Smart, a coletânea Complicidad económica con la dictadura: un país desigual a la fuerza. A obra de quase 500 páginas e 26 capítulos aborda a cooperação de empresários com a ditadura chilena, iniciada em 1973. Os textos indicam como a ditadura de Pinochet tornou o Chile um país mais desigual, injusto, autoritário, individualista e violento após 17 anos de regime de exceção, que deixou 3.216 pessoas mortas e 38.254 torturadas. A obra trata da política econômica neoliberal, assessorada por professores da Universidade de Chicago, que levou o país a cassações de direitos e privatizações, com denúncias de desvio de recursos públicos para familiares do ditador. Tal como nas outras ditaduras neoliberais, o orçamento militar e policial foi incrementado no regime, indo de 14,9 para 23,3% dos gastos públicos, entre 1969 e 1982, garantindo a ordem social concentradora de renda proporcionada pelo regime. Relações entre as câmaras empresariais e o regime são analisadas, bem como casos específicos, para além da responsabilização de grupos financeiros que financiaram o ilegítimo e truculento governo Pinochet, com o relatório do jurista Antonio Cassese (Bohoslavsky; Fernández; Smart, 2019).
Apesar dos avanços dessas últimas obras, a Argentina possui uma agenda de memória, verdade e justiça mais avançada que os outros países da região, além de um conjunto de pesquisas e ações na justiça contra grupos econômicos associados à ditadura. A Secretaria de Direitos Humanos chegou a desenvolver, com o auxílio de pesquisadores(as), um extenso relatório sobre a participação de empresas nas violações aos direitos humanos no regime (Basualdo et al., 2016). Além disso, no país vizinho as elaborações teóricas e conceituais estão mais avançadas, com o desenvolvimento de novas categorias analíticas para compreender essa relação entre empresas e ditadura, conforme sinalizou Victoria Basualdo:
Hablar de responsabilidad no implica igualar los niveles, no implica desconocer de ningún modo, el papel de las fuerzas armadas, ni implica uniformar el tipo de acción de todas las empresas analizadas. Hay grados, niveles y tipos de responsabilidad. Pero nos parece muy importante hablar de responsabilidad porque la cumplidad siempre alude a un acompañamiento secundario y parte, nos da un punto de partida, nos da un marco que parece descontar que las empresas nunca lideraron estos procesos. Y lo que vemos, en cambio, es que esto no es así, que hay casos muy concretos que les estoy describiendo donde las empresas no solo acompañaron sino que fueron co-responsables de los procesos represivos - y esto es algo que hay que tener en cuenta - no porque esto sea el caso en todos los casos que uno pueda analizar, sino porque existe en la realidad y nos da un parámetro conceptual diferente a la hora de pensar este fenómeno (Basualdo, 2020).
A autora propõe o conceito de responsabilidade empresarial para caracterizar o processo histórico de envolvimento dos agentes patronais com os regimes ditatoriais na região. A categoria parece mais refinada que a de cumplicidade ou cooperação, na medida em que supera uma concepção de exterioridade entre Estado e empresas que aqueles termos sugeriam. Assim, na Argentina não há só um avanço nas pesquisas e na judicialização, mas também na reflexão teórica e precisão conceitual para entender o fenômeno.
Vimos nesta seção do artigo como tem ocorrido um avanço da agenda internacional sobre grupos empresariais e regimes ditatoriais. Essas pesquisas têm conformado uma pauta de estudos em plena ascensão na última década. Vejamos agora como se deu, historicamente, no Brasil a temática de investigações sobre empresas/empresários e ditadura.
EMPRESAS E DITADURA NO BRASIL - A CONSTITUIÇÃO DE UM CAMPO DE ESTUDOS
A historiografia brasileira possui uma larga tradição de estudos sobre a atuação empresarial na cena pública do país, em especial durante a ditadura (Campos, 2020). Autores como Ary Minella, Maria Antonieta Leopoldi, Renato Raul Boschi, Eli Diniz, Luciano Martins, Fernando Henrique Cardoso já se debruçaram sobre o tema. No que concerne à interface entre empresários e o golpe de 1964, cabe destaque para a obra de Dreifuss (1981). A referida obra, assim como os textos dos autores supracitados, possui uma característica que precisa ser demarcada, conforme essa passagem do livro:
Entre as observações a serem feitas há duas que acarretam consequências para a historiografia recente do Brasil. A primeira refere-se ao envolvimento político dos empresários e à qualidade de sua organização e ação, que foram ambos, incontestavelmente, muito notáveis. A segunda se concentra na tomada pelos empresários e tecno-empresários do Ipes, da administração do Estado e do aparelho de formulação das diretrizes (Dreifuss, 1981: 481 - grifo nosso).
A passagem do livro de Dreifuss indica a ênfase do trabalho e da corrente historiográfica. São estudos que problematizam os empresários e sua atuação política, e não as empresas e suas relações com os trabalhadores e o Estado. Essas pesquisas desenvolveram forte reflexão e análise sobre o protagonismo dos empresários no Estado e política brasileira durante a ditadura. No entanto, a questão colocada não abrange exatamente as empresas, mas sim seus dirigentes. Durante a ditadura, algumas exceções são os trabalhos de Moniz Bandeira (1975) e Kurt Mirow (1979), que problematizaram o poder dos grandes grupos econômicos e sua relação com o Estado, sem enfatizar as violações sobre trabalhadores e grupos sociais afetados.
Durante a ditadura, a análise da conjuntura e o papel dos empresários ficou a cargo sobretudo de cientistas sociais, jornalistas, cientistas políticos e sociólogos. Na medida em que o regime foi substituído pela Nova República e foi ficando para trás, historiadores passaram a estudar mais o período e a atuação das empresas e empresários. Um marco nesse processo foi a Comissão Nacional da Verdade, entre os anos de 2011 e 2014, que chamou a atenção para o tema e teve muitos frutos acadêmicos, como as pesquisas de pós-graduação. Um desdobramento direto da CNV, do Grupo de Trabalho 13 - dedicado a estudar as violações contra os trabalhadores, coordenado pela doutora Rosa Cardoso -, foi o levantamento de documentos e depoimentos que evidenciavam o envolvimento da Volkswagen com o aparato repressivo na ditadura. A empresa foi acionada pelo Ministério Público e acabou firmando um termo de ajustamento de conduta pelas violações cometidas contra os seus operários no período (Santos, 2020). Marcelo Almeida de Carvalho Silva se debruçou sobre o tema:
Durante a ditadura a Volkswagen do Brasil cometeu diversos tipos de violência contra trabalhadores e que foram normalizadas por meio de práticas adotadas pela empresa. Os resultados da pesquisa me permitem afirmar que, de acordo com a tipologia apresentada, a Volkswagen do Brasil praticava as violências física, psicológica, política, econômica e simbólica (Silva, 2022: 299).
A pesquisa de Silva, realizada no programa de pós-graduação em Administração de empresas da PUC-Rio, analisou a atuação da automotiva alemã na ditadura brasileira. Ele colheu dados que comprovam que a empresa fornecia fichas e relatórios sobre as atividades políticas e sindicais de seus operários para o Departamento de Ordem Política e Social (Deops), polícia política que atuava na ditadura. De acordo com o depoimento de alguns ex-trabalhadores, como Lúcio Belentani, alguns funcionários da Volks foram detidos ilegalmente e torturados dentro da fábrica da empresa em São Bernardo do Campo (Cúmplices?, 2017).
Em paralelo ao caso Volks e os trabalhos da CNV, diversas pesquisas sobre empresas/empresários e a ditadura foram desenvolvidas. Trabalhos como os de Martina Spohr, Rafael Moraes, Pedro Campos, Elaine Bortone, Ana Carolina Reginatto, Rafael Brandão, Jorge José de Melo, João Braga Arêas, Sonia Regina de Mendonça, Leonilde Medeiros se debruçaram sobre questões como a atuação do empresariado internacional no Brasil, as agremiações de empresários como a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), as empreiteiras, as empresas da indústria química, as mineradoras, as multinacionais alemãs no projeto nuclear brasileiro, a Operação Bandeirantes, os grandes grupos de comunicação como a Globo, o patronato rural, dentre outros assuntos e recortes. Esses estudos ampliaram o conhecimento sobre as atividades empresariais na ditadura brasileira. Boa parte desses estudos foi reunida no livro organizado por Lemos, Brandão e Campos de 2020. Diante do avanço dos estudos e problematizando o próprio caráter do regime, os autores na Introdução da obra propõem uma nova definição conceitual para o regime:
[…] é possível perceber como Dreifuss dota o golpe de 1964 de perfil de classe. Na nossa concepção, também a ditadura se marcou por esse perfil empresarial-militar típico da tomada do poder em 1964. Dreifuss desenvolveu uma análise bastante abrangente acerca do empenho do empresariado no golpe. No entanto, não há um estudo tão sistemático como o seu para os mais de 20 anos de regime ditatorial no país. Com o presente livro, estamos tentando ajudar a construir um estudo nessa direção, dessa vez em formato coletivo (Lemos; Brandão; Campos, 2020: 19)
Os autores defendem nomear o regime iniciado com o golpe de 1964 de ditadura empresarial-militar, tendo em vista a significativa ação dos donos de empresa na derrubada do regime democrático, a flagrante participação desses agentes em postos relevantes no aparelho de Estado ao longo do regime, além de serem esses grupos beneficiados pelas políticas e medidas adotadas pela ditadura. O regime forjou, como indica Dreifuss, uma ordem empresarial no país, criando um ambiente de negócios favorável à atuação dos grandes grupos econômicos, garantindo força de trabalho domesticada e com baixo custo, além de incentivos como subsídios, financiamentos e acesso ao fundo público. Esse aprimoramento conceitual para caracterizar a ditadura já havia sido sinalizado em trabalhos prévios, mas de certa forma foi consolidado com o livro, tendo em vista que o mesmo reuniu dezenas de pesquisas sobre o tema, certificando o notável papel dos empresários no regime inaugurado em 1964.
Os conceitos de ditadura empresarial-militar e responsabilidade empresarial, no nosso entender, parecem convergir em termos teóricos e analíticos, na medida em que incorporam as empresas e o empresariado no interior do Estado e do processo decisório de então. Ao contrário das noções de ditadura militar e cumplicidade empresarial, que indicam esses agentes como colaboradores ou apoiadores do regime, as noções de responsabilidade empresarial e ditadura empresarial-militar situam as empresas e os empresários no centro do palco das ações da ditadura. Vejamos como a agenda sobre o tema evoluiu na presente década, com o edital CAAF.
OS EDITAIS DO CAAF E OS AVANÇOS DAS PESQUISAS SOBRE EMPRESAS E DITADURA NO BRASIL
No final de 2020, a Volkswagen (VW) do Brasil firmou um acordo com o Ministério Público comprometendo-se a seguir um termo de ajustamento de conduta em razão da sua participação na repressão a operários durante a ditadura. A empresa se comprometeu a pagar R$ 36,3 milhões, que reparariam as perdas dos trabalhadores, além de financiar projetos associados à pauta de memória, verdade e justiça. Apesar do avanço que o acordo representou, militantes sinalizaram o limite do TAC, que não previu um centro de memórias sobre as vítimas das empresas durante a ditadura (Cardoso et al., 2020). Dentre as ações, a VW disponibilizou R$ 4,5 milhões ao CAAF/Unifesp para financiar um edital que selecionaria equipes que investigariam outras empresas que tiveram responsabilidade por violações na ditadura. O MP pré-selecionou nove empresas, com base em indícios e apontamentos de pesquisadores e militantes e uma era livre para a indicação de projetos. As dez empresas pesquisadas previamente foram: Petrobrás, Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), Itaipu Binacional, Companhia Docas de Santos, Folha de S. Paulo, Cobrasma, Fiat, Josapar, Paranapanema, além da Aracruz, empresa que teve projeto aplicado e que não estava previamente arrolada. Posteriormente, foi aberto outro edital, a partir do TAC da CPFL Energia (Companhia Paulista de Força e Luz), para o estudo das violações da Embraer, Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira e Mannesmann. Entre 2021 e 2023, essas 13 empresas foram estudadas em sua responsabilidade na violação de direitos e foram averiguadas características e padrões na associação desses grupos econômicos com o regime, como veremos a seguir.
A Petrobrás era a maior empresa brasileira quando ocorreu o golpe de 1964 e foi pesquisada em sua responsabilidade sobre violações por uma equipe liderada por Luci Praun, e composta por Alex Ivo, Carlos Freitas, Julio Pereira de Carvalho e Claudia Costa. De acordo com o estudo desenvolvido, a empresa teve um sistemático processo de perseguição interna logo após o golpe, com demissão de funcionários e montagem de uma estrutura de vigilância e controle. A empresa cresceu durante a ditadura e sofreu intensa militarização, sendo presidida, dentre outros, pelo general Ernesto Geisel. A companhia também teve projetos com impactos socioambientais e violações sobre comunidades tradicionais em seus locais de atuação, além de subnotificação de acidentes. Indicam os autores, em livro lançado como fruto do projeto:
A Petrobras, por meio de seu corpo de diretores, participou ativamente da repressão dirigida aos petroleiros desde 1º de abril de 1964. A prisão de grupo expressivo de trabalhadores, os casos de tortura no interior da empresa, a exemplo da […] sala na Fabor, em Duque de Caxias, e do Alojamento 200, na RLAM [Refinaria Landulpho Alves], assim como da corveta utilizada como navio-prisão, que transportou para Salvador petroleiros detidos, são apenas situações exemplares de um processo de colaboração e cumplicidade que se prolongou ao longo de 21 anos de governos militares, mantendo suas repercussões nos anos seguintes. Para tal, a construção de uma estrutura interna, com funcionamento regular, capilaridade nos órgãos de repressão e entrosamento com outras empresas, foi fundamental (Praun; Ivo, 2024: 95).
Como se vê, uma estrutura foi montada dentro da empresa e o processo de violência sobre os funcionários é semelhante ao ocorrido na Volkswagen, com detenção, inclusive dentro das unidades produtivas, tortura e demissão de trabalhadores.
A Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) foi outra empresa estudada no edital. Fundada em 1941, em meio aos acordos para o apoio brasileiro ao esforço de guerra das nações antifascistas, a usina situada em Volta Redonda foi investigada por uma equipe coordenada por Alejandra Estevez, que verificou a ação do grupo econômico estatal em favor do golpe, “garantindo que a ação militar fosse bem-sucedida no Sul fluminense” (CAAF, 2023: 8). Às vésperas da derrubada do governo Jango, a empresa montou um “plano de segurança”, prevendo ações de contenção aos trabalhadores contrários ao golpe. Houve um piquete operário nas portas do complexo siderúrgico que foi reprimido duramente pelos militares do 1º Batalhão de Infantaria Blindada (I BIB), tradicional local de detenção e tortura da região (Estevez; Almeida, 2020). A mobilização interna dos funcionários também foi desarticulada por militares e diretores da companhia, com o corte dos telefones e rádios dos trabalhadores. O sindicato sofreu intervenção e operários contrários ao golpe “foram desligados da empresa e dezenas foram presos nos meses subsequentes, com impactos nas relações familiares e na vizinhança.” (CAAF, 2023: 13). Durante a ditadura, a CSN montou um sistema de vigilância e controle e tomou parte na prisão e tortura de trabalhadores. Em 1988, militares sufocaram uma greve operária e mataram três trabalhadores.
A terceira empresa estatal estudada no edital CAAF foi a Itaipu Binacional, empresa metade paraguaia e metade brasileira, criada com o tratado de 1973 para a construção da hidrelétrica no rio Paraná, na divisa dos dois países, a maior usina desse tipo em todo mundo no período. A empresa possuía uma Assessoria Especial de Segurança e Informação (Aesi), com estrutura de vigilância e controle sobre funcionários, operários da obra e grupos sociais afetados pelo projeto. A construção ocorreu entre meados dos anos 70 e meados dos 80, contabilizando mais de 40 mil operários envolvidos, com muitos acidentes laborais que levaram à morte de 106 trabalhadores (Borges, 2023). Além das demissões por motivação política e sindical, a empresa esteve envolvida com detenções e torturas, além de colaborar com “listas sujas” de trabalhadores combativos. A obra expulsou camponeses, posseiros, pequenos proprietários e grupos indígenas de suas terras, além de proporcionar ganhos para empreiteiras e companhias transnacionais de montagem eletromecânica, que forneceram equipamentos para a usina, com diversas acusações de corrupção (Campos; Brandão, 2023).
A Companhia Docas de Santos foi fundada em 1886, com uma concessão de 100 anos para a exploração do porto no litoral paulista pertencente à família Guinle, um dos troncos mais ricos e poderosos do empresariado brasileiro. Cândido Guinle de Paula Machado, presidente da Docas, foi colaborador do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), organismo empresarial-militar que ajudou a articular o golpe de 1964. A pesquisa coordenada por Vera Lucia Vieira mostrou que, logo após o golpe, o navio-prisão Raul Soares atracou no porto e recebeu trabalhadores da empresa, submetidos a detenção ilegal, tortura e maus tratos (CAAF, 2023). Pesquisa de Adriana dos Santos e Antonio Fernandes Neto (2020) já havia assinalado os benefícios econômicos da ditadura ao grupo, bem como o sistema de controle e repressão do Departamento de Vigilância Interna, que atuava em parceria com as forças policiais e militares.
A Folha de S. Paulo foi a empresa de comunicação estudada no edital CAAF, em investigação de equipe liderada por Ana Paula Goulart da Silva. O grupo se expandiu na ditadura, após ter apoiado o golpe com editoriais favoráveis à derrubada do governo Jango. É do veículo a expressão “ditabranda”, sugerindo que o regime militar brasileiro foi menos violento que os seus congêneres vizinhos no Cone Sul. A empresa manteve agentes da repressão, militares e policiais em seus quadros funcionais. A Folha violou direitos trabalhistas de jornalistas, demitindo alguns por “abandono de emprego” enquanto estavam presos pelo regime. A companhia cedeu veículos à Operação Bandeirante, para transporte de prisioneiros políticos do regime, conforme havia mostrado pesquisa de Kushnir (2004). Assim como o grupo da Petrobras, a equipe responsável pela pesquisa já publicou uma obra com os resultados da investigação realizada:
A obra descortina a participação de empresas integrantes do Grupo Folha - Litográfica Ypiranga, TV Excelsior, Fundação Cásper Líbero, TV Gazeta e os jornais Última Hora, Notícias Populares, Agência Folhas, Cidade de Santos, Folha da Tarde e Folha de S. Paulo - no golpe e na ditadura empresarial-militar que vigorou no Brasil de 1964 a 1985. A pesquisa revela que a participação do Grupo Folha ocorreu por diversas formas, desde a legitimação do regime e o apoio à política repressiva por meio de coberturas jornalísticas direcionadas até o empréstimo de veículos e a contratação de integrantes das Forças Armadas e policiais militares aos quadros das empresas, para monitoramento, vigilância e repressão aos trabalhadores (Ribeiro et al., 2024: 5).
A Companhia Brasileira de Materiais Ferroviários (Cobrasma) foi outra empresa pesquisada, com equipe coordenada por Murilo Leal. A empresa pertencia à família de Luiz Eulálio Bueno Vidigal, com forte inserção na Fiesp, que teve relação estreita com o regime. A companhia foi montada em Osasco nos anos 40, com apoio norte-americano e historicamente teve encomendas estatais e incentivos fiscais, além de financiamento público com juros favoráveis. A Cobrasma montou carros blindados para órgãos de repressão e funcionários/diretores da empresa contribuíram com a repressão, como o caso do médico Harry Shibata, diretor do Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo. A empresa elaborava “listas sujas” e, coligindo informações sobre seus trabalhadores, contribuiu para caracterizar “a greve de Osasco de 1968 como uma atividade política subversiva, abrindo espaço para a prisão massiva e tortura de trabalhadores” (CAAF, 2023: 16). Quem também estudou a trajetória da empresa foi Roxo (2024).
A Fábrica Italiana de Automóveis de Turim (Fiat), empresa automotiva italiana, que, como vimos, foi beneficiada pelas encomendas militares do Eixo durante a Segunda Guerra Mundial, também foi investigada no edital CAAF. A montadora inaugurou a sua fábrica em Betim, em 1976, com significativos incentivos fiscais do governo federal e de Minas. Com um modus operandi semelhante ao da Volkswagen, a empresa estruturou um sistema de vigilância e controle, mantendo comunicação direta com o aparato repressivo. Ela teve infiltrados na planta, como o coronel da reserva Joffre Klein, contratado para comandar o aparato de segurança e informação que tinha 140 agentes. Esses infiltrados produziam relatórios e trabalhadores chegaram a ser detidos ilegalmente dentro da fábrica. Em 1979, durante uma greve duramente reprimida, o metalúrgico Guido Leão dos Santos foi morto ao ser atropelado tentando escapar de cerco policial próximo à planta industrial (CAAF, 2023). Jornalistas do The Intercept fizeram previamente um levantamento de documentos e informações sobre o sistema da Fiat de monitoramento dos operários durante as greves do final dos anos 70 (Cesar et al., 2019).
A Josapar era uma empresa gaúcha estudada por equipe liderada por Alessandra Gasparotto, que centrou suas pesquisas no Sul do Pará, onde a empresa se associou ao banco Denasa para explorar um projeto agropecuário. O local era ocupado originalmente por camponeses, posseiros, indígenas e garimpeiros. A chegada da empresa levou a conflitos fundiários e a Josapar formou uma segurança privada com pistoleiros que passaram a fazer ameaças, invadir casas, destruir plantações, além de perseguir, torturar e matar lideranças locais. De acordo com a pesquisa, a milícia privada “praticou violência sistemática contra a população camponesa, às vezes com o apoio de agentes do Estado.” (CAAF, 2023: 17). Famílias foram expulsas da região, fugindo da grilagem praticada pela empresa, que era associada a militares e políticos locais. A “partir de 1984 houve uma atuação mais ostensiva da Polícia Militar do Pará, às vezes com participação do Dops, em parceria com pistoleiros.” (Martins, 2023).
A Paranapanema era uma empreiteira que participou da construção de rodovias na região Norte, como a Transamazônica, e atuando nesse local, diversificou suas atividades para a mineração. Acionistas tinham cargos estatais e militares eram empregados na companhia. No contato com povos indígenas, ela participou do esbulho de suas terras e disseminou álcool e drogas nessas comunidades. Na beira da BR-174, que liga Manaus à Boa Vista e à Venezuela, a Paranapanema estabeleceu minas de cassiterita em território da etnia Waimiri-Atroari, entrando em conflito com os indígenas. A construtora contratou a empresa de segurança privada Sacopã, que acabou responsável pelo extermínio da população indígena na região (CAAF, 2023). O caso também foi estudo em livro de Adriana dos Santos e Antonio Fernandes Neto (2016).
A última empresa pesquisada entre as dez inicialmente investigadas, sem ser pré-definida pelo MP, foi a Aracruz Celulose, em equipe coordenada por Joana Ferraz. A papeleira cresceu com incentivos estatais, avançando suas plantações de eucalipto sobre terras indígenas e quilombolas no Norte do Espírito Santo nos anos 70. Com apoio da Funai, indígenas foram deslocados de suas terras para serem confinados na fazenda Guarani, que atuou como presídio indígena no período, substituindo o reformatório Krenak. Além da expropriação desses grupos sociais, a equipe identificou violação dos direitos laborais e condições análogas à escravidão pelos funcionários da empresa. Depoimentos de trabalhadores apontam para condições laborais insalubres e ameaças a quem tentasse organizar greve (CAAF, 2023).
Além dessas empresas, o CAAF posteriormente abriu outro edital selecionando pesquisadores para investigar as violações cometidas pela Embraer, Mannesman e Belgo-Mineira. A estatal brasileira de aviação estabelecida em São José dos Campos colaborava ativamente com o aparato repressivo e tinha um rígido monitoramento sobre as atividades dos seus operários, como pesquisa de Richard Martins (2022) havia demonstrado. As siderúrgicas mineiras também possuíam um sistema de vigilância sobre seus operários, com documentos atestando a colaboração com o aparato repressivo no Arquivo Público Mineiro (APM), bem como obtiveram vários benefícios econômicos.
Conforme vimos nesta seção do artigo, havia padrões e características comuns na atuação das empresas na violação de direitos durante a ditadura. Tudo aponta que essas práticas não eram restritas a esses grupos econômicos. O relatório da CNV menciona a atuação de empresas como Ford, General Motors, Camargo Corrêa, Bradesco, Ultragás, General Electric, Mercedes-Benz, Nestlé, Siemens e Light como financiadoras da Oban, por exemplo. A partir do que foi visto, podemos desenvolver algumas conclusões.
CONCLUSÃO
O presente artigo se inscreve em uma tradição crítica da história de empresas. Vimos na primeira parte que há, hoje, uma agenda na historiografia internacional sobre as relações entre empresas e regimes ditatoriais. Vários estudos foram feitos sobre o nazismo e as ditaduras latino-americanas. Essas pesquisas evoluíram para o conceito de responsabilidade empresarial para abordar essa relação.
Na historiografia brasileira, vimos que o assunto é estudado com o enfoque sobre os empresários, com trabalhos desde a época da ditadura. Com a CNV o tema tem sido crescentemente estudado por historiadores e com foco nas empresas. As pesquisas dessa pauta de estudos se desenvolveram para o conceito de ditadura empresarial-militar para caracterizar o regime, tendo em vista a relação entre os governos forjados no pós-1964 e o empresariado.
Por fim, as pesquisas desenvolvidas a partir do edital CAAF da Unifesp identificaram padrões e características na atuação desses grupos econômicos no regime. Essas grandes empresas atuaram em franca colaboração com a repressão, monitorando e vigiando as atividades sindicais e políticas dos seus funcionários, e disponibilizaram suas dependências para a atuação do aparato repressivo, além de desenvolver “listas sujas” e atuar de forma truculenta sobre grupos sociais atingidos por suas atividades.
Nesse sentido, podemos concluir que essas pesquisas comprovam a tese da não-descontinuidade entre grandes grupos econômicos e Estado/aparato repressivo durante a ditadura (Silva; Campos; Costa, 2022). Parafraseando Gramsci (2000), a divisão entre grandes empresas e Estado no período pode ser feita metodologicamente, mas não era orgânica. A ditadura era do grande capital (Ianni, 1981) e servia a ele. O regime proporcionava vigilância, controle e arrocho salarial sobre os trabalhadores, poucos direitos, inclusive de segurança no ambiente laboral, perseguindo, detendo, torturando e eliminando os “elementos subversivos”. O Estado ainda fornecia o fundo público com financiamento facilitado, isenções e encomendas às grandes empresas. Refletindo a partir do primado do Estado integral, os grandes grupos econômicos constituíam a própria ditadura e faziam do Brasil um paraíso para a acumulação de capital em larga escala. Levando isso em consideração, faz sentido que as medidas reparatórias das violações cometidas na ditadura sejam cobradas não só do Estado, mas também das próprias empresas que compunham, no final das contas, a própria ditadura.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
22 Ago 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
30 Dez 2024 -
Aceito
19 Maio 2025
