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Ditadura, anistia e reconciliação

Dictatorship, amnesty and reconciliation

Resumos

Depois de propor uma reflexão sobre as relações entre Memória e História, o artigo discute uma série de questões relativas à Lei da Anistia (aprovada, no Brasil, em agosto de 1979), e aos silêncios que ela estabeleceu: sobre a tortura e os torturadores, sobre o apoio da sociedade à ditadura e sobre os projetos revolucionários de esquerda. O texto defende a necessidade da revisão da lei porque um debate a respeito poderia ajudar a sociedade brasileira a compreender melhor o período ditatorial, a tortura como política de Estado, a julgar os torturadores e, finalmente, a conseguir a abertura dos arquivos dos serviços secretos das Forças Armadas, o que requereria, no entanto, um processo de mudança na cultura política destas instituições.

anistia; silêncios; torturas & torturadores; arquivos; forças armadas


Après avoir discuté les rapports entre Mémoire et Histoire, le texte présente un ensemble des questions sur la Loi de l'Amnistie (approuvée, au Brésil, en août 1979) et sur les silences que cette loi a établi: sur la torture et les tortionnaires, sur le soutien de la société brésilienne à la dictature et sur les programmes révolutionnaires de gauche. L'article soutien la revision de la Loi de l'Amnistie parce que un débat sur ce sujet pourrait aider la société brésilienne à mieux comprendre la période de la dictature et la torture comme politique d'Etat, à juger les tortionnaires et, enfin, à réussir l'ouverture des archives des services de renseignements des Forces Armées. Pour cela, cependant, il faudrait tout un processus de changement de la culture politique de ces institutions armées.

Amnistie; silences; tortures & tortionnaires; archives; forces armées


After exposing a reflection of the relationship between Memory and History, the article discusses some questions about the Law of Amnesty (adopted in Brazil in August 1979), and the silence that it brought: on torture and on the torturers, on the support of society and on the dictatorship of the revolutionary projects of political left. The text argues in favor of the need to revise the law because a debate about the Brazilian society could be helpful to understand the period of the dictatorship, the torture as public policy, to judge the torturers and, finally, to open up the files of Armed Forces' secret services, which would require, however, a process of change in the political culture of these institutions.

amnesty; silence; torture and torturers; files; Armed Forces


ARTIGOS

Ditadura, anistia e reconciliação

Dictatorship, amnesty and reconciliation

Daniel Aarão Reis

RESUMO

Depois de propor uma reflexão sobre as relações entre Memória e História, o artigo discute uma série de questões relativas à Lei da Anistia (aprovada, no Brasil, em agosto de 1979), e aos silêncios que ela estabeleceu: sobre a tortura e os torturadores, sobre o apoio da sociedade à ditadura e sobre os projetos revolucionários de esquerda. O texto defende a necessidade da revisão da lei porque um debate a respeito poderia ajudar a sociedade brasileira a compreender melhor o período ditatorial, a tortura como política de Estado, a julgar os torturadores e, finalmente, a conseguir a abertura dos arquivos dos serviços secretos das Forças Armadas, o que requereria, no entanto, um processo de mudança na cultura política destas instituições.

Palavras-chave: anistia, silêncios, torturas & torturadores, arquivos, forças armadas

ABSTRACT

After exposing a reflection of the relationship between Memory and History, the article discusses some questions about the Law of Amnesty (adopted in Brazil in August 1979), and the silence that it brought: on torture and on the torturers, on the support of society and on the dictatorship of the revolutionary projects of political left. The text argues in favor of the need to revise the law because a debate about the Brazilian society could be helpful to understand the period of the dictatorship, the torture as public policy, to judge the torturers and, finally, to open up the files of Armed Forces' secret services, which would require, however, a process of change in the political culture of these institutions.

Key words: amnesty, silence, torture and torturers, files, Armed Forces

RÉSUMÉ

Après avoir discuté les rapports entre Mémoire et Histoire, le texte présente un ensemble des questions sur la Loi de l'Amnistie (approuvée, au Brésil, en août 1979) et sur les silences que cette loi a établi: sur la torture et les tortionnaires, sur le soutien de la société brésilienne à la dictature et sur les programmes révolutionnaires de gauche. L'article soutien la revision de la Loi de l'Amnistie parce que un débat sur ce sujet pourrait aider la société brésilienne à mieux comprendre la période de la dictature et la torture comme politique d'Etat, à juger les tortionnaires et, enfin, à réussir l'ouverture des archives des services de renseignements des Forces Armées. Pour cela, cependant, il faudrait tout un processus de changement de la culture politique de ces institutions armées.

Mots-clés: Amnistie, silences, tortures & tortionnaires, archives, forces armées

Começaria agradecendo o convite da professora Angela Castro Gomes, amiga e colega, e do Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais do CPDOC/FGV.

Estar aqui é, para mim, uma honra, um privilégio, um desafio. Em relação às questões que pretendo desenvolver nesta confererência – e que tanta polêmica já provocaram e, certamente, ainda provocarão – situo-me em dois planos: memorialista e historiador. Memorialista, por haver participado intensa e pessoalmente de processos e episódios que serão matéria de nossa conversa. Historiador, porque tenho dedicado parte importante da vida a estudá-los e a refletir sobre eles sob o prisma da história.

Há, como se sabe, entre memória e história, entrelaçamentos e autonomias.

Quanto à memória, sabemos todos da necessidade de contextualizá-la, de cotejá-la, de criticá-la, por sabê-la inexoravelmente seletiva e tendencialmente unilateral. O que importa não é propriamente a correspondência entre ela e o processo histórico, mas a lógica e a consistência interna da versão de cada depoente. Por fantasioso e ilusório que seja, e nem sempre é fácil distinguir a fantasia e a ilusão, sempre guarda um valor em si mesmo, tornando-se um documento.

Quanto à história, perdeu-se há muito a ambição de objetividade em que os antigos acreditavam. Cada historiador tem um ângulo de análise, pressupostos e premissas, abordagens específicas, objetivos a alcançar, o que me tem levado, cada vez mais, a conceber a história como uma disciplina, uma arte, mais do que propriamente uma ciência...uma discussão que nos levaria longe, em outras direções.

O que importa é sublinhar que o trabalho do historiador também precisa de contextualização, mas tem a obrigação de não ser unilateral, de evidenciar as fontes com que trabalha, compará-las, criticá-las, incluindo aí o exercício da memória como documento histórico.

Para ser fiel à disciplina e à arte que elegeu, haverá o historiador que se preocupar com, e controlar, as tentações subjetivas, as inclinações apriorísticas, e preocupar-se, na medida do possível, com a verdade, por mais difícil que isso possa parecer. Nesta conversa, pretendo trabalhar como historiador, cuidando para que a condição de memorialista não interfira demasiadamente. Trata-se de um desafio e veremos se é possível sustentá-lo.

Trabalharei com referências publicadas, livros e artigos, mas não as repetirei, eis que vou sempre efetuando ajustes e redefinições, retoques, suscitados por sucessivos debates e pela reflexão sempre cambiante sob o influxo das circunstâncias e das polêmicas do tempo em que se vive. Explicitarei pontos de vista polêmicos, porque a intenção é suscitar a inquietação, a dúvida, o debate. Desejaria apresentar, comentar e discutir algumas questões que se relacionam entre si.

A primeira diz respeito ao caráter da Lei de Anistia, aprovada em agosto de 1979. Para mim, esta lei configurou um pacto de sociedade. O que não significa que houve unanimidade. Nunca há unanimidade, por mais que um consenso,1 1 O conceito de consenso, na acepção com que o emprego, designa a formação de um acordo de aceitação do regime existente pela sociedade, explícito ou implícito, compreendendo o apoio ativo, a simpatia acolhedora, a neutralidade benévola, a indiferença ou, no limite, a sensação de absoluta impotência. São matizes bem diferenciados e, segundo as circunstâncias, podem evoluir em direções distintas, mas concorrem todos, em dado momento, para a sustentação de um regime político, ou para o enfraquecimento de uma eventual luta contra o mesmo. A repressão e, em particular, a ação da polícia política podem induzir ao consenso, ou fortalecê-lo, mas nunca devem ser compreendidas como decisivas para a sua formação. reunindo amplos segmentos sociais, se forme em determinados momentos em distintas sociedades.

No caso da lei mencionada, há evidências de que nem todos estiveram de acordo. De fato, ficaram nas margens os que desejavam uma anistia ampla, geral e irrestrita, o que implicaria inclusive o desmantelamento da polícia política e o julgamento dos torturadores. Essa proposta, decididamente, não empolgou as gentes. Prevaleceu, e a custo, aprovada por pequena maioria, uma lei restritiva, e tanto, que, além de manter na cadeia presos políticos2 2 Pouco depois, com a reformulação da Lei de Segurança Nacional, reduziram-se drasticamente as penas, o que permitiu que, afinal, fossem libertados todos os presos politicos. Mas estes seriam anistiados, no sentido pleno da palavra, apenas mais tarde, em 1985, quando foi revista a Lei de Anistia aprovada em 1979. ensejou então, e enseja até hoje, o debate sobre se os torturadores estariam, ou não, agasalhados por um determinado e controvertido artigo, que dispôs sobre a anistia dos crimes conexos aos praticados pelos que se opuseram à, e foram perseguidos pela, ditadura.3 3 A discussão, de caráter politico-jurídico, arrasta-se até hoje e será objeto provavelmente ainda em 2010, de uma decisão do Supremo Tribunal Federal, provocada por uma ação da Ordem dos Advogados do Brasil. Seja qual for a decisão, no entanto, a discussão tende a perdurar.

O que me interessa neste momento não é propriamente este debate específico, mas os três silêncios que fundamentaram e se estabeleceram em torno da Lei da Anistia:4 4 Toda anistia implica silêncios. Ao contrário de certo senso comum, anistia não significa perdão, mas esquecimento. o silêncio sobre a tortura e os torturadores; o silêncio sobre o apoio da sociedade à ditadura; e o silêncio sobre as propostas revolucionárias de esquerda, derrotadas entre 1966 e 1973. Vamos refletir com mais vagar sobre estes silêncios.

O silêncio sobre a tortura e os torturadores

Também neste particular, não é possível se sustentar que o silêncio foi total, unânime. Enquanto durou a ditadura, sempre houve vozes corajosas, de jornalistas, de politicos, de lideranças eclesiásticas, de militantes revolucionários denunciando torturas e torturadores.5 5 Entre os primeiros, e precursoramente, o jornalista e político Marcio Moreira Alves. No contexto da Igreja Católica, destacou-se entre outros, a figura de dom Helder Câmara que, no exterior, e apesar das ameaças, denunciou abertamente, desde o início dos anos 1970, as torturas empreendidas pelos aparelhos repressivos. Sem falar nos militantes revolucionários e seus correligionários que, do exílio, na Europa, nos Estados Unidos e no mundo socialista, denunciavam, com persistência, a tortura como política do Estado brasileiro. Contudo, foram vozes isoladas. E quando a anistia foi, afinal, aprovada, a grande maioria preferiu não falar no assunto, ignorá-lo, ou simplesmente não pensar nele.

O que essa atitude exprimia? A meu ver, a perspectiva de se virar as costas a uma experiência que se considerava ultrapassada.

O livro de Fernando Gabeira, publicado em 1979, desempenharia aí importante papel.6 6 O livro foi publicado meses depois de entrevista concedida pelo autor, ainda no exílio, ao semanário O Pasquim e obtivera, então, grande repercussão. Bem escrito, com tratamento irônico de temas candentes, ofereceu uma interpretação bem humorada e conciliatória da ditadura e das lutas empreendidas contra ela. O que passou, passou. Por que não olhar para a frente, evitando o espelho retrovisor?

E, assim, os torturadores foram deixados em paz. E a tortura, empurrada para baixo de grosso tapete. Tratava-se, ao menos temporariamente, de esquecer o passado. Curto-circuito da memória? A confirmar o conhecido bordão de que o povo brasileiro não a tem? Nada disso. Apenas a proposta de se desvencilhar de um passado que se queria recusar, mas a propósito do qual não havia ainda uma análise bem concatenada ou uma narrativa clara e consensual, social e politicamente aceitável.

O silêncio sobre o apoio da sociedade à ditadura

A ditadura, desde o início, sempre suscitou oposições. Estas se multiplicariam, principalmente nos últimos anos da década de 1970, tornando-se então dificil encontrar alguém que apoiasse explicitamente o regime que se extinguia. Já nas comemorações dos 40 anos de 1968, em 2008, era quase impossível encontrar quem houvesse apoiado sem reservas a ditadura. Um enigma. Como o regime durara tanto tempo sem viva alma que o apoiasse?

Na verdade, houve apoios, extensos e consistentes. Muitos exemplos poderiam ser apresentados, mas três, expressivos, bastariam para elucidar de outro modo o processo historic:

Primo, as Marchas da Família com Deus pela Liberdade, quando tudo começou. Milhões marcharam. Quinhentas mil pessoas em São Paulo, antes do golpe, em 19 de março de 1964. Um milhão no Rio de Janeiro, em 2 de abril, na então chamada Marcha da Vitória. Depois, mais dezenas e dezenas de milhares. Marcharam as gentes até setembro de 1964. Não houve cidade grande que não tivesse a sua marcha, sem contar muitas cidades médias e pequenas;7 7 Infelizmente, só há um trabalho acadêmico a respeito, sintomaticamente não publicado, o de Aline Alves Presot, 2004.

Secundo, os altos indices de popularidade do general Garrastazu Médici, que chefiou a ditadura no auge dos sinistros anos de chumbo;8 8 Cf. Janaína Martins Cordeiro, que, em pesquisa em curso para sua tese de doutoramento a respeito das comemorações do Sesquicentenário da Indepedência, realizadas em 1972, encontrou, em pesquisas do IBOPE (São Paulo e interior), índices de aprovação de 84% ao general.

Tertio, e finalmente, as expressivas votações obtidas pela Aliança Renovadora Nacional (Arena), inclusive nas últimas eleições sob a ditadura, realizadas em 1978.9 9 Cf. Lucia Grinberg, 2009.

Esses apoios desmancharam-se no ar, de início devagarinho, depois em cadência mais rápida, para se desvanecerem quase que completamente no verão quente da Anistia, entre 1979 e 1980.

Quanto à ditadura, a frase-síntese mais inspirada, e extremamente emblemática, foi proferida por Leonel Brizola, numa tirada antropofágica, em 1980, logo depois de regressar ao país: o povo brasileiro havia comido a ditadura, a mastigara devarinho, a engolira, a digerira e, naquele momento, preparava-se para expeli-la pelos canais próprios. Em outras palavras, o povo vencera a ditadura militar que, aliás, fora obra de uns poucos militares exaltados, "os bolsões sinceros, mas radicais".10 10 Expressão recorrentemente usada por um dos maiores cronistas políticas da época da ditadura, Carlos Castello Branco, colunista do Jornal do Brasil, que assim denominava em linguajar gótico, característico, a comunidade de segurança, ou de informações, onde se encontravam os torturadores. Uma seleção de crônicas deste autor foi reunida, mais tarde, em livros que constituem importantes subsídios para a história política da ditadura (cf. Carlos Castello Branco, 1975 e 1976).

Ditadura militar. Este termo fora cunhado em 1964,11 11 Eu mesmo empreguei o termo, e quantas vezes, inclusive em título de livro, contribuindo para consolidar uma tradição equivocada, do que hoje me arrependo. encorpara-se, estabelecera-se como senso comum, servindo como uma luva a uma sociedade que desejava auto-absolver-se de quaisquer cumplicidades com um regime considerado, agora, em fins dos anos 1970, como abominável. Crise de identidade, memória curta? Mais uma vez, não.

Na história contemporânea, outras sociedades, conhecidas por sua devoção à História e ao exercício da memória, comportaram-se, frente a desafios semelhantes, de modo análogo. Que se pense, por exemplo, na França depois da II Guerra Mundial (em relação à experiência do governo colaboracionista de Vichy); na Alemanha depois da derrota, em 1945 (sobre o apoio da sociedade ao nazismo); na URSS pós-desestalinização (sobre Stalin e o stalinismo).

Incômodas lembranças – por pessoas, grupos sociais ou sociedades inteiras – são frequentemente colocadas entre parênteses, à espera, para que possam ser analisadas, de um melhor momento ou do dia de São Nunca.

O silêncio sobre as propostas revolucionárias de esquerda entre 1966 e 1973 12 12 1966: derrota do foco guerrilheiro de Caparaó. 1973: derrota do foco guerrilheiro do Araguaia

Tais propostas, a rigor, já vinham sendo elaboradas desde antes de 1964, no contexto da saga do reformismo revolucionário,13 13 O termo, cunhado por Carlos Nelson Coutinho, demarca processos reformistas que adquirem alcance transformador, revolucionário (cf. Coutinho, 1984). ainda não merecidamente estudada. Referimo-nos aos movimentos sociais que se evidenciaram na conjuntura efervescente, anterior ao golpe de Estado, em torno do chamado programa das reformas de base.

Aquelas reformas, caso empreendidas, revolucionariam a sociedade brasileira. Alas mais radicais do movimento não se privariam de dizer que as reformas viriam "na lei ou na marra". Leonel Brizola, então líder nacionalista revolucionário, anunciava com ares apocalípticos e enigmáticos, que se aproximava um "desfecho" para a crise brasileira.

É necessário aí recuperar o contexto da época, marcado pela Guerra Fria e pelo advento vitorioso de revoluções armadas – Cuba, em 1959, Argélia, em 1962 –, sem falar na crescente afirmação de movimentos de libertação nacional na África e na Ásia (guerra do Vietnã). Parecia reatualizar-se a frase de Brecht, formulada nos sombrios anos do nazismo e da II Guerra Mundial: "era um tempo de guerra, um tempo sem sol", animando os partidários de enfrentamentos decisivos e violentos.

Depois da instauração da ditadura, radicalizaram-se ainda mais essas perspectivas de confronto, nutrindo-se de interpretações de importantes pensadores brasileiros, como Celso Furtado, Ruy Mauro Marini, Octavio Ianni e Caio Prado Jr. Todos eles, com nuanças específicas, anunciavam tempos de impasse catastrófico. Sem as reformas, bloqueadas agora pela vitória da ditadura, o país transformara-se num barril de pólvora, prestes a explodir. O novo regime politico não conseguiria abrir perspectivas de desenvolvimento. A sociedade estava paralisada, consagrando-se "a utopia do impasse".14 14 Cf. Celso Furtado, 1966; Ruy Mauro Marini, 1969; Octavio Ianni, 1968; Caio Prado Jr. 1966 A expressão "utopia do impasse" foi utilizada por mim: Daniel Aarão Reis, 1991.

No quadro da derrota desmoralizante de 1964, as mais importantes tradições, correntes e lideranças das esquerdas brasileiras se encolheram, aturdidas. Trabalhismo (Partido Trabalhista Brasileiro) e comunismo (Partido Comunista Basileiro) desmoronaram como propostas politicas. Desenvolveram-se então, reforçando-se, organizações e partidos revolucionários favoráveis à luta armada que as circunstâncias, segundo eles, haviam imposto como alternativa inevitável. Mas não queriam apenas derrotar a ditadura. Pretendiam destruir o capitalismo como sistema. Aliás, entre ditadura e capitalismo estabeleciam íntima e indissiociável conexão. O capitalismo não mais existiria sem a ditadura. A ditadura era a garantia do capitalismo. Como irmãos xifópagos. A destruição de uma significaria a morte do outro. O resto eram ilusões de classe, para retomar um jargão da época.

Foram então elaborados audaciosos projetos, implementados por guerrilhas urbanas e focos guerrilheiros rurais. Entretanto, para surpresa dos revolucionários, a sociedade não acompanhou aquela gesta, massacrada pela polícia política sob os olhares complacentes ou indiferentes das grandes maiorias.

Houve então, desde 1974, uma dolorosa e penosa revisão crítica. Na sequência, no contexto da luta pela anistia, na segunda metade dos anos 1970, efetuou-se uma grande metamorfose: os projetos revolucionários derrotados transformaram-se na ala extrema da resistência democrática. Já ninguém quisera participar, ou empreender, uma revolução social, apenas aperfeiçoar a democracia e muitos não se privariam de dizer inclusive que lutavam apenas por um país melhor.15 15 Entre muitas outras, a mais notável expressão desta formulação foi a exposição Utópicos e rebeldes, organizada sob patrocínio da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2008, no mezanino do Palácio da Educação, no Rio de Janeiro, por ocasião das comemorações dos 40 anos de 1968. Bela exposição, envolvendo textos e cartazes, não mencionava uma única vez a palavra revolução. Fez-se o silêncio sobre a saga revolucionária. Ela saiu dos radares da sociedade. Desapareceu soterrada na memória coletiva.

O triplo silêncio vertebrou um pacto de sociedade, atualizando as formulações de E. Renan, que sustentava, sem sorrir, que uma nação, para se manter, deve-se mostrar capaz de recordar algumas coisas e de esquecer outras.16 16 Cf. E. Renan, 1992 O triplo esquecimento viabilizou a anistia, tal qual foi aprovada.

Segunda questão: a Lei da Anistia, tendo sido aprovada por um pacto de sociedade, estaria sujeita a eventuais revisões? A resposta é, evidentemente, positiva. Um pacto de sociedade, por sólido que seja, não configura uma interdição a futuras revisões, nem pode ser pensado como um tabu. Como uma Constituição, como qualquer tratado, tais pactos duram enquanto durarem as vontades e os interesses que lhe deram vida. Quanto estes se alteram, pode-se alterar-se o pacto que é sua resultante. Ademais, como se sabe, a lei da Anistia não é uma virgem há muito tempo. Foi revista e ampliada em 1985, 1988 e 2002.

Por outro lado, nossos vizinhos do Cone Sul, que também construíram e aturaram ditaduras, mostraram a viabilidade de revisões das respectivas Leis de Anistia, já ocorridas na Argentina, no Chile e no Uruguai.

Além disso, quando se fala em processar e, eventualmente, condenar os torturadores, é preciso considerar que eminentes juristas e líderes políticos argumentam, não sem razão, e desde a época da aprovação da Lei de Anistia, que esta não anistiava os torturadores. Há controvérsias a respeito. O que não anula o argumento acima defendido de que prevaleceu, em determinado momento, o silêncio sobre a questão. Mas silêncio não significa necessariamente que os torturadores teriam sido absolvidos ou formalmente anistiados.

Não é possível esquecer ainda que o Estado brasileiro subscreveu um acordo internacional declarando imprescritível o crime de tortura, por ser um crime contra a humanidade.

Finalmente, um fato politico relevante: ascenderam, em 2002, ao poder central, associados ao presidente Lula, ex-militantes das esquerdas revolucionárias, com concepções profundamente redefinidas em relação às que professavam nos anos 1970, mas insatisfeitos com o silêncio a respeito da tortura e dos torturadores.

Tudo isso tem impulsionado tentativas de questionamento dos silêncios pactados em 1979, a última das quais formulada pelo III Plano Nacional dos Direitos Humanos que provocou, e ainda provoca, grande celeuma. Embora eu não concorde com algumas formulações dos ministros Paulo Vanuchi e Tarso Genro, como se verá em seguida, estou de acordo em relação a um ponto essencial: é necessário rever tanto a Lei de Anistia aprovada em 1979 quanto o pacto de sociedade que a fundamentou e os silêncios implicados. Sustento que uma tal revisão poderia contribuir, de acordo com argumentos que aduzirei, para que tenhamos um país melhor, uma democracia mais sólida.

Agora, trata-se de saber se a maioria da sociedade, hoje, quer mesmo a revisão da Lei da Anistia. Tenho fundadas dúvidas a respeito disso, considerando-se as reações suscitadas pela iniciativa dos ministros Vanuchi e Genro e os desdobramentos evidenciados. Entretanto, como intelectual, não tenho porque me subordinar a eventuais maiorias. É próprio das democracias que as minorias não sejam obrigadas a se calarem diante de eventuais maiorias. É assim que as minorias podem tornar-se maiorias e as maiorias, minorias, o que faz parte do jogo democrático.

Uma terceira questão que interessa é saber se um processo de revisão da Lei da Anistia teria condições de aprofundar o debate sobre a ditadura e as lutas que se deram contra ela. Em caso de uma resposta positiva, isto seria estimulante e construtivo para a sociedade brasileira?

Inegavelmente, o período da ditadura tem sido debatido, particularmente nos cursos de ciências humanas das universidades públicas brasileiras. Mas não é menos evidente que tais discussões têm sido parciais, fragmentadas, soluçantes. Isto é bom para o país, para o futuro do país, para o futuro da democracia? Há controvérsias. Em recente polêmica, concernente especificamente à revisão da Lei da Anistia, expressivas lideranças políticas manifestaram-se em sentido contrário. Para elas, o esquecimento e o silêncio continuariam sendo as melhores receitas.17 17 Entre muitos outros, manifestaram-se Arthur Virgílio e Alfredo Sirkis, lideranças, respectivamente, do Partido da Social Democracia Brasileira e do Partido Verde. Tocar no assunto, seria mexer em casa de maribondos.

Não concordo. Dadas as nossas circunstâncias, penso que a sociedade poderia compreender-se melhor discutindo o passado. Como sabemos, esta é a melhor forma de pensar o presente e preparar o futuro. Afinal, a ditadura durou 15 anos. Esclareço que, para mim, a ditadura encerrou-se em 1979, com o fim dos Atos Institucionais e o restabelecimento das eleições, da alternância no poder, da livre organização sindical e partidária e da liberdade de imprensa. Esta, porém, é uma posição minoritária. Para a maioria dos estudiosos o periodo ditatorial teria se encerrado apenas em 1985 (eleição do primeiro presidente civil) ou mesmo em 1988 (aprovação da nova Constituição, fim do chamado entulho autoritário). Estas diferenças são muito simbólicas e interessantes, mas não vou pretendê-las discutir aqui e agora.

Mesmo se ficarmos com os 15 anos que proponho, é um tempo considerável. Não seria interessante discutir melhor uma ditadura que se instaurou sem dar praticamente um tiro e se retirou sem levar praticamente uma pedrada?

Estou convencido de que seria útil compreender melhor as complexas relações entre sociedade e ditadura. O seu caráter civil-militar. A participação maciça das gentes no momento de sua instauração. O desencanto posterior. O ano de 1968 e as mitologias associadas. O auge do chamado milagre econômico com suas ambivalências: anos de chumbo, mas também anos de ouro. O que prevaleceu para quem? O chumbo ou o ouro? Repressão, prosperidade, tortura, euforia auto-complacente, festas patrióticas, assassinatos, vitórias esportivas, auto-estima em ascensão, miséria galopante, desigualdades sociais.

A economia vai bem, mas o povo vai mal, diria o general Garrastazu Médici, o ditador mais sinistro e mais popular de todo o período ditatorial...E, depois, na segunda metade dos anos 1970, liquidadas as alternativas revolucionárias de esquerda, a retomada em grande estilo pelo governo Geisel da cultura política do nacional-estatismo e a convergência de direitas e esquerdas moderadas no processo que levou, finalmente, à restauração da democracia.

Nesses zigue-zagues e metamorfoses, quantas questões em aberto! Estudos pioneiros, alguns ainda em curso, já têm evidenciado mais que ambiguidades, ambivalências, trânsitos inesperados e surpreendentes. Veneráveis instituições já estão se tornando, ou podem se tornar objetos de estudos históricos, como, para ficar nas de tradições mais nobres, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros (CNBB), a Academia Brasileira de Letras (ABL), o Conselho Federal de Cultura (CFC), o Ministério das Relações Exteriores, os cursos de pós-graduação, a imprensa e os meios de comunicação. Sem falar nos órgãos repressivos, nas festas patrióticas, nos movimentos de direita... Quantas áreas de estudo, inesgotáveis, dinâmicas, preenhes de materiais altamente inflamáveis, reveladoras de uma nação impetuosa que tateava caminhos, em busca da sonhada e anelada modernização e que, decididamente, "ia pra frente".18 18 Entre os estudos concluídos e sem nenhuma pretensão de ser exaustivo: Beatriz Kushnir, 2004; Carlos Fico, 2004; Samantha V. Quadrat, 2004; Denise Rollemberg, 2008; Janaína M. Cordeiro, 2009; Adjovanes T.S. de Almeida, 2009; Paulo César Gomes Bezerra, 2010.

Num debate aberto sobre o periodo ditatorial, também seria possível rever a trajetória e as lutas das esquerdas, reformistas e revolucionárias, sucessos e derrotas, desde o período anterior ao golpe, passando pela ofensiva, derrotada, das esquerdas revolucionárias, até as articulações e a conjugação de forças nas lutas pela restauração democrática. Também aí são notáveis as metamorfoses, os deslocamentos de sentido e de ênfases que se prolongam até os dias de hoje, mas que se enraizam, sem dúvida, no período ditatorial, fazendo de uma sociedade, cujas maiorias participaram ativamente na construção da ditadura, uma outra, agora absolvida, que sempre resistiu, e bravamente, à ditadura.

Nesse sentido, pode-se dizer que o atual Programa Memórias Reveladas, do Arquivo Nacional, deveria ter um complemento ...e Ocultadas, porque nele não aparecem as aproximações, as cumplicidades, os apoios que vicejaram na sociedade à sombra sinistra, dura, mas, para muitos, generosa, da ditadura. Nas Memórias Reveladas, só se revela a resistência, uma palavra quase mágica, homogeneizante, uma espécie de passe-partout, através do qual tornam-se pardos todos os gatos.19 19 Diga-se, de passagem, que o programa referido do Arquivo Nacional, ressalvada sua importância, é um programa a mais que se insere num contexto maior de filmes, programas de televisão, livros didáticos, exposições e memoriais que apresentam, quase todos, a mesma linha interpretativa. Está em curso, sem dúvida, a elaboração de uma história oficial de esquerda, um gênero sempre criticado por estas mesmas esquerdas, mas agora retomado por elas, ou parte delas, uma vez entronizadas no poder. Nada de especialmente surpreendente, considerando-se o que já tinha se passado nas experiências do socialismo realmente existente, mas que eu não esperava presenciar em vida, embora compreenda a lógica subjacente e as motivações.

A contrapelo desta história oficial, há muitos baús a serem abertos, e não vejo como isso possa fazer mal à saúde da democracia brasileira. Mas há mais. É que todo este debate sobre a ditadura poderia ensejar o enfrentamento de mais uma questão, especialmente sensível e crucial: a tortura como política de Estado.

Em relação ao assunto, não posso dissimular divergências com o enunciado no referido Plano Nacional dos Direitos Humanos, embora veja como positiva a proposta de constituir uma Comissão da Verdade (antes tarde do que nunca!) e de abrir o debate a respeito. É que, ao contrário do que afirmaram os ministros Vanuchi e Genro, as práticas de tortura não foram obra de meia dúzia de boçais, nem constituíram o que se chamou pudicamente de "excessos", mas foram expressão de uma política de Estado.

Questão profundamente inquietante. Desde 1935 até 1979 passaram-se 44 anos. O país terá vivido, entre 1935 e 1945 e entre 1964 a 1979, portanto, durante 25 anos, com a tortura como política de Estado. Não é o caso de refletirmos sobre isso? Sabemos bem que a tortura não foi inventada pelas ditaduras. Ela é uma trágica tradição, ancestral, que se ancora na socidade colonial, depois, já o país independente, na sociedade escravista. Também sabemos que estas práticas infames continuaram depois das ditaduras, até os dias de hoje, largamente utilizada pelas polícias civil e militar, por milícias privadas de diversa natureza, por bandidos comuns e incomuns, quando não pelas próprias forças armadas quando investigam supostos crimes.

Uma realidade constrangedora, maldita

O que seremos, então? Uma nação de torturadores e de torturados? Conhecido por exportar técnicas de tortura, como o "pau-de-arara"? Será que as torturas não continuam a ser praticadas, ao menos em parte, porque a sociedade simplesmente não discute o assunto, não o transforma em objeto de um grande debate? Não se trata apenas de redimir a humilhação dos torturados.

A questão é mais ampla pois, como já disse, a tortura não apenas humilha os torturados, mas a inteira sociedade que silencia. De uma ampla discussão sobre esta questão sinistra, talvez pudéssemos chegar ao julgamento dos torturadores. Caberia aí uma penúltima questão: julgar os torturadores hoje não configuraria mesquinho revanchismo?

Por considerar que a tortura foi uma política de Estado repugna-me a caça a bodes expiatórios, inclusive porque estes, uma vez imolados, poderiam ocultar o debate mais importante e decisivo, sobre a tortura e seu contexto histórico, sobre a tortura como política socialmente aceita. Vejo aí duas hipóteses, duas vias.

A de uma Comissão da Verdade, no padrão da que existiu na África do Sul, depois do abandono do apartheid. Os torturadores foram então intimados a vir a público, confessar os crimes e as circunstâncias em que foram praticados, tendo então a garantia da anistia. Ou a do julgamento, assegurados os direitos de defesa e do contraditório, numa perspectiva menos de condenar torturadores do que de efetuar uma catarse da opinião pública nacional. Se forem julgados, nos casos de condenação, que os representantes eleitos da Nação considerem depois a oportunidade de anistiá-los.

Não procede a objeção de que seria necessário então julgar os dois lados, os torturadores e os torturados. Além da ressonância grotesca de um tal enunciado, é preciso recordar que os militantes de esquerda já foram interrogados, indiciados e julgados, ou torturados e mortos, os nomes nos processos judiciais, quando não estampados em cartazes e nas páginas dos jornais, apontados à execração pública. Já da tortura e dos torturadores praticamente nada se sabe, salvo denúncias informais e listas também informais que circulam desde os anos 1970.

A tortura, vale ainda aduzir, é crime contra a humanidade, imprescritível e o Estado brasileiro subscreveu um tratado internacional estatuindo a respeito do assunto não podendo, assim, fugir às responsabilidades assumidas.

Chego, finalmente, à última questão: até que ponto a revisão da Lei de Anistia, no contexto de uma amplo debate nacional, não contribuiria para ensejar a abertura dos arquivos das Forças Armadas sobre o período ditatorial? Uma questão espinhosa, porque, desde a restauração democrática, as três forças armadas têm sido arredias às tentativas e às pressões para que entreguem ou abram seus arquivos, em particular os arquivos dos serviços de informação: o do Centro de Informações do Exército (CIE), o do Centro de Informação e Segurança da Aeronáutica (CISA) e o do Centro de Informações da Marinha (Cenimar), que tiveram participação decisiva na derrota das organizações revolucionárias de esquerda, e que abrigaram equipes de investigação, de análise de informações e de torturadores.

Diante desse tipo de atitude, a sociedade e as lideranças políticas têm assumido um comportamento errático, porém, de forma geral, marcado pela conciliação e pela subserviência face aos ditames dos chefes militares. Assim, os governos civis, desde a restauração democrática, para além das diferenças substanciais entre eles, adotaram posturas equivalentes. Ou indiferentes, como se o assunto não lhes dissesse respeito, ou, quando o propuseram à discussão, cedendo face à negativa dos militares. Como explicar a rigidez dos chefes militares e a conciliação dos governos civis?

Em relação aos primeiros, sem dúvida, evidenciou-se a força das tendências corporativistas que, aliás, na sociedade brasileira, não são específicas das instituições castrenses. Mas este não me parece o aspecto essencial. O aspecto essencial é a cultura política que prevalece nas Forças Armadas, marcada ainda por convicções elaboradas no período da guerra fria, que atribuíam aos militares uma função de tutores da Nação, guardiões da ordem e da civilização cristã face ao perigo comunista.

A rigor, desde o fim do comunismo soviético e das transformações ocorridas no mundo socialista, os militares brasileiros vivem profunda crise de identidade: para que servem, exatamente? Quais seus papéis e funções na democracia brasileira? Quando os militares brasileiros passarão a se ver como aquilo que são: funcionários públicos uniformizados?

A sociedade brasileira não tem discutido o assunto. Os governos civis e as universidades apenas o afloram. O Ministério da Defesa até hoje é um simulacro. Seu titular e os chefes das três forças aparecem como comissários dos militares junto aos governos e não como ministros dos governos. A situação chega ao patético quando o ministro da Defesa, um civil em cargo civil, em visita de inspeção ao Haiti, veste uniforme de batalha como se fora um general em campanha. Para além do ridículo, atroz, uma atitude simbólica.

Discursos e documentos provenientes das Forças Armadas continuam sustentando que, em 1964, se iniciou no país uma revolução democrática, e não um golpe de Estado que instaurou uma ditadura. Uma esquizofrenia: de um lado, a Comissão da Anistia, órgão do Estado, pede, em nome do Estado, desculpas aos torturados pelos prejuízos e males, materiais e morais, provocados pelas torturas e pelos torturadores, indenizando-os de acordo com a lei. De outro, as Forças Armadas, instituições deste mesmo Estado, onde se realizaram as torturas como política de Estado, negam ter sequer existido torturas, salvo cometidas por indivíduos isolados, exceções lastimáveis à regra geral. Ora, o debate sobre a revisão da Lei de Anistia poderia, e deveria, contribuir ao questionamento, à revisão e à superação desta cultura política anacrônica e deletéria que faz das Forças Armadas brasileiras um quisto autoritário que é necessário remover.

Tratei de apontar algumas questões polêmicas sobre a Lei da Anistia e o debate que uma necessária revisão poderia ensejar. Servirão estas questões para desvelar a verdade? A busca da verdade é um trabalho incessante, como o de Sísifo. Ou um instantâneo, como se fora, na bela metáfora de Walter Benjamin, a breve claridade proporcionada pelo relâmpago num momento de tempestade. Brilha fugaz e efêmera, para ser logo depois engolida pelas trevas da tempestade.

O que tem me inspirado neste debate é a perspectiva de não ocultar, de não omitir, remando, se for o caso, contra a corrente, ignorando as censuras de esquerda e de direita, e tendo sempre em mente a bela frase de Byron: "A verdade é sempre estranha. Mais estranha do que a ficção".20 20 Truth is always strange, stranger than fiction. In: D. Juan, 1823.

Muito obrigado.

Daniel Aarão Reis

NOTAS

Artigo recebido em 30 de março de 2010 e aprovado para publicação em 8 de abril de 2010.

Daniel Aarão Reis é professor titular de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense Niterói, Brasil (daniel.aaraoreis@gmail.com).

Nota dos editores: O presente artigo foi apresentado como Aula Inaugural do Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais do CPDOC/FGV, em 22 de março de 2010, o que explica suas características de tamanho e linguagem.

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  • 1
    O conceito de
    consenso, na acepção com que o emprego, designa a formação de um acordo de aceitação do regime existente pela sociedade, explícito ou implícito, compreendendo o apoio ativo, a simpatia acolhedora, a neutralidade benévola, a indiferença ou, no limite, a sensação de absoluta impotência. São matizes bem diferenciados e, segundo as circunstâncias, podem evoluir em direções distintas, mas concorrem todos, em dado momento, para a sustentação de um regime político, ou para o enfraquecimento de uma eventual luta contra o mesmo. A repressão e, em particular, a ação da polícia política podem induzir ao consenso, ou fortalecê-lo, mas nunca devem ser compreendidas como decisivas para a sua formação.
  • 2
    Pouco depois, com a reformulação da Lei de Segurança Nacional, reduziram-se drasticamente as penas, o que permitiu que, afinal, fossem libertados todos os presos politicos. Mas estes seriam anistiados, no sentido pleno da palavra, apenas mais tarde, em 1985, quando foi revista a Lei de Anistia aprovada em 1979.
  • 3
    A discussão, de caráter politico-jurídico, arrasta-se até hoje e será objeto provavelmente ainda em 2010, de uma decisão do Supremo Tribunal Federal, provocada por uma ação da Ordem dos Advogados do Brasil. Seja qual for a decisão, no entanto, a discussão tende a perdurar.
  • 4
    Toda anistia implica silêncios. Ao contrário de certo senso comum, anistia não significa
    perdão, mas
    esquecimento.
  • 5
    Entre os primeiros, e precursoramente, o jornalista e político Marcio Moreira Alves. No contexto da Igreja Católica, destacou-se entre outros, a figura de dom Helder Câmara que, no exterior, e apesar das ameaças, denunciou abertamente, desde o início dos anos 1970, as torturas empreendidas pelos aparelhos repressivos. Sem falar nos militantes revolucionários e seus correligionários que, do exílio, na Europa, nos Estados Unidos e no mundo socialista, denunciavam, com persistência, a tortura como política do Estado brasileiro.
  • 6
    O livro foi publicado meses depois de entrevista concedida pelo autor, ainda no exílio, ao semanário
    O Pasquim e obtivera, então, grande repercussão.
  • 7
    Infelizmente, só há um trabalho acadêmico a respeito, sintomaticamente não publicado, o de Aline Alves Presot, 2004.
  • 8
    Cf. Janaína Martins Cordeiro, que, em pesquisa em curso para sua tese de doutoramento a respeito das comemorações do Sesquicentenário da Indepedência, realizadas em 1972, encontrou, em pesquisas do IBOPE (São Paulo e interior), índices de aprovação de 84% ao general.
  • 9
    Cf. Lucia Grinberg, 2009.
  • 10
    Expressão recorrentemente usada por um dos maiores cronistas políticas da época da ditadura, Carlos Castello Branco, colunista do
    Jornal do Brasil, que assim denominava
    em linguajar gótico, característico, a comunidade de segurança, ou de informações, onde se encontravam os torturadores. Uma seleção de crônicas deste autor foi reunida, mais tarde, em livros que constituem importantes subsídios para a história política da ditadura (cf. Carlos Castello Branco, 1975 e 1976).
  • 11
    Eu mesmo empreguei o termo, e quantas vezes, inclusive em título de livro, contribuindo para consolidar uma tradição equivocada, do que hoje me arrependo.
  • 12
    1966: derrota do foco guerrilheiro de Caparaó. 1973: derrota do foco guerrilheiro do Araguaia
  • 13
    O termo, cunhado por Carlos Nelson Coutinho, demarca processos reformistas que adquirem alcance transformador, revolucionário (cf. Coutinho, 1984).
  • 14
    Cf. Celso Furtado, 1966; Ruy Mauro Marini, 1969; Octavio Ianni, 1968; Caio Prado Jr. 1966 A expressão "utopia do impasse" foi utilizada por mim: Daniel Aarão Reis, 1991.
  • 15
    Entre muitas outras, a mais notável expressão desta formulação foi a exposição Utópicos e rebeldes, organizada sob patrocínio da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2008, no mezanino do Palácio da Educação, no Rio de Janeiro, por ocasião das comemorações dos 40 anos de 1968. Bela exposição, envolvendo textos e cartazes, não mencionava uma única vez a palavra
    revolução.
  • 16
    Cf. E. Renan, 1992
  • 17
    Entre muitos outros, manifestaram-se Arthur Virgílio e Alfredo Sirkis, lideranças, respectivamente, do Partido da Social Democracia Brasileira e do Partido Verde.
  • 18
    Entre os estudos concluídos e sem nenhuma pretensão de ser exaustivo: Beatriz Kushnir, 2004; Carlos Fico, 2004; Samantha V. Quadrat, 2004; Denise Rollemberg, 2008; Janaína M. Cordeiro, 2009; Adjovanes T.S. de Almeida, 2009; Paulo César Gomes Bezerra, 2010.
  • 19
    Diga-se, de passagem, que o programa referido do Arquivo Nacional, ressalvada sua importância, é um programa a mais que se insere num contexto maior de filmes, programas de televisão, livros didáticos, exposições e memoriais que apresentam, quase todos, a mesma linha interpretativa.
  • 20
    Truth is always strange, stranger than fiction. In:
    D. Juan, 1823.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010

    Histórico

    • Recebido
      30 Mar 2010
    • Aceito
      08 Abr 2010
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