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ARQUIVOS PESSOAIS: DEBATES CONTEMPORÂNEOS

Personal archives: contemporary debates

Archivos personales: debates contemporáneos

Este número da revista Estudos Históricos visa reavivar o debate acerca dos arquivos pessoais enquanto objeto de reflexão. Em 2023, a edição 21 de nossa revista, “Arquivos Pessoais”, completa 25 anos.

Em 1998, Heloísa Liberalli Belloto nos dava o panorama dos estudos sobre o tema em comentário sobre o Seminário de Arquivos Pessoais realizado no mesmo ano:

Interdisciplinares por excelência, dando motivos a infinitas abordagens e olhares, os arquivos pessoais não tinham merecido, até duas ou três décadas atrás, a devida atenção no que diz respeito à sua existência, rastreamento, organização e divulgação, nem tinham sido objeto de pesquisa como poderiam e deveriam ser. Hoje a situação é bem outra. Com os arquivos pessoais inspirando e documentando trabalhos acadêmicos e de ficção (literatura e cinema), dando origem a exposições e motivando a publicação de instrumentos de pesquisa, assim como a realização de um seminário do porte deste, estão demonstradas a dinamização e o crescimento dos recolhimentos, da organização e da disponibi¬lização dos documentos de origem privada em entidades especializadas públicas ou particulares. (BELLOTO, 1998BELLOTO, Heloísa Liberalli. Arquivos Pessoais em Face da Teoria Arquivística Tradicional: Debate com Terry Cook. Revista Estudos Históricos, v. 11, n. 21, p. 201-207, 1998., p. 202)

Vista como uma das principais referências de coletâneas de texto sobre a temática, foi escrita no período em que os estudos sobre arquivos pessoais estavam se definindo como campo. Ao longo dos últimos anos, a dinâmica da preservação, da gestão e da própria composição desse tipo de arquivo mudou substancialmente, em especial com o advento do digital e das reflexões provenientes de estudos feministas e pós-coloniais. A ampliação do escopo de pesquisa a partir desse objeto possibilitou o aprofundamento da representação memorial por meio dos acervos. A chegada de novas vozes de diferentes setores da sociedade nos abriu os ouvidos para permitir a escuta sobre a vontade de guardar de maneira mais democrática e inclusiva.

Desde a busca pela preservação documental via digitalização à composição dos arquivos pessoais por documentos nato-digitais, observamos enormes mudanças nos processos de guarda, recebimento, gestão e preservação de documentos pessoais. Novos procedimentos foram adotados por instituições de guarda para articular a vontade de guardar e a dimensão biográfica de acervos produzidos por pessoas físicas, características inerentes a esse tipo de arquivo, e esses espaços sofreram o impacto do recebimento cada vez maior de documentos nato-digitais acumulados por titulares e custodiadores de acervo.

Em paralelo, temos visto a ampliação do olhar para os acumuladores de documentos pessoais em suas dimensões biográfica e temática. Alguns temas passam a somar diferentes abordagens ao debate sobre o digital, potencializando os caminhos de construção da memória com ênfase nas escolhas que motivam a acumulação de registros sobre trajetórias pessoais dos mais diversos setores sociais. Observamos, também, o impacto dos estudos feministas e pós-coloniais na pesquisa e na prática dos arquivos, que passaram a compor seus acervos históricos a partir das perspectivas de gênero, étnico-racial e regional. Merecem destaque as iniciativas que revisitam os arquivos para mobilizar debates sobre literatura, produção artística e audiovisual. Grande parte desses temas está neste novo número, em que comemoramos o avanço das reflexões e a consolidação do campo de pesquisa fundamentado em boa parte por nossa edição de 1998.

Esses debates tiveram lugar na segunda edição do Seminário Internacional de Arquivos Pessoais: debates contemporâneos do CPDOC, realizado em 2022, e se unem à edição deste número da Estudos Históricos nos artigos aqui dispostos.

O artigo de Alyne dos Santos Gonçalves, “Arquivos pessoais de cientistas e conservacionistas: a experiência do Instituto Nacional da Mata Atlântica (Inma)” se encaixa nessa perspectiva da ampliação de temas nos estudos sobre o objeto nos últimos anos. Alyne trata de quatro arquivos pessoais de cientistas depositados no Inma, pioneiros na conservação da Mata Atlântica. O enfoque de seu artigo é entender como suas memórias podem reforçar identidades sociais conectadas a discursos ambientalmente responsáveis por meio do uso de seus arquivos pessoais de maneira educativa, ampliando o público e o acesso a esse tipo de patrimônio documental.

Augusto César Luiz Britto desenvolve em seu texto uma importante reflexão acerca do contexto em arquivos pessoais, temática que vem ganhando espaço na contemporaneidade. O artigo “O contexto de produção e a cadeia de custódia documental como elementos de construção da narrativa de si no acervo Alberto Pasqualini” debate a relação custodial e de proveniência dos acervos pessoais na chave da construção biográfica e da intencionalidade de guarda de Alberto Pasqualini.

O artigo “Arquivos pessoais e redes sociais: o Twitter construído como documento histórico”, de Alesson Ramon Rota e Thiago Nicodemo, anuncia o salto temático observado nos últimos 25 anos, desde a edição de 1998 dessa revista, quando não existiam redes sociais. Em suas linhas, discutem as implicações do Twitter enquanto documento histórico, partindo da análise de dados sobre o episódio de ataques às sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023. O objetivo é pensar a temática dos dados pessoais cedidos à plataforma e seu arquivamento, questionando os limites entre público e privado, evidenciados nas postagens selecionadas.

Em “‘Arquivar a própria vida’ 25 anos depois: diálogos com Philippe Artières”, Henrique Julio Vieira propõe uma importante reflexão sobre os caminhos de arquivamento em acervos de escritores a partir do texto de Philippe Artières publicado em nosso número 21, “Arquivos Pessoais”. Para isso, mobiliza imagens teóricas a partir de autores selecionados, tratando de maneira profunda e embasada a reflexão do arquivamento e da guarda de documentos de caráter pessoal.

Patrícia Machado traz luz ao debate sobre o uso de imagens de arquivos pessoais, pensando também na relação entre público e privado, na produção de documentários durante a ditadura militar brasileira. Em “Do arquivo à montagem: uma análise da produção e usos de imagens públicas e domésticas dos anos da ditadura militar no Brasil”, a autora foca sua análise no documentário Fico te devendo uma carta sobre o Brasil de Carol Benjamin (2019), buscando entender o contexto de produção, os usos e os sentidos que ganham imagens públicas e domésticas por meio de metodologia elaborada, trazendo um novo olhar aos arquivos pessoais e seus usos.

A contribuição especial a essa edição, escrita por Vitor Manoel Marques da Fonseca, versa sobre a questão dos direitos humanos em acervos. O autor de “Arquivos pessoais e direitos humanos”, por meio de argumentos históricos, teóricos e metodológicos, traz um texto propositivo no qual indica que os arquivos, independentemente de seu contexto de origem, bem como do caráter de seus acumuladores e produtores, podem ser considerados como instituições de direitos humanos.

Fechando o número, temos a entrevista com Marika Cifor feita por mim e por Carolina Alves. Autodeclarada como arquivista feminista, Marika responde questões sobre temas cada vez mais presentes no debate sobre arquivos pessoais, indicando a relevância da centralidade de estudos feministas e pós-coloniais no “mundo dos arquivos”. Marika perpassa por assuntos importantes, como a interface dos arquivos com a realidade digital na atualidade, e nos indica as possibilidades de trabalho com temas considerados “sensíveis”, mostrando como estes podem ser abordados no âmbito dos estudos sobre documentos pessoais.

Sendo assim, temos uma edição diversa, com discussões contemporâneas importantes, das quais concluímos que deve estar no radar de todos que tomam os arquivos pessoais como objeto de estudo articular os debates sobre a organização de arquivos pessoais e seus processamentos técnicos, com reflexões sobre os diferentes contextos políticos e sociais que se manifestam por meio da memória e da história presente nos documentos acumulados por pessoas, seus contextos e relações. São essas as particularidades que fazem desses arquivos o foco de interesse de uma comunidade diversificada de pesquisadores, no Brasil e no mundo, e que estão representados parcialmente nesse número, “Arquivos Pessoais: debates contemporâneos”.

REFERÊNCIAS

  • BELLOTO, Heloísa Liberalli. Arquivos Pessoais em Face da Teoria Arquivística Tradicional: Debate com Terry Cook. Revista Estudos Históricos, v. 11, n. 21, p. 201-207, 1998.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023
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