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Poéticas do dilaceramento e da desolação: Bernardo Carvalho e Sergio Chejfec

Tearing and desolation poetics: Bernardo Carvalho and Sergio Chejfec

Resumo

Este trabalho consiste em uma análise de como as narrativas contemporânea brasileira e argentina, especificamente os romances Teatro (1998CARVALHO, Bernardo (1998). Teatro. São Paulo: Companhia das Letras.), do escritor brasileiro Bernardo Carvalho, e Los incompletos (2004CHEJFEC, Sergio (2004). Los incompletos. Buenos Aires: Alfaguara.), do argentino Sergio Chejfec, ficcionalizam diferentes poéticas da experiência contemporânea, com ênfase principalmente na impossibilidade e nos obstáculos em transformar o momento vivido em matéria narrativa.

Palavras-chave:
literatura argentina; literatura brasileira; Bernardo Carvalho; Sergio Chejfec

Abstract

This work consists of an analysis of how the Brazilian and Argentine contemporary narrative, specifically the romances Teatro (1998) by the Brazilian writer, Bernardo Carvalho, and Los incompletos (2004) of the Argentine Sergio Chejfec, fictionalize different poetics of the contemporary experience, with emphasis mainly on impossibility and impediments to transform the lived moment in narrative material.

Key words:
Argentine literature; Brazilian literature; Bernardo Carvalho; Sergio Chejfec

A degradação da experiência

En la actualidad, cualquier discurso sobre la experiencia debe partir de la constatación de que ya no es algo realizable.

Giorgio Agamben

No entreguerras europeu, Walter Benjamin situava as causas do empobrecimento da experiência, de sua impossibilidade de constituir-se enquanto matéria narrável, no vertiginoso crescimento da técnica, na repetição infindável da cadeia de montagem e na catástrofe da guerra mundial. No ensaio “Experiência e pobreza” (1994), encontramos referências essenciais para compreendermos a articulação entre os conceitos de experiência e vivência, por meio dos quais Benjamin elabora sua análise crítica da modernidade.

“As ações da experiência estão em baixa”, diz ele no início de seu escrito. Assistimos na modernidade à “mudança na estrutura da experiência”: a experiência, inscrita numa temporalidade comum a várias gerações, garantindo a existência de uma memória coletiva e, por conseguinte, uma verdadeira formação, transforma-se em vivência, tornando-se inelutavelmente privada, inacessível e incomunicável, envolta pelo tempo acelerado do capitalismo, em que a imediaticidade molda as ações do homem (Benjamin, 1994BENJAMIN, Walter (1994). “Experiência e Pobreza”; “O narrador”; “Sobre o conceito de História”. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense. v. 1.).

Décadas depois, o filósofo italiano Giorgio Agamben assinala, em Infancia e historia (2007), que o que torna insuportável a existência cotidiana não é a insignificância da vida contemporânea com respeito ao passado, mas a incapacidade de o homem traduzi-la em experiência. Em meio à radical incerteza de seus traços biográficos e incrustado na paisagem urbana das grandes cidades, esse homem enfrenta sem chance de vitória os obstáculos que lhe impossibilitam transmitir e apropriar-se de experiências.

Agamben assinala igualmente que a tranquila existência cotidiana em uma cidade grande basta para levar a efeito a destruição da experiência na contemporaneidade, visto que a jornada do homem contemporâneo no espaço urbano está esvaziada de elementos que possam ser traduzidos em experiência. Após analisar o conceito de experiência na filosofia moderna e assinalar a poesia, de Baudelaire em diante, como a mais clara expressão da crise desse conceito, o filósofo aproxima-se da contemporaneidade para destacar, por exemplo, a narrativa de Proust, que já não exprime nenhuma experiência, nenhum sujeito, mas apenas o que ele denomina de “una infinita deriva y un casual entrechocarse de objetos y sensaciones” (Agamben, 2007_______ (2007). Infancia e historia. Buenos Aires: Adriana Hidalgo., p. 57).

Partindo dos modelos de poder foucaultianos, soberania e biopolítica, Agamben, em Homo Sacer (2006AGAMBEM, Giorgio (2006). Homo Sacer. El poder soberano y la nuda vida. Valencia: Pre-textos.), avança na constituição de um presente em que, de uma política baseada na obediência dos corpos e voltada para um crescimento da produção industrializada, passou-se a uma biopolítica fundada no controle da vida, visando à produção de subjetividades mais adaptadas ao modo de vida pós-industrial.

Com efeito, a cada separação entre não humano e humano, segundo observa o autor, configuram-se novas fronteiras entre o que ele denomina “muçulmano e homem”, “vida vegetativa e vida consciente”, “cidadãos e refugiados”, “vidas qualificadas e vidas sem qualquer valor”. Nesse último caso, sobressai a particular situação de alguns dos países em desenvolvimento nos quais a desqualificação de certas vidas salta à vista (Agamben, 2006).

Nessa crítica radical à violência, à total privação do direito que o homem contemporâneo vivencia, o filósofo italiano se reporta ao campo de concentração de Auschwitz como paradigma de tantos outros campos que pontuaram e continuam pontuando a história ocidental, campos em cuja circunscrição, atualmente cada vez mais imprecisa e deslocante, uma vida fora das normas religiosas e naturais, “vida nua”, se põe à completa disposição de um poder soberano.

As tentativas de certo modo frustradas de Benjamin de resgatar os vestígios de uma comunidade originária, por onde resvala a tradição e também os anseios utópicos, em nossa Era parecem ser definitivamente irrecuperáveis. Agamben, por sua vez, enxerga na vida radicalmente violenta e privada de direitos do homem das últimas décadas do século XX uma irreversível incapacidade de apropriar-se dos eventos que ocorrem ao seu redor, traduzi-los e narrá-los como experiência.

Desse modo, as diferentes figurações da experiência nas narrativas latino-americanas pós-ditatoriais que serão estudadas neste trabalho parecem remeter ou figurar essa mudança na estrutura da experiência, em meio às ruínas, às atrocidades, às ações violentas inseparáveis da existência contemporânea.

Com a dissolução e a intricada recomposição do pensamento social e cultural na década de 1990 na América Latina, intensificadas pela hegemônica corrente econômica neoliberal desses anos, desaparece o horizonte ideológico que alimentava a escrita de obras com perspectivas de mudança e de recomposição, quer seja a utopia dos anos 1970 ou a construção de uma memória coletiva nos anos 1980.

Ocorre então a conformação de uma experiência de dilaceramento e de desolação. Presenciamos uma subjetividade feita de pedaços, estilhaçada, mortificada muitas vezes. O exterior, em ruínas, desertificado, passa a representar um gesto de intimidação contínuo, por vezes, um prenúncio de um acontecimento incerto e mais ou menos agressivo. A experiência é constituída, por conseguinte, por um sujeito extenuado, exaurido, atravessado por um sentimento de insuficiência e incompletude diante do real.

Teatro

A pornografia é a atividade humana mais realista e terrível, por subverter todas as ilusões, de surpresa, quando menos se está preparado para encarar o vazio do mundo.

Bernardo Carvalho

O romance Teatro, publicado em 1998, foi selecionado, da mesma maneira que Los incompletos, porque neste texto podemos reconhecer diferentes figurações de uma experiência contemporânea de dilaceramento e desolação, a partir de uma geografia marcadamente urbana e de personagens e vozes narrativas mobilizados por um exterior ameaçante e por uma gestão da vida precária e rota - quase sempre marcada pela violência.

Teatro está estruturado em duas partes, dois narradores em primeira pessoa que se complementam e se misturam. O narrador do primeiro relato, denominado “Os sãos”, é uma personagem chamada Daniel, policial aposentado de um país desconhecido, envolvido numa trama que compreende uma série de ataques terroristas cujo autor é o próprio Estado. O segundo relato, “O meu nome”, está dominado também por uma personagem narradora chamada Daniel, agora fotógrafo de paisagem, com vínculos com o mundo da indústria pornográfica homossexual, que igualmente desvela uma trama de assassinato.

Uma vez mais a arquitetura dos textos de Carvalho se impõe à trama. Desta vez, o texto se organiza de forma binária, dupla - estrutura bastante utilizada em outros romances do autor. Dois relatos de duas personagens de mesmo nome, complexos e perturbadores, cruzam-se e interpenetram-se para conformar um traçado nebuloso, em que prima o desconcerto racional, em que os parâmetros constituintes de ambos estão sob suspeita ou até mesmo em curto-circuito.

Isso ocorre porque em certo momento do relato da segunda história, o narrador, esse fotógrafo de paisagens chamado Daniel, internado num hospício supostamente por formar parte de um grupo de admiradores de um astro pornô chamado Ana C., depara-se, e com ele o leitor, com o texto da primeira parte, “Os sãos”. O texto não passaria de um manuscrito de outro paciente psiquiátrico, sem conexão com as personagens e acontecimentos narrados. Poderia ser até mesmo Ana C. comunicando-se com Daniel por sinais.

Esse gesto de provocante estranhamento invalida, desmente as histórias e os personagens da narrativa precedente. Podemos dizer que o leitor depara-se com a duplicação de certos personagens como desdobramento e estilhaçamento ontológico do próprio sujeito. Enfrenta essa duplicação, esse dilaceramento de relatos e figuras narrativas, como mediador de diferentes versões, pressionado a entendê-las ora como provenientes do mesmo sujeito, ora como originárias de fontes diferentes, entre limites e fronteiras que vão além da desarticulação da linearidade e da cronologia dos espaços do desejo, do delírio e da loucura. Constituem resíduos, ruínas de sentido, que intoxicam de tal maneira os vínculos de temporalidade e causalidade da narrativa que, para o leitor, acaba por colocar em risco a própria plausibilidade dos textos.

Este duplo também estará condicionado e intensificado pela situação em que se encontra o narrador do segundo relato, ingressado num hospital para pessoas com problemas mentais, tendo como interlocutor direto o psiquiatra, e coincide com uma ideia de transformação, de multiplicidade que se estende até mesmo ao gênero das personagens, visto que a personagem mulher Ana C. do primeiro relato é uma estrela masculina da indústria pornô no segundo, que termina assassinada.

Podemos assinalar igualmente que, com essa organização narrativa, somos levados a uma espiral em que a insanidade e a desolação da personagem narradora do segundo texto dilaceram sentidos e os revogam à medida que os relata. As histórias se diluem em múltiplas versões; acompanhamos, assim, o desmoronamento e a diluição de um mundo estável e codificável.

Los incompletos

Pensé que la gente estaba de por sí menguada, un vacío definitivo desautorizaba a cada uno de los mortales y que ello se había convertido en lo proprio de la persona humana.

Sergio Chejfec

Em Los incompletos, um personagem narrador recebe e lê cartões-postais que um amigo, um viajante recorrente de nome Félix, envia-lhe desde diferentes lugares e países. Em folhas com cabeçalho de hotel ou em toscos cartões-postais, o amigo não deixa de lhe enviar mensagens erráticas, incompletas, a partir das quais o narrador reconstrói - poucas vezes de modo linear e muitas vezes com desacertos - as ações e os pensamentos do viajante, inclusive sua aproximação com uma recepcionista de hotel. Embora os postais digam pouco, umas linhas invariavelmente escassas, pressupõe-se um fundo comum que não precisa ser explicado entre os amigos, e um código próprio que os aproxima e comunica além das palavras e permite a recomposição, ainda que fragmentária e hipotética, da história.

Está presente na decisão de Félix de deixar a Argentina uma busca por um sentido de nacionalidade mais amplo, flutuante, que possa protegê-lo das decisões de um único Estado. Esse apelo a uma condição nacional diferente da que lhe cabe por nascimento dá a conhecer igualmente uma preocupação com os efeitos emocionais decorrentes dessa única nacionalidade. Embora os traços próprios da personagem pareçam para o narrador ter sido trocados por outros apenas convencionais, isso se deve sobretudo à inclinação de Félix para o anonimato, para o indiferenciado.

Nesse vazio de notícias que marca a ausência de Félix, impõe-se a imaginação, que das frestas do passado, da cultura ou do lugar comum constrói um simulacro de realidade, um teatro, sustentado por lugares e seres incompletos e inventados. Porém, alguma coisa ainda permanece truncada, inacabada e exige a intervenção daquele que lê.

Sobressai assim o caráter de artifício que possui o ato de leitura, que suporta um exercício de imaginação atenta e ativa. É precisamente esse exercício que recria a trama a qual ocupará boa parte da narrativa que é a presença de Félix em Moscou e seu relacionamento com uma jovem que o recebe em um hotel.

Apesar dessa linha argumental exígua, o que se adensa na narrativa é a própria cena da escrita, uma escrita que interroga a respeito da qualidade dos fatos, se interpela e questiona sua autoridade para construir um mundo que se apresenta vacilante e incompleto como os próprios personagens.

Chejfec integra no relato a forma vacilante, inacabada, definitiva, mas enigmática, do presente. Em certo sentido, instaura a desolação, a incompletude e a artificialidade na experiência vital do sujeito contemporâneo que em meio a uma paisagem sombria enfrenta as distorções brutais da história. Não produz com a escrita um sistema compensatório, mas assume a experiência do mundo em toda a sua complexidade, com suas indeterminações e obscuridades.

Isso posto, em meio a essas figurações poéticas de dilaceramento e desolação, observamos traços da deriva, da incomunicabilidade, da inacessibilidade e da violência a que se referem Benjamin e Agamben em seus textos, como resíduos de uma modernidade passada que voltam à tona, acelerados, transformados, intensificados numa América Latina finissecular.

A radical incerteza dos traços biográficos das personagens, as vidas sem qualquer valor incrustadas na paisagem urbana das grandes cidades e o estilhaçamento ontológico não apenas do sujeito, mas também do texto, do discurso que sustenta esse sujeito comunicam-se com algumas teses de ambos os filósofos como um espectro insano e cruel enunciado desde os limites do devaneio e da loucura.

Frente à impossibilidade de uma experiência ficcional substantiva, tudo é simulação, cópia, teatro, espectro. Todo relato é devorado por outro no interior do próprio relato. O campo de sentido e de significado está permanentemente em trânsito, à espera de uma nova versão que desacredite a anterior.

Referências bibliográficas

  • AGAMBEM, Giorgio (2006). Homo Sacer. El poder soberano y la nuda vida. Valencia: Pre-textos.
  • _______ (2007). Infancia e historia. Buenos Aires: Adriana Hidalgo.
  • BENJAMIN, Walter (1994). “Experiência e Pobreza”; “O narrador”; “Sobre o conceito de História”. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense. v. 1.
  • CARVALHO, Bernardo (1998). Teatro. São Paulo: Companhia das Letras.
  • CHEJFEC, Sergio (2004). Los incompletos. Buenos Aires: Alfaguara.
  • LOWY, Michel (1990). “Walter Benjamin crítico do progresso: à procura da experiência perdida.” In: . Romantismo e messianismo. São Paulo: Perspectiva/Edusp.
  • PENNA, João Camilo (2006). “Sobre viver no lugar de quem falamos (Giorgio Agamben e Primo Levi)”. In: SELIGMANN-SILVA (Org.). Palavra e imagem, memória e escrita. Chapecó: Argos. p. 127-84.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Out 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Dec 2010

Histórico

  • Recebido
    Jun 2010
  • Aceito
    Ago 2010
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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