Open-access Da cordilheira ao rio: personagens não humanos em O manto da noite e Banzeiro Òkòtó

From the mountain range to the river: non-human characters in O manto da noite and Banzeiro Òkòtó

De la cordillera al río: personajes no humanos en O manto da noite y Banzeiro Òkòtó

Resumo

O presente artigo aborda a construção de personagens não-humanos no romance O manto da noite, de Carola Saavedra, e na narrativa de não-ficção Banzeiro Òkòtó, de Eliane Brum. A partir da ideia, levantada por Carola Saavedra em seu livro O mundo desdobrável: ensaios para depois do fim, de que ainda há muitas histórias para se contar, analisamos como esses dois livros constituem aquilo que Carola chama de “permatexto” e o que Ursula K. le Guin chama de teoria do cesto. Em outras palavras, pretendemos mostrar que, ao sair de um determinado modelo de linguagem e de narrativa, e inaugurando outro, mais expandido, mais feminino e em diálogo com outras espécies, a literatura se renova e funda um diálogo com as vozes que, ao longo dos séculos, foram constantemente silenciadas.

Palavras-chave:
personagens não-humanos; permatexto; teoria do cesto; Carola Saavedra; Eliane Brum

Abstract

This article analyzes the elaboration of non-human characters in the novel O manto da noite, by Carola Saavedra, and in the nonfiction narrative Banzeiro Òkòtó, by Eliane Brum. Based on the idea raised by Carola Saavedra in her book O mundo desdobrável: ensaios para depois do fim, that there are still many stories to be told, we analyze how these two books constitute what Carola calls “permatext” and what Ursula K. le Guin calls “the carrier bag theory of fiction.” In other words, we intend to show that, by leaving a certain model of language and narrative, and inaugurating a more expanded, feminine, interspecies dialogue, literature renews itself and establishes a dialogue with voices that have been constantly silenced over the centuries.

Keywords:
non-human characters; permatext; carrier bag theory; Carola Saavedra; Eliane Brum

Resumen

Este artículo aborda la construcción de personajes no humanos en la novela O manto da noite, de Carola Saavedra, y en la narrativa de no ficción Banzeiro Òkòtó, de Eliane Brum. Basado en la idea planteada por Carola Saavedra en su libro O mundo desdobrável: ensayos para depois do fim, de que aún quedan muchas historias por contar, analizamos cómo estos dos libros constituyen lo que Carola llama “permatexto” y lo que Ursula K. le Guin denomina la teoría del cesto. En otras palabras, pretendemos mostrar que, al dejar un determinado modelo de lenguaje y narrativa, e inaugurando otro, más ampliado, más femenino y en diálogo con otras especies, la literatura se renueva y establece un diálogo con las voces que, a lo largo de los siglos, han sido constantemente silenciadas.

Palabras-clave:
personajes no humanos; permatexto; teoría del cesto; Carola Saavedra; Eliane Brum

É fascinante pensar que o grande rio que dá nome à Bacia Amazônica nasce de um fiozinho de água lá nas cordilheiras dos Andes para formar aquele mundo aquático.
Ailton Krenak, Futuro Ancestral

A Modernidade, com todas as suas experimentações de vanguarda e aquelas que se seguiram ao longo do século XX, nos fez acreditar durante décadas que, em termos artísticos, tudo havia sido dito e feito. Diante disso, a literatura, assim como as artes de forma geral, se viu diante de um dilema: se todas as histórias já tinham sido contadas e todas as formas experimentadas, para onde avançar? Como arriscar? Se tudo já foi realizado — a página em branco, as rupturas gráficas, a escrita automática, as misturas de gênero, as frases sem pontuação —, estaria a literatura fadada a uma repetição constante de si mesma?

Em 1991, a escritora Maria Gabriela Llansol recebeu um dos mais prestigiados prêmios portugueses — o Grande Prêmio de Romance da Associação Portuguesa de Escritores (APE) — por Um beijo dado mais tarde. Na altura, a escolha do seu livro foi bastante contestada, pois muitos críticos não consideravam seu livro um romance. Nele, como em toda sua obra, a autora rompe com as ideias de unidade, tempo e espaço narrativos e até mesmo com o conceito de personagem. Como resposta às inúmeras críticas, Llansol (s.d.) leu, na cerimônia de entrega do prêmio, um texto intitulado “Para que o romance não morra”, no qual destaca possíveis caminhos para que essa forma de escrita continue a existir, sublinhando que a sua permanência depende de uma transformação. Assim ela começa: “escrevo para que o romance não morra, mesmo que ele tenha que mudar de forma, mesmo que ele tenha que encontrar outras paisagens tão difíceis de nomear, mesmo que a gente ainda duvide se ainda é ele, escrevo para que o romance não morra…” (Llansol, s.d., p. 116).

Passados mais de trinta anos, não resta qualquer dúvida de que o romance não morreu. Antes, alargou suas possibilidades. No entanto, há uma premissa que apenas recentemente começou a ser questionada: a de que todas as histórias já haviam sido contadas.

O crescente diálogo da literatura com as vozes que foram silenciadas ao longo dos séculos nos faz perceber como, ao contrário do que acreditamos durante tanto tempo, há ainda inúmeras histórias por narrar. Histórias que nunca fizeram parte do cânone ocidental. Histórias excluídas, mantidas em silêncio. No livro O mundo desdobrável: ensaios para depois do fim, a escritora Carola Saavedra (2021) ressalta que estamos tão habituados a ouvir que todas as histórias já foram contadas que nem nos apercebemos de quantas ficaram adormecidas. Nestas, há um elemento central que a razão cartesiana ocidental colonialista binária abandonou, mas que as vozes silenciadas jamais abandonariam: o corpo. Que mulher deixaria de falar do corpo? De pensar com e sobre o corpo? Que indígena deixaria de fora o corpo? Não só o nosso corpo, humano, mas o corpo de tudo que habita este planeta. O corpo dos animais, das pedras e das montanhas, o corpo dos rios e dos mares, dos fungos, das bactérias, das plantas.

A partir do momento em que mulheres, indígenas, transgêneros, afrodescendentes, entre outros, começam a se apoderar da escrita, muitas histórias vêm à superfície e passam a ocupar as narrativas — ainda que com muita resistência da chamada “alta” literatura. Elas vão se espalhando assim mesmo, como plantas trepadeiras, nos colocando questões, nos abrindo novas janelas para o mundo — e transformando aquilo que sempre entendemos como romance.

Nesse movimento, vemos surgir o estabelecimento de um diálogo com as tradições dos povos originários, um resgate das culturas que existiam no Brasil e no resto da América Latina antes das invasões europeias. Esse diálogo requer uma compreensão distinta da relação entre os seres humanos e os seres não humanos, uma abertura para os outros habitantes deste planeta, provocando um deslocamento do antropomorfismo — ou mesmo a sua dissolução, num interesse cada vez mais sobressalente por aquilo que acontece “quando as espécies de encontram”, para utilizarmos a expressão cunhada por Donna Haraway (2022).

Nessa mudança de perspectiva, dois livros, entre outros, claro, me parecem cruciais na prosa brasileira contemporânea: o romance O manto da noite, de Carola Saavedra (2022), e a narrativa de não ficção literária Banzeiro Òkòtó: uma viagem à Amazônia centro do mundo, de Eliane Brum (2021). Nesses textos, as autoras experimentam uma escrita muito diferente daquilo que entendemos tradicionalmente como romance, fazendo explodir não só os conceitos de unidade, tempo, espaço e personagens, como fez Maria Gabriela Llansol, mas também, e sobretudo, a ideia de que a literatura constitui um espaço apenas dos seres humanos.

Trata-se de livros que, tal como Saavedra (2021) expõe nos seus ensaios, trazem o corpo para o centro do relato. Não apenas o corpo da mulher, dos humanos, mas também os diversos corpos que coabitam a Terra. Em O manto da noite, a cordilheira dos Andes deixa de ser apenas paisagem para se tornar personagem tão importante quanto os demais. Ela fala, pensa, sente, guarda histórias — não é puro enfeite. Em Banzeiro Òkòtó, é o rio que toma conta da narrativa. Eliane (2021), a narradora, é invadida pelo banzeiro, “como o povo do Xingu chama o território de brabeza do rio. É onde com sorte se pode passar, com azar não” (Brum, 2021, p. 9).

Cordilheira e rio não são os únicos elementos naturais dessas narrativas, mas são os que mais sobressaem. Vamos observá-las mais de perto, analisando como, ao ser ocupada por seres não humanos, a literatura muda mais uma vez de forma — fazendo com que o romance não morra.

O manto da noite abre com uma voz narrativa que paira no ar, feito a de uma mãe que conta histórias para as crianças adormecerem: uma voz que é e não é matéria, que se move, dança, não se fixa, e que “fala num idioma que não é meu. Nem teu. Uma língua inventada, macia e venenosa” (Saavedra, 2022, p. 14). Nem ela compreende tudo o que diz — pelo menos não com a razão cartesiana —, nem exige isso de nós. O mistério, a não compreensão, a falta de limpidez percorrem todo o romance. Para quem chega querendo entender, resumir, explicar tudo, ela diz de forma tortuosa que não conseguirá. Há muitas respostas para cada pergunta; muitas perguntas para uma mesma resposta. A voz errante nos faz pensar numa origem, antes de o mundo ser este mundo, quando “falávamos a língua secreta de todas as coisas” (Saavedra, 2022, p. 15). Mas a origem aqui não é cronológica, pois os tempos vão e voltam, se interpõem. A voz vem de antes do mundo, mas existe nele — e, provavelmente, depois dele.

Há na narrativa uma menina, que cresce, se transforma, passa por um processo de metamorfose, vira animal, depois escritora, Caliban à deriva. Não sabemos como se chama. Até porque, como ela diz à mãe, “esse nome que você me deu também não é meu” (Saavedra, 2022, p. 29). Sua primeira memória é uma memória em trânsito. “Tem três anos de idade e o avião onde está sobrevoa a Cordilheira dos Andes” (Saavedra, 2022, p. 19). A Cordilheira por onde ela caminha, com quem ela conversa e que guarda a sua ancestralidade, a sua história, mas também a de todo um continente: “Este é um continente de mortos, diz a Cordilheira” (Saavedra, 2022, p. 34).

Em Futuro ancestral, o filósofo originário Ailton Krenak (2022) retoma os termos “mundizar” e “pluriversos”, usados por Alberto Acosta e outros pensadores andinos, para expressar a potência de mundos possíveis. Diz ele que esses termos “evocam a possibilidade de os mundos se afetarem, de experimentar o encontro com a montanha não como uma abstração, mas como uma dinâmica de afetos em que ela não só é sujeito, como também pode ter a iniciativa de abordar quem quer que seja” (Krenak, 2022, p. 83). Ora, é exatamente isso o que acontece no romance de Carola Saavedra (2022): a Cordilheira aborda a menina, e as duas estabelecem uma dinâmica de afetos que as coloca em metamorfose constante.

O encontro aqui tem uma perspectiva spinoziana: que é a de afetar e ser afetado. A Cordilheira afeta a menina que, por sua vez, a afeta. Sem esse afeto duplo, diria Spinoza, não há encontro. A diferença aqui é que o encontro acontece entre espécies. E isso marca uma diferença clara de pensamento, assim como uma ruptura na obra de Carola Saavedra, que, em seus primeiros romances, não demonstrava esse interesse em fazer dialogarem as espécies. A leitura de autores como Donna Haraway, Ailton Krenak, David Kopenawa, que ela expõe em seu livro de ensaios, foi sem dúvida um divisor de águas no pensamento e na escrita de Saavedra.

Voltando ao Manto: a menina tem dúvidas sobre a sua origem. Desconfia que a mãe, uma mulher loura e alta, não seja a sua mãe de verdade — da mesma forma que o continente desconfia da sua origem branca. A menina, que tem medo dos monstros que vivem debaixo da cama, fala três línguas: espanhol, português e alemão. Muitos anos depois, quando já não é menina, vai morar no exterior porque “acha que assim conseguirá fugir do que lhe reserva o passado” (Saavedra, 2022, p. 33).

“Às vezes é preciso fugir para poder voltar” (Saavedra, 2022, p. 38), diz a narradora. Então, ela caminha na/com a Cordilheira, esse personagem não humano do romance. Aos poucos, a Cordilheira vai trazendo para ela o Tempo em seu estado puro, fazendo entrecruzar presente, passado e futuro. Por exemplo, seu irmão e seus pais aparecem em corpos e idades muito distintas. Uma mulher indígena que está morta, talvez sua mãe, surge com recorrência. “Ouço uma voz que me chama. É ela. Às vezes ela faz isso, me chama, grita com força. Não é fácil ir ao seu encontro. É uma longa viagem” (Saavedra, 2022, p. 37), diz a menina-mulher-escritora.

Viagem, travessia, caminhada, errância são palavras que definem o romance de Carola Saavedra (2022). Aqui, nada se fixa, muito pelo contrário. Até mesmo os personagens se descentralizam. Num texto publicado no blogue da editora Companhia das Letras, a autora defende uma escrita fora de si. Vejo ao menos dois sentidos nessa definição, que poderiam ser resumidos nas perguntas: como narrar para fora do “eu”? Como narrar uma literatura enlouquecida, fora do eixo, fora da razão, da realidade mais imediata?

Há, em O manto da noite, uma força centrífuga que empurra os elementos para longe do centro. Imaginem um jogo de varetas: juntamos as peças com força e, de uma vez, soltamos todas. O centro existe para nos empurrar para longe. Mas há também forças centrípetas, que fazem os elementos retornarem, nesse embate de forças que constitui o movimento. As personagens surgem como subjetividades em andamento, sujeitos moventes, para usar uma expressão cara à escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol. Assim, a menina assume outras formas, se transforma num animal, depois vira escritora, depois se transforma em Caliban e termina a travessia no mesmo tempo mítico do início.

A escrita acompanha essas metamorfoses: começa com aquela voz mítica; passa para a narração fragmentada da infância; depois entra num universo onírico, que é a travessia da Cordilheira, uma espécie de viagem alucinógena, de estado febril ou onírico; segue pelo diário carioca, que é o momento-escritora da personagem, quando ela está escrevendo um livro sobre um cogumelo extraterrestre que invade o planeta; entra uma peça de teatro com Caliban, sua mãe, a bruxa Sycorax e outros personagens, até chegar ao pós-escrito, no tempo mítico outra vez. A própria narrativa vai se metamorfoseando, se movimentando, em vez de se fixar num único gênero.

No ensaio A ficção como cesta: uma teoria e outros escritos, Ursula K. Le Guin (2022) vai até a pré-história para mostrar como a literatura ocidental, predominantemente masculina, está marcada pela relação de força do homem primeiro com o osso, depois com o machado, a espada, a pistola, o canhão e, finalmente, a bomba. Essa relação determina uma forma linear de contarmos as histórias, como uma flecha cujo objetivo é unicamente alcançar seu alvo. Em contrapartida, Le Guin (2022) propõe, no lugar da arma, a cesta, recipiente onde os mais variados alimentos ou objetos se misturam, sem que um se sobreponha ao outro. Dessa forma, a narrativa perde o centro e se torna uma rede complexa, sem hierarquia. Nela, entra uma panóplia de ideias, de acontecimentos, de personagens, por vezes difíceis de organizar, tal como em qualquer sacola, onde o leitor poderá sempre encontrar coisas diferentes, relacionando-as.

Sob essa perspectiva, cabe de tudo num romance: teoria, ficção, poesia, realidade. Passado, presente, futuro. Cordilheiras, animais, humanos. Em O mundo desdobrável, a partir do conceito de permacultura, Carola Saavedra (2021) apresenta a ideia de um “permatexto”, que seria um texto “em que os diversos gêneros convivem e se retroalimentam, formando, como as plantas, um sistema autossustentável” (Saavedra, 2021, p. 86).

Neste mesmo livro, Saavedra (2021) conta que, quando criança, adorava escrever, até a escrita se tornar, na escola, algo sério e esquemático. A certa altura, somos obrigados a aprender a escrever de um único jeito, e esse jeito é: introdução, desenvolvimento, conclusão. Ou: tese, antítese e síntese. Até o último dia na escola, seguimos esse modelo da redação, que nos distancia da imaginação, da ficção, do universo infantil, com o qual somos obrigados repentinamente a romper.

O manto da noite, assim como o seu livro de ensaios, é uma antirredação, um antirromance, uma colcha de retalhos na qual tudo se conecta, se aglomera, sem se anular. Um pensamento não é causa ou consequência de outro. Nada precisa ser conclusivo. As ideias podem ser apenas uma centelha, como nas constelações de Walter Benjamin (2011). E assim, nessa narrativa em que os personagens humanos brilham tanto quanto os não humanos, vemos entrar em crise a razão cartesiana ocidental colonialista binária. Lembremos que somos todos feitos do mesmo pó de estrela, montanhas, pedras, plantas, seres humanos, animais. E assim a hierarquia branca e masculina se desfaz, no encontro entre os seres de diferentes espécies.

Carola Saavedra (2021) conta que, certa vez, perguntou ao tio sobre a origem da família e ouviu como resposta: espanhóis da Galícia. Mas toda a sua família, incluindo ela própria, têm o fenótipo dos indígenas chilenos (Carola nasceu no Chile e veio ainda pequena para o Brasil, durante a ditadura naquele país). Apesar das evidências, a América Latina rejeita com frequência suas culturas indígenas e africanas. Gosta de se afirmar como europeia. “Nosso continente é feito de fantasmas e silêncios”, afirma Carola Saavedra (2022). Ao falar sobre os Selk´nam, uma etnia extinta da América do Sul, reflete: “Quantas existirão, extintas feito fantasmas vagando pelo continente, vozes gravadas no vento, nas montanhas, passos que um dia pisaram a terra durante décadas, milênios, todo um ritmo, palavras para sempre em silêncio. Isso é a extinção, e mesmo assim há algo de incompreensível que permanece” (Saavedra, 2022, p. 33). Há sempre algo que resta dos mundos que acabam.

Das vozes silenciadas, enterradas, pisoteadas, surgem as vozes que salvam a literatura — sim, porque às vezes ela precisa ser salva, para não adoecer, não sucumbir em velhos preceitos. É preciso sacudi-la. Assustá-la com essas vozes que, silenciadas, nunca se calaram. Hilda Hilst, Soror Juana Inés de la Cruz, Carolina Maria de Jesus, Clarice Lispector são algumas das mulheres que coabitam o texto ensaístico de Carola, nos fazendo repensar o que têm sido considerados temas universais: “Temas que concernem a homens brancos heterossexuais nas grandes cidades?” (Saavedra, 2022, p. 59), para concluir: “seria urgente repensar essa categoria ‘universal’, que estruturas de poder ela representa e, assim, começar a contar o que permanece em silêncio” (Saavedra, 2022, p. 59).

Carola ouve as vozes silenciadas, lê e interpreta a escrita inscrita nos corpos, sejam eles minerais, naturais, humanos, sejam eles artificiais. Ouvir constitui o gesto principal de uma conversa. Desse modo, por mais que seja ela a escrever, a falar, a se comunicar, é, antes de mais nada, ela quem ouve. O mundo desdobrável e O manto da noite são livros porque se fazem matéria, feitos de papel, mas são, sobretudo, conversa, palavra falada, recebida, transmitida, soprada. Tomando o termo de Pierre Clastres (2018), poderíamos dizer que se trata de livros contra o Estado, sem poder centralizador, que, como as plantas, têm um saber espalhado pelo corpo. Livros-plantas. Livros-simbioses. Livros-comunidades. Porque, como diz a bióloga Lynn Margulis no documentário Symbiotic Earth: How Lynn Margulis rocked the boat and started a scientific Revolution (2018), “todos os organismos maiores que as bactérias são intrinsecamente comunidades”. Ou, ainda, livros-conversas, livros-constelações: um recorte, um lampejo dessa conversa infinita chamada vida.

E vida, aqui, inclui tudo o que não é humano. A Cordilheira, em O manto da noite, se apresenta como mãe da História, feito o cacique de uma tribo indígena, aquele ser que guarda as narrativas, os mitos, o saber de todo um povo. “Existem muitas formas de atravessar a Cordilheira. Penso que o melhor é caminhar” (Saavedra, 2022, p. 33), diz a narradora. Caminhando, vê-se a quantidade de mortos por todo o lado: “com o tempo, os corpos vão virando pedra, retornam a esta imensa elevação de terra que sou eu. E sempre tem gente que vem buscar seus mortos. Assim como você” (Saavedra, 2022, p. 33), diz a narradora à menina-mulher. “Para a Cordilheira todos são seus filhos” (Saavedra, 2022, p. 33); ela é mãe do continente, guarda os seres que morreram e os que ainda vão nascer. Nela, os mortos nunca morrem.

O mundo não humano ocupa as personagens humanas também em Banzeiro Òkòtó, de Eliane Brum (2021). Logo na abertura, a autora-narradora diz que o banzeiro se mudou do rio para dentro dela. Como acontece no livro de Saavedra (2022), há uma metamorfose. Afirma Eliane Brum (2021, p. 10):

Não aconteceu de repente. Foi acontecendo. Ainda acontece. Nunca mais vai parar de acontecer, acho. A Amazônia não é um lugar para onde vamos carregando nosso corpo, esse somatório de bactérias, células, subjetividades que somos. Não é assim. A Amazônia salta para dentro da gente como num bote de sucuri, estrangula a espinha dorsal do nosso pensamento e nos mistura à medula do planeta. [...] o que somos, já não sabemos. O que nos tornamos não tem nome. Não porque não tenha, mas porque não conhecemos a sua língua.

Novamente, estamos diante de uma personagem — no caso, a própria autora — que perde o eixo, que passa por diversas metamorfoses e nunca mais se pensa como figura una. Essas metamorfoses formam o cataclisma para uma narrativa vertiginosa. “Uma viagem à Amazonia centro do mundo”, diz o subtítulo do livro, que tira do Ocidente branco o poder centralizador e o leva para a floresta, relativizando-o, claro, pois se é nela que a vida pulsa, pulsa de forma complexa, descentralizada. Ocupar a floresta com o próprio corpo significa ser ocupado pela mata. Entender que as hierarquias se desfazem em prol de uma cooperação.

Depois de muitos anos de idas e vindas a Altamira — a porta de entrada para a floresta amazônica — como repórter, Eliane Brum decidiu se mudar para lá em 2017. Essa mudança, como ela própria diz, a desestruturou. Mas se desestruturar, ao contrário do que a maioria das pessoas pensa, não é uma catástrofe pessoal. É antes perder as bases sólidas, se deixar levar pela brabeza do rio, o banzeiro. “Desde que me mudei para a Amazônia, em agosto de 2017, o banzeiro se mudou do rio para dentro de mim” (Brum, 2021, p. 9), diz ela.

Da desestrutura vem a força do livro — aquilo que não nos deixa parar de o ler, o que nos aproxima da Amazônia, o que nos transforma, o que nos faz compreender, o que nos sensibiliza, o que nos faz questionar a forma como vivemos, o que nos dá vontade de jogar nossa própria estrutura para o ar e, como Eliane Brum (2021), nos amazonizar.

Eliane Brum (2021) insiste muitas vezes que é preciso se amazonizar com o corpo. Não basta reciclarmos nosso próprio lixo, comermos produtos orgânicos, trabalharmos na parte ecológica da empresa. É preciso reinventar o modo de vida. Aprender com os povos que já viviam na Amazônia antes da invasão dos brancos, com os povos que são floresta. E isso só é possível com a presença física. Com a transformação do corpo. Levando o corpo até a floresta. Transformando o corpo em floresta. Afirma Eliane Brum (2021, p. 48): “Só compreendi a floresta como mulher ao me compreender mulher na floresta, ao iniciar o que talvez possa chamar de meu reflorestamento, no sentido de um outro jeito de me entender, no mundo, com o mundo, sendo o mundo”. Ao longo da narrativa, ela passa por um processo de transformação do corpo que implica a sua descolonização.

Claro que para quem cresceu numa cidade, nesse mundo apartado da natureza, isso não é um processo fácil, mas, segundo Brum (2021), sem esse retorno as novas gerações vão viver num mundo hostil, e a espécie humana não terá muito mais tempo por aqui. Nem a humana nem muitas outras, exterminadas pelo superaquecimento global, causado por essa forma de vida que escolhemos, sobretudo desde o advento do capitalismo, com a sua ganância consumidora da natureza.

Uma ganância que começou antes, claro. Os primeiros brancos que aqui chegaram já chamavam as matas de virgens, como donzelas que deveriam ser invadidas e rasgadas, literalmente, como fazem com os corpos femininos. Analogia que Eliane Brum (2021) tece de forma brilhante em seu livro, e que nos faz entender a um só tempo a relação do Brasil com suas florestas e com o patriarcado. “‘Virgem’ não é uma palavra qualquer, porque carne. Na Amazônia, como na vida das mulheres, está intimamente conectada à destruição. Não apenas à destruição de uma barreira como o hímen. Mas à destruição que se dá pelo controle e pelo domínio dos corpos”, constata Eliane Brum (2021, p. 34). A lógica da violação e da exploração tem dominado as mentes patriarcais brasileiras desde a invasão portuguesa até os dias de hoje. Assim, “a luta pela floresta é a luta contra o patriarcado, contra o feminicídio, contra o racismo, contra o binarismo de gênero. E também contra a centralidade da pessoa humana” Brum (2021, p. 49).

Eliane Brum (2021) conta que, em Altamira, 99% das mulheres que ela entrevistou narraram histórias de abuso. Algumas demoraram anos para se abrir. Outras falaram a respeito da violência sofrida logo no primeiro contato. As histórias dessas mulheres, assim como as histórias de pessoas que perderam suas casas com a construção da hidrelétrica de Belo Monte, entre muitas outras dos povos da floresta, costuram o texto de Brum (2021), esse banzeiro que mistura narrativa pessoal com reportagem, numa linguagem que experimenta, sem medo, novos usos da linguagem — pois só abrindo espaços numa linguagem que também oprime (porque excessivamente masculina, branca, binária) conseguiremos imaginar outro mundo. Como no romance de Saavedra, aqui os elementos se somam, formando um “permatexto”.

“Imaginar” aparece como palavra fundamental em Banzeiro Òkòtó, um substituto possível para “esperança”. “Esperança”, como Eliane Brum (2021) insiste, é uma palavra superestimada. “A felicidade vem hoje perdendo valor de mercado” (Brum, 2021, p. 237), diz ela. E continua: “A esperança vem ocupando o seu lugar, convertida também em mercadoria, no futuro em que o momento se desenha sombriamente como o futuro num planeta pior” (Brum, 2021, p. 237). Diante do superaquecimento global, da vida que ficará cada vez mais difícil nas próximas décadas, a esperança se tornou uma obrigação, tal como a felicidade já foi um dia.

Mas a nova geração, que, ao contrário da geração de seus pais, já chega enxergando o colapso como realidade, sente raiva e

rompe a paralisia de sua época. Ao rompê-la, passam pela irritação de ouvir de seus pais e mães que seu movimento lhes dá esperança. O impasse em torno da esperança é revelador do impasse entre a geração que levou o consumo do planeta ao paroxismo, a dos pais, e a geração que vai viver no planeta esgotado
(Brum, 2021, p. 238).

Ter esperança, digamos, não é o mais importante. Nem o mais realista. Isso não quer dizer que não haja nada a fazer. “É possível agir sem esperança”, afirma Eliane Brum (2021, p. 242), “com a alegria de estarem juntes, de fazerem juntes, de lutarem juntes”. Lutando por uma causa em comum, em comunidade, com o sentimento do comum, algo que abandonamos. A geração anterior não cresceu preocupada em salvar o planeta, mas em enriquecer, em disputar o lugar de cada indivíduo, em construir núcleos familiares inabaláveis. Talvez, a geração mais capitalista desde sempre.

Vivemos agora o “novo regime climático”, termo que Bruno Latour (2021) usa para definir a fragilização dos ecossistemas terrestres. A nova geração está consciente da nossa fragilidade, da destruição que impusemos ao mundo, e sabe que sem uma mudança radical não haverá mundo possível. Num texto escrito durante o confinamento que todos nós vivemos durante a pandemia de COVID-19, Latour (2021) afirma que é necessário desconfinar o pensamento de certas ideias centrais da Modernidade, como as de progresso, de crescimento econômico e de dominação da natureza.

Se não há espaço para a esperança neste mundo que já sofre as consequências do superaquecimento, nunca falta lugar para a imaginação.

Aqueles que têm se mostrado tão competentes em imaginar o fim do mundo precisam se tornar capazes de imaginar o fim do capitalismo. Temos de nos tornar capazes, principalmente, de imaginar um futuro onde possamos e queiramos viver. Imaginar é ação política. Imaginar é instrumento de resistência. Imaginar o futuro é agir sobre o presente
(Brum, 2021, p. 361).

Logo no princípio da narrativa, Eliane afirma que “este livro, em mais de um sentido, carrega o desejo de tornar a Amazônia uma questão pessoal para quem o lê” (Brum, 2021, p. 16). Não há dúvida de que o consegue. Atravessar o banzeiro da sua escrita significa, se não amazonizar o corpo no sentido presencial, ao menos amazonizar a imaginação. Descolonizá-la, torná-la floresta, talvez seja já alguma coisa, um passo fundamental para qualquer transformação que faça deste mundo um lugar menos hostil.

REFERÊNCIAS

  • BENJAMIN, Walter (2011). Prefàcio epistemológico-crítico. In: BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão Edição e tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica. p. 15-47.
  • BRUM, Eliane (2021). Banzeiro Òkòtó: uma viagem à Amazônia centro do mundo. São Paulo: Companhia das Letras.
  • CLASTRES, Pierre (2018). A sociedade contra o Estado Lisboa: Antígona.
  • HARAWAY, Donna (2022). Quando as espécies se encontram São Paulo: Ubu.
  • KRENAK, Ailton. Futuro ancestral São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
  • LATOUR, Bruno (2021). Où suis-je? Leçons du confinement à l´usage des terrestres Paris: Les Empêcheurs de Penser em Rond.
  • LE GUIN, Ursula K. (2022). A fição como cesta: uma teoria e outros textos. Lisboa: Dois Dias.
  • LLANSOL, Maria Gabriela (s.d.). Lisboaleipzig 1: o encontro inesperado do diverso. Lisboa: Rolim.
  • LLANSOL, Maria Gabriela (1990). Um beijo dado mais tarde Lisboa: Rolim.
  • SAAVEDRA, Carola (2021). O mundo desdobrável: ensaios para depois do fim. Belo Horizonte: Relicário.
  • SAAVEDRA, Carola (2022). O manto da noite São Paulo: Companhia das Letras.
  • SYMBIOTIC EARTH: how Lynn Margulis rocked the boat and started a scientific revolution (2018). Direção: John Feldman. Produção: Susan Davies (147 min.).
  • Editor:
    Paulo César Thomaz

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    01 Jan 2024
  • Aceito
    14 Jun 2024
location_on
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: revistaestudos@gmail.com
rss_feed Stay informed of issues for this journal through your RSS reader
Accessibility / Report Error