Acessibilidade / Reportar erro

Uso do acesso transesplênico no tratamento do sangramento gastrointestinal varicoso. Relato de caso e técnica

RESUMO

O sangramento gastrointestinal varicoso está entre as maiores causas de morbimortalidade nos paciente com doença hepática crônica. O tratamento endoscópico é a primeira linha terapêutica neste pacientes, porém naqueles que apresentam falha nesta modalidade terapêutica, o amplo conhecimento de opções alternativas de tratamento pode melhorar o prognóstico. Descrevemos um caso de paciente submetido à embolização com sucesso de varizes gastresofágicas por acesso transesplênico.

Hemorragia gastrointestinal; Varizes esofágicas e gástricas; Embolização terapêutica

ABSTRACT

Varicose gastrointestinal bleeding is one of the major causes of morbidity and mortality in patients with chronic liver disease. Endoscopic treatment is the first therapeutic line for these patients, however, for those whom this therapeutic modality fail, a broad knowledge of alternative treatment options may improve the prognosis. We describe a case of a patient who were successfully embolized from gastroesophageal varices via transsplenic access.

Gastrointestinal hemorrage; Esophageal and gastric varices; Embolization, therapeutic

INTRODUÇÃO

Complicações vasculares, incluindo sangramento varicoso, shunts portossistêmicos e trombose da veia porta, são as maiores causas de morbidade e mortalidade em pacientes com doença hepática crônica.11. Williams SG, Westaby D. Management of variceal haemorrhage. BMJ. 1994;308(6938):1213-7. Review. O sangramento por varizes gástricas possui taxas de mortalidade na ordem de 25 a 55%.22. Sarin SK, Lahoti D, Saxena SP, Murthy NS, Makwana UK. Prevalence, classification and natural history of gastric varices: a long-term follow-up study in 568 portal hypertension patients. Hepatology. 1992;16(6):1343-9. Atualmente, o tratamento do sangramento de etiologia varicosa é iniciado com uso de medicações vasoativas (terlipressina), visando à redução do regime pressórico na circulação esplâncnica, acompanhado de tratamento endoscópico, quando tecnicamente possível, com a finalidade de cessar o sangramento. O tratamento endoscópico consensualmente empregado é realizado com ligadura elástica, exclusivo para varizes de fino calibre (devido ao risco de lesão extensa da mucosa) e injeção de cianoacrilato.33. de Franchis R; Baveno V Faculty. Revising consensus in portal hypertension: report of the Baveno V consensus workshop on methodology of diagnosis and therapy in portal hypertension. J Hepatol. 2010;53(4):762-8. , 44. Malik A, Junglee N, Khan A, Sutton J, Gasem J, Ahmed W. Duodenal varices successfully treated with cyanoacrylate injection therapy. BMJ Case Rep. 2011;2011. Pii:bcr0220113913. Como alternativa, pode ser utilizada a injeção de trombina humana de forma mais cautelosa, devido à possibilidade de complicações tromboembólicas.55. Krystallis C, Masterton GS, Hayes PC, Plevris JN. Update of endoscopy in liver disease: more than just treating varices. World J Gastroenterol. 2012;18(5):401-11. Review.

No caso de falha do tratamento endoscópico, quando o mesmo não é tecnicamente possível ou nos casos de recidiva precoce, outras opções terapêuticas incluem intervenções endovasculares diversas, como comunicação portossistêmica intra-hepática via transjugular (TIPS - transjugular intrahepatic portosystemic shunt ), embolização varicosa trans-hepática percutânea (PVTE - percutaneous variceal transhepatic embolisation ), embolização esplênica parcial (PSE - partial splenic embolisation ) embolização trans--hepática, obliteração transvenosa retrógrada com balão (BRTO - balloon-occluded retrograde transvenous obliteration ) e recanalização da veia porta (nos casos em que há trombose).66. Punamiya SJ. Interventional radiology in the management of portal hypertension. Indian J Radiol Imaging. 2008;18(3):249-55. Esses procedimentos são realizados por acesso percutâneo, seja transparietal hepático ou intravascular. Os acessos trans-hepático percutâneo ou transjugular intra-hepático são os mais comuns.22. Sarin SK, Lahoti D, Saxena SP, Murthy NS, Makwana UK. Prevalence, classification and natural history of gastric varices: a long-term follow-up study in 568 portal hypertension patients. Hepatology. 1992;16(6):1343-9. , 77. Kim T, Shijo H, Kokawa H, Tokumitsu H, Kubara K, Ota K, et al. Risk factor for hemorrhage from gastric fundal varices. Hepatology. 1997;25(2):307-12. Outras opções, como o acesso pela veia umbilical recanalizada ou pela circulação sistêmica via shunt gastrorrenal, dependem da existência dessas alterações.88. Kiyosue H, Mori H, Matsumoto S, Yamada Y, Hori Y, Okino Y. Transcatheter obliteration of gastric varices: part 2. Strategy and technique based on hemodynamic features. Radiographics. 2003;23(4):921-37; discussion 937. Review.

No entanto, frente à impossibilidade de utilizar essas vias, uma outra alternativa de acesso ao sistema portal seria o transesplênico. Este acesso, abandonado no início de seu uso em 1951, devido ao elevado risco de sangramento associado, recentemente voltou a ser utilizado nas populações adulta e pediátrica, após melhora da técnica, com medidas que visaram reduzir o risco de sangramento, aumentando sua segurança.99. Probst P, Rysavy JA, Amplatz K. Improved safety of splenoportography by plugging of the needle tract. AJR Am J Roentgenol. 1978;131(3):445-9. , 1010. Harald B, Eva-Doreen P, Thomas B, Stephan S. Transsplenic endovascular therapy of portal vein stenosis and subsequent complete portal vein thrombosis in a 2-year-old child. J Vasc Interv Radiol. 2010;21(11):1760-4.

OBJETIVO

Relatar um caso de hemorragia digestiva alta varicosa tratado por embolização da veia gástrica esquerda com acesso transesplênico, além de discutir a técnica utilizada para o acesso e a segurança do procedimento.

RELATO DE CASO

Paciente do sexo feminino, branca, 27 anos, com trombose crônica da veia porta secundária à hipertensão portal pós-cateterização da veia umbilical no período neonatal, apresentando quadros de hemorragia digestiva alta varicosa de repetição, previamente submetida a procedimentos endoscópicos (ligadura elástica e injeção de cola) para tratamento de varizes esofágicas e gástricas. Realizada tomografia computadorizada (TC), que identificou veia gástrica esquerda dilatada, com comunicação com varizes gastresofágicas e shunt esplenorrenal ( Figura 1 ). Após discussão multidisciplinar, devido à recidiva posterior a tratamentos endoscópicos, optou-se pela abordagem percutânea do sangramento.

Figura 1
Tomografia computadorizada com contraste endovenoso. (A) Veia gástrica esquerda dilatada (seta preta contínua), trombose de porta com recanalização cavernomatosa (seta preta pontilhada) e sinais de embolização prévia de varizes gastresofágicas (seta branca). (B) Shunt esplenorrenal (seta branca)

Técnica

O procedimento foi realizado em sala de hemodinâmica sob anestesia geral. Inicialmente, foram realizadas punção da artéria femoral comum direita, cateterização da artéria mesentérica superior e portografia indireta. Após confirmação de trombose portal e presença de shunts nutridores das varizes gástricas, optou-se por embolização da veia gástrica esquerda por acesso transesplênico, já que a trombose portal impediu o acesso trans-hepático.

O paciente foi posicionado em decúbito oblíquo direito a 30°, para melhor exposição ultrassonográfica do baço, facilitando, desta forma, a punção ecoguiada. O uso da ultrassonografia com Doppler tem papel fundamental para correta identificação de veia e artéria esplênica ( Figura 2A ).

Figura 2
Acesso transesplênico. (A) Ultrassonografia com Doppler do baço para identificação da artéria e da veia esplênica, e escolha do melhor sítio de punção. (B) Punção transesplênica. Kit de micropunção Neff Percutaneous Assessment Set (NPAS; Cook Medical®)

A punção foi realizada com agulha 22G (Turner), guiada em tempo real por ultrassonografia. Progrediu-se com microguia 0,014” e foi feito implante de kit de micropunção Neff Percutaneous Assessment Set (NPAS; Cook Medical®) ( Figura 2B ) sob visão fluoroscópica. As venografias a partir da veia esplênica identificaram shunt esplenorrenal de alto fluxo. Em seguida, o cateterismo superseletivo da veia esplênica proximal identificou trombose portal parcialmente recanalizada, veia gástrica esquerda vicariante e veia colateral mesentérica dilatada. Imagens radiopacas em varizes gastresofágicas foram identificadas à radioscopia (embolização prévia com cola).

Na sequência, foi realizado o cateterismo superseletivo do ramo dilatado da veia mesentérica superior (VMS), que se comunicava com a veia gástrica esquerda ( Figura 3A ). Optou-se por embolização com mola fibrada neste momento, para evitar refluxo para a VMS durante injeção do agente líquido embolizante ( Figura 3B ). Após a embolização, por meio de cateterismo superseletivo da veia gástrica esquerda, foi realizada embolização das varizes gastresofágicas com polímero embolizante (Onix®; Medtronic, Minneapolis, Minnesota EUA) ( Figura 3C ).

Figura 3
Angiografia e embolização. (A) Angiografia de ramo da veia mesentérica superior (seta preta). (B) Embolização com mola fibrada (Interlock 0,018, Boston Scientific, Marlborough, Massachusetts, EUA) para evitar refluxo para a veia mesentérica superior durante injeção do agente líquido embolizante (seta branca). (C) Embolização da veia gástrica esquerda com polímero embolizante (Onix®) (seta preta). Ausência de refluxo para veia mesentérica superior, devido à embolização com mola previamente à injeção do polímero (seta branca)

O controle angiográfico demonstrou oclusão da veia gástrica esquerda, bem como fluxo preservado em veia esplênica. Ao final do procedimento, o trajeto através do parênquima esplênico foi embolizado com torpedo de Gelfoam®, prévio à retirada completa do introdutor, para minimizar riscos de sangramento.

No seguimento pós-operatório, a paciente realizou TC de controle e nova endoscopia digestiva alta, evidenciando presença do agente embolizante e redução no calibre das varizes, sem evidências de sangramento recente ( Figura 4 ). Manteve seguimento por 4 anos, sem novos episódios de sangramento.

Figura 4
Exames de controle após 30 dias. (A) Tomografia computadorizada após 30 dias mostra varizes gástricas preenchidas pelo agente líquido (Onix®), seta branca. (B) Endoscopia digestiva alta de controle após 30 dias do procedimento

DISCUSSÃO

Neste caso, a falha do tratamento endoscópico e a impossibilidade do acesso trans-hepático ou transjugular devido à presença de trombose crônica da veia porta foram os principais fatores para a escolha do acesso transesplênico.

O acesso transesplênico é utilizado como alternativa menos invasiva que a cirurgia, sendo empregado para tratamento de trombose crônica da veia porta, como via de acesso para embolizaçãoo de veia porta pré-hepatectomia e na embolizaçãoo de varizes.1111. Uller W, Müller-Wille R, Grothues D, Schelling J, Zausig N, Loss M, et al. Gelfoam for closure of large percutaneous transhepatic and transsplenic puncture tracts in pediatric patients. Rofo. 2014;186(7):693-7.

A evolução da técnica, bem como a possibilidade do uso de agente hemostático para embolização do trajeto, trouxe mais segurança com menos complicações, sendo usado na população adulta e pediátrica. O uso do Gelfoam®se mostra seguro segundo a literatura atual, existindo outras alternativas, como, por exemplo, o uso do plug de Amplatzer®.1111. Uller W, Müller-Wille R, Grothues D, Schelling J, Zausig N, Loss M, et al. Gelfoam for closure of large percutaneous transhepatic and transsplenic puncture tracts in pediatric patients. Rofo. 2014;186(7):693-7. , 1212. Dollinger M, Goessmann H, Mueller-Wille R, Wohlgemuth WA, Stroszczynski C, Heiss P. Percutaneous transhepatic and transsplenic portal vein access: embolization of the puncture tract using amplatzer vascular plugs. Rofo. 2014;186(2):142-50.

Estudo coreano com 26 pacientes mostrou ser factível o acesso transesplênico, com sucesso técnico em 24 de 27 procedimentos (26 pacientes) selecionados. Os casos de insucesso se deram por dissecção da veia esplênica, tortuosidade da veia esplênica e possibilidade de acesso trans-hepático no segundo procedimento, devido à recanalização portal.1313. Ko HK, Ko GY, Sung KB, Gwon DI, Yoon HK. Portal Vein Embolization via Percutaneous Transsplenic Access prior to Major Hepatectomy for Patients with Insufficient Future Liver Remnant. J Vasc Interv Radiol. 2016;27(7):981-6.

Para esse acesso, faz-se necessário o uso do ultrassom, para adequada identificação da artéria e veia esplênica, bem como para guiar a punção, visando reduzir o risco de punção inadvertida de estruturas não alvo. A punção deve ser realizada com kit de micropunção, para minimizar o risco de sangramento. Em situações específicas, a embolização proximal de um segmento vascular pode ser realizada, visando minimizar a possibilidade de embolização distal, quando posteriormente é utilizado agente líquido ou agente particulado. Neste paciente, o uso de molas evitou a progressão do agente líquido (Onix®) para um vaso não alvo (no caso a VMS), proporcionando mais segurança e precisão na embolização do segmento a ser tratado. Considerando a trombose portal com transformação cavernomatosa, o tempo de oclusão (desde o período neonatal) e o risco de oclusão de colaterais, a recanalização da veia porta não foi realizada.

CONCLUSÃO

O acesso transesplênico mostrou-se seguro neste caso. Quando realizado por equipe treinada, empregando materiais e técnicas adequados, pode ser útil naqueles pacientes que apresentam contraindicação ou impossibilidade de outros acessos. Neste caso, o tratamento endovascular com técnica de micropunção percutânea transesplênica permitiu embolização segura e efetiva, sem complicações no seguimento. Procedimentos realizados por essa via são seguros e têm baixa taxa de complicações, porém estudos maiores e mais robustos são necessários para analisar sua segurança.

REFERENCES

  • 1
    Williams SG, Westaby D. Management of variceal haemorrhage. BMJ. 1994;308(6938):1213-7. Review.
  • 2
    Sarin SK, Lahoti D, Saxena SP, Murthy NS, Makwana UK. Prevalence, classification and natural history of gastric varices: a long-term follow-up study in 568 portal hypertension patients. Hepatology. 1992;16(6):1343-9.
  • 3
    de Franchis R; Baveno V Faculty. Revising consensus in portal hypertension: report of the Baveno V consensus workshop on methodology of diagnosis and therapy in portal hypertension. J Hepatol. 2010;53(4):762-8.
  • 4
    Malik A, Junglee N, Khan A, Sutton J, Gasem J, Ahmed W. Duodenal varices successfully treated with cyanoacrylate injection therapy. BMJ Case Rep. 2011;2011. Pii:bcr0220113913.
  • 5
    Krystallis C, Masterton GS, Hayes PC, Plevris JN. Update of endoscopy in liver disease: more than just treating varices. World J Gastroenterol. 2012;18(5):401-11. Review.
  • 6
    Punamiya SJ. Interventional radiology in the management of portal hypertension. Indian J Radiol Imaging. 2008;18(3):249-55.
  • 7
    Kim T, Shijo H, Kokawa H, Tokumitsu H, Kubara K, Ota K, et al. Risk factor for hemorrhage from gastric fundal varices. Hepatology. 1997;25(2):307-12.
  • 8
    Kiyosue H, Mori H, Matsumoto S, Yamada Y, Hori Y, Okino Y. Transcatheter obliteration of gastric varices: part 2. Strategy and technique based on hemodynamic features. Radiographics. 2003;23(4):921-37; discussion 937. Review.
  • 9
    Probst P, Rysavy JA, Amplatz K. Improved safety of splenoportography by plugging of the needle tract. AJR Am J Roentgenol. 1978;131(3):445-9.
  • 10
    Harald B, Eva-Doreen P, Thomas B, Stephan S. Transsplenic endovascular therapy of portal vein stenosis and subsequent complete portal vein thrombosis in a 2-year-old child. J Vasc Interv Radiol. 2010;21(11):1760-4.
  • 11
    Uller W, Müller-Wille R, Grothues D, Schelling J, Zausig N, Loss M, et al. Gelfoam for closure of large percutaneous transhepatic and transsplenic puncture tracts in pediatric patients. Rofo. 2014;186(7):693-7.
  • 12
    Dollinger M, Goessmann H, Mueller-Wille R, Wohlgemuth WA, Stroszczynski C, Heiss P. Percutaneous transhepatic and transsplenic portal vein access: embolization of the puncture tract using amplatzer vascular plugs. Rofo. 2014;186(2):142-50.
  • 13
    Ko HK, Ko GY, Sung KB, Gwon DI, Yoon HK. Portal Vein Embolization via Percutaneous Transsplenic Access prior to Major Hepatectomy for Patients with Insufficient Future Liver Remnant. J Vasc Interv Radiol. 2016;27(7):981-6.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    8 Jan 2019
  • Aceito
    19 Jun 2019
Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein Avenida Albert Einstein, 627/701 , 05651-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 2151 0904 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@einstein.br