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Dos orifícios e dos seios periauriculares: entendendo o mimetismo

Menina de 8 anos com queixa de saída de secreção intermitente de um orifício situado na face medial do pavilhão auricular direito desde a tenra infância. A secreção era em pequena quantidade, com mal odor, aspecto mucoide e ocasionalmente purulenta. Aumentou a frequência no último ano, com o desenvolvimento um inchaço, logo abaixo do orifício, que inflamou muitas vezes e causou dor. Ao exame, observou-se uma abertura bem acima lóbulo, em direção a um edema que chegava ao sulco pós-auricular (Figura 1). Uma área de cicatrização e pigmentação na face lateral do pavilhão auricular, imediatamente próxima ao conduto auditivo externo (CAE) − remanescente de inflamações prévias envolvendo a pele do CAE, foi observada e correspondia à fístula (Figura 2A). Outros orifícios semelhantes e assintomáticas foram vistas na hélix ascendente do pavilhão auricular direito (Figura 2A) e esquerdo (Figura 2B). Após controlar a infecção com antibióticos, um raio X de seios da face foi solicitado para avaliar a lesão pós-auricular, o qual mostrou uma fístula em formato de balão no tecido mole de todo pescoço, logo abaixo do processo mastoide e do CAE, e posterior ao ramo da mandíbula (Figura 3). A fístula foi operada sob anestesia geral. Na cirurgia, observou-se que a fístula tinha fundo cego e terminava pouco antes de invadir o tecido da parótida

Figura 1
. Observa-se orifício (seta) que leva a uma cavidade cística e alcança o sulco pós-auricular, situado na parte inferior da face medial do pavilhão auricular direito, logo acima do lóbulo

Figura 2
. (A) Visão lateral do pavilhão auricular direito mostra outro orifício na hélix ascendente (seta transparente). Em contiguidade com o conduto auditivo externo membranoso, está a cicatriz pigmentada (seta branca cheia), que corresponde à cavidade do seio na face medial. (B) O seio intra-auricular e seu orifício podem ser observados na hélix ascendente do pavilhão auricular esquerdo, em posição idêntica à do orifício, na orelha contralateral

Figura 3
. Exame de raios X contrastado dos seios da face mostra fístula em formato de balão, que termina em fundo cego, na frente e abaixo do processo mastoide direito, no tecido mole, posterior ao ramo da mandíbula, e inferior ao conduto auditivo externo, na região anatômica da glândula parótida

Os orifícios periauricular são estigmas congênitos, geralmente vistos pelos clínicos quando infeccionam e apresentam sintomas. Podem ir na direção dos seios, formar fístulas, cistos ou simplesmente terminar em fundo cego, e são mais observadas na região pré-auricular(11. Graney DO, Sie KC. Anatomy and developmental embryology of the neck. In: Flint PW, Haughey PH, Lund VJ, Niparko JK, Richardson MA, Robins KT, et al. editors. Cummings otolaryngology head & neck surgery. 5th ed. Philadelphia: Mosby Elsevier; 2010. p. 2585.) (acima do trago, na área da incisura terminal), mas podem ter localização intra-auricular(22. Marom T, Goldfarb A, Roth Y. Intra-auricular sinus: first description of a variant of the pre-auricular cyst. J Craniofac Surg. 2013;24(1):e12-3.) ou pós-auricular. Porém, as complicações clínico-embriológicas podem ser diferentes, dependendo de sua localização e composição. O pavilhão auricular é formado pela união de seis saliências cartilaginosas (de His), oriundas do primeiro e segundo arcos branquiais. Antitrago, anti-hélix, lóbulo e a parte inferior da hélix são formadas a partir do segundo arco, e o restante do pavilhão auricular origina-se do primeiro arco. Os seios/cistos pré-auriculares e intra-auriculares são manifestações da união deficiente dos dois derivados do arco branquial; seriam como cistos/fístulas de inclusão e inócuos.(11. Graney DO, Sie KC. Anatomy and developmental embryology of the neck. In: Flint PW, Haughey PH, Lund VJ, Niparko JK, Richardson MA, Robins KT, et al. editors. Cummings otolaryngology head & neck surgery. 5th ed. Philadelphia: Mosby Elsevier; 2010. p. 2585.) No entanto, cistos, seios ou fístulas clinicamente idênticos podem ser observados na parte posterior do pavilhão auricular e na porção superior do pescoço, e a origem delas não pode ser explicada pela teoria de inclusão ou tecido encarcerado. Na verdade, são duplicações do CAE e derivam de malformações do primeiro seio branquial, que contribui para o desenvolvimento do CAE.(33. Aronsohn RS, Batsakis JG, Rice DH, Work WP. Anomalies of the first branchial cleft. Arch Otolaryngol. 1976;102(12):737-40.) Elas podem ser revestidas por epitélio (tipo I) ou formadas por componentes de ectoderma e mesoderma (tipo II).(44. Work WP. Newer concepts of first branchial cleft defects. Laryngoscope. 1972;82(9):1581-93.) Por isso geralmente drenam para o CAE ou pescoço, e estão bem próximas à glândula parótida e ao nervo facial,(11. Graney DO, Sie KC. Anatomy and developmental embryology of the neck. In: Flint PW, Haughey PH, Lund VJ, Niparko JK, Richardson MA, Robins KT, et al. editors. Cummings otolaryngology head & neck surgery. 5th ed. Philadelphia: Mosby Elsevier; 2010. p. 2585.) o que as torna vulneráveis durante a exploração cirúrgica. Essa criança, coincidentemente, tinha anomalia da fenda do arco branquial, apresentando-se clinicamente como orifícios, com grande proximidade anatômica. Nesses casos, é muito difícil diferenciar um cisto/seio de inclusão de uma anomalia da fenda do primeiro arco branquial do tipo I, que tem uma relação íntima com o CAE membranoso.(55. Gonzalez-Perez LM, Prats-Golczer VE, Montes Carmona JF, Heurtebise Saavedra JM. Bilateral first branchial cleft anomaly with evidence of a genetic aetiology. Int J Oral Maxillofac Surg. 2014:43(3):296-300.) A situação pode enganar, e as anomalias sindrômicas congênitas(11. Graney DO, Sie KC. Anatomy and developmental embryology of the neck. In: Flint PW, Haughey PH, Lund VJ, Niparko JK, Richardson MA, Robins KT, et al. editors. Cummings otolaryngology head & neck surgery. 5th ed. Philadelphia: Mosby Elsevier; 2010. p. 2585.) e o comprometimento de estruturas vitais,(11. Graney DO, Sie KC. Anatomy and developmental embryology of the neck. In: Flint PW, Haughey PH, Lund VJ, Niparko JK, Richardson MA, Robins KT, et al. editors. Cummings otolaryngology head & neck surgery. 5th ed. Philadelphia: Mosby Elsevier; 2010. p. 2585.,55. Gonzalez-Perez LM, Prats-Golczer VE, Montes Carmona JF, Heurtebise Saavedra JM. Bilateral first branchial cleft anomaly with evidence of a genetic aetiology. Int J Oral Maxillofac Surg. 2014:43(3):296-300.) que são associações conhecidas de malformações da fenda branquial, poderiam não ser percebidas se forem confundidas com os seios pré-auriculares e intra-auriculares, que são relativamente benignos e distintos, em termos embriológicos. Os exames de imagem (raio X de seios da face) podem auxiliar, mas a diferenciação depende realmente de conhecimento da embriologia regional e dos achados do perioperatório.

REFERENCES

  • 1
    Graney DO, Sie KC. Anatomy and developmental embryology of the neck. In: Flint PW, Haughey PH, Lund VJ, Niparko JK, Richardson MA, Robins KT, et al. editors. Cummings otolaryngology head & neck surgery. 5th ed. Philadelphia: Mosby Elsevier; 2010. p. 2585.
  • 2
    Marom T, Goldfarb A, Roth Y. Intra-auricular sinus: first description of a variant of the pre-auricular cyst. J Craniofac Surg. 2013;24(1):e12-3.
  • 3
    Aronsohn RS, Batsakis JG, Rice DH, Work WP. Anomalies of the first branchial cleft. Arch Otolaryngol. 1976;102(12):737-40.
  • 4
    Work WP. Newer concepts of first branchial cleft defects. Laryngoscope. 1972;82(9):1581-93.
  • 5
    Gonzalez-Perez LM, Prats-Golczer VE, Montes Carmona JF, Heurtebise Saavedra JM. Bilateral first branchial cleft anomaly with evidence of a genetic aetiology. Int J Oral Maxillofac Surg. 2014:43(3):296-300.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2014

Histórico

  • Recebido
    4 Nov 2013
  • Aceito
    13 Jan 2014
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