Open-access Uma mirada acerca do antropoceno: ficção, temporalidade e ética nos estudos históricos

A Look at the Anthropocene: fiction, temporality and ethics in the field of historical studies

Una mirada al Antropoceno: ficción, temporalidad y ética en los estudios históricos

RESUMO

O artigo pretende se inserir nos debates recentes acerca do temário do Antropoceno no campo da História profissional. Tenciono contribuir com uma abordagem diversa da História dos Conceitos. Mobilizarei referências acerca dos estudos da narrativa lidando com debates sobre as relações entre História e Ficção, especialmente atento à temporalidade e ética. Particularmente, tenciono analisar prosas latino-americanas que podem ser lidas a partir da catástrofe climática como Distancia de Rescate, de Samanta Schweblin.

PALAVRAS-CHAVE:
Ficção; Emoções; Temporalidade; Ética; Antropoceno; Colonialidade

ABSTRACT

The paper aims to analyze the recent debates on the Anthropocene in the field of professional History and to contribute to it with a different approach from the History of Concepts. It uses references from narrative studies dealing with debates on the relations between History and Fiction, paying special attention to the issue of temporality and ethics. It intends to engage the audience by analyzing recent Latin American prose at the climate crisis debate, such as Samanta Schweblin’s Distancia de Rescate, which provides a unique perspective on the issue.

KEYWORD:
Fiction; Emotions; Temporality; Anthropocene; Ethics; Coloniality

RESUMEN

El artículo pretende insertarse en los debates recientes sobre el tema del Antropoceno en el campo de la Historia profesional. El objetivo es contribuir con una aproximación diferente a la Historia de los Conceptos. Movilizaré referencias sobre estudios narrativos que aborden debates sobre las relaciones entre Historia y Ficción, especialmente atentos a la cuestión de la temporalidad y la ética. En particular, pretendo analizar prosas latinoamericanas recientes destinadas a debatir la crisis climática, como, por ejemplo, Distancia de Rescate de Samanta Schweblin.

PALAVRAS-CLAVE:
Ficción; Emociones; Temporalidad; Antropoceno; Ética; Colonialidad

Introdução

No campo dos estudos históricos, o tema do Antropoceno tem sido trabalhado, em geral, por autores que se dedicaram a investigar as limitações do discurso político da modernidade. Por exemplo, alguns historiadores analisam o descompasso entre o tempo da política e o tempo do planeta, como faz Zoltán Simon, a partir da ênfase na alteração sofrida entre espaço de experiência e horizonte de expectativa em sua leitura da obra de Koselleck (2016) e do argumento do presentismo de Hartog (2019). Destaca o autor que os conceitos políticos e as instituições herdadas da modernidade não conseguiram ainda lidar com os desafios da alteração radical dos ecossistemas e a ameaça da extinção em massa (Simon, 2019). Ressalta-se que o conceito moderno de História é restrito a uma Humanidade e que se temporalizou explorando a Natureza, expondo as dificuldades do campo em oferecer respostas e inteligibilidade diante desse novo cenário (Tamm; Simon, 2019). A partir desses referenciais, é possível perceber que as pesquisas dedicadas a investigar o impacto do Antropoceno no âmbito dos estudos históricos se propuseram a investigar a emergência de novos conceitos ou a reelaboração de conceitos no campo historiográfico, investindo no diálogo entre História e Antropologia1.

Nota-se que os estudos literários encontram dificuldade em ser ouvidos no debate ambiental mais amplo e no que concerne à sua pertinência para o campo dos estudos históricos. Mesmo reconhecendo a importância dos referenciais conceituais, esse ensaio pretende contribuir para o debate sobre o Antropoceno na História por meio de um proposta ampla que incorpora referenciais sobre ética, narrativa e temporalidade, voltados a pensar perspectivas epistêmicas que congreguem não apenas os referenciais dos estudos literários e artísticos, como também narrativas de povos originários e os debates recentes sobre antirracismo. Apresento essa vertente do temário para entender a historicidade do literário em tempos do Antropoceno e os debates suscitados no campo dos estudos históricos para pensar epistemologia, temporalidade e narrativa histórica no tempo presente. Recentemente, Elisabeth Povinelli (2021) afirmou a historicidade do Antropoceno enquanto “manifestações ancestrais do colonialismo e do escravismo”. A catástrofe ancestral do liberalismo tardio questiona o suposto avanço do progresso entre as eras e épocas e, consequentemente, as premissas fundadoras da Modernidade ocidental. Essa opção irá implicar uma abertura para uma bibliografia pouco enfatizada por autores que estão se detendo no debate sobre o Antropoceno no campo da História com a incorporação de autores do chamado realismo especulativo, a leitura de teóricos acerca dos povos indígenas, como as proposições do perspectivismo ameríndio de Viveiros de Castro, e de teóricos das artes.

Acredito que a discussão em torno da narrativa histórica e da narrativa literária possibilita não somente pensar o Antropoceno, mas questionar elementos referentes ao campo dos estudos históricos como, por exemplo, toda a discussão acerca do evento modernista levantada por Hayden White — utilizada por autores aqui referidos, como Zoltán Boldizsár Simon. O debate sobre a devastação ambiental deveria enfatizar a inexistência da singularização do evento e de que a catástrofe já veio, como os povos originários e as vítimas da escravidão argumentam, convocando modos específico de figurar a relação entre historicidade e temporalidade, conforme executado por romances como Distancia de Rescate, de Samanta Schweblin. Esse ensaio, então, tenciona pensar temporalidade no Antropoceno, assim como considera elementos para questionar os negacionismos contemporâneos, entendendo que a negação dos riscos climático e ambiental é uma faceta vigorosa da pauta de intervenção de grupos políticos de extrema-direita2. Pesquisar a relação entre temporalidade, escrita da História e o Antropoceno nos coloca ante visões que criticam o antropocentrismo de matriz ocidental3. A emergência da escrita da história em bases científicas pouco valorizou as narrativas de povos originários como Ailton Krenak e David Kopenawa enfatizam4. A opção deste estudo não se refere apenas a uma proposição analítica, mas nos remete também a uma ampliação bibliográfica com respectivos impactos no modo de entender a disciplina acadêmica e de praticar a escrita da história.

Temporalidade, narrativa e antropoceno

Esta proposta destaca a leitura de prosas, sejam de ficção ou testemunhais, em vez de uma abordagem que se concentra em conceitos, destacando que essas prosas possuem sua própria figuração, ampliando o âmbito da atual teorização social e histórica sobre a temporalidade5. O ensaio se insere nos debates sobre as relações entre História e Ficção, percebendo a relação multifacetada e não-hierárquica entre a Antropologia e a Literatura no romance contemporâneo, para pensar a escrita historiográfica. O escrito pretende fornecer argumentos sobre a temporalidade, lidando principalmente com a narrativa, particularmente atenta à crítica ao antropocentrismo, implicando em maneiras de pensar ontologias diversas no campo dos estudos históricos. Questiona-se o conceito de “Natureza como pano de fundo e recurso para a intencionalidade moral do homem, que poderia domar e dominar a Natureza” (Tsing, 2015: 9). A sobreposição de tempos está sendo figurada nessas prosas com a intenção de indicar a pluralidade temporal vivenciada. Este estudo, então, se propõe a realizar duas tarefas principais: contribuir para o debate sobre a catástrofe atenta à temporalidade, em conexão com o debate sobre racismo e a colonialidade. Segundo, pensar ética e discurso histórico com a intenção de reconhecer afetos como o medo em nossa experiência histórica.

Esses argumentos nos destinam à questão narrativa. Val Plumwood, em Environmental Culture: The Ecological Crisis of Reason, delineia a vinculação entre nosso momento atual dos desafios climáticos e as histórias que contamos acerca do mundo em que vivemos. Ela é a primeira a enfatizar que a crise climática é, em grande medida, produto de uma história particular que contamos para nós mesmos e que, provavelmente, uma história diferente ajudará a modificar as atitudes e os comportamentos que nos trouxeram até aqui. Muitos estudiosos da questão climática no âmbito das Humanidades passaram a trabalhar sobre a afrimativa de Plumwood. Podemos destacar a preocupação ética de Ursula Heise e Allison Carruth. A pergunta pode ser resumida na seguinte questão: “Quais conceitos do debate ecológico irão gerar uma perspectiva positiva em relação ao futuro?” Em L’Evénement Anthropocène: La Terre, l’histoire et nous, Christophe Bonneuil e Jean-Baptiste Fressouz clamam por uma obra que “repense nossas visões de mundo e nossos caminhos para habitar a Terra” (Bonneuil; Fressouz, 2016: 12). Ambos partem da limitação dos trabalhos científicos de atingirem o grande público e destacam a importância das narrativas, especialmente as narrativas históricas, para mobilizarem a opinião pública. Greg Garrard, Gary Handwerk e Sabine Wilke fazem afirmações similares em um ensaio presente na coletânea sobre as Environmental Humanities denominado “Imagining Anew” (2014). Consideram que as humanidades possuem um papel central na discussão estética sobre a capacidade de captar a atenção para o temário da devastação ambiental. Eles seguem o caminho traçado por outros teóricos de que o engajamento na narrativa tanto pode gerar modos de destruição quanto possibilitar a existência de modos de viver mais responsáveis com o planeta. Para esses estudiosos, a relação das humanidades com o ambientalismo é um projeto de estudos sobre a narrativa: quais tipos de narrativas podem fomentar ações responsáveis ante a crise climática. Ursula Heise (2016) considera que pesquisadores e artistas tem um papel central na promoção de novas narrativas.

Um grupo de estudiosos afirma que foram narrativas inadequadas que geraram o clima histórico de medo no Antropoceno. Eles, contudo, discordam acerca do potencial de que uma narrativa “salvífica” seja capaz de colocar o destino da humanidade novamente nos trilhos. Em questão, para esse grupo de pensadores, está a capacidade da narrativa se esgarçar para acomodar perspectivas não humanas e vastas possibilidades de tempo e espaço. Eles sugerem que a narrativa, com sua ênfase nas histórias de cidadãos, simplesmente não pode representar o tempo geológico, o espaço planetário e as experiências de criaturas não humanas e, até mesmo, inorgânicas. Claire Colebrook articula esse argumento em Death of the PostHuman (2014), quando defende o que ela chama de “ponto de vista pós-Antropoceno” (Pulizzi, 2014: 24). Os humanos precisam de uma nova maneira de imaginar e interagir com o mundo que leve a sério perspectivas não humanas, justamente pelo Antropoceno ter sido criado pela cegueira humana. Deveríamos “olhar positivamente para o inumano” ao invés de “reparar uma visão humana vinculada ao atual rumo do mundo” (Pulizzi, 2014: 32). Para Colebrook, isso significa buscar alternativas às formas estabelecidas de imaginar narrativas e de se comunicar. A compreensão de narrativa de Colebrook é mais sugestiva do que a de acadêmicos como Heise e Plumwood. Ela argumenta que a mudança climática global exige alternativas às formas de narrativas e conhecimentos convencionais, focados no humano que “eram necessários para pensar o homem como uma espécie emergindo no tempo” (Colebrook, 2014:10) no caminho da publicação de A Origem das Espécies, de Charles Darwin.

Tymothy Morton sugere um caminho peculiar para lidar com a discussão acerca do Antropoceno e dá sugestões interessantes para pensar a questão da narrativa. Como Colebrook, Morton está em busca de formas de representação da narrativa que possam levar os humanos além do antropocentrismo. Ele argumenta que pensar o Antropoceno é o grande desafio, “a filosofia agora tem a tarefa de atualizar o pensamento humano com essa nova realidade” (Morton, 2013a: 37). Tanto Colebrook quanto Morton enfatizam que uma arte que se entenda enquanto uma resposta ao Antropoceno não pode manter o status quo. Em vez disso, a arte nesta época pode “ser apenas uma colaboração desconfortável entre humanos e não humanos, não uma exploração puramente humana do acesso a não humanos...” (Morton, 2013a: 50). Morton explora essa visão das humanidades ambientais, argumentando que uma maneira mais responsável de viver no Antropoceno depende de novas representações desse mundo. Mas sua postura difere da de Plumwood, Heise e seus pares quando defendem que a arte lida com o que está além do alcance da imaginação humana – o que, na verdade, prefiro denominar como escala humana. A proposta de Morton destaca os “hiperobjetos” ou “coisas que são massivamente distribuídas no tempo e no espaço em relação aos humanos”, como mudanças climáticas, radiação nuclear, placas tectônicas, a biosfera e evolução (Morton, 2013b: 1). Podemos dizer que todos argumentam que os hiperobjetos são incompatíveis com a narrativa ou com os modos como temos entendido a narrativa voltada a figurar humanos. O aquecimento global impõe a necessidade de pensar simultaneamente em três escalas: a história da Terra enquanto sistema geológico e biológico; a história da vida na Terra e a evolução das espécies, incluindo o gênero humano; e a história mais recente do desenvolvimento técnico-industrial e econômico do sistema capitalista (Chakrabarty, 2013:1). Ou, como argumenta Timothy Morton (2013b), o desafio da arte é envolver-se com a “finitude desmedida” destes “hiperobjetos”, que operam em uma escala difícil de estimar (Morton, 2013b: 5). Essa temporalidade se expressa pela catástrofe e está dispersa na sociedade: “catástrofes naturais não são mais distinguíveis de suas implicações ou repercussões tecnológicas, econômicas e políticas” (Nancy, 2014: 4). Não é por acaso que Morton destaca especialmente a pintura de Jackson Pollock como mais adequada aos impasses de nossos dias correntes.

Podemos organizar essas leituras a partir da seguinte tipologia: ao contrário de Heise e seus pares, ao sugerirem a busca do tipo salvífico de narrativa, o trabalho de acadêmicos críticos do antropocentrismo da narrativa, como Colebrook e Morton, sugere que devemos, em vez disso, concentrar-nos em sondar os limites da imaginação humana. Timothy Clark (2015) pode ser colocado entre este último grupo. Tal como Colebrook e Morton, Clark pondera sobre os preceitos que tornam uma narrativa crível para as pessoas e essa opção, em si mesma, é um desafio específico ao tema do Antropoceno. Para Clark, as pesquisas não devem assumir uma ligação direta entre uma narrativa e sua capacidade de mudar as atitudes, valores e comportamentos da vida dos leitores, assim como de que exista a narrativa moralmente correta para combater comportamentos que produziram o Antropoceno. Trata-se de investir em narrativas que permitam novas miradas e a autorreflexão sobre valores e afetos ante a ameaça real da catástrofe. Há percepções variadas do que definimos enquanto a forma privilegiada da narrativa, influenciando as ponderações do que devemos entender como o Antropoceno. Para Adam Trexler (2015), Antropoceno é um descritor de processo geológico e, como tal, é um indicador dos “aspectos maiores e não humanos do clima” (Trexler, 2015: 4). Sua história do Antropoceno é aquela em que a produção humana persiste além da espécie, ligando assim as experiências individuais a seres não humanos e à matéria em amplas escalas de tempo e vastas paisagens. Para Trexler, uma narrativa do Antropoceno é aquela que se concentrará em certas qualidades literárias: efeitos de escala desproporcionais, especialmente entre escalas nacionais e planetárias; descrições complexas de transformações na economia humana; e uma presença dominante de coisas não humanas. Em particular, ele afirma que a heteroglossia do romance o torna particularmente adequado para representar esta época. O projeto de Trexler, que existe em desacordo direto com a alegação de que a época não pode ser narrada, envolve identificar e catalogar um cânone de romances do Antropoceno. Textos adequados que ele identifica variam de títulos como Solar (2010), de Ian McEwan, e The Wind-Up Girl (2010), de Paolo Bacigalupi, por exemplo. No cerne da lista de Trexler está um estudo diacrônico do romance que rastreia como o modo literário no Antropoceno, destacando não só a capacidade do romance de narrar a nossa época, mas também as mudanças formais e estruturais.

Stephanie LeMenager também vê o romance como uma forma flexível adequada para representar nossa época em seu ensaio “Climate Change and the Struggle for Genre” (2017). Em vez de focar no debate científico do Antropoceno, coloca em primeiro plano a experiência cotidiana de viver em uma era dominada pelas injustiças do capitalismo tardio. Ao conceber a mudança climática como “um ataque ao cotidiano”, ela recomenda “prestar atenção ao que significa viver, dia a dia, a mudança climática e os danos econômicos e sociológicos que a sustentam” para produzir um “relato mais gradual e pessoal de uma mudança climática quase catastrófica” (225). LeMenager vê o romance como o gênero capaz de figurar a morte em tempos de extinção em massa e os modos de amar em uma época de colapso climático. Como Trexler, LeMenager recorre ao romance pelo modo como ele lida com as mudanças cotidianas em A Parábola dos Talentos (1998), de Octavia Butler, The Back of a Turtle (2014), de Thomas King e Extremo Norte (2009), de Marcel Theroux.

As considerações de Amitav Ghosh (2016) apresentam uma inflexão nesses argumentos. Segundo ele, as formas canônicas do modernismo ocidental, tais como o romance realista e a arte abstrata, foram de fundamental importância para o estabelecimento da primazia dos “assuntos atuais/ cotidianos” dos humanos em relação ao seu envolvimento, tanto a curto como a longo prazo, com forças cósmicas. O romance pouco esteve preocupado com a questão ambiental desde o seu nascimento na modernidade devido à fé na Ciência e ao desejo de controlar totalmente a Natureza. A frase “romance sobre mudanças climáticas”, para ele, é um oximoro, pois entende o romance como incapaz de representar o aquecimento global. Diferente de Trexler e LeMenager — enquanto este último vê a época como definida por conexões cada vez mais íntimas entre humanos e não humanos ou as experiências cotidianas de mudança climática, respectivamente — a compreensão de Ghosh do Antropoceno é dominada pela imprevisibilidade. Ele argumenta que os eventos climáticos são um grande problema para os escritores de ficção, pois a própria forma do romance, em seu interesse nas vidas humanas individuais, depende de uma certa previsibilidade que oculta o “inédito e o improvável” (Ghosh, 2016: 27). Ao contrário de Trexler e LeMenager, Ghosh não está interessado em identificar romances que representem as novas realidades do nosso mundo por meio de sua sensibilidade às condições sócio-históricas. Em vez disso, tenciona explicar por que nenhum romance bem-sucedido sobre mudanças climáticas foi publicado ainda, apesar das tentativas de autores como McEwan. A falha não está nos autores, sugere Ghosh, mas na forma em si. Em nossa época, imprevisibilidade e romance, forma e mundo, não se alinham.

É compreensível dizer que o romance pouco esteve preocupado com a questão ambiental desde o seu nascimento na modernidade devido à fé na Ciência e ao desejo de controlar totalmente a Natureza. Considero, contudo, que a afirmativa de Ghosh deva ser nuançada, pois ele tem uma percepção restrita do que seja narrar mudanças climáticas como simplesmente narrar eventos naturais que geram devastação para os personagens. É notório nesta discussão, especialmente em Ghosh, a ausência de autores de teorias narrativistas. Em geral, há dois grupos: o primeiro celebra a capacidade da narrativa de mudar e evoluir ao longo do tempo, de modo que possa responder a mudanças nas condições sócio-históricas e materiais do mundo real; o segundo grupo vê a narrativa como inflexível, como tendo incorporado em si suposições inescapáveis ​​sobre a superioridade das perspectivas e experiências humanas que são fundamentalmente incompatíveis com um ethos ambiental responsável. Argumento que os estudos do Antropoceno se beneficiariam de um engajamento mais forte com o léxico e os insights da teoria narrativa. Esse engajamento não apenas iluminará as maneiras específicas pelas quais a narrativa se adaptou formalmente aos novos tempos, espaços e perspectivas do Antropoceno, mas também especulará sobre quais seriam as possibilidades de estruturar uma nova época. Esse envolvimento também lançará luz sobre as maneiras pelas quais os leitores interagem para compreender as narrativas e o trabalho que as narrativas fazem em termos de mudar as atitudes, valores e afetos. A produção artística sobre o tempo atua na performatividade na obra e se manifesta como um devir sendo parte da obra na performance. A temporalidade, portanto, não se relaciona apenas com a linguagem explicativa, mas também com as qualidades performativas das artes e sua reverberação em termos de gnoseologia, crítica do conhecimento histórico e afetos. As qualidades não semânticas do tempo poderiam ser melhor apreciadas por sua abordagem não proposicional que abre novas possibilidades não apenas para a compreensão da pesquisa, mas também para a autocompreensão do leitor.

Não se trata de ambientalismo, mas de manter a atenção à complexidade de trânsitos, em um cenário de catástrofe, entre aquilo que define a historicidade e a articulação ao local em nossa época planetária (Chakrabarty, 2013: 18). Ler a partir do planeta não significa abrir mão do particular; a dimensão planetária confere peso e propósito adicionais às diferenças ontológicas, evitando reafirmar padrões de pensamento ocidentais típicos da globalização. Mary Louise Pratt, apoiando-se no legado bakhtiniano, fala do Antropoceno como um “cronotopo” articulado a partir de um ponto de vista de um futuro de extinção, desafiando assim não apenas as ideias aceitas de progresso, mas o próprio lugar do humano nos “imaginários planetários” (Pratt, 2022: 26). Ao analisar a produção latino-americana, diante desse debate, não se trata de reafirmar uma excentricidade latino-americana, como muitas das vezes foi entendida a proposta do real maravilhoso. Opto por enfatizar, como fazem intelectuais contemporâneos, inclusive do norte global, que a experiência colonial nas Américas foi crucial para o feitio de nossa emergência planetária. Essa perspectiva foi pouco destacada pela bibliografia aqui recolhida desde Morton a Colebrook, passando por Trexler. Considerando aqueles que se abriram para o tema da violência colonial, iniciada no século XVI, Elizabeth Povinelli (2021) e Kathryn Yusoff (2018) destacam a escrita das histórias coloniais e, conforme argumento, o modo como essas histórias de violência ainda confluem para um presente de multiplicidade de camadas temporais e conjunção entre saberes de proveniências de ontologias diversas. Quando Elizabeth Povinelli revisita a imagem da catástrofe, ela critica a obsessão ocidental por uma imagem de catástrofe ligada a eventos extremos, mas que dá pouca atenção aos processos lentos de deterioração, intoxicação, exaustão, morte lenta e distribuição desigual e permanente de riscos, que também afetam desigualmente populações e territórios racializados, argumento também desenvolvido por Yusoff. As Américas foram um laboratório de práticas extrativas tanto em territórios como em corpos, que mais tarde foram exportados para outros países ainda às margens. A relação entre recorrência colonial e resistência ancestral perpassa os escritos de muitos autores e autoras que enfatizam o hibridismo, o entre-lugar — pelo menos desde a antropofagia de Oswald de Andrade, Ángel Rama (2004), Antonio Cornejo Polar (2003), Silviano Santiago (2001) e Silvia Rivera Cusicanqui (2010) — que destacam as trocas dinâmicas entre ativismos subalternos, formas ancestrais e novas tecnologias.

As propostas de Trexler e LeMenager, contudo, parecem ser pouco precisas, ou até mesmo pouco atentas ao que acontece fora do Norte Global. Dois motivos: a pouca atenção à poesia como gênero capaz de figurar impasses da catástrofe climática com livros diversos como, por exemplo, O Gosto Amargo dos metais, de Prisca Agustoni, e a pouquíssima atenção à produção dos povos indígenas, dos quais A Queda do Céu, de Davi Kopenawa, é o testemunho que enfatiza uma ontologia diversa daquela analisada por autores do norte global em sua valorização da ancestralidade, dos sonhos e a mitologia indígena. Creio que a figuração da temporalidade — seja em romances, poesias ou testemunhos históricos — na época planetária do Antropoceno não deve prescindir dessas perspectivas. Ao mesmo tempo, propicia entender que figurar o tempo indica impasses da formação latino-americana, em romances como Os sinos da Agonia (1974), de Autran Dourado, suscitando o lento processo extrativista. Em Distancia de Rescate, a escolha por um modo específico de figuração temporal destaca o lento processo de contaminação do solo impactando a vida cotidiana, indicando uma escolha por essa perspectiva narrativa, assim como ressalta que a ausência de explicação de algumas situações é o indicativo do caráter irresoluto de tensões que envolvem problemas mal resolvidos no passado e a impossibilidade de vislumbrar o futuro com clareza. Esse é um dos elementos que aprofundam o caráter reflexivo da narrativa, para além da subjetividade das personagens principais, ante eventos que articulam a história humana e a história do planeta.

Ética, narrativa e o antropoceno

Diante dessas considerações, especialmente as críticas de Morton e Colebrook, cabe indagar quais as singularidades referentes à narrativa histórica e sua relação com a ética, a partir do trabalho crítico de autores e autoras desde a América Latina. Há uma dupla questão aqui a ser proposta: primeiro, de que modo a questão do Antropoceno pode possibilitar novas perspectivas acerca da narrativa histórica e, em segundo lugar, de que maneira modos variáveis de mobilizar a narrativa histórica convocam o temário dos “modos responsáveis de agir”, sem assumir a afirmação tácita de que o Antropoceno não pode ser narrado como, por vezes, dá a entender Timothy Morton (2013a) ou, como afirma Amitav Ghosh, que o romance não é capaz de figurar catástrofes climáticas. Esse tipo de pensamento sugere uma reflexão ética dentro da história e deve se orientar para além de sua percepção enquanto História disciplinar, sem abandonar suas fundações6. Podemos nos perguntar também de que maneira essa questão do Antropoceno ainda se relaciona às perguntas acerca do modernismo literário ou de que maneira indagações colocadas por ficcionistas atrelados ao modernismo literário encontraram possibilidades de escrita vinculadas a pressuposições éticas, tendo a clareza de que devemos levar em conta a historicidade dos documentos históricos e ficções literárias. Em certo sentido, a sintaxe política da questão ética está saturada e desorientada pelo Antropoceno, pela ascensão da extrema direita e pela burocratização de Estados cada vez mais violentos. A partir disso, podemos pensar em romances nos quais o temário do Antropoceno tem sido apresentado — pensando a partir de White e dialogando com autores como Timothy Morton e Colebrook, como no caso de Distancia de rescate, de Samantha Schweblin, em que a escrita figura a temporalidade da contaminação lentíssima do solo de uma zona campestre na Argentina, sem esquecer dos impasses emocionais do ato de ser mãe, indo contra a demanda positivista de que a linguagem aja apenas de forma transparente em relação aos fatos.

Um romance como Distancia de Rescate apresenta uma série de singularidades, instigando o leitor a reinvestir em novas leituras em um enredo que não se oferta por completo em uma primeira mirada. A narrativa se desenrola em um povoado rural da Argentina, onde uma doença misteriosa atinge a população. E, em meio a essa situação ameaçadora, duas mães se aproximam e tentam entender o impacto dessa doença em suas vidas. Amanda, de férias com sua filha Nina no interior argentino, conhece Carla e seu filho David, que sofre da doença causada pela contaminação do solo. A história acompanha Amanda em seu arco para conseguir salvar sua filha da mesma doença de David, conforme sugerido na narrativa. A tensão entre realidade e pesadelo dá o tom onírico a todo o relato que se estrutura enquanto um suspense psicológico, destoando dos modos convencionais de pôr em enredo tematizações sobre a catástrofe ambiental. Em geral apostando na expressão de eventos climáticos cataclísmicos que geram distúrbios abruptos na vida dos personagens, muitos romances privilegiaram os modos da ficção científica ao pôr em enredo histórias acerca da nova condição planetária. Diferentemente das narrativas distópicas acerca do clima, Distancia de Rescate ressalta a importância de discursos e ações ocorridas no tempo presente. A multiplicidade de ritmos do tempo e sua interconexão, mesmo com a prevalente contaminação de longa duração causadora da doença, evita uma leitura distópica do futuro da humanidade como um cenário futurista no qual as ações humanas se desenrolam.

O modo da figuração da longa duração de envenenamento do solo ocorre como parte do diálogo que estrutura todo o livro ao qual somos apresentados já em andamento. Como se a ocorrência de um evento presente, o diálogo, dependesse de uma longa conversa ocorrida no longuíssimo tempo do mundo ou de uma terra contaminada pelos homens. Quando somos apresentados às frases, há a expectativa de que uma ordem lógica se conforme diante de nossos olhos. Contudo, isso nunca se consuma. “São como vermes”, “Que tipo de vermes?”, “Como vermes, em todos os lugares.” Apenas a presença das pequenas criaturas não-humanas possibilita essa conexão entre a terra e os humanos; todos parecem perdedores ante uma epidemia difícil de compreender, antes mesmo que o romance (que se parece com uma novela) se utilize de qualquer recurso recorrente típico do romance realista do século XIX, como a transformação da protagonista, aconteça. As perguntas imediatas são: quais motivos teriam levado ao aparecimento dos vermes? Quais os sintomas dos vermes? Quais as causas da doença que acomete as crianças? Não há resposta. Há correria no tempo longo de uma comunidade rural no interior da Argentina à mercê da infestação do solo: Nina, filha de Amanda, está contaminada. David, filho da vizinha Carla, consegue se salvar após um ritual ancestral que teria quebrado sua alma. Ele, ou o outro, podem estar ali, sendo parte do romance. Não sabemos ao certo. Carla segue os dias transtornada com o que teria ficado no lugar de David. Amanda seguirá seus dias apavorada com o que poderá ocorrer com Nina. Amanda busca uma salvação para ela e sua filha ou busca pelo menos entender o que está ocorrendo, sem sucesso. Todos buscam compreender, mas entendem o fracasso antecipado da empreitada. Como diz Carla, mãe de David: “É que as vezes nem todos os olhos são suficientes” (72). Uma tensão dada pela incompreensão e pela narrativa que parece dotar a todos da alcunha de condenados — sejam seus corpos, sejam suas palavras. “E agora tem mais alguma coisa no meu corpo, algo que ficou ativo de novo ou que talvez tenha desativado, algo agudo e brilhante” (79). Típicos de uma contaminação do solo em longa duração, como um legado que vai se espalhar e ficar na terra, dando a sensação de morte e fantasmagoria a todo relato.

A opção por figurar o tempo da Terra e do solo contaminado dessa maneira na narrativa destoa de uma opção mais convencional da figuração por meio de um evento catastrófico na narrativa, típico de romances nos quais o temário do fim do mundo enquanto destruição global se manifesta e que são excessivamente valorizados por Amitav Ghosh. A figuração da longa duração de Schweblin também se diferencia de romances nos quais uma característica de um elemento material seja recorrente e ele mude a vida dos personagens, como acontece no romance japonês A Mulher das Dunas, de Kobo Abe, em que a areia ganha propriedades inusitadas e interfere na vida dos humanos de uma vila no interior do Japão pós-Segunda Guerra Mundial. Samanta Schweblin não figura elementos materiais por meio do uso de técnicas típicas do realismo mágico, mas opta por uma escrita sóbria na qual o imprevisto e o incompreensível são acomodados na narrativa ampliando a ausência de sentido da vida das personagens. O solo, em Distancia de Rescate, não apresenta nenhuma característica antropomórfica. Ele apenas está contaminado e, não se sabe exatamente como, pode transmitir uma doença, não se sabe exatamente qual, para as pessoas daquela localidade. A contaminação acontece no tempo profundo, sem que tenha ocorrido uma menção específica acerca da sua ocorrência ou de que ela se apresente na narrativa como um evento catastrófico. Diferentemente de obras que lidam com os efeitos das ações antrópicas na vida humana, o romance de Schweblin não os figura como catástrofes futuras, mas como tragédias já em curso no presente. Sendo, contudo, que esse presente necessita ser apresentado como um ganho de clareza para o leitor de processos ocorridos em longa duração.

A leitura dessas prosas de ficção nos permite perceber um ponto importante para os termos dos estudos da narrativa histórica: não se trata de enfatizar apenas que cada versão do passado será parcialmente delimitada pela questão colocada (o que é uma proposição hermenêutica), mas que narrativizar o passado, dando-lhe forma de história ou dando forma a uma sequência, tem uma valência ética que é subvalorizada pela história profissional. Especialmente sob condições em que não há enredo discernível ou quando a elipse se torna uma característica central da narrativa, torna-se mais difícil perceber essa vinculação ética de questionar o passado enquanto processualística histórica. No caso de Distancia de Rescate, há o investimento na busca por um significado retrospectivo pelos personagens, sem que o sentido totalizante da história seja captado. Dessa maneira, essa análise discorda de um autor como Amitav Ghosh, para quem pensar a crise climática significa, em termos da elaboração de romances, apresentar personagens vulneráveis às mudanças abruptas da Natureza. Distancia de Rescate segue outro caminho, apresentando longas durações da contaminação do solo de modo complexo com a presença de discursos acerca de impasses presentes do relacionamento entre humanos, especialmente a questão da maternidade. Reiterar a presença dos vermes enfatiza o entrelaçamento entre humanos e não-humanos, ao mesmo tempo que serve para a elaboração do clima de suspense do romance.

Essas prosas são herdeiras do modernismo literário, mas não se enquadram dentro de uma rubrica do pós-modernismo. Há uma diferenciação de uma tradição mais específica do pós-modernismo de proveniência norte-americana, como, por exemplo, John Barth, William Gaddis e Thomas Pynchon. Além disso, podemos perceber certa distância da utilização de recursos comuns desses autores como o uso do pastiche ou daquilo que críticos literários, como Ricardo Piglia, enfatizaram enquanto uma etiqueta dessa geração: o uso da metaficção. Em Distancia de rescate, mas também em outros romances que tencionam debater as ameaças climáticas e certo senso de fim do mundo a partir da América Latina, como no caso de Mugre Rosa (2020), de Fernanda Trías, não se encontram alguns dos recursos mais evidentes do uso da metaficção ou da paródia até o recurso recorrente da ironia. Cabe ressaltar que não pretendem também um retorno à figuração da Natureza, recorrente em romances escritos na década de 1950 até 1980 no Caribe e na América do Sul, cujos casos a ser citados são El Reino de este mundo (1948) e Los Pasos Perdidos (1955), de Alejo Carpentier. Há o recurso ao fantástico, assim como em Mugre Rosa, de Fernanda Trías; entretanto, enquanto esse último romance investe em uma atmosfera distópica, apresentando uma ocorrência inexplicável em nosso próprio mundo, fazendo com que o escrito mantenha o investimento de outros romances com a ocorrência de um evento nunca antes visto, Distancia de rescate aposta em uma estranheza pedestre que alimenta todo o escrito e amplia a tensão até certo culminar irresoluto da história. Em Distancia de rescate, não há um evento catastrófico que muda o rumo do relato de uma hora para outra deixando todos espantados ou até mesmo uma mutação ocorrida fazendo com que todos se relacionem com essa ocorrência de maneira quase casual, como Amitav Ghosh parece entender a relação entre enredo, personagens e a ocorrência de uma catástrofe climática. Há um romance elaborado sobre um diálogo em uma situação limítrofe que não se refere a uma ocorrência catastrófica, mas que dispara no leitor a consciência de que aquele evento, a contaminação do solo, ocorreu após muitas décadas. Diferencia-se, assim, de alguns recursos utilizados por romances importantes aos quais também foram atribuídos o rótulo de “thriller ecológico”, como Sobre os Ossos dos mortos, de Olga Tokarczuk, em que a narrativa se utiliza do recurso do fantástico e do suspense, porém investe na complexidade de uma personagem principal, a sra. Dusheiko, que também é a voz da narradora. Assim como em Distancia de Rescate, Sobre os Ossos dos mortos enfatiza o entrelaçamento entre todas as coisas do mundo, “E que o mundo é uma grande rede, é um todo único, e não existe nada que esteja isolado. Cada fragmento do mundo, até o menor deles, está interligado com os outros...” (Tokarczuk, 2019: 59).

A temporalidade complexa de um relato como Distancia de Rescate tenciona desmobilizar certo catastrofismo de nossa época pautado na ocorrência do “evento sem precedentes”, conforme tanto enfatiza Simon (2019). Não há disrupção na narrativa; temos a dificuldade de perceber exatamente onde ocorre o evento que causa a doença em Amanda, Nina e David, direcionando-nos para permanente indagação sobre os rumos da narrativa. A existência dessa narrativa, então, destoa das propostas de Colebrook (2014) e Morton (2013b) — que relembram os ensaios de Mirzoeff (2014) sobre a impossibilidade de ver o fim do mundo diretamente, apenas visualizá-lo — acerca da limitação de qualquer narrativa dar conta do que vivenciamos nessa nova época e que tem sido nomeada como Antropoceno. Pela figuração dos animais doentes, especialmente cavalos e gansos, e a presença dos vermes, como a imagem que retorna permanentemente ao relato, Schweblin consegue emaranhar o humano e o animal fazendo com que a distinção fundante da modernidade entre história humana e história natural, como relembra Dipesh Chakrabarty, não seja prevalente. Para além dos rótulos de um thriller ecológico, Distancia de Rescate nos faz meditar sobre as limitações das ações humanas, sobre tudo aquilo que nos atinge sem que possamos imediatamente visualizar, sobre as relações entre mães e filhos incitando a viver de maneira não-hierárquica, reforçando a possibilidade de uma comunidade e de uma figuração histórica “mais-que-humana”.

Nas linhas finais deste ensaio, algumas perguntas surgem como, por exemplo, é a ficção mais apropriada que a historiografia para abordar um fenômeno que, como o Antropoceno, parece tão evasivo para a História quanto o Holocausto já foi? Hayden White refirmou, ao longo de sua obra, que a ficção seria mais cabível para representar eventos históricos do que a historiografia, ainda presa a protocolos do século XIX. Pensar a História ante uma nova época, desloca o debate para a narrativa histórica em prol de uma percepção melhor de que a figuração do tempo em longa duração segue ao propósito de expressar violências antigas, anteriores às expressões comuns do que se entende por modernidade europeia, instigando saberes distintos daqueles valorizados pelo Ocidente, como o ritual que salva a vida de David. O termo “evento modernista” (White, 1999: 70) destaca que o modernismo literário dissolveu o evento como unidade básica de ocorrência histórica, confundindo os limites entre fato e ficção — desafiando as noções tradicionais de evento, personagem e enredo, em relação à representação histórica; além disso, fez a afirmativa questionável de que os eventos do século XX, como o Holocausto, teriam questionado os limites da representação histórica por sua escala inalcançável. Pode-se questionar essa premissa, pois a “catástrofe ancestral” (Povinelli, 2021: 5) demanda uma figuração do tempo na qual a multiplicidade temporal do relato ressalta que o mundo mudou e o futuro não será o que era antes, devido a eventos anteriores indiscerníveis em longa duração do tempo da Terra, como em Distancia de Rescate. O cruzamento de temporalidades humanas e não-humanas é parte de um cruzamento maior de saberes diversos, alicerçados na percepção de que, seguindo Shaviro em sua leitura de Whitehead, o antropocentrismo pode ser suprimido na medida que as categorias da experiência humana se revelam em todos os entes em uma “ontologia orientada a objetos” (Shaviro, 2014: 61). Devemos ir além de reafirmar o valor da ficção para o campo historiográfico, como faz White, colocando no cerne do debate a experiência como dado ontológico, abrindo a vereda de conceber a estética enquanto precedente à ética. Na leitura que Shaviro faz de Kant, experiência estética é imanente e desloca o sujeito de seu primado transcendental. Debater o tempo histórico como estruturas multicamadas que envolve passado, presente e futuro, a partir de um relato como Distancia de Rescate propicia reforçar que, apesar daqueles que afirmam a cientificidade e objetividade do conceito de Antropoceno, narrativas históricas propiciam novas vinculações emotivas se apresentando enquanto desafio para a prática dos historiadores.

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  • 1
    Publicação recente da revista TOPOI congrega artigos que se associam a essa perspectiva interpretativa. Esse é o caso do artigo de Rodrigo Turin (2023), interessado em mapear “...de que modo novos conceitos surgem, assim como conceitos tradicionais vêm sendo ressignificados, formando novas redes semânticas e formas de temporalização” (Turin, 2023: 707). Outro exemplo é o artigo de Alessandra Seixlack (2023), em que a autora se interessa em propor diálogos entre autores da Antropologia e autores da Historiografia utilizando-se do conceito de Cosmo-História. (Seixlack, 2023: 725). Mesmo estudos que têm como objetivo analisar games históricos enfatizam a História dos Conceitos, como no caso de “O Antropoceno e suas relações com a história dos games”. (Santos & Coelho, 2023)
  • 2
    Apesar disso, no dossiê da Revista Brasileira de História nomeado “História e Negacionismo”, quase nenhuma atenção foi dada ao tema do negacionismo climático (Avelar & Valim & Bevernage, 2021).
  • 3
    Pretendo contribuir para debates acerca do tema do Antropoceno no campo de saber dos historiadores para além dos vínculos entre o tema da devastação ambiental e da história ambiental. Há caminhos interessantes nesse percurso como os realizados por André Felipe Cândido da Silva (2021), que associa a temática do Antropoceno com a História da ciência, História da medicina e da saúde pública, em particular trajetórias de personagens e instituições científicas e história das doenças. Essa perspectiva também é referenciada pelas produções de José Augusto Pádua (2010), ponderando que o pensamento social latino-americano há anos trabalha, em uma perspectiva global, a partir de impasses da devastação do mundo natural. Há a intenção de compreender processos naturais como “aridez” e “desertificação”, utilizando o conceito de “meio-ambiente” (Pádua, 2010: 85).
  • 4
    Para uma análise da obra de Krenak e Kopenawa e sua relação complexa com o campo historiográfico, ver a dissertação de Igor Domingues Airas (2022) “Entre mundos, tempos, humanos e ciências: Ailton Krenak e Dipesh Chakrabarty no século XXI antropocênico”.
  • 5
    Diferencia-se, assim, da abordagem conceitual de Amy Elias e Joel Burges, em seu projeto de continuidade da História dos Conceitos de Reinhardt Koselleck no pós-guerra (Elias / Burges, 2016: 9).
  • 6
    Se assumirmos que uma das perguntas fundantes da obra de Hayden White é “Como devo viver?” ou “Qual a maneira correta de agir?”, entenderemos que qualquer um que busque elaborar respostas para tais perguntas, mobilizando o conhecimento histórico, irá se defrontar com a complexidade do pensamento ético. White, em “Historical Discourse and Literary Theory” (2014), argumenta que os fatos aparecem de alguma forma, por meio de alguma mídia, e que a forma tem seu próprio conteúdo, contribuindo para o que é apresentado — por isso alguns passados podem ser comunicados de modo mais preciso em alguns formatos do que em outros.
  • Fonte de financiamento:
    Nada a declarar.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Ago 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    30 Dez 2024
  • Aceito
    06 Maio 2025
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