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Avaliação da prescrição de concentrado de plaquetas em pacientes pediátricos em hospital terciário

RESUMO

Objetivo:

Verificar a adequação na prescrição de concentrado de plaquetas por pediatras em diferentes setores da pediatria de um hospital geral.

Métodos:

Estudo transversal avaliando 218/227 fichas de requisição de concentrado de plaquetas de crianças e adolescentes (zero a 13 anos), de janeiro de 2007 a abril de 2015 pelos pediatras do pronto-socorro, enfermaria e unidade de terapia intensiva. Excluíram-se as requisições em portadores de doenças hematológicas e aquelas sem o número de plaquetas.

Resultados:

Crianças com menos de 12 meses receberam 98 prescrições de concentrado de plaquetas (45,2%). A maioria das transfusões foi profiláticas (165; 79%). Em relação ao local da transfusão, 39 (18%) foram no pronto-socorro, 27 (12,4%) na enfermaria e 151 (69,6%) na unidade de terapia intensiva. O gatilho, o volume prescrito e o subtipo de concentrado de plaquetas foram adequados em 59 (28,2%), 116 (53,5%) e 209 (96,3%) das transfusões, respectivamente. Prescrições para pacientes com hemorragia apresentaram adequação em 42 (95,5%) transfusões, enquanto para crianças sem hemorragia houve adequação em 17 (10,3%) vezes. A inadequação mais comum em relação ao volume foi a prescrição acima da recomendação (95; 43,8%). Foram prescritos oito concentrados de plaquetas sem indicação de solicitação de subtipos.

Conclusão:

Os resultados obtidos nesse estudo mostraram que a prescrição de transfusão de concentrado de plaquetas foi mais adequada em crianças com hemorragia ativa em comparação com a transfusão profilática. Houve tendência à prescrição de volumes elevados e de subtipos de plaquetas, o que não se justifica segundo os protocolos atuais. O ensino da medicina transfusional deve ser mais valorizado na graduação e na residência médica.

Descritores:
Medicina transfusional; Transfusão de plaquetas; Criança; Tratamento de emergência; Hemorragia

ABSTRACT

Objective:

To verify the adequacy of platelet concentrate prescription by pediatricians in different pediatric sectors of a general hospital.

Methods:

A cross-sectional study evaluating 218/227 platelet concentrate records in children and adolescents (zero to 13 years old), from January 2007 to April 2015, by the pediatricians of the emergency room, sick bay and intensive care unit. The requisitions were excluded in patients with hematological diseases and those without the number of platelets.

Results:

Children under 12 months received 98 platelet concentrates (45.2%). Most of the transfusions were prophylactic (165; 79%). Regarding the transfusion site, 39 (18%) were in the emergency room, 27 (12.4%) in the sick bay and 151 (69.6%) in the intensive care unit. The trigger, prescribed volume and platelet concentrate subtype were adequate in 59 (28.2%), 116 (53.5%) and 209 (96.3%) of the transfusions, respectively. Patients with hemorrhage presented adequacy in 42 (95.5%), while children without bleeding presented in 17 (10.3%). The most common inadequacy related to volume was the prescription above recommendation (95; 43.8%). Eight platelet concentrates were prescribed with subtype requests without indication.

Conclusion:

The results obtained in this study showed that transfusion of platelet concentrate occurred more adequately in children with active bleeding compared to prophylactic transfusion. There was a tendency to prescribe high volumes and platelet subtypes not justified according to current protocols. The teaching of transfusion medicine should be more valued at undergraduate and medical residency.

Keywords:
Transfusion medicine; Platelet transfusion; Child; Emergency treatment; Hemorrhage

INTRODUÇÃO

A primeira transfusão de sangue humano bem-sucedida na história foi realizada por um médico obstetra britânico, James Blundell, em 1818.(11. American Association of Blood Banks (AABB). Highlights of transfusion medicine history [Internet]. Bethesda: AABB; c2019 [cited 2017 May 29]. Available from: http://www.aabb.org/tm/Pages/highlights.aspx
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) Na década de 1950, foi possível fracionar as plaquetas do sangue total.(22. Aster RH. Blood platelet kinetics and platelet transfusion. J Clin Invest. 2013;123(11):4564-5.) Em 1961, foi comprovado o impacto da transfusão de plaquetas na redução da mortalidade de pacientes oncológicos(33. American Red Cross. History of Blood. Transfusions [Internet]. EUA: American Red Cross; c2019 [cited 2017 May 29]. Available from: http://www.redcrossblood.org/learn-about-blood/blood-transfusions/history-blood-transfusions
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) e, então, sua prescrição passa a ocorrer com maior frequência.(44. Klein AA, Arnold P, Bingham RM, Brohi K, Clark R, Collis R, et al. AAGBI guidelines: the use of blood components and their alternatives 2016. Anaesthesia. 2016;71(7):829-42.)

Apesar de ser o segundo hemocomponente mais transfundido, após o concentrado de hemácias (CH), a transfusão de concentrado de plaquetas (CP) é a maior causa de reações transfusionais em politransfundidos,(55. Pedrosa AK, Pinto FJ, Lins LD, Deus GM. Blood transfusion reactions in children: associated factors. J Pediatr (Rio J). 2013;89(4):400-6.) sendo as mais frequentes a reação febril não hemolítica, a reação alérgica e a sepse bacteriana.(66. Kaufman RM, Djulbegovic B, Gernsheimer T, Kleinman S, Tinmouth AT, Capocelli KE, Cipolle MD, Cohn CS, Fung MK, Grossman BJ, Mintz PD, O’Malley BA, Sesok-Pizzini DA, Shander A, Stack GE, Webert KE, Weinstein R, Welch BG, Whitman GJ, Wong EC, Tobian AA; AABB. Platelet transfusion: a clinical practice guideline from the AABB. Ann Intern Med. 2015;162(3):205-13.) Contrariamente à transfusão de CH, na qual prescreve-se uma unidade de cada vez na maioria das situações, na transfusão de plaquetas são administradas mais unidades (uma unidade de CP a cada 10kg/peso), expondo o receptor a mais doadores e, consequentemente, a um risco elevado de reações transfusionais.(77. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada e Temática. Guia para o uso de hemocomponentes [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2015 [citado 2017 Mai 29]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_uso_hemocomponentes_2ed.pdf
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) Além disso, a forma de armazenamento das plaquetas a 22°C aumenta o risco de contaminação bacteriana desse hemocomponente.(44. Klein AA, Arnold P, Bingham RM, Brohi K, Clark R, Collis R, et al. AAGBI guidelines: the use of blood components and their alternatives 2016. Anaesthesia. 2016;71(7):829-42.)

As indicações mais frequentes de transfusão de plaquetas são baixa contagem plaquetária, hemorragia e uso de anticoagulantes.(88. Kreuger AL, Middelburg RA, Zwaginga JJ, van der Bom JG, Kerkhoffs JL. Clinical practice of platelet transfusions in haemato-oncology. Vox Sang. 2015;109(1):91-4.)

Os guias de conduta de transfusão de CP em pediatria baseiam-se nos de adultos,(99. Sloan SR, Parker RI. Current status of platelet transfusion in pediatric patients. Transfus Med Rev. 2016;30(4):230-4. Review.) e recomendam a transfusão profilática de plaquetas somente quando a contagem plaquetária está abaixo de 10.000/mm3, abaixo de 20.000/mm3 em pacientes com fator de risco como sepse, abaixo de 50.000/mm3 em cirurgia não crítica ou procedimento invasivo, e abaixo de 100.000/mm3 em cirurgias cranianas e oculares.(1010. Shah A, Stanworth SJ, McKechnie S. Evidence and triggers for the transfusion of blood and blood products. Anaesthesia. 2015;70(Suppl 1):10-9, e3-5. Review.) Já em casos de hemorragia, a transfusão está indicada quando a contagem de plaquetas é inferior 50.000/mm3 em crianças estáveis, abaixo de 100.000/mm3 em crianças graves e em qualquer valor no caso de pacientes portadores de doenças com defeito qualitativo das plaquetas.(1111. Parker RI. Transfusion in critically ill children: indications, risks and challenges. Crit Care Med. 2014;42(3):675-90. Review.)

A solicitação adequada do subtipo de CP (filtrado, irradiado e lavado) influencia no resultado da transfusão e reduz o risco de reações transfusionais.(77. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada e Temática. Guia para o uso de hemocomponentes [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2015 [citado 2017 Mai 29]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_uso_hemocomponentes_2ed.pdf
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,1212. Lavoie J. Blood transfusion risks and alternative strategies in pediatric patients. Pediatr Anaesth. 2011;21(1):14-24. Review.) O CP filtrado elimina 99% dos leucócitos e é indicado principalmente para evitar a reação febril não hemolítica em politransfundidos e a transmissão de citomegalovírus em imunodeprimidos.(77. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada e Temática. Guia para o uso de hemocomponentes [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2015 [citado 2017 Mai 29]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_uso_hemocomponentes_2ed.pdf
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) O CP irradiado previne a proliferação clonal de linfócitos do doador no receptor em indivíduos imunodeprimidos, evitando a doença do enxerto contra hospedeiro transfusional.(77. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada e Temática. Guia para o uso de hemocomponentes [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2015 [citado 2017 Mai 29]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_uso_hemocomponentes_2ed.pdf
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) O CP lavado tem a maior quantidade possível de seu plasma substituída por solução salina 0,9%, com o objetivo de retirar as proteínas plasmáticas que podem causar reação anafilática em indivíduos com deficiência congênita de alguma proteína sérica, ou que já apresentaram reação alérgica grave à transfusão anterior.(77. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada e Temática. Guia para o uso de hemocomponentes [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2015 [citado 2017 Mai 29]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_uso_hemocomponentes_2ed.pdf
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)

A transfusão de CP fora das recomendações atuais eleva o risco de complicações e de morte. A prescrição de baixo volume resulta em rendimento inferior ao ideal, e o alto volume associa-se com risco de sobrecarga circulatória. A escolha de procedimentos incorretos, aumenta a incidência de reações transfusionais preveníveis, além de elevar os custos do tratamento.(1212. Lavoie J. Blood transfusion risks and alternative strategies in pediatric patients. Pediatr Anaesth. 2011;21(1):14-24. Review.)

Estudo realizado no Brasil em 2016 avaliou o conhecimento de alunos do sexto ano do curso de medicina e residentes de diversas áreas. A adequação transfusional foi de 35% e 49,5% respectivamente, demonstrando pouco conhecimento sobre o tema.(1313. Piassi FC. A evolução do conhecimento acerca da hemoterapia durante a formação médica [Tese]. Minas Gerais: Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais; 2016.)

A transfusão de CP é estratégia importante e frequente em várias situações clínicas. Apesar disso, há poucos estudos disponíveis que descrevam e avaliem esse procedimento na faixa etária pediátrica.(1414. Marti-Carvajal AJ, Muñoz-Navarro SR, Martí-Pena AJ, Matheus-Fernandéz E, Medina-Laurentin MC. Appropriate use of blood products in pediatric patients in a Venezuelan general university hospital: cross sectional study. Salus. 2005;9(1):20-30.1717. Jamal R, Hoe TS, Ong LC, Afifah I, Khuzaiah R, Doraisamy G. A clinical audit on the practice of platelet transfusions at a tertiary paediatric referral centre. Malays J Pathol. 1998;20(1):35-40.)

OBJETIVO

Avaliar a adequação da prescrição de concentrado de plaquetas por pediatras, levando-se em conta o gatilho transfusional, o volume prescrito e a solicitação de subtipos de plaquetas e nos três setores do hospital: pronto-socorro, enfermaria e unidade de terapia intensiva.

MÉTODOS

Foi realizado estudo transversal e baseado no levantamento de fichas de requisição de procedimento hemoterápico de crianças e adolescentes de zero a 13 anos no Hospital e Pronto-Socorro Central (HPSC), em São Bernardo do Campo (SP). As fichas foram preenchidas pelos médicos pediatras dos três setores do hospital: pronto-socorro, enfermaria e unidade de terapia intensiva (UTI) pediátrica no período de janeiro de 2007 a abril de 2015.

No período do estudo, a pediatria era composta por 4 leitos na sala de emergência, 5 de observação, 40 de enfermaria e cinco de UTI pediátrica. O hospital não possuía centro obstétrico, berçário, centro cirúrgico e nem serviço de oncologia/hematologia. Contava com agência transfusional (COLSAN – Associação Beneficente de Coleta de Sangue) que armazenava alguns hemocomponentes e realizava testes simples, como tipagem sanguínea ABO direta e reversa, tipagem Rh e provas cruzadas. Quando era solicitado algum subtipo de hemocomponente não disponível na agência transfusional, este era enviado pela sede, que fica no município de São Paulo (SP). A agência dispunha de CP obtidos de doação de sangue total, mas raramente de aférese.

Os critérios de inclusão foram as transfusões de CP realizadas em crianças atendidas no pronto-socorro, na enfermaria e na UTI pediátrica no período do estudo. Foram excluídas transfusões que possuíam registro incompleto, impossibilitando análise da adequação transfusional.

Para avaliar a adequação do gatilho transfusional, o volume prescrito e a escolha dos subtipos de CP, utilizamos as recomendações do Ministério da Saúde de 2015.(77. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada e Temática. Guia para o uso de hemocomponentes [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2015 [citado 2017 Mai 29]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_uso_hemocomponentes_2ed.pdf
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) Durante o período do estudo, não foi transfundida unidade obtida por aférese.

Os dados coletados das fichas de requisição transfusional foram gerais, como idade (meses), sexo, doença presente e local da solicitação da transfusão (pronto-socorro, enfermaria ou UTI pediátrica); e dados referentes às características das transfusões como o gatilho (motivo da transfusão), volume prescrito e subtipo de CP. No gatilho, foi avaliado se a transfusão foi profilática (baseado somente no valor das plaquetas) ou realizada em pacientes com hemorragia ativa. Foram consideradas adequadas as transfusões profiláticas de CP em pacientes com menos de 10.000 plaquetas/mm3. As transfusões com contagens maiores foram avaliadas individualmente, levando-se em conta a presença de morbidades associadas e o quadro clínico. Em relação ao volume prescrito, considerou-se adequado o volume entre 5 e 10mL/kg em menores de 1 ano e uma unidade de CP a cada 10kg nos maiores. Nos subtipos de CP, avaliou-se a solicitação de componentes filtrados, irradiados e lavados, levando-se em consideração a doença presente e o histórico transfusional do paciente.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina do ABC (parecer n° 2.001.832), CAAE: 62730716.1.0000.0082.

Os dados foram digitados e consolidados em planilha Excel (Microsoft), tendo sido analisados no Statistical Package for Social Science (SPSS), versão 24.0. As variáveis qualitativas foram apresentadas na forma de número absoluto e percentual; as contínuas foram analisadas quanto à sua distribuição, apresentadas na forma de média±desvio padrão, quando paramétricas, e mediana (mínimo e máximo), quando não paramétricas. Para comparação dos dados qualitativos, utilizamos o teste de χ2. O nível de significância adotado foi de 5%.

RESULTADOS

Incluíram-se, na casuística, 217 das 228 requisições de transfusões de CP solicitadas no período do estudo. Excluíram-se 11 requisições de pacientes com doença hematológica (7 leucemias e 4 aplasias de medula óssea), pois os pacientes foram transferidos já com conduta de hematologista externo ou os dados registrados não estavam claros. Excluímos também oito requisições especificamente da análise do gatilho transfusional devido à falta do registro do valor das plaquetas, porém essas requisições foram utilizadas para as análises de volume prescrito e de subtipos de plaquetas (Figura 1).

Figura 1
Fluxograma do estudo

CP: concentrado de plaquetas.


Na amostra estudada, predominaram as transfusões de CP no sexo masculino (140; 64,5%). A média e a mediana de idade dos pacientes que receberam CP foram, respectivamente, 47,4±52,8 meses e 17 meses (1 a 156 meses), respectivamente; 98 (45,2%) transfusões foram realizadas em crianças com idade inferior a 12 meses.

Houve descrição de doença presente em 217 requisições, das quais 109 (50,2%) relatavam sepse (Tabela 1). Em relação ao local da transfusão, 39 (18%) foram feitas no pronto-socorro, 27 (12,4%) na enfermaria e 151 (69,6%) na UTI pediátrica (Tabela 1).

Tabela 1
Características gerais das transfusões de plaquetas

A maioria das transfusões (165; 79%) foi realizada em crianças que não apresentavam sangramento ativo, baseando-se somente no valor das plaquetas do hemograma. O valor das plaquetas estava inferior a 50.000/mm3 e 10.000/mm3 em 173 (82,8%) e 24 (11,5%) das transfusões realizadas, respectivamente.

O gatilho, o volume prescrito e o subtipo de CP foram adequados em 59 (28,2%); 116 (53,4%) e 209 (96,3%) transfusões, respectivamente (Tabela 2). Houve solicitação de um ou mais subtipos de CP em oito transfusões (3,7%). O subtipo mais solicitado foi o filtrado, em sete requisições. A inadequação mais comum, em relação ao volume, foi a prescrição acima da recomendação (95; 43,8%).

Tabela 2
Descrição das variáveis avaliadas em relação à adequação da transfusão de concentrados de plaquetas

A adequação transfusional foi maior nas situações em que ocorreram hemorragia ativa em comparação com transfusões profiláticas (42; 95,5% versus 17; 10,3%; p<0,001).

A mediana da contagem de plaquetas entre o grupo cuja transfusão de CP estava adequada foi menor em relação àquele em que a transfusão foi considerada inadequada (18.000/mm³; 2.000-50.000/mm³ versus 32.500/mm³; 5.000-166.000/mm³; p<0,001).

Quando se avaliou o local de transfusão em relação à adequação do gatilho, do volume e do subtipo, observou-se que o pronto-socorro teve maior acerto do gatilho em 40,5% (p=0,137), mas sem diferença estatisticamente significativa entre os setores, a enfermaria em relação ao volume (p=0,032), e a UTI quanto ao subtipo (p=0,001) (Tabela 3).

Tabela 3
Adequação do gatilho, volume e subtipo nos três setores hospitalares

DISCUSSÃO

O estudo demonstrou que houve adequação do gatilho transfusional somente em 28,2% das solicitações de CP. O volume prescrito e a solicitação de subtipos de CP foram adequados em 53,5% e 96,3%, respectivamente.

Em relação ao gatilho transfusional, a adequação foi superior em crianças com hemorragia ativa (95,5%) quando comparada às transfusões profiláticas (10,3%). Quatro estudos retrospectivos realizados em hospitais terciários baseados nas recomendações da American Association of Blood Banks, semelhantes às indicações do Ministério da Saúde, encontraram adequações superiores: um estudo venezuelano com 404 crianças verificou adequação de transfusão de CP de 52,6%;(1414. Marti-Carvajal AJ, Muñoz-Navarro SR, Martí-Pena AJ, Matheus-Fernandéz E, Medina-Laurentin MC. Appropriate use of blood products in pediatric patients in a Venezuelan general university hospital: cross sectional study. Salus. 2005;9(1):20-30.) já registro canadense, que verificou 139 transfusões de CP, apresentou adequação de 64,7%,(1515. Hume HA, Ali AM, Decary F, Blajchman MA. Evaluation of pediatric transfusion practice using criteria maps. Transfusion. 1991;31(1):52-8.) taxa próxima à de pesquisa indiana, que avaliou 566 transfusões de CP e encontrou 66,7% de adequação;(1616. Bahadur S, Sethi N, Pahuja S, Pathak C, Jain M. Audit of pediatric transfusion practices in a tertiary care hospital. Indian J Pediatr. 2015;82(4):333-9.) já estudo malaio, com 119 transfusões de CP, apresentou 81,5% de adequação.(1717. Jamal R, Hoe TS, Ong LC, Afifah I, Khuzaiah R, Doraisamy G. A clinical audit on the practice of platelet transfusions at a tertiary paediatric referral centre. Malays J Pathol. 1998;20(1):35-40.)

Quando houve inadequação no cálculo do volume prescrito, o erro que predominou foi o volume excessivo, representando 43,8% do total, aumentando o risco de sobrecarga circulatória relacionada à transfusão, reação transfusional que apresenta 12% de mortalidade.(1212. Lavoie J. Blood transfusion risks and alternative strategies in pediatric patients. Pediatr Anaesth. 2011;21(1):14-24. Review.)

Apesar da adequação da solicitação de CP simples (sem subtipo) ter sido alta, todos os 13 subtipos solicitados em 8 transfusões estavam incorretos. Quando não está disponível no estoque, o preparo de um subtipo de CP requer maior tempo de espera para o recebimento do hemocomponente, o que pode ser decisivo a um paciente grave. Não encontramos estudos sobre adequação de volume e escolha de subtipos de CP.

Entre as hipóteses levantadas para justificar os resultados encontrados estão a falta do ensino desse tema na graduação e na residência médica, o desconhecimento de pediatras que atuam com crianças graves dos protocolos de transfusão de CP e a falta de programa de educação continuada sobre hemoterapia.

A inadequação transfusional eleva a incidência de reações transfusionais e de morte. Por outro lado, pode reduzir os estoques de CP, que é o hemocomponente de menor validade (5 dias) e aumentar os custos do tratamento.(1818. Hasler S, Kleeman A, Abrams R, Kim J, Gupta M, Krause MK, et al. Patient safety intervention to reduce unnecessary red blood cell utilization. Am J Manag Care. 2016;22(4):295-300.)

Os dados deste estudo foram encaminhados ao Comitê Transfusional do hospital, com a proposta de realizar atualização da equipe pediátrica. A existência de um Comitê Transfusional é obrigatória em toda instituição que realiza transfusão de hemocomponentes (portaria 158/GM/MS, de 4 de fevereiro de 2016).(1919. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n° 158, de 4 de fevereiro de 2016. Redefine o regulamento técnico de procedimentos hemoterápicos [Internet]. Brasília (DF): 2016 [citado 2018 Nov 12]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2016/prt0158_04_02_2016.html
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) São competências do Comitê Transfusional o monitoramento da prática hemoterápica na instituição de assistência à saúde, a atividade educacional continuada em hemoterapia, e a hemovigilância e a elaboração de protocolos de atendimento da rotina hemoterápica.(1919. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n° 158, de 4 de fevereiro de 2016. Redefine o regulamento técnico de procedimentos hemoterápicos [Internet]. Brasília (DF): 2016 [citado 2018 Nov 12]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2016/prt0158_04_02_2016.html
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)

Quanto às limitações, podemos descrever o fato de ter sido um estudo retrospectivo dependente de informações registradas por diferentes médicos que, por vezes, não preenchiam adequadamente as fichas de requisição transfusional.(77. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada e Temática. Guia para o uso de hemocomponentes [Internet]. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2015 [citado 2017 Mai 29]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_uso_hemocomponentes_2ed.pdf
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
)

CONCLUSÃO

A adequação na indicação da transfusão de plaquetas foi muito abaixo quando comparada outros registros. A adequação na prescrição de concentrado de plaquetas foi maior em crianças com hemorragia ativa. Houve propensão à solicitação de volumes excessivos e de subtipos de plaquetas sem justificativa pelos protocolos transfusionais atuais. Esses dados reforçam a necessidade de o ensino da medicina transfusional ser mais valorizado na graduação e na residência médica e de o hospital, em conjunto com o Comitê Transfusional, realizar educação continuada sobre o tema quando identificar a necessidade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    30 Jul 2018
  • Aceito
    06 Mar 2019
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