Acessibilidade / Reportar erro

Infecção de hemácias por SARS-CoV-2: novas evidências

Caro Editor,

O coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2) corres­ponde a um novo subtipo de coronavírus, que foi identificado pela primeira vez em dezembro de 2019, na cidade de Wuhan, localizada na província de Hubei, na China. Esse vírus é o agente causador da atual pandemia, cuja doença associada foi denominada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como doença pelo coronavírus 2019 (COVID-19). Desde então, o SARS-CoV-2 tem se espalhado rapidamente em diversos países, causando diversos problemas econômicos e sociais, o que tem acarretado prejuízos para os sistemas de saúde e a rotina da população em um nível global. No entanto, até o momento, nenhum medicamento específico está disponível para intervenção e tratamento de pacientes com a doença.(11. Siordia JA Jr. Epidemiology and clinical features of COVID-19: a review of current literature. J Clin Virol. 2020;127:104357. Review.)

As características clínicas da COVID-19 incluem diversos sintomas, como febre, mialgia, tosse seca, dispneia, fadiga, evidência radiológica de opacidades de vidro fosco nos pulmões compatíveis com pneumonia atípica, diarreia e manifestações neurológicas. Contudo, a gravidade da COVID-19 é extremamente variável. Por tal razão, essa doença pode ser classificada como assintomática, leve, moderada ou grave.(11. Siordia JA Jr. Epidemiology and clinical features of COVID-19: a review of current literature. J Clin Virol. 2020;127:104357. Review.,22. Teich VD, Klajner S, Almeida FA, Dantas AC, Laselva CR, Torritesi MG, et al. Epidemiologic and clinical features of patients with COVID-19 in Brazil. einstein (São Paulo). 2020;18:eAO6022.)

Apesar de diversos estudos terem sido conduzidos sobre a fisiopatologia da COVID-19, ainda existem muitas dúvidas sobre o assunto. Nesse sentido, um questionamento que permanece refere-se ao mecanismo de infecção das hemácias por SARS-CoV-2. Aqui, discutiremos brevemente esse tópico.

Primeiro, é necessário considerar que a infecção das hemácias por SARS-CoV-2 pode ter papel determinante na gravidade da hipoxemia em pacientes com COVID-19, resultando em maiores danos ao trato respiratório inferior, por meio da ação da enzima conversora da angiotensina 2 (ECA2). Isso deve ocorrer pela possibilidade de o vírus ultrapassar a membrana alveolar, criando uma via para infecção das hemácias, o que, simultaneamente, deve levar a uma rápida redução no nível de oxigênio sanguíneo.(33. Thomas T, Stefanoni D, Dzieciatkowska M, Issaian A, Nemkov T, Hill RC, et al. Evidence of structural protein damage and membrane lipid remodeling in red blood cells from COVID-19 patients. J Proteome Res. 2020;19(11):4455-69.)

Além disso, diferentes microrganismos infecciosos podem invadir as hemácias. Isso pode ocorrer tanto diretamente, ocasionando hemólise intravascular, quanto indiretamente, resultando em hemólise ou destruição acelerada das hemácias na corrente sanguínea, por meio de fagócitos esplênicos e do sistema reticuloendotelial hepático.(33. Thomas T, Stefanoni D, Dzieciatkowska M, Issaian A, Nemkov T, Hill RC, et al. Evidence of structural protein damage and membrane lipid remodeling in red blood cells from COVID-19 patients. J Proteome Res. 2020;19(11):4455-69.)

Estudo recente realizado por Cosic et al., utilizando seu próprio modelo de reconhecimento ressonante (MRR) biofísico, traz novas evidências de como o SARS-CoV-2 pode infectar as hemácias, o que possibilita compreender melhor a fisiopatologia da COVID-19.(44. Cosic I, Cosic D, Loncarevic I. RRM prediction of erythrocyte band 3 protein as alternative receptor for SARS-CoV-2 virus. Appl Sci. 2020;11(10):4053.) Suas descobertas sugerem uma provável interação envol­vendo o vírus SARS-CoV-2 e as células vermelhas do sangue, mais especificamente entre a proteína de superfície de banda 3 das hemácias e a proteína spike S1 presente no vírus, o que representa uma possível via de entrada do SARS-CoV-2 para o interior dessas células. Essa hipótese é de suma importância, dado que a integridade da proteína de superfície de banda 3 das hemácias é imprescindível para a fisiologia das células vermelhas do sangue. Alterações nesse mecanismo podem levar a danos significativos nas funções eritro­citárias, como para o fornecimento de oxigênio.(55. Gallagher PG. Hemolytic anemias: red blood cell membrane and metabolic defects. In: Goldman L, Schafer AI, editors. Goldman-Cecil Medicine. 25th ed. Philadelphia, PA: Elsevier Saunders; 2016.) Nesse caso, pode ocorrer hipóxia, como detectado em casos graves de COVID-19, devido a esse tipo de interação, a qual pode reduzir o transporte de oxigênio mediado pelas células vermelhas do sangue.

Complementarmente a isso, níveis aumentados de intermediários glicolíticos, em conjunto com a oxidação e fragmentação de anquirina, betaespectrina e do domínio citosólico N-terminal da banda 3 (AE1) de hemácias, têm sido observados em pacientes com COVID-19. Alterações significativas no metabolismo lipídico também foram notadas, em particular envolvendo ácidos graxos saturados de cadeias curta e média, acilcarnitinas e esfingolipídios.(33. Thomas T, Stefanoni D, Dzieciatkowska M, Issaian A, Nemkov T, Hill RC, et al. Evidence of structural protein damage and membrane lipid remodeling in red blood cells from COVID-19 patients. J Proteome Res. 2020;19(11):4455-69.) Tais achados são de grande importância, posto que evidências recentes têm demonstrado associação positiva significante entre a amplitude de distribuição das hemácias e o risco de mortalidade em pacientes hospitalizados com COVID-19.(66. Foy BH, Carlson JC, Reinertsen E, Padros I Valls R, Pallares Lopez R, et al. Association of red blood cell distribution width with mortality risk in hospitalized adults with SARS-CoV-2 infection. JAMA Netw Open. 2020; 3(9):e2022058.)

Por outro lado, estudo prévio reportou que a proteína de banda 3 das hemácias atua como ponto de entrada para merozoítos de plasmodium falciparum invadirem as células vermelhas do sangue. Porém, com base no modelo MRR, encontrou-se que a frequência característica para esse parasita na forma de merozoíta e a proteína de banda 3 das hemácias é diferente da frequência de MRR para SARS-CoV-2 e essa mesma proteína, sugerindo, portanto, a existência de mecanismos diferentes para essas duas interações.(44. Cosic I, Cosic D, Loncarevic I. RRM prediction of erythrocyte band 3 protein as alternative receptor for SARS-CoV-2 virus. Appl Sci. 2020;11(10):4053.) Essa compreensão é, sem dúvida, um ponto-chave para estudos futuros que possam estabelecer protocolos terapêuticos mais efetivos voltados ao tratamento de casos graves de COVID-19.

Em suma, à luz das hipóteses apresentadas, esperamos que melhorias efetivas sejam implementadas para o tratamento de casos graves da doença, especialmente com relação à elaboração de esquemas terapêuticos que auxiliem na manutenção das funções das hemá­cias.(44. Cosic I, Cosic D, Loncarevic I. RRM prediction of erythrocyte band 3 protein as alternative receptor for SARS-CoV-2 virus. Appl Sci. 2020;11(10):4053.) Nesse contexto, deve ficar claro a todos os profissionais de saúde que a COVID-19 é uma doença sistêmica e, portanto, pode acometer outros órgãos além dos pulmões.(11. Siordia JA Jr. Epidemiology and clinical features of COVID-19: a review of current literature. J Clin Virol. 2020;127:104357. Review.,22. Teich VD, Klajner S, Almeida FA, Dantas AC, Laselva CR, Torritesi MG, et al. Epidemiologic and clinical features of patients with COVID-19 in Brazil. einstein (São Paulo). 2020;18:eAO6022.) Dessa forma, é crucial que os avanços quanto à fisiopatologia da doença sejam levados em consideração tanto em ambientes clínicos (quer sejam em serviços privados ou públicos), quanto na prática hospitalar.

REFERENCES

  • 1
    Siordia JA Jr. Epidemiology and clinical features of COVID-19: a review of current literature. J Clin Virol. 2020;127:104357. Review.
  • 2
    Teich VD, Klajner S, Almeida FA, Dantas AC, Laselva CR, Torritesi MG, et al. Epidemiologic and clinical features of patients with COVID-19 in Brazil. einstein (São Paulo). 2020;18:eAO6022.
  • 3
    Thomas T, Stefanoni D, Dzieciatkowska M, Issaian A, Nemkov T, Hill RC, et al. Evidence of structural protein damage and membrane lipid remodeling in red blood cells from COVID-19 patients. J Proteome Res. 2020;19(11):4455-69.
  • 4
    Cosic I, Cosic D, Loncarevic I. RRM prediction of erythrocyte band 3 protein as alternative receptor for SARS-CoV-2 virus. Appl Sci. 2020;11(10):4053.
  • 5
    Gallagher PG. Hemolytic anemias: red blood cell membrane and metabolic defects. In: Goldman L, Schafer AI, editors. Goldman-Cecil Medicine. 25th ed. Philadelphia, PA: Elsevier Saunders; 2016.
  • 6
    Foy BH, Carlson JC, Reinertsen E, Padros I Valls R, Pallares Lopez R, et al. Association of red blood cell distribution width with mortality risk in hospitalized adults with SARS-CoV-2 infection. JAMA Netw Open. 2020; 3(9):e2022058.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    06 Nov 2020
  • Aceito
    15 Dez 2020
Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein Avenida Albert Einstein, 627/701 , 05651-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 2151 0904 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@einstein.br