Open-access Por uma história negra

For a black history

Por una historia negra

Resumo

O artigo tem a finalidade de discutir o conceito de história negra. Para tanto, examina aspectos dos textos de alguns historiadores afro-brasileiros, do passado e presente. O conceito, em processo de burilamento, refere-se à produção histórica de autores negros, autodeclarados ou não, que pesquisam temáticas racializadas à luz de um lugar de enunciação política e culturalmente afroidentificado.

Palavras-chave:
Historiografia; História negra; Afro-brasileiro; Raça; Identidade

Abstract

The article aims to discuss the concept of black history. To this end, it examines aspects of the texts of some Afro-Brazilian historians, past and present. The concept, in the process of refinement, refers to the historical production of black authors, self-declared or not, who research racialized themes in the light of a politically and culturally Afro-identified place of enunciation.

Keywords:
Historiography; Black history; Afro-Brazilian; Race; Identity

Resumen

El artículo tiene como objetivo discutir el concepto de historia negra. Para ello, examina aspectos de los textos de algunos historiadores afrobrasileños, del pasado y del presente. El concepto, en proceso de perfeccionamiento, se refiere a la producción histórica de autores negros, autodeclarados o no, que investigan temas racializados a la luz de un lugar de enunciación política y culturalmente identificado como afro.

Palabras clave:
Historiografía; Historia negra; Afrobrasileño; Raza; Identidad

Introdução

Em artigo de 1974, Beatriz Nascimento indagava: como abordar a “história do negro no Brasil?”. Somente por um “enfoque etnográfico, religioso, socioeconômico, ou seja, fragmentariamente, como de um modo geral vem sendo feito de forma brilhante?” (Nascimento, 2021[1974]: 38). Segundo a historiadora e ativista negra, uma das pesquisas mais sérias sobre o assunto foi a realizada por Florestan Fernandes em A integração do negro na sociedade de classes, livro de 1964. Consistia num tipo de abordagem rico em “dados” e “números”, que levava alguns estudiosos a um “conhecimento maior de nossa problemática” de uma perspectiva “da classe ou da mobilidade social”.

Apesar de reconhecer que esse tipo de abordagem era uma “forma primordial dos estudos históricos atuais”, Beatriz Nascimento (2021[1974]: 38-39) considerava-o, para a história do negro brasileiro, “uma fragmentação um tanto perigosa, porque pretende, na constatação de aspectos, explicar o todo”. Um trabalho que “trate de um povo como nós tem que levar em conta aspectos não apenas socioeconômicos como também raciais”. A seu ver, “o branco brasileiro de um modo geral, e o intelectual em particular, recusa-se a abordar as discussões sobre o negro do ponto de vista da raça. Abomina a realidade racial por comodismo, medo ou mesmo racismo”. Desse modo, “perpetua teorias sem nenhuma ligação com nossa realidade racial. Mais grave ainda, cria novas teorias mistificadoras, distanciadas dessa mesma realidade”. A partir desse diagnóstico, Nascimento (2021[1974]: 45) asseverava:

A história da raça negra ainda está por fazer, dentro de uma história do Brasil ainda a ser feita. Esse projeto é difícil. É um desafio. Este desafio, aceitei-o totalmente a partir do momento em que um intelectual branco me disse que era mais preto do que eu. Foi para mim a afirmação mais mistificadora, mais sofisticada e mais desafiadora. Pensa ele que basta entender ou participar de algumas manifestações culturais para se ser preto; outros pensam que quem nos estuda no escravismo nos entendeu historicamente. Como se a história pudesse ser limitada no ‘tempo espetacular’, no tempo representado, e não o contrário: o tempo é que está dentro da história. Não se estuda, no negro que está vivendo, a história vivida. Somos a história viva do preto, não números.

Na avaliação de Nascimento (2021[1974]: 45), não podemos aceitar que a história da população negra no Brasil seja entendida “apenas através dos estudos etnográficos, sociológicos”. As pessoas negras devem fazer a sua história, buscando elas mesmas, jogando seu inconsciente, suas frustrações, seus complexos, estudando-os, não os negando. A seu ver, “só assim poderemos nos entender e nos fazermos aceitar como somos, antes de mais nada pretos, brasileiros, sem sermos confundidos com os americanos ou africanos, pois nossa história é outra, como é outra nossa problemática”.

Em outro artigo de 1974, Nascimento retomava o assunto, qual seja, o projeto de uma história negra: “É tempo de falarmos de nós mesmos não como ‘contribuintes’ nem como vítimas de uma formação histórico-social, mas como participantes dessa formação”. Na sua concepção, não é uma tarefa nada fácil para as pessoas negras que se dispõem a estudar a história de seus patrícios: a começar pela elaboração de “uma metodologia adequada e de uma outra conceituação não só no nível do estudo em si, porém, na utilização de conceitos que vão ao encontro daqueles universalizados pela dominação ocidental” (Nascimento, 2021[1974]: 53). Portanto, para Nascimento (2021[1974]: 53), desenvolver uma metodologia de estudo para a história negra, consiste num grande desafio:

Pois, impregnado de uma cultura em todos os sentidos branca e europeizada, se faz necessário perguntar a si próprio se determinados termos correspondem à sua perspectiva, se não somente reflexos do preconceito, repetidos automaticamente sem nenhuma preocupação crítica. Ou seja, se não estamos somente repetindo os conceitos do dominador sem nos perguntarmos se isso corresponde ou não à nossa visão das coisas, se esses conceitos são uma prática, e, caso sejam uma prática, se isso é satisfatório para o negro.

Como se pode notar, Nascimento teceu críticas contundentes ao mainstream da historiografia brasileira — quer por enfocar as discussões sobre o negro por um viés de classe (socioeconômico) e não racial, quer pela perpetuação de mistificações e estereótipos. Talvez por isso ela declarou ter aceitado o desafio de produzir uma história negra da nação. Apesar da promessa, ela não o fez. Isso, porém, não dissipa a importância de suas reflexões em torno da necessidade da formulação de novas narrativas, abordagens e dispositivos teórico-analíticos para se apreender as experiências afro-brasileiras ao longo do tempo.

Em última instância, Nascimento esboçou uma proposta de uma história negra. Seu pressuposto é de que existe uma história específica desse segmento populacional, que ainda não foi descortinada pelas obras dos autores brancos, em decorrência de suas abordagens deficientes, carregadas na tinta da arrogância, do paternalismo e do etnocentrismo. Partindo desse pressuposto, este artigo se lança a problematizar uma questão central: o que é história negra? E como conceituá-la nominalmente? Para tal empreitada, deve-se levar em conta quais critérios norteadores: a autoria, a temática ou o ponto de vista da produção histórica?

O cenário

Diferentemente da época dos arrazoados de Nascimento, a história negra, na atualidade, passa por uma fase alentadora de realizações, que possibilitam a ampliação de seu corpus, de sua circulação e recepção, além da inovação de suas narrativas, conectadas ao debate em prol de sua legitimação acadêmica como campo específico de produção histórica — distinto, porém, em contínuo diálogo, para não falar imbricamento, com a historiografia brasileira tout court. Enquanto ainda se interpela se a história negra realmente existe, cada vez mais a pesquisa aponta para a pujança dessa escrita, que atravessa tempos e espaços diversos, denotando o seu caráter heterogêneo e multifacetado.

A partir do século XXI, a população afro-brasileira tornou-se sujeito de direitos no contexto de uma nação em busca da superação do fantasma do racismo. Na arena intelectual, houve a fundação da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), em 2000, tendo como finalidade congregar os pesquisadores afro-brasileiros, além de fomentar o desenvolvimento de epistemologias negras à luz da experiência afrodiaspórica e de outros sistemas de conhecimentos alternativos ao cânone. Os intelectuais negros que organizaram, fundaram e participam da ABPN são “também aqueles que, na sua maioria, integram, fundam e coordenam os vários Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (NEABs) existentes no país”, que tematizam as diversidades étnico-raciais a partir das ações de ensino, pesquisa e extensão (Gomes, 2010: 501).

Na esteira do debate sobre novas epistemologias, ganharam força no Brasil tanto os estudos e teorias pós-coloniais e decoloniais, quanto as investigações e discussões sobre intelectuais negros. Não para menos. Ao “reivindicar o direito ao conhecimento e o direito como produtores de conhecimento, os intelectuais negros desnaturalizam o cânone e ajudam a desvelar o quanto ele sempre foi racial, androcêntrico, eurocêntrico e classista” (Gomes, 2010: 508-509). Por sua vez, esse questionamento exige desses intelectuais estofo e competência para produzirem um conhecimento “denso que se coloca como alternativa ao cânone e aos ideais da branquitude nele presentes” (Gomes, 2010: 508-509). Promotores de uma contribuição importante à recuperação da história, das aspirações e da memória afro-brasileiras, os intelectuais negros “são sujeitos autoconhecedores dessa história e das lutas do seu povo e as interpretam, reinterpretam, analisam e investigam no interior da ciência” (Gomes, 2010: 508-509).

Esse contexto de promoção do multiculturalismo em nome do direito ao reconhecimento da diferença, à reparação, ao orgulho racial e à emergência de outros referenciais epistemológicos se refletiu na historiografia brasileira. Em 2015, articulou-se a Rede de Historiadores Negros (RHN), cujo primeiro gesto de afirmação como coletividade se deu durante o XXVIII Simpósio Nacional de História. Embora houvesse um número representativo de historiadores negros apresentando suas pesquisas em simpósios temáticos, essa presença não se notou na composição das “conferências” e “diálogos contemporâneos”. Os destaques da programação foram reservados a historiadores brancos, algo, aliás, que dava a tônica nas edições do evento.

A partir dali, a RHN iniciou um trabalho de articulação intelectual e política, impulsionando uma série de eventos. Por exemplo, de maio a novembro de 2020, a rede realizou a Jornada em Defesa do Direito à História da Gente Negra; a Jornada de História das Mulheres Negras, celebrando o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha; a Jornada “A Abolição do Tráfico Transatlântico de Africanos Escravizados: os 170 Anos da Lei Euzébio de Queirós” e a “Jornada do Novembro Negro: legados e perspectivas da Lei nº 10.639/03”. Em 2021, a rede selou parceria com o portal do Geledés e o Acervo Cultne, criando a coluna semanal “Nossas Histórias”, cujo conteúdo agrega artigos, vídeos e a indicação de atividades pedagógicas de acordo com as orientações da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Já em 2022, a parceria foi com o portal UOL, que inaugurou a coluna “Presença Histórica” — sobre assuntos históricos “sob perspectiva negra”, com a publicação de artigos de membros da rede (PINTO, 2021).

Ao longo dos anos, a RHN tem crescido, seja em termos de reconhecimento por parte da Associação Nacional de História (ANPUH), seja em termos de capilaridade, com inserção nas diferentes regiões do país, desenvolvendo práticas de auxílio mútuo (incluindo docentes do Ensino Superior e da Educação Básica, e estudantes de graduação e pós-graduação); de partilha de agendas e paradigmas de pesquisa e de ampliação da participação de seus membros em projetos de história pública, formação de professores e história ensinada. A RHN tem o intuito de desenvolver um trabalho dentro e fora da academia, fomentando diálogos e interações com educadores, ativistas dos movimentos sociais e demais segmentos defensores de uma história emancipadora, comprometida com a diversidade, os direitos humanos e a democracia.

Fato é que a produção de historiadores que assumem seu pertencimento como sujeitos vinculados a uma origem afrodescendente cresce em volume e começa a ocupar cada vez mais espaço na historiografia brasileira, ao mesmo tempo que as demandas das coalizações negras e antirracistas se ampliam e adquirem visibilidade nacional. Nesse quadro, desponta um debate candente sobre o “pacto da branquitude”, com seus reflexos entre clio e mnemosine, porém ainda são escassas as reflexões acadêmicas dedicadas especificamente à produção de uma história negra.

Ventilar um conceito

O conjunto das obras de Clóvis Moura (1925-2003) contribui, peremptoriamente, para os delineamentos conceituais de uma escrita de história negra. Em Rebeliões da senzala, livro de estreia publicado em 1959, Moura defendia a tese de que a violência sistêmica caracterizou a luta dos negros contra a ordem escravocrata no Brasil, contrapondo-se à concepção de que, no país, engendraram-se relações escravistas harmoniosas, uma antiga ideia ressoada por Gilberto Freyre no início da década de 1930. O alvo principal de Moura era a historiografia “tradicional”, que tomava a luta escrava — quando ocorria, pois o que predominaria nessas narrativas era a passividade do escravizado frente à sua própria condição — como manifestação característica de desorganização, desarmonia e anomia social.

Moura desloca o seu olhar para a agência dos sujeitos históricos, ou seja, para a premência da práxis negra na desconstrução do modo de produção escravista no período da Colônia e do Império. Sem desconsiderar as estratégias de controle e dominação dos senhores, sua lupa privilegia o escravo (ou, em termos mais precisos, o escravizado). Dessa forma, o livro é uma tentativa de sistematizar todas as expressões dessa resistência escrava: da participação em movimentos políticos (de forma associada a outras camadas sociais) à formação de guerrilhas, insurreições e sociedades paralelas à colonial (como os quilombos, especialmente).

As ações dos escravizados contra a ordem escravista seriam coordenadas e politicamente orientadas. Em vez de massa disforme, alienada, sem vontade própria — a não ser a de seu senhor — , os escravizados se constituiriam como força social e política, informados por valores, práticas e sentidos, nos limites das condições históricas e materiais da sociedade escravista. Dentro desse processo, destaca-se o aquilombamento. Além de assinalar a rebeldia quilombola como expressão da contradição fundamental do sistema escravista, Moura realçava o papel ativo da população negra na formação civilizacional da nação, não só do ponto de vista cultural, mas também social, político e econômico.

Desde então, Moura distinguiu-se pela crítica à corrente de historiadores que classificava como “tradicional” e politicamente conservadora, assim como pela rejeição a determinadas representações sobre o negro — docilidade, passividade e masoquismo —, a sua coisificação e redução à categoria “escravo”. A partir dessas críticas, Moura desenvolveu o seu projeto intelectual, procurando compreender a experiência negra à luz das questões de raça e classe, combinadamente.

Quatro décadas depois de Rebeliões da senzala, Moura publicou o livro História do negro brasileiro, em 1989, e formula o conceito de “quilombagem”, que seria um movimento no qual o quilombo, como unidade básica do processo de resistência do negro, articulava-se a outras formas de luta emancipatória. A quilombagem não se trataria de um movimento de negros organizados em grupos isolados, sem penetração nas cidades; ao contrário, seria um movimento que, atuando em várias frentes, tinha o quilombo — em função de sua quantidade e continuidade histórica — como um núcleo catalizador de várias manifestações de resistência negra (cultural, política e ideológica).

Em 1977, veio à tona Negro: bom escravo, mau cidadão?, livro no qual Moura examina o processo de marginalização do negro na sociedade de classes. Diferentemente do que postulavam Florestan Fernandes e a Escola Paulista de Sociologia, Moura não entende que a “herança da escravidão” e os seus impactos sobre liberto foram entraves à integração à sociedade capitalista no pós-abolição. Ou seja, não teria sido a condição de ex-escravizado que impediu a integração deste na sociedade competitiva de classes, mas, de forma combinada, “o limite histórico da luta dos escravos contra o sistema escravista, o controle pelas classes dominantes dos instrumentos econômicos e, por último, a política imigrantista do estado brasileiro” (Moura, 1977: 20-21). Seria antes nas estruturas racistas do que no negro que se devia procurar os fatores que explicavam a sua marginalização do processo produtivo.

No decorrer dos anos 1980, a obra de Moura foi apropriada pelos ativistas negros como uma das principais referências bibliográficas para se conhecer a história afro-brasileira e subsidiar os debates e embates no campo das relações raciais. É nesse contexto que ele publicou Brasil: as raízes do protesto negro, em 1983, livro no qual coligiu diversos textos que se interligavam pela temática do “negro emergente”. Para Moura, a nação vivia um dilema: “de um lado a posição tradicional dos diversos setores que teimam em não aceitar a existência de um movimento social negro emergente, e, de outro, os negros que estão se conscientizando de que são uma força tanto maior quanto mais organizada e contestadora” (Moura, 1983: 14). A seu ver, a negritude estava se constituindo em um movimento de libertação dos negros e dos oprimidos da exploração econômico-social. Dessa forma, tornava-se força social e política com capacidade de incidir na materialidade do mundo social e definir os rumos do desenvolvimento social.

Já na sua fase madura, Moura publicou Dialética radical do Brasil negro, obra de 1994, na qual sustenta a tese de que o racismo faz parte da formação histórica da nação, estruturando e conformando o conjunto das relações sociais, desde o período da escravidão até o tempo presente. O livro está dividido em quatro partes: “Do escravismo pleno ao escravismo tardio”; “População, miscigenação, identidade étnica e racismo”; “Linguagem e dinamismo cultural do negro” e “Especificidade e dinamismo dos movimentos de São Paulo” (Moura, 1994).

A produção historiográfica de Moura, um autor que se declarava negro, enveredando pelo registro de um amplo repertório da vida dos afro-brasileiros, como individualidade e coletividade, no período da escravidão e do pós-Abolição, à luz de abordagens alternativas ao cânone e narrativas centradas na agência daqueles sujeitos e na insurgência do antirracismo, talvez descerre uma modalidade de história negra.

Decifrar a esfinge

Mas, afinal, como conceituar o termo “história negra”? Uma possibilidade é centrar-se no eixo temático da história, sem levar em conta o pertencimento étnico-racial e a perspectiva autoral. Desse ponto de vista, o menos importante é a cor do autor, o que permite pensar que desde Gilberto Freyre (1933), passando por Florestan Fernandes (1964), Emília Viotti da Costa (1966) e Jacob Gorender (1978), até Sidney Chalhoub (1990), Silvia Lara (1988), Célia Marinho de Azevedo (1987), Hebe Mattos de Castro (1995), Maria Helena Machado (1994) e Lilia Schwarcz (1993) produziram (ou produzem) uma história negra. Esse conceito não se configura como tendência, mas a supremacia do critério temático indica a força do “pacto da branquitude” na historiografia brasileira. Embora se reconheçam as divergências e dificuldades para o estabelecimento de uma clio negra, já que não existe uma clio branca, há diferenças essenciais entre a história escrita por afro-brasileiros e euro-brasileiros?

Diante das limitações do critério temático, pode-se confabular uma solução conciliatória que propõe um duplo sentido para o conceito. Em stricto sensu, seria negra uma história produzida por pessoas de origem afrodescendente e, como tal, expressão de visões de mundo, de ideologias e de um ethos que, condicionados por questões sociais e históricas, caracterizam-se por uma especificidade cultural, de que são exemplos os livros de Nei Lopes (Bantos, malês e a identidade negra, 1988) e Joel Rufino dos Santos (Zumbi, 1995). Já em lato sensu, seria a história produzida por qualquer pessoa, independentemente de sua origem étnico-racial, desde que relevadora das experiências peculiares à população negra. Esse é o caso de João Ribeiro, com a sua obra O elemento negro, de 1935.

Pela primeira definição, tem-se o negro como sujeito; já pela segunda, tem-se a condição negra como objeto. Esse conceito dual abrangeria tanto a “história do negro” quanto a “história sobre o negro”. Tal dicotomia limita a validade do conceito, uma vez que se remete quer à narrativa empenhada na valorização das experiências históricas dos afrodescendentes quer o seu oposto — a produção descompromissada, que tende a subestimar as experiências desse segmento populacional e/ou reproduzir discursos ligados à semântica da democracia racial.

Na busca da melhor definição para uma história negra, é possível adotar o critério temático e ao mesmo tempo relativizá-lo ou associá-lo a clivagens de outra natureza? Para responder a essa pergunta, é de bom alvitre ponderar se a história negra promove uma inversão de valores, instituindo uma nova ordem simbólica oposta à história hegemônica, além de ressignificar o eu enunciador. Sem dúvida, a edificação de uma história negra faz-se a partir do lugar de sujeito da enunciação, fato que possibilita a reescrita da história da perspectiva das pessoas negras. Revelando-se como espaço privilegiado da manifestação da subjetividade, a história negra significaria uma afirmação identitária, refletindo ora o trânsito da alienação à conscientização racial, ora o ato de reapropriação de uma narrativa existencial.

Nesse caso, não é fundamental a cor da pele do historiador, mas a enunciação do pertencimento ou, antes, a distensão da voz individual rumo à identificação com a coletividade. Esse conceito pressupõe que qualquer pessoa poderia se identificar existencialmente com a condição de afrodescendente. Como se pode observar, existe um nó a ser desatado. A partir desse suscinto debate da questão, pode-se presumir que “história negra” é um conceito complexo e ambíguo, carregado de nuances e diferentes sentidos e significados, o que, de um lado, limita sua eficácia teórico-analítica, de outro, potencializa seu uso empírico-nominalista.

Diante desses dilemas, não seria mais pertinente empregar a expressão “história afro-brasileira”? O sufixo “afro-brasileiro”, por sua própria configuração semântica, seria mais abrangente e palatável. Isso porque remeteria a hibridações culturais e gradações étnico-raciais cujos pertencimentos e continuun de cores incluíram as experiências históricas dos “pretos” e “pardos”. No entanto, dado o seu caráter não essencialista, o termo “afro-brasileiro” é acusado pelos movimentos antirracistas de diluir o sentido político de afirmação identitária embutido na palavra “negro”. Assim, por abarcar toda a gama de variações fenotípicas inerentes à mestiçagem, termos como “afro-brasileiro” ou “afrodescendente” têm sido evitados.

Polêmicas de cunho político à parte, certo é que não há no Brasil uma história negra pura, tomando aqui tal vocábulo como sinônimo de herança africana intacta. Nem a África é uma só, como demonstra Kwame Appiah (1997), nem as histórias do Atlântico Negro são experiências procedentes unicamente do continente africano, como assevera Paul Gilroy (2001). Num universo cultural afro-diaspórico como o brasileiro, onde experiências históricas e discursos memorialísticos são constantemente reelaborados ou, antes, ficam sujeitos a hibridismos, insistir numa abordagem essencialista pode gerar mais engessamentos e controvérsias do que instrumentais analítico-críticos eficientes para responder aos desafios do contexto.

É inegável que o signo afro-brasileiro, aplicado à produção histórica como requisito de autoria e marca de origem, constitui um desestabilizador de sentido ao conceito de história brasileira, especialmente quando essa é indexada como filial da matriz eurocentrada. Conquanto tão relevante quanto o sujeito de anunciação, em que autor da narrativa se autoproclama negro ou afro-brasileiro, é a perspectiva enfeixada. Exemplos disso podem estar na produção de Beatriz Nascimento (2021) e, mais recentemente, de Wilson Roberto de Mattos (2008) e Giovana Xavier (2021). Assim, tão importante quanto a assunção da origem étnico-racial é o lugar a partir do qual o autor expressa sua visão de mundo.

Diante disso, é possível postular que o conceito de “história negra”, ou mesmo “afro-brasileira”, revela-se nos estudos históricos brasileiros desde as obras de Manuel Querino (A raça africana e os seus costumes na Bahia, de 1917; O colono preto como fator da civilização brasileira, de 1918), com as ambivalências, decerto, que aquele contexto lhe impôs, em especial no tocante ao discurso racializado. Também se faz presente nos escritos de Evaristo de Moraes (A campanha abolicionista, de 1924; Escravidão africana no Brasil: das origens à extinção, de 1933) e, de modo mais assertivo, nos de Edison Carneiro (Situação do negro no Brasil, de 1934; Guerra de los Palmares, de 1946), um autor que reivindica o campo dos estudos afro-brasileiros como indissociável do reconhecimento da história e das práticas de resistência negras. Referenciado pela RHN, inclusive por alguns historiadores que participam dos simpósios temáticos sobre a escravidão e o pós-abolição nos encontros da ANPUH, o conceito de “história negra”, ao que parece, ganha contornos de uma esfinge a ser decifrada.

Torna-se importante atinar para o risco dos critérios étnico-racial e temático configurarem uma censura prévia aos autores, o que poderia confinar essa escrita da história ao gueto, distanciando-a, assim, das instâncias de reconhecimento e legitimação. O ideal é a história negra se valer de um critério pluralista, de natureza multifária, que permita inscrevê-la como uma das facetas da historiografia brasileira (Domingues, 2019:124-126) — esta mesma sendo apropriada como uma unidade formada de diversidades.

Em suma, que elementos compósitos distinguiriam a história negra? No bojo das discussões conceituais, alguns marcadores podem ser destacados: uma voz autoral afrodescendente, explícita ou não na escrita; a escolha de temas afro-brasileiros e, talvez sobretudo, um ponto de vista ou lugar de enunciação política e culturalmente identificados à experiência negra. Cientes de que se trata de um conceito em consagração, passemos em revista mais acuradamente cada um desses elementos.

A temática

O tema é um dos fatores que concorrem para a definição do enquadramento de um texto à história negra. O assunto da pesquisa tem que estar relacionado à experiência afro-brasileira, com as tramas e os personagens sendo enfocados não só no plano individual (humano), como também na dimensão coletiva (familiar, comunitária, social e cultural). Desse modo, pode contemplar a reconstituição da história desde a África Pré-Colonial, passando pela travessia transatlântica na aurora da modernidade, até a experiência diaspórica no Brasil, o que abrange a escravidão colonial, a trajetória e agência dos escravizados e suas formas de resistência; as emancipações e as ações em prol da liberdade, as memórias do cativeiro e os legados civilizacionais; o pós-Abolição, o protagonismo negro, formas de associativismo, protesto e luta no campo dos direitos e cidadania e os dilemas e desafios do tempo presente relacionados à conquista da igualdade. A obra de Clóvis Moura (1989), ladeada da de Wlamyra Albuquerque (2009) e Walter Fraga Filho (2006), responde por essa pauta em vários aspectos.

Contudo, a escolha de uma temática afro-brasileira e de uma abordagem centrada nas condições de vida — social, econômica, política, cultural e religiosa — desse segmento populacional, no passado e presente, não pode ser considerada obrigatória para os autores negros, nem se converter numa camisa de força essencialista. A produção do próprio Clóvis Moura é uma evidência disso, pois esse autor, além do assunto negro, debruçou-se em torno de outras questões, como a resistência à ditadura militar (Moura, 1985).

Por outro lado, nada impede que a temática negra faça parte dos textos escritos pelos historiadores brancos. Desde a formação do Estado Nacional no século XIX, diversos autores desse segmento populacional se interessaram em investigar, documentar e perscrutar aspectos das experiências e tradições negras (individuais e coletivas), durante a escravidão e o pós-Abolição. Dessas investigações vieram à lume textos hoje considerados seminais, como os de Perdigão Malheiros (1976 [1867]), João José Reis (1986), Luiz Felipe de Alencastro (2000) e Hebe Mattos e Ana Lugão (2005). No entanto, faz-se necessário enfatizar: para a classificação de história negra, a escolha da temática não deve ser tomada isoladamente, mas em combinação com outras clivagens como a autoria e o ponto de vista.

A autoria

A instância da autoria na história é das mais espinhosas, pois a classificação implica levar em conta trajetórias biográficas ou características fenotípicas, com todo o cipoal de questões subjetivas daí decorrentes. Há que se atentar para o sentido ampliado da categoria “afro-brasileiro”, a fim de abarcar as identidades compósitas provenientes do processor de miscigenação, evitando, assim, o risco de reduzir essa produção ao racialismo, entendido como utilização, por quem quer que seja, de temas relacionados aos negros. Indo além do reducionismo temático e vendo a questão de outra perspectiva, pode-se enquadrar a produção de Manolo Florentino (1997) — autor que, apesar de origem afrodescendente, não reivindicava para si tal condição — como de história negra?

No extremo oposto ao racialismo, existem historiadores que, para além de não politizarem sua origem afrodescendente, não incluem tal pauta em seu projeto intelectual, a exemplo de Lincoln Secco (2008). Isso indica a necessidade de evitar o determinismo racialista, que levaria a apreender o texto a partir de fatores externos a ele, no caso, a cor da pele do historiador. Faz-se mister perceber a autoria não como um dado “exterior”, mas antes uma instância conectada à materialidade da construção da narrativa histórica. Por esse viés, desvelam-se aspectos novos tanto nos escritos de Luiz Geraldo Silva (2015), quanto nos de Wilson do Nascimento Barbosa (2006) e Roberto Guedes (2008), historiadores afrodescendentes que não conferem centralidade à questão racial em suas investigações.

A instância da autoria como fundamento para a existência da história negra deriva da importância atribuída à interação entre escrita e experiência, que alguns autores – como Iraneide Soares da Silva (2021), ex-presidenta da ABPN – fazem questão de sublinhar, seja como compromisso de representação identitária, seja como inerente à sua própria formação ético-política. Chamam a atenção os ímpetos que levam alguns historiadores a se arvorarem a voz e a consciência da comunidade, como é a postura de Martiniano Silva (1995).

Por seu turno, a inscrição da experiência histórica marcada por obstáculos de toda ordem tem sido a tônica na produção negra, a entrelaçar a memória e história com o testemunho. Nos domínios da memória do cativeiro, destaca-se o livro Depoimento de escravos brasileiros, que traz o relato de três ex-escravizados de partes diferentes do país, com informações valorosas de suas experiências (Maestri Filho, 1988). Já do período do pós-Abolição, sobressai a obra ...E disse o velho militante José Correia Leite, que apresenta os depoimentos e artigos escritos por essa liderança afro-paulista, cuja trajetória de vida foi dedicada à causa da igualdade racial (Leite, 1992).

Ultimamente, historiadores negros têm produzido biografias de famílias de origem africana, da época da escravidão ao tempo presente (Silva, 2018), ou mesmo reconstituído a trajetória de suas próprias famílias, como é caso de Lucimar Felisberto Santos (2021). Traços autobiográficos atravessam as páginas de vários historiadores negros, do passado e do presente. Todavia, seus textos não se convertem, inexoravelmente, ao estatuto de escrevivência (Evaristo, 2005). Para que isso ocorra, a autoria deve estar conjugada ao ponto de vista, dialeticamente. História é narrativa e a cor da pele assume relevância como tradução textual de uma experiência histórica própria ou coletiva.

O ponto de vista

A perspectiva adotada sinaliza a visão de mundo autoral e o universo ideológico reverberado na escrita da história, ou seja, consiste no conjunto de valores que fundamenta as escolhas dos objetos de investigação, dos recortes temporais e espaciais, das problemáticas, dos arcabouços teóricos, das fontes, enfim, dos contornos da realização da pesquisa cujo produto final é o texto. Diante disso, a origem étnico-racial do historiador ou a utilização de um tema afrodiaspórico são insuficientes. É necessária ainda a assunção de uma perspectiva para abordar o passado da população negra, com todos os desafios inerentes à apreensão de suas experiências de vida (cosmovisões, tradições e costumes).

Ao inventariar a produção de autoria negra, percebe-se que a história e cultura afro-brasileira já foi interrogada por diversas angulações: pela chave da “sobrevivência africana” (Querino, 1917), dos “estudos afro-brasileiros” (Carneiro, 1988), da “raça e classe” (Moura, 1989) e do “quilombismo” (Nascimento, 1980). Em comum, os autores procuraram apreender a vida das pessoas negras — sua maneira de ser, pensar e agir — do ponto de vista delas próprias, a partir de suas lógicas e seus fundamentos (códigos sociais, culturais e políticos).

Na fase contemporânea, os historiadores têm lançado mão de diversas outras categorias analíticas — com destaque para “história vista de baixo”, “agência” e “experiência” — para surpreender as trajetórias individuais e coletivas de pessoas negras. Ganharam proeminência aí, na década de 1990, os livros de Carlos Eugênio Soares (1994), Flávio Gomes (1995) e Eduardo Silva (1997). Já para o primeiro quartel do terceiro milênio, estamparam-se, entre outras, as obras de Walter Fraga Filho (2006), Wlamyra Albuquerque (2009), Solange Rocha (2009), Jonis Freire (2014), Lúcia Helena Silva (2016), Robério Souza (2016), Ynaê Lopes Santos ([-262]) e Luciana Brito (2023).

A assunção de uma perspectiva afro-brasileira adquire musculatura com a formação da RHN. De um modo geral, a produção de seus integrantes — como Álvaro Pereira do Nascimento (2008), Lucilene Reginaldo (2011), Amilcar Pereira (2013), Ana Flávia Pinto (2018), Fernanda Oliveira (2020), Mariléa de Almeida (2022) e Amailton Azevedo (2024), entre outros historiadores negros e negras — tem colocado em circulação a demanda por narrativas diversas e plurais, questionando os regimes seletivos de legitimação de sujeitos responsáveis pela produção da escrita da história.

A proposta da RHN remete à adoção de uma visão de mundo própria e distinta da dos historiadores brancos, que acena para a superação das matrizes epistemológicas eurocentradas, que foram plasmadas como únicos dispositivos analíticos na historiografia. Ao romper com tais matrizes epistemológicas em seus condicionamentos passados e presentes, a perspectiva negrorreferenciada configura-se como discurso da diferença e atua como elo importante na formulação de uma escrita da história baseada no ponto de vista afrodiaspórico.

Aliás, a linguagem é um dos elementos instituintes da diferença cultural no texto histórico. O manancial afro-brasileiro se inscreve também a partir do uso de um vocabulário inerente à matriz gramatical oriunda da África e herdada no processo transculturador em curso no Brasil (Domingues; Butler, 2020). Trata-se de uma linguagem com ritmos, entonações e por vez uma semântica própria, que assume significados distintos dos hegemônicos. Não há linguagem neutra, nem signo desprovido de ideologia. Termos como “escravo”, “negro”, “preto”, “pardo”, para ficar nas categorias históricas e de raça/cor mais correntes, são dotados de sentidos valorativos. E fazem parte das narrativas de clio. Nesse contexto, o idioma afroidentificado — como a proposta do “pretuguês”, cunhado por Lélia Gonzalez (1988) — busca romper com dimensões da colonialidade, sinalizando uma nova ordem simbólica, que expresse a reversão de axiomas culturais. As próprias categorias históricas “escravo” e “negro” foram ressemantizadas, seja pela reversão em “escravizado”, seja pela revalorização do “negro” pelo viés da positividade expressa na linguagem. Seja como for, não é possível afirmar que a história negra engendrou um léxico próprio, mas sua proposta de uma retórica problematizadora dos “contratos de escrita” dominantes ganha sentidos políticos de uma espécie de escrevivência.

Por seu turno, será que a história negra visa à formação de um público leitor específico? Em caso positivo, esse processo se distingue do projeto que pauta a historiografia brasileira? A constituição de um público específico, caracterizado pela diferença étnico-racial e pelo pendor da afirmação identitária, está no horizonte de possibilidades, mas, até o instante, configura a faceta mais utópica do projeto de uma história negra. O autor dessa modalidade de pesquisa almeja não só atingir um determinado segmento da população, mas o faz também a partir de um entendimento do papel do historiador como porta-voz da comunidade de origem. Isso explica o papel social da história na construção de uma identidade negra positivada e o seu uso como instrumento de combate ao racismo.

É comum a história negra não explicitar um público-alvo a cujas expectativas a autoria espera atender. Seja como for, duas tarefas se impõem: primeiro, a de fazer chegar ao público as narrativas dessa vertente historiográfica, colocando o leitor em contato com a diversidade dessa produção; segundo, o desafio de cotejar tais narrativas com o horizonte de expectativas do leitor, revalorizando as agências negras e combatendo os silenciamentos étnico-raciais sem cair nas abordagens esquemáticas muitas vezes maniqueístas do panfleto. Resta ao projeto da história negra, então, formular alternativas frente às dificuldades existentes, quer no âmbito da produção editorial, quer no plano de um público consumidor.

Considerações finais

As implicações da expressão “história negra” foram examinadas, levando-se em conta sua especificidade em relação aos demais temas e objetos de estudo da história brasileira. A aludida proposição foi debatida a partir de seu significado temático, de suas referências de interpretação e do lugar de enunciação na elaboração de narrativas históricas, segundo a autoria e o pertencimento étnico-racial. Indo além do enfoque eminentemente racial e do caráter factual presente em periódicos estadunidenses vinculados a essa corrente, como o The Black Scholar, argumentou-se sobre as possibilidades de pensar a experiência histórica de pessoas de origem afrodescendente, oferecendo alternativas variadas de definição para uma historiografia negra brasileira.

Isto ocorre não por acaso. A história negra trata de um conceito em consolidação ou, antes, em disputa. Não apenas em função de seu caráter fugidio, aberto, com diferentes concepções formais e ético-políticas, mas uma disputa em torno de como essa categoria analítica se conecta aos planos acadêmico e empírico.

A partir da conjugação desses três fatores — temática, autoria e ponto de vista —, pode-se supor a existência de uma história negra, em permanente processo de (re)definição. Isso significa que tais fatores se fazem presentes em textos históricos de épocas distintas. Cabe enfatizar que nenhum desses elementos, per si, configura a história negra, mas somente o resultado de sua interação. Ou seja, autonomamente, tema, autoria e ponto de vista são insuficientes para constituir uma modalidade epistêmica específica.

História negra: processo e devir. Além de nicho ou segmento específico, consiste num componente integrado à ampla cadeia de narrativas sobre o passado e o presente da nação. Portanto, ao mesmo tempo “dentro e fora” da historiografia brasileira. Uma produção que está dentro porque se utiliza do mesmo paradigma moderno da investigação cientificamente conduzida e, em última instância, das mesmas formas e processos de expressão histórica. Porém, está fora porque é uma produção peculiar, que implica medrar novas sensibilidades, redirecionamentos hermenêuticos, recepcionais, de público, de linguagem e suplementos de sentidos ao establishment acadêmico, no geral, e à historiografia, em particular.

Uma história empenhada num projeto adicional ao da historiografia brasileira canônica: o de edificar uma narrativa que seja não apenas a expressão dos negros como protagonistas da história, mas que coloque em xeque a hegemonia da matriz epistêmica eurocentrada, que coadjuvou, quando não apagou, o papel daquele segmento populacional da escrita do passado da nação. Daí sua conotação por vezes marginal, porque fundado na diferença que tensiona e desestabiliza as narrativas etnocêntricas tradicionais da historiografia brasileira.

A partir de uma pulsante busca pela ampliação de seu horizonte recepcional, a história negra ganha terreno no meio acadêmico e investe na seara da história pública e digital. Para tanto, contribuem o trabalho desenvolvido pela RHN; a publicação de livros, como o Reescrevendo a história com as mãos negras (2024), organizado por C. Prudente, R. Almeida e J. Clemente; e os trabalhos editoriais da União dos Coletivos Pan-Africanistas (a exemplo da Coleção Pensamento Preto), sem contar as narrativas veiculadas pelas Histórias em Quadrinhos (HQs), como Mukanda Tiodora (2022), de Marcelo D’Salete; pela produção audiovisual, a título da série Resistência negra,1 e pelas plataformas digitais, como o canal do YouTube “Caçador de Histórias”, o podcast “Projeto Querino”2 e a página do Instagram “História Preta”, enfim, pela produção das redes sociais e de hipermídia dedicada ao assunto.

Um aspecto do artigo que poderia ter sido destacado diz respeito à diversidade de opções teóricas vigentes na história negra, considerando as clivagens político-ideológicas entre autores de formação marxista (como Edison Carneiro, Clóvis Moura e Joel Rufino dos Santos), para os quais os marcadores de raça e etnia não são centrais, em comparação com propostas como aquelas enunciadas por Manuel Querino, Beatriz Nascimento ou Nei Lopes, por exemplo. Outra questão em aberto diz respeito às implicações da oralidade, sonoridade e da tradição nas abordagens da história negra. Também se poderia refletir sobre o papel da imagem como alternativa de aproximação não racializada, conforme propõe Paul Gilroy no livro Black Britain: A Photographic History (2011), em que os registros fotográficos servem como uma forma de ilustrar complexidades e como uma extensão do conceito de arquivo. Em que pesem seus limites, o artigo procurou demonstrar como a história negra conquista espaço e reconhecimento em escala crescente, tanto na agenda de pesquisa e ensino (nos cursos de graduação e pós-graduação), quanto no meio editorial e midiático, o que permite aventar que se constitui como uma das atuais tendências da historiografia brasileira.

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  • 1
    A série Resistência negra foi exibida pelo Globoplay em cinco capítulos a partir de 20 de novembro (Dia Nacional da Consciência Negra) de 2023, tendo o seu primeiro capítulo reexibido pela Globo aberta em 21 de novembro de 2024. A série conta a história do povo preto no Brasil, com destaque para o protagonismo do movimento negro. Não se trata de uma produção audiovisual qualquer. Desde o seu idealizador (o Babalawô Ivanir dos Santos), passando pelo historiador que prestou consultoria (Petrônio Domingues), pela equipe de roteiristas (Paulo Lins, Mariana Jaspe e Grace Passos), até a diretora (Mayara Aguiar), todas pessoas negras, algo inédito na TV brasileira.
  • 2
    Recentemente, o “Projeto Querino” publicou um livro homônimo (Rogero, 2024).
  • Fonte de financiamento:
    Consellho Nacional de Desenvovimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Ago 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    31 Dez 2024
  • Aceito
    06 Maio 2025
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